Águas Turvas - Sob as Águas



Sob as Águas

Passava das cinco da tarde quando finalmente Gabriel e Nancy atravessaram a Belmont Street para um lanche rápido no D’Angelo. Apesar de cardiologistas, ambos não tinham uma relação pragmática com horários e alimentação. Ele, com apenas três meses em Worcester, já estava viciado no sanduíche feito de rosbife, queijo cheddar, salada, cebola roxa e um molho especial. Ela ficava sempre entre o sanduíche de presunto, queijo suíço e mel ou uma salada de frango, uvas-passas, nozes e aipo. Havia um acordo velado entre eles: comer vagarosamente e tentar não discutir quaisquer assuntos profissionais à mesa. Com o olhar
abatido pelo cansaço, tanto pelo processo de adaptação quanto pela rotina exaustiva, Gabriel desabafou:

— Às vezes eu sinto falta do silêncio do sítio dos meus pais. De poder subir no alto do morro e sentir o vento. De colocar os pés nas águas do riacho... — perdeu-se na vista da movimentada Belmont, através da janela de vidro.

— Por que você não aproveita e tira uns dias de folga? — questionou Nancy, e então prosseguiu:
— Desde que chegou aqui, há três meses, não para de estudar e trabalhar. Você precisa sair, conhecer pessoas. Quem sabe até fazer uma viagem, mesmo que pequena, para conhecer um pouco Massachusetts. O mundo não vai acabar se você ficar uns dias fora.

— Mas eu não conheço quase nada por aqui.

— Já que você disse estar com saudades do ambiente bucólico onde vivia, de subir os morros e estar cercado de natureza, eu nem vou indicar ir para Boston. Mas acho que tenho uma ótima sugestão de passeio.

— E qual é?

— Holden — afirmou categoricamente Nancy.

— Holden? — Gabriel franziu o cenho.

— Sim. Holden é uma pequena cidade que fica nas colinas, ao norte. Um lugar lindo, Gabriel. Acho que é exatamente o que você procura. Beleza, conforto, natureza, tranquilidade e silêncio.

— E fica muito longe?

— Não. É muito perto, cerca de vinte quilômetros. Meia hora de carro. E a paisagem é deslumbrante. — Nancy sorriu, mas com um semblante nostálgico.

— Vou te ensinar o caminho pelos reservatórios de água. É uma pequena estrada alternativa. Acho que você vai gostar.

— Eu não sei... — tergiversou, ainda resistente.

— Gabriel, às vezes é necessário recarregar as baterias. E só conseguimos fazer isso nos lugares de que gostamos. Como você não conhece quase nada por aqui, chegou a hora de começar a lhe apresentar algumas opções.

— Mas eu ainda tenho muitas coisas para estudar. E alguns pacientes que preciso acompanhar. Às vezes eu penso que o dia é curto demais! — Pois organize seu tempo — Nancy lançou aquele olhar de falsa sanha. — Como sua tutora, tenho o dever de cobrar isso. E inclua nessa organização alguns dias para ficar longe
de tudo isso, para não sentir cheiro de hospital, nem ouvir falar em acidentes, cirurgias e morte — delicadamente, ela tocou sua mão. — Gabriel, até quem salva vidas às vezes precisa
ser salvo de tudo isso.

— Você tem razão — assentiu.

— Então, faça essa viagem, por você.

— Mas e a Gertrude? Não me sinto seguro em deixá-la sozinha, mesmo que por poucos dias.

— Gabriel, eu cuido da Gertrude há anos e posso lhe assegurar de que poucas vezes ela esteve tão bem. Ficou muito mal depois da morte do Irving, mas desde que você chegou, ela parece ter encontrado um novo momento, outras responsabilidades... — Nancy prosseguiu em sua análise. — No entanto, algumas coisas precisam ficar bem claras entre vocês. É compreensível que vocês estejam desenvolvendo uma espécie de relação de transferência, dadas as circunstâncias. Mas você não pode permitir que isso se torne algo doentio. Você está sendo ótimo pra Gertrude, assim como ela pra você. Mas isso não pode colocar em xeque suas escolhas e necessidades pessoais, muito menos impedi-lo de viver além das paredes do seu apartamento e das macas do UMass.

— Como sempre, você tem razão — Gabriel sorriu, com aquele sarcasmo carinhoso dos que encontram a intimidade de uma amizade.

— O que seria da minha vida sem você?

— Então preste atenção, mocinho, hoje é sexta-feira! Alugue um carro e vá amanhã cedo para Holden. — Enquanto Nancy falava, levantaram daquela mesa quase cativa e seguiram rumo à porta do D’Angelo. — O outono chegou, os dias já estão ficando frios e você pode aproveitar o sol da manhã na estrada. E ainda almoçar no caminho, num restaurante charmoso que serve o melhor salmão que já comi na vida. Aliás, você já tirou sua licença para guiar
aqui nos Estados Unidos?

— Já, sim. Ainda é provisória, mas já posso guiar — disse Gabriel, que em habitual movimento cavalheiresco, sempre abria a porta para Nancy. — Onde eu consigo alugar um carro aqui em Worcester?

— Logo ali na frente, na esquina da Belmont com a Natick Street, há uma locadora de veículos — tranquilizou-o Nancy, apontando para sua esquerda enquanto caminhava e tinha os cabelos remexidos pelo vento forte daquele final de tarde. — Mas vá lá agora pegar o carro. Ainda dá tempo. — Nancy sacou da bolsa um receituário do UMass e uma caneta. — Eu vou desenhar um mapa do caminho para Holden.

A médica colocou o receituário sobre o capô de um dos veículos estacionados em frente ao D’Angelo e passou a desenhar o caminho e apontar direções, como que estabelecendo um plano de voo:

— Você vai pegar a Belmont Street e seguir direto até entrar na Highland. Vá em frente, sem desvios. Você vai encontrar uma rotatória e irá pegar a segunda rua à direita: a Pleasant
Street. Siga nela até avistar um posto de combustível Getty e uma placa de sinalização. Fique atento, pois você vai entrar logo à direita, na Mower Street e seguir nela até a rua se dividir
em três. Entre na rua do meio, a Olean Street e vá direto. Quando começar a subir, ela vai mudar de nome para Reservoir Street, e é nela que você vai seguir até chegar a Holden. Não saia dessa estrada.

— Parece muito simples — disse Gabriel, acompanhando com atenção o desenho e as indicações minuciosas da dra. Nancy.

— Nessa estrada você vai margear os dois reservatórios de Holden. É uma subida muito tranquila, mas longa e constante. De repente, voilà... você vai perceber o ar ficando cada vez mais puro e fresco no caminho e que o mundo todo ficou pra trás. É uma delícia! — Foi possível novamente encontrar no rosto de Nancy a nostalgia de outrora.

— O.k.! Vou fazer isso...

— E fique tranquilo, eu vou estar aqui no UMass neste final de semana. Eu cuido dos seus pacientes. Não precisa se preocupar. — Nancy destacou a folha do receituário e a entregou a Gabriel. — Pode deixar que vou me convidar para jantar com a Gertrude amanhã à noite... Estou mesmo com vontade de comer novamente aquele bolo de carne!

— Bom, acho que todos vão estar em boas mãos.

— Você acha?!

— Talvez... — ironizou Gabriel, em tom de desdém.

— E eu ainda tenho que ouvir isso! Por que será que todo médico gosta de estar sempre nos extremos entre o egoísmo e o altruísmo? — questionou Nancy, comprando a provocação do amigo.

— Talvez por vivermos sempre superestimados profissionalmente e, no íntimo de cada um, injustiçados em suas confianças — seguiu Gabriel, filosofando. — Quando alguém sofre ou fica doente, a primeira coisa que pensa é em procurar um médico. Mas quando temem pela vida e percebem que ela está em nossas mãos, as pessoas rezam para um deus, um santo, qualquer outra coisa que motive sua fé. E quando o pior acontece, elas esquecem as orações e tentam encontrar onde nós, médicos, falhamos. Julgam nossas competências e, em geral, nos culpam por suas perdas.

— Você já parou pra pensar que nesses momentos pode não ter sobrado nada e a única coisa que lhes resta é encontrar um culpado? — Nancy gostava quando as conversas seguiam esse rumo. — E, além do mais, a vida alheia nunca está em nossas mãos. A nossa sim! Nessa podemos tentar manter o comando. Na dos outros, nunca. O máximo que podemos fazer é usar a ciência para tomar as decisões certas nos momentos exatos e ter fé de que conseguiremos
seguir em frente sempre que errarmos, quando falharmos. É uma guerra constante...

— É discrepante. Um verdadeiro exército guerreando pela vida e o único e verdadeiro instrumento pacificador é a morte.

— Nem sempre é assim, Gabriel. Pense que a vida é como um cookie: a superfície é árida, às vezes é duro demais, quase nunca está do jeito que gostamos, mas há sempre gotas de chocolate para consolar o nosso paladar, para adoçar a alma e compensar todo o resto que pode não estar tão bom quanto esperávamos.

— Você acredita que eu só como os cookies por causa das gotas de chocolate? — disse Gabriel quase infantil.

— Compreende a dinâmica? Se você quisesse apenas chocolate, pegaria um e comeria. Mas o prazer está justamente em encontrar as pequenas gotas de paz ao longo da vida.

— O interessante é que eu sempre percebi que há, na verdade, muito menos gotas de chocolates nos cookies do que mostram as fotos das embalagens.

— Então talvez esteja chegando a hora de você parar de buscar gotas de chocolate em cookies solitários. Que tal waffles? Você encontra a outra parte e juntos vocês podem colocar o recheio que quiserem e na quantidade que desejar.

— Hum! Isso parece bom...

— E é! Mas cuidado! Engorda!

— Isso é um perigo...

— Viva, Gabriel. Viva. Não dá pra ficar sob as águas todo o tempo. Pare de se esconder atrás do passado, dos livros, do trabalho, ou até da Gertrude. Simplesmente permita-se viver.
Você é um médico excelente, um dos alunos mais competentes que já tive. E, se eu estou te dizendo isso, é porque gosto de você. Mas quero mais. Quero admirá-lo. E para isso, não basta apenas ser um grande profissional. Você também precisa ser um grande homem.

— Nancy, eu... — não conseguiu concluir, sendo imediatamente interrompido pela amiga e professora.

— Ser humano, Gabriel. É a nossa matéria-prima e aquilo que precisamos ser em primeiro lugar, antes mesmo de sermos bons profissionais. Ser humano — contemporizou Nancy, enquanto uma ambulância cortou a Belmont Street em alta velocidade seguindo em direção ao UMass.

— Acho que o dever te chama... — alertou Gabriel, com um leve sorriso torto. — E eu preciso alugar um carro!

— Ah! — exclamou Nancy já a certa distância do rapaz, que seguia na direção oposta. — Amanhã, no caminho para Holden, quando você começar a perceber que está chegando à área urbana, ainda na Reservoir Street, fique atento à sua esquerda. Pare para almoçar no Val’s Restaurant and Lounge. É lá que você vai encontrar o maravilhoso salmão que eu havia dito. É delicioso! E o lugar é um charme, muito aconchegante e com um serviço de primeira.

— Pode apostar que eu vou conferir!

— Alugue o carro e vá! Tente fazer qualquer coisa ao contrário disso e você vai se ver comigo. Eu odeio quando meus alunos me desobedecem ou quando meus amigos não me ouvem.

— O.k.! O.k.! O.k.! Já estou indo...

— Acho bom mesmo! — disse Nancy, já dando as costas e seguindo para atravessar a Belmont.

— Obrigado, Nancy! — sorriu Gabriel, falando em tom quase inaudível.

No estacionamento da Wachusett, Nicole permanecia perdida em pensamentos dentro de seu carro. Já não sabia mais quantos cigarros tinha fumado, naquele que era o refúgio de seu vício
secreto. Entre uma tragada e outra, buscava a resposta para uma pergunta que não saía de sua cabeça nos últimos três meses: onde estaria o professor Christian Taylor? Hannah tinha ouvido dizer que ele daria palestras naquele semestre, mas dois meses se passaram desde que as aulas começaram e nem sombra daquele homem que tinha revirado seus sentimentos com um único olhar.

Já tinha passado pela porta da secretaria diversas vezes, mas faltava-lhe coragem para entrar e questionar algum dos funcionários sobre essas supostas palestras de História que Christian ministraria aos alunos da WRHS. Pela primeira vez na vida não queria expor à Hannah o que estava sentindo, ainda que ela fosse sua melhor amiga e facilmente se empenhasse na busca por todas as informações possíveis e imagináveis. Mas era mais fácil falar sobre Física Quântica ou explicar os mecanismos da fotossíntese do que abrir a Caixa de Pandora dos seus sentimentos. A única pessoa que conseguia acessá-la, de fato, em seu íntimo, era seu irmão Justin, com quem conversas de todos os níveis eram permitidas. Talvez pelo fato de ele ser gay e ter um
nível de sensibilidade e compreensão um pouco acima do da família, Nicole não havia criado muros que a protegessem dos questionamentos de Justin. Talvez por ele compartilhar com ela
suas dúvidas e paixões, fazendo-a sentir-se importante e irmanada não apenas em sangue, mas também na interpretação e construção dos próprios sentimentos. Amar é um verbo complicado, fosse aos dezessete, fosse aos trinta e dois anos. Nicky sempre foi cética em relação a tudo isso. Mas sentimentos turbulentos a tinham
dominado nos últimos meses. “O que é isso? Paixão? Amor à primeira vista? Idiotice? Tesão?”, questionava-se em completa confusão. Tudo o que tinha certeza é de que aquele homem, que vira uma única vez naquele mesmo estacionamento, não saíra mais de sua cabeça e, principalmente, dos seus sonhos. Três meses depois, ainda dormia e acordava pensando no professor Christian. Seus hormônios deveriam estar explodindo tal qual fogos de artifício. Já não sabia mais o que fazer e tinha a convicção de que precisava tomar alguma iniciativa. Por ora, sacou da bolsa um maço de Marlboro Light e acendeu seu último cigarro do dia.

Foi por pouco que Gabriel conseguiu encontrar a Entreprise Rent-A-Car da Belmont Street aberta. Tradicionalmente, a loja encerra seu expediente às seis horas. A noite já tinha caído e o relógio estava prestes a marcar sete horas quando ele deixou a locadora em um compacto Toyota Yaris branco. Pequeno, barato e econômico, mas extremamente confortável e gostoso de pilotar. Não teve dúvidas assim que se sentiu abraçado por seus bancos anatômicos. O veículo era ideal para aquela sua pequena viagem de final de semana pelas colinas e lagos do Condado de Worcester. Era a primeira vez que estava guiando nos Estados Unidos e, tão logo
percorreu seus primeiros metros na Belmont, foi tomado por uma súbita energia diferente, um calor adolescente que, mesmo com o frio considerável daquele início de noite, o fez abrir o vidro e deixar-se atingir pelo vento forte e úmido. Não foi direto para casa naquela noite. Por cerca de duas horas, dirigiu sem rumo por uma cidade nebulosa e movimentada, até que os primeiros pingos de chuva o acordaram daquele transe automobilístico.

No dia seguinte, acordou cedo. Apesar da forte chuva da noite anterior, o sábado amanheceu ensolarado, com poucas nuvens no céu. Estava frio naquela manhã de outubro de 2008. O relógio digital na cabeceira de sua cama registrava cinco graus, mas, ao abrir a janela, percebeu que a brisa fria daquela região do Lago Quinsigamond provocava uma sensação térmica de graus negativos. Agasalhou-se convenientemente, colocou na mochila algumas roupas, sua escova de dente, desodorante, a inseparável cera capilar, e desceu para dar início à sua jornada. Tão logo pisou no primeiro degrau, sentiu o cheiro bom de maçã ao fogo que dominava o ambiente. A insuperável Gertrude não o deixaria sair sem um saboroso café da manhã.

— Você não sai daqui sem antes comer um strudel quentinho. Acabei de fazer pra você! — disse ela, naquela melhor personificação de avó, meio autoritária, meio mãe com açúcar. E arrematou dramática, como não poderia ser diferente. — Já embalei alguns pra você levar, caso tenha fome durante a viagem... e para que, caso você decida me abandonar aqui sozinha, possa sentir o gostinho desse strudel que igual não há e voltar correndo pra casa!

Quando ligou o carro e acenou para Gertrude na varanda, Gabriel sentiu uma leve pontada no peito, aquele sino triste de despedida, ainda que momentâneo. Naqueles três meses, era a
primeira vez que deixava aquela sua nova e querida avó adotiva para algo que não fosse trabalho. Havia em ambos um sorriso ao mesmo tempo triste e consolador, quando a boca se expande, mas os lábios negam a descerrar-se. Ela só entrou em casa depois que perdeu o veículo de vista. Ele ligou o rádio do carro e seguiu. Um comentarista concluía sua narrativa via telefone:

— Talvez estejamos diante da maior crise financeira desde a Grande Depressão. O presidente Bush assinou ontem a lei que autoriza o Tesouro a assumir essa que deve ser a intervenção do governo mais cara da história. Ainda assim, o plano de resgate econômico de setecentos bilhões de dólares é visto pela oposição como um band-aid, que não aborda os problemas centrais do sistema financeiro. Faltando apenas um mês para as eleições presidenciais, a crise parece afetar diretamente os comitês de campanha de Barack Obama e John McCain. Mas o nosso congressista de Massachusetts, o democrata Barney Frank, está otimista. Ele, que é presidente do Comitê de Serviços Financeiros, afirmou que no próximo ano haverá um empenho cirúrgico sério para regular o sistema financeiro dos Estados Unidos. É o que todos nós esperamos! — encerrada a ligação, o locutor reassumiu o comando do programa.

— E este foi o nosso comentarista Rupert Leigh, falando direto de Washington. Nós voltamos em alguns minutos. Agora aumente o som, porque vem aí Coldplay, com o estrondoso sucesso “Viva la Vida”. Curta essa manhã de sol e viva a vida! Gabriel acatou a sugestão do radialista e aumentou o som do carro. Estava descendo a
Belmont Street, exatamente quando a rua deixa de ser mão dupla e assume mão única, bem às margens das águas escuras da Lagoa Bell, emolduradas pelas frondosas árvores do Chandler Hill Park já salpicadas de folhas amarelas. Ao seu lado, no banco do carona, o mapa desenhado pela dra. Nancy estava preso pela delicada embalagem de doces. Desejou por um momento que ela estivesse ali com ele. Ou mesmo a velha Gertrude. Mas mudou de ideia, segundos depois, pois sentia, em seu íntimo, que essa viagem sozinho era um marco importante, uma espécie de rito de passagem. Tinha acabado de entrar na Highland Street quando sacou do pacote um strudel de maçã e seguiu seu caminho rumo ao final de semana em
Holden, saboreando aquela massa finíssima e ouvindo Coldplay.

Justin não fazia objeções em dormir no escritório central da empresa da família, encravada na Franklin Street, no centro financeiro de Worcester. A ETS — sigla para Edward Thompson
and Sons, nome real da firma — não tinha se tornado um grande sucesso no mercado de venda de automóveis apenas pela favorável alusão alienígena de sua abreviatura. Tratava-se de um negócio familiar com quatro décadas de existência, iniciado por um ainda jovem e obstinado Edward no final da década de 1960. Sua forte veia administrativa e um olhar clínico para a dinâmica do mercado fizeram com que a ETS se consolidasse e prosperasse ao longo dos
anos. Tão logo Ethan e Justin começaram a se dedicar à empresa, a visão firme do primeiro e o empreendedorismo do segundo fizeram com que os negócios se expandissem em proporção geométrica na última década e, naquele momento, não havia uma única cidade de Massachusetts sem uma filial da ETS e milhares de carros pelas ruas com a marca registrada dos Thompson: as iniciais da firma dispostas dentro dos anéis de Saturno. Tornaram-se uma família muito mais rica do que Edward e Catherine pudessem ter sonhado algum dia.

Com a proximidade do final do ano, uma crise financeira à vista, a um mês das eleições presidenciais, e o crescimento exponencial das importações de carros de origem asiática, bem mais baratos que os produzidos em solo norte-americano, uma grande empresa de revenda de automóveis como a ETS precisava ter todas as cautelas nas negociações com seus fornecedores e, ainda assim, manter a celeridade das transações. Isso exigia um esforço redobrado de Justin, que comumente virava madrugadas no escritório-sede da empresa, no sexto andar do elegante edifício envidraçado em tons de azul, que sua família construiu na esquina entre a Franklin e a Foster Street.

Justin estava exausto. Quando avistou sobre sua mesa o relógio digital marcando dez e meia da manhã, decidiu que era hora de encerrar a jornada e ir para casa. Pela hora, poderia passar
antes no Val’s, muito próximo de onde moravam, e almoçar. Sempre teve verdadeiro fascínio pela comida daquele lugar e seu organismo estava pedindo alguma comida, já que tinha passado a noite inteira apenas a café espresso. Fez uma rápida faxina na sua mesa, pegou seu notebook e desceu pelo prédio quase vazio, salvo pelos faxineiros e seguranças lhe acenando a cada encontro.

Ao chegar ao estacionamento privativo e entrar no seu “carro de guerra”, Justin teve a certeza de que fizera um excelente negócio ao dar setenta mil dólares naquele Hummer H2 Silver Ice, de edição limitada e que só chegaria às lojas no início do ano seguinte. Por suas funções como herdeiro e chefe executivo da maior empresa de revenda de automóveis da Nova Inglaterra, conseguia a exclusividade de vendas antecipadas e teve a oportunidade de realizar seu sonho de ter uma máquina daquelas: bonito, robusto e extremamente confortável. Saiu pela Franklin, contornou o Worcester City Hall pela Front Street, no caminho mais curto para subir a Pleasant Street, a caminho de Holden. Em alguns minutos já estaria passando pelos reservatórios.

Pouco depois da bifurcação que dá acesso à South Road e da forte curva à direita, bem à margem do reservatório, Justin reduziu drasticamente a velocidade do seu Hummer tão logo avistou, bem mais adiante, um compacto branco — provavelmente um Yaris, pensou — deixando a área de escape do lado oposto da estrada, atravessando-a e seguindo à sua frente, no mesmo sentido. Apesar da potencial diferença entre os dois veículos, a Reservoir Street é estreita e muitas vezes sinuosa, não permitindo grandes velocidades, o que acabou conduzindo ambos nessa posição até bem próximo da Christian Academy, quando Justin ultrapassou o
pequeno carro à sua frente. Logo adiante sinalizou e entrou à esquerda no estacionamento do Val’s Restaurant and Lounge, na entrada de Holden. Estava abrindo a porta do carro para descer quando avistou o Toyota branco cortando a rua e também entrando no local.

Era completamente impossível mensurar pela régua humana dos sentimentos quão bem Gabriel estava se sentindo depois daquele momento sentado à margem do Reservatório de Holden, contemplando aquela magnífica paisagem, ao sabor de um quase incorruptível
silêncio e do ar puro, mesclado pelo perfume de terra úmida que exalava de um formigueiro próximo. Também era impossível calcular quanto tempo ficou ali, perdido em pensamentos e encontrado na geografia ideal de seus sonhos. “Nancy não poderia ter dado melhor sugestão”,pensou.

Mas se não era possível medir o tempo nos ponteiros do relógio, o mesmo não podia dizer sobre o tempo fisiológico. Dentro dos processos vitais do ser humano, a fome será sempre o grande despertador. Gabriel sentiu sua barriga emitir um sonoro chamado, certamente clamando pelo salmão, tão bem recomendado por sua amiga e tutora. Atravessou a rua e entrou no carro, já certo de que estava se aproximando de Holden. Tão logo pegou a estrada,
sentiu a aproximação de um veículo grande e, ao olhar pelo retrovisor, pôde observar aquele utilitário enorme, num tom prata brilhante. Era praticamente um carro de guerra. Por boa parte
do percurso à frente, seguiu com ele na sua cola, tendo a sensação de que, a qualquer momento, ele o iria engolir. Reduziu a velocidade e deu caminho para que fosse ultrapassado e pudesse seguir mais tranquilo.

Gabriel começou a perceber um aspecto mais urbano na paisagem, assim como Nancy havia relatado. Estava chegando a Holden. Voltou sua atenção para tentar localizar a entrada do restaurante, o que não tardou a acontecer. O enorme estacionamento estava quase lotado, mas chamou-lhe a atenção o carro prateado que encontrara na estrada, parado ali bem perto, agora com um homem saltando dele. Percebeu também uma vaga disponível do lado direito daquele
veículo e para lá se dirigiu. Desceu do carro e subiu, logo atrás daquele homem, a pequena escada que dava para a porta de entrada do Val’s Restaurant and Lounge. Virouse rapidamente para observar os arredores e, quando deu por si, já estava esbarrando, quase em tropeço, no homem à sua frente, estancado diante da porta de madeira e vidro. Reconheceram-se imediatamente.

Como não há qualquer explicação lógica para tudo aquilo que realmente importa na vida acontecer, novamente lá estavam Gabriel e Justin, a menos de um palmo de distância um do outro. Olhos nos olhos. Corações que não apenas batiam em disparada. Eram, na verdade, arremessados em alta velocidade dentro peito, com tal força que pareciam querer arrebentar as costelas. As pernas lhes faltavam o sustento, assim como toda a profundidade da respiração
não lhes era suficiente para uma mínima manutenção de consciência. Como dizer qualquer palavra, emitir algum som, quando a boca mais parece o deserto do Saara de tão seca?
Mistérios dos caminhos do destino, três meses depois daquele inusitado encontro no Logan Airport, em Boston, Gabriel e Justin estavam, de novo, frente a frente. Sem o tempo e sem o espaço. Sem sons ou quaisquer palavras. Apenas aqueles dois homens. Apenas aqueles dois corpos, tal qual o Céu e a Terra aguardando um dia de tempestade para que um raio faça a união. Naquele momento, cada coração já emitia seu próprio trovão.


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Ficha do conto

Foto Perfil briinogueira
briinogueira

Nome do conto:
Águas Turvas - Sob as Águas

Codigo do conto:
70319

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
04/09/2015

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