gringobrasileiro - Uma segunda chance - Parte 1



Demorei um pouco até conseguir entender o que estava acontecendo. Tinha algo em meu braço direito, minha cabeça doía e tentava abrir os olhos, mas a claridade do ambiente era muito forte.
Do lado esquerdo, próximo à porta, John cochilava com a boca aberta mostrando as profundezas de sua alma e David lia uma edição atualizada do The New York Times.

“Bem-vindo de volta” – disse uma enfermeira de pele negra, cabelo protegido por uma toca e um rosto extremamente atraente.

Diferente do que ouço de pessoas que ficam desacordadas por um período de tempo, eu não estava confuso. Claramente precisei de alguns minutos até assimilar onde estava, mas eu sabia o que tinha acontecido, e por um momento, senti raiva por não ter conseguido finalizar com tudo. A enfermeira de cabelo preso e rosto atraente dera-me algumas instruções e updates sobre minha situação e disse que me daria privacidade para conversar com minha família.

O quarto era confortável e totalmente coberto pelo meu seguro estudantil. Alguns equipamentos médios que não tentarei descrever por total ignorância do assunto, duas poltronas super confortáveis com cafés comprados no Starbucks, uma janela protegida por uma cortina azul claro e algumas pinturas de cores escuras penduradas na parede de entrada. Uma bandeja sobre a mesinha de centro carregava uma garrafa de água, um guaraná e um toddynho. Ri por dentro tentando entender onde é que eles conseguiram comprar guaraná e toddynho. Certamente não teria sido fácil encontrar naquela cidade.

Dois dias se passaram desde que tentei cometer suicídio. Pela explicação da enfermeira, o efeito não seria suficiente para me tirar a vida, mas para me causar danos irreparáveis. Naquela manhã de dezembro, enquanto gritava e me afundava no mais profundo da minha depressão, não tive controle sobre meus sentimentos e acabei por tentar calar a dor para sempre. Ao mesmo passo, no andar debaixo, John e David ouviram que algo estava acontecendo, mas preferiram me dar espaço. Depois de um tempo de chamando pela porta, decidiram entrar no quarto, e para tristeza, desespero e decepção, minha boca espumava qualquer coisa branca já com o efeito do remédio. Eu estava desacordado.
Prontamente fui levado ao hospital mais próximo cuja conta seria paga por meu seguro. Vale a pena citar que os Estados Unidos não possuem um sistema único de saúde, e portanto, se você não tem seguro... melhor torcer para não ficar doente ou se envolver em qualquer acidente.

“Eu posso explicar. Eu ia pedir ajuda, mas eu simplesmente perdi minhas forças” – disse em voz baixa e com os olhos já inchados enquanto a enfermeira fechava a porta me deixando a sós com minha família americana.

“Leo, não fale nada agora. Não te julgamos e não vamos te julgar. Você vai sair do hospital esta tarde e teremos tempo para falar sobre o que você quiser” – disse David fechando o jornal e se ajeitando na cadeira.

“Você viu que te trouxemos a bebida estranha que você gosta lá do Brasil?” – disse John me trazendo a lata de guaraná e um copo vazio.

“Encontramos em um mercadinho internacional aqui perto do hospital. Trouxemos algumas outras coisas que o funcionário disse que qualquer brasileiro gostaria” – complementou David mostrando uma sacola com algumas guloseimas brasileiras.
Tivemos um bom momento de comunhão e risadas naquele quarto de hospital. Me contaram as poucas novidades que perdera naqueles dois dias e também o que tinha acontecido no episódio de The Walking Dead naquele final de semana. Fizeram planos de ir a um show da cantora neozelandesa Lorde em sua passagem pela América, e ansiosos, falávamos sobre. John também citou que recebera uma ligação em nome da Universidade de Buffalo reiterando os convites para lecionar no evento de janeiro, e que as passagens seriam compradas em breve e o hotel seria reservado. Todos estavam felizes e orgulhosos por mim e pelas conquistas que conseguira depois do concerto de Dezembro, e eu também estava. Em meio a tantas novidades, tentava não pensar no que acontecera naquela semana. Seria mais fácil simplesmente fingir que tudo estava bem.
Pensar que mais tarde, naquele dia, teria que enfrentar John and David e falar tudo o que realmente estava acontecendo comigo já me embrulhava o estomago. Não estava com medo de julgamentos ou preconceitos, mas medo de enfrentar meus próprios fantasmas.
Todos sabemos que a melhor maneira de resolver os problemas é enfrentando-os, mas na prática isso dói e não é nada fácil.

Algumas horas depois, tive uma dura conversa com o médico responsável pelo meu caso. Este me indicara a um psicólogo e me explicaria o tamanho da minha burrada e que, se John não tivesse chegado a tempo, bem, eu teria conseqüências irreparáveis. Eu sabia disso. Mas agora não era hora para isso. Não era hora para lição de moral. Tudo o que queria era sair daquele hospital e sentir o frio do lado de fora outra vez. Estava enojado.

David dirigia o bonito e moderno CRV preto da família, enquanto John trocava a estação de rádio. A direção em que tomamos pegando a 45 sul, não era o caminho de volta para a parte de Manhattan em que morávamos, mas preferi não interferir ou fazer perguntas. Durante o caminho de aproximadamente vinte e cinco minutos, conversamos sobre trivialidades do dia a dia do e do tombo que John levara na entrada da garagem enquanto tentava tirar o gelo do vidro do carro na manhã anterior. A princípio, estranhei o fato de que ninguém conversava sobre o acontecimento. For um motivo até então desconhecido para eles eu tinha tentado cometer suicídio e acordara dois dias depois no hospital... como não falar sobre isso?

Depois dos já citados vinte e cinco minutos de estrada por Manhattan, paramos o carro em um dos pouquíssimos restaurantes brasileiros espalhados pela cidade. Existe uma grande quantidade de brasileiros que turistam pela Grande Maça americana, entretanto aquele restaurante era especial para mim. Localizado em um das poucas ruas calmas da região de Manhattan, se escondida apertado entre dois arranha-céus de cor vermelha pertencentes à mesma companhia de telefonia celular. Tratava-se de um restaurante com galeria de arte que semanalmente expunha fotografia ou pinturas de diferentes artistas brasileiros, e de certa forma, contava aos gringos a história do nosso país. Dos poucos pontos negativos sobre aquele restaurante único, está o fato de que não se pode conseguir uma reserva com menos de um mês de antecedência e o preço era bem, mas bem salgado. Por conhecer os proprietários da galeria, David conseguira reservas de última hora.

Estava bem movimentado, por ser um dia da semana. A bandeira brasileira contrastava sobre a parede preta e o teto industrial. Quadros sobre uma artista do nordeste brasileiro estavam pendurados sobre os varais de decoração. Apesar de não me lembrar de seu nome artístico, uma grande foto da linda senhora de rosto simpático e cabelos grisalhos era refletido na parede às minhas costas.

Todos pedimos feijoada – apesar de serem totalmente contra a idéia de comida “gorda” – e algumas latas de guaraná. Apesar do movimento, as pessoas eram muito discretas ao conversar, e portanto, ouvia-se uma música da Gal Costa como plano de fundo.

“Leo, nós precisamos conversar” – disse David me fazendo instantaneamente engolir seco e colocar meus talheres sobre a mesa.

“Você tem toda a liberdade para ser honesto conosco sobre qualquer coisa. Nós nos importamos com você e te ajudaremos, seja qual for à situação, mas você precisa confiar em nós” – complementou segurando a mão de John.

David tinha sempre aquela mesma expressão séria e amedrontadora, que dentro de seu peitoral musculoso, guardava um coração enorme e derretido pelo ser humano. Um homem extremamente sensível e que se esconde dentro de uma capa de machão. Chega a ser engraçado.

Neste momento, preservara em seu rosto um daqueles olhares gentis e aconchegantes que tanto me confortavam quanto tinha tido um dia difícil na universidade ou quando simplesmente achava que não conseguiria enfrentar todas as dificuldades do dia a dia.

Enquanto ouvia John complementando o que David dissera, minha mente viajara para qualquer lugar distante dali. Além do fato de ter que ter uma conversação de tamanha seriedade em um idioma diferente, guardava os medos já tão citados nessa história. Não conseguia entendê-los, não por insuficiência de idioma, mas por medo do que viria em seguida. Medo de enfrentar todos os meus fantasmas.

“Eu sou gay” – soltei na mesa já quebrando a conversa e jorrando as lágrimas que tanto doíam em meu coração. Minhas grandes mãos de pianista agora cobriam meu rosto e qualquer pessoa próxima poderia perceber que eu estava completamente perdido em mim mesmo. Instantaneamente senti tontura e não tinha coragem de colocar minha cabeça para cima uma vez mais. Estava envergonhado e de certa forma humilhado por ter de reconhecer algo que tanto me assombrara naqueles últimos tempos. Sinceramente não sei se era o que eles esperavam ouvir e isso talvez explique o pavor que sentira. Além da Bia que estava milhares de quilômetros distante, não tinha falado com ninguém tão abertamente sobre minha sexualidade. Pensamentos mil cruzavam minha mente e estava envolto a um turbilhão de sentimentos.

“Mas o que está acontecendo, Leo?” – disse David como quem não entendera minha frase.

“Eu sou gay, David. Eu. Sou. Gay. Eu gosto de meninos” – disse enquanto me afogava em lágrimas.

“Tudo bem. O que estou te perguntando é o que tem acontecido que o tenha deixado tão triste” – disse com uma tranqüilidade que me irritava.

“Por onde começar? Eu sou gay. Meus pais não sabem sobre mim e eu posso garantir que eles não vão gostar nem um pouco da idéia. Eu finalmente encontrei um menino com quem pudesse compartilhar meus medos e incertezas, e quando estou totalmente apaixonado por ele, este morre em um maldito acidente de carro. Huh.. o que mais? Deixe-me pensar... meu melhor amigo me liga em uma madrugada em que eu estou complemente perdido comigo mesmo e depois de decidir ligar no outro dia ele se matou. Ele tirou a própria vida e eu nunca terei a chance de entender o por quê. Acha que está bom ou eu preciso dar ainda mais detalhes de toda a desgraça que tem acontecido em minha vida?” – disse alterando minha voz e revelando toda a revolta que se apossara do meu coração ferido.

David agora me olhava com os olhos lacrimejados e John entendera que este era o melhor momento para intervir:

“Leo, não foi sua culpa” – disse enquanto levantava meu rosto molhado com sua mão direita. Olhava-me nos olhos.

“Eu entendo a dor que você está passando e não posso imaginar na dor que deve ser perder um melhor amigo de uma maneira tão terrível, entretanto não é sua culpa. Ele provavelmente estava passando por um mal momento e por opção própria não decidiu compartilhar tal dor com você e entenda que ele tinha o direito. Sobre Benjamin, infelizmente nós não podemos prever quando coisas do tipo acontecerão. Você tem que estar preparado para dizer às pessoas que você ama o quanto elas são especiais e significam para você. Em linguagem figurativa, você precisa dar folhes às pessoas enquanto elas ainda estão vivas, ou guardará o arrependimento de fazê-lo quando elas partirem para sempre” – disse com calma e pausadamente tentando certeza que eu não me perderia em suas sentenças em inglês.

“John, David – eu acabei de dizer que eu sou gay” – disse meio perdido e estranhando a reação.

“Sim. Eu ouvi e tenho certeza que John também o fez. Qual é o problema?” – replicou enquanto tomava uma gole de sua água com gás.

“Leo, quando dissemos que nós nos importamos com você, não estávamos sendo figurativos e tampouco leviano. Nós realmente nos importamos com você por quem você realmente é. Você pode ser gay, hétero ou se casar com uma vaca. Para nos você é o Leo do Brasil que mora conosco e tem se descoberto enquanto explora o desconhecido” – disse John sorrindo e segurando as mãos de David.

Foi melhor do que imaginava. Passamos aproximadamente duas horas conversando naquele calmo e silencioso restaurante brasileiro com apurado gosto artístico e caro pra cassete. Pela primeira vez em minha vida, derramei sobre a mesa todos os medos que se escondiam em meu coração. Não acho que seja o momento para narrar minha experiência de “sair do armário”, mas posso compartilhar meus medos e sei que muitos de vocês, queridos leitores, também os compartilharam em determinado período da vida.

Crescer em um ambiente religioso não é fácil, e mesmo dizendo que vivemos em um país laico, a realidade fala de maneira diferente. Apesar de ter nascido no final do milênio, minha família, minha religião, minha cidade – e meu país – ainda guardavam pré conceitos e tabus sobre a sexualidade. Basicamente fui ensinado que estava fazendo algo muito errado e que simplesmente estava condenado para ir ao inferno. Não é algo que se possa ser combatido ou questionado. Aceite o que lhe é enfiado goela a baixo e não pergunte.
Neste momento, no alto dos meus vinte anos, ainda guardava o medo do inferno e a certeza de que magoaria as pessoas que tanto amava. O que ninguém sabia até então, é que em meu último ano no Brasil, gastara todo o meu dinheiro indo aos melhores psicólogos cristãos e não cristãos na esperança de uma cura, libertação ou respostas. Uma no depois, morando na America do Norte, me apaixonei por um menino – e foi recíproco – e ele também se apaixonara por mim. A vida, no entanto o tirar da pior maneira possível. Deduzi, sem sombra de dúvidas que a culpa era minha e de que Deus estava tentando me punir de alguma maneira. E Ele estava jogando pesado.

Depois daquela conversa, entendi que algumas pessoas simplesmente agiriam com a mesma naturalidade. Sim, talvez perderia alguns amigos. Bem, talvez eles nunca foram tão amigos assim, ou simplesmente não estão preparados para uma notícia tão radical quanto esta. Seja como for, agora alguém mais sabia e nada tinha mudado. Talvez a situação melhorasse um pouquinho agora.

Além da surpresa de termos um jantar com uma conversa tão especial em um restaurante que tanto gostava, John e David me fizeram uma proposta:

“Bem, como sabemos, você recebeu o convite de passar duas semanas na cidade de Buffalo, no norte de Nova Iorque. Adoraríamos ir com você e depois deste período, levá-lo até a fronteira com o Canadá, onde você poderá ver as famosas Cataratas de Niagrafalls. Acho que seria um bom tempo para te ajudar a passar por este processo de aceitação sobre sua sexualidade. Se por algum motivo você não se sentir confortável com nossa presença, não acharemos estranhos ou ficaremos chateados. Ainda assim, te daremos todo o dinheiro necessário para ir sozinho às Cataratas. Talvez você conheça alguém especial nesta viagem. Você vai entender que é mais bonito do que imagina e encontrará a pessoa certa que o fará feliz” – disse David enquanto me encarava com um olhar de expectativas.

“Talvez você encontre alguém especial nesta viagem”.

CONTINUA.


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Ficha do conto

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Nome do conto:
gringobrasileiro - Uma segunda chance - Parte 1

Codigo do conto:
74906

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
29/11/2015

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