Bernardo [70-72] ~ E a noite dos corações partidos

Aquela semana na casa da minha avó em Porto Alegre se deu na mais completa paz. E era tudo o que eu queria. Eu estava de volta ao país há vinte dias e quantas coisas que já não tinham me acontecido? A minha situação com Rafael e com minha mãe era o que mais tomava meus pensamentos.

E é claro, também usei esse tempo lá para conversar com tio Aurélio sobre o que estava acontecendo.

_Sua mãe..._ ele falou balanço negativamente a cabeça depois de eu lhe contar tudo o que vinha ocorrendo.

_Sabe? Acho até preferia que ela estivesse explodido de uma vez. Seria melhor do que essa tortura lenta.

_Sei como é. Mas não acho que ela vai explodir com você. Se não o fez quando você quis passar a semana aqui, não acontece mais.

_Vai saber... Inconscientemente, eu acho até que queria que ela ficasse brava comigo por aquilo e enfim explodisse.

_Não tente provocá-la deste jeito. O resultado seria muito pior. Entendo que você quer uma resolução rápida, mas essa resolução pode não ser a melhor se você apressar as coisas.

_Eu sei...

_Acho até que é um bom sinal ela não ter feito algo mais extremo. Ela precisa de tempo para se acostumar com a ideia.

_Tá, mas quanto tempo? Meses? Anos? Se eu começar a namorar um cara amanhã? Como eu vou fazer, escondê-lo da família como fazia com Rafael? Eu caminharia novamente para uma relação fracassada.

_E vai adiantar alguma coisa colocar pressão sobre ela? Eu sei que não é fácil, mas dar tempo a ela é o melhor caminho.

Não, não ia. Mas era difícil aguentar todo aquele clima em casa. Eu queria que aquilo acabasse de vez.

_Posso te perguntar uma coisa?_ falei.

_Se eu puder responder.

_O que você e minha mãe tanto conversaram quando a gente chegou sábado?

Ele deu um longo suspiro.

_Sobre você. Ela me perguntou sobre como a gente se conheceu antes mesmo de me perguntar o que eu estava fazendo de volta ao Brasil.

_Sério?

_Claro. Ela ficou sim surpresa por eu estar de volta, mas ainda mais surpresa por descobrir que nós já nos conhecíamos.

_E o que ela falou?

_Ela foi um tanto quanto ríspida. Apesar de não ter sido uma acusação formal, ela fez a ligação entre o fato de nós termos nos conhecido na sua viagem e o fato de você se assumir assim que chegou.

_Como se você tivesse influenciado em alguma coisa?

_Sim... Mas eu fui sincero com ela, que quando nos conhecemos você já estava com essa ideia na cabeça.

_Sim, o meu pai me pressionava para contar para ela desde antes de eu viajar.

_No mais, ela só perguntou como eu tinha voltado, se eu tinha me entendido com sua avó, essas coisas. E não fez mais contato durante o fim de semana. Não perguntou sobre mim, se eu estava bem, sobre Klaus ou as crianças. Enfim...

Lá no fundo, eu esperava que a volta de tio Aurélio tivesse um efeito mais positivo sobre a minha mãe. Sei lá, eu esperava que a falta que o irmão faz na vida dela a lembrasse de como ela o amava, e como esse amor era maior do que qualquer outra questão associada à sua sexualidade. E quem sabe esse pensamento espelharia em mim? Ela poderia refletir como o preconceito deixou uma mãe e um filho afastados por mais de trinta anos. Mas não. Ela não via o preconceito como o causador daquela situação toda, mas sim a própria sexualidade do meu tio. Comigo era a mesma coisa: não importava se a minha homossexualidade tinha origem na genética, na minha criação ou no acaso, a culpa era só minha.

_Posso perguntar como anda a situação na sua casa?_ falou tio Aurélio.

_Ah, estranha. Ninguém fala com ninguém. Não estamos ignorando que alguma coisa aconteceu, mas nenhum de nós parece estar minimamente interessado em discutir o assunto. Laura tem seus próprios problemas para resolver e eu não a culpo. Caio precisa começar a gostar de si mesmo para aprender a gostar dos outros. Fábio tenta me entender, mas estou indo com calma, não dá pra jogar tudo em cima dele de uma vez.

_E seu pai?

_Sabe, eu tinha medo que isso afetasse o casamento dos meus pais, e afetou, mas não do modo como eu imaginava. Não teve uma grande briga entre eles ou alguma coisa do tipo, mas está estranho. Tá certo que eles nunca foram o casal mais carinhoso do mundo, mas fica claro que se distanciaram. Eles ainda dormem no mesmo quarto, eles não brigam na nossa frente, se falam normalmente... Mas não é natural, sabe? Parece que uma chama se apagou ali. Meu pai se sente culpado por não ter me ajudado mais cedo, então ele fica do meu lado. Por outro lado, ele também sabe que pesa contra ele o fato de ter escondido isso da minha mãe por tanto tempo, mais de um ano. Então, ele fica com um pé em cada um dos lados, o que é terrível. Ele não está me ajudando, e nem está ajudando a minha mãe.

_Mas é justo pedir para escolher seu lado?

_Mais do que lados, é uma escolha entre certo e errado, não?

_Na sua visão é, Bernardo, na dele pode não ser. Por tudo o que você contou, ele não te culpa por nada, mas também quer dizer que ele aceite tudo com muita naturalidade. É um mundo novo para ele também, e tendemos a ter um pé atrás com o “novo”. Ele só age como está agindo porque seu amor de pai é muito maior. Se fosse um sobrinho, sei lá, a posição dele seria muito mais radical, pode ter certeza.

_Mas eu sou seu filho..._ tentei argumentar.

Era uma coisa terrível de se dizer, como se eu fosse completar “e ela é ‘só’ sua esposa”, mas era assim que eu me sentia.

_Você sempre temeu que quando esse momento chegasse, você se assumisse, o seu pai e sua mãe entrariam numa espiral de brigas que destruiria seu casamento, certo? Ele está justamente tentando evitar isso. Por mais que seu instinto paternal diga que ele tem que te proteger de qualquer coisa, até da sua mãe, ele sabe que isso poderia destruir seu casamento e sua família. Seu pai é um homem muito sensato, está tentando fazer o que é melhor para todos, não só pra você.

Novamente, me calei. Eu sei que estava sendo egoísta ao querer que todos assumissem meu lado e ficassem contra a minha mãe, mas era o ambiente que foi criado. Talvez o meu pai estivesse realmente agindo para o bem de todos, mas o meu lado prevalecia quando eu pensava nisso.

_E mais: não existe nenhum garantia que isso vá salvar o casamento deles._ completou tio Aurélio _É uma coisa muito forte, um trauma imenso para um casal quando um filho se impõe entre eles. No caso deles, era até melhor que houvesse uma explosão da sua mãe. Eles brigariam, soltariam todas as mágoas e, talvez, fizessem as pazes no fim. Do modo como escolheram lidar com isso, em silêncio, eles ficam alimentando um ressentimento mútuo. Isso nunca levou ninguém a lugar nenhum.

Será que o casamento dos meus pais estava em perigo?

[...]

Era minha última noite em Porto Alegre. Acordei de madrugada suado e com sede. Eram quase três da manhã. Eu tinha sonhado com meu avô. Eu não lembro de como foi o sonho, eu só lembro do seu rosto nele. E ele estava bravo. Meu coração estava acelerado de um jeito que eu não gostava. Talvez fosse melhor eu realmente não me lembrar daquele sonho...

Uma vez que minha família foi embora, eu pude ficar com um quarto só pra mim. O único som que se ouvia era o vento lá fora. Eu estava com sede e me levantei para beber água. A casa estava escura, só a luz externa a invadia. Eu sempre tive medo de andar sozinho à noite naquela casa, mas a medida que a gente vai crescendo, você aprende a superar o medo do escuro, apesar de nunca realmente perdê-lo. Caminhei até a cozinha tateando as paredes, porque o meu sono me impedia de raciocinar direito sobre as disposições das paredes e dos móveis. Na cozinha, bebi a água, deixei o copo sobre a pia, desliguei a luz e tomei meu rumo de volta ao quarto.

Quando eu passei pela sala de estar, alguma coisa me paralisou. Não como se alguma coisa estivesse realmente me segurando, mas como se eu fosse incapaz de dar mais um passo. Eu sei exatamente o que estava me paralisando: medo. Eu olhava diretamente para a escada, mas a visão periférica denunciava uma sombra sobre um dos sofás. Não era como se realmente estivesse vendo alguém ali. Hoje, quando penso naquela noite, eu sei que não tinha nada que pudesse realmente denunciar que tinha alguém ali. Não tinha uma forma, um som, volume. Era apenas uma sombra, talvez a sombra de uma árvore da rua que invadia a casa pela janela. Uma sombra nunca me chamaria tanto a atenção se não fosse por frio que eu sentia no meu peito. Era como seu meu corpo estivesse congelado. Era medo. Pavor. Eu queria sair dali.

_Bernardo?_ alguém falou quando a luz se acendeu.

Antes mesmo que eu pudesse raciocinar sobre a luz ou sobre a origem da voz, meu coração já batia tão rapidamente que eu achei que fosse sair pela boca. Era um susto só.

_Bernardo?_ voltou a repetir minha avó do alto da escada.

Eu a encarei e ela tinha uma expressão preocupada. Também pudera, eu devia estar branco feito uma folha de papel.

_Eu fui tomar um copo de água._ eu falei enfim.

Eu rapidamente subi as escadas, mas não antes de dar uma rápida olhada para aquele sofá, que estava completamente vazio. Eu passei por minha avó, mas ela continuou lá parada na escada, encarando o vazio com um olhar preocupado.

_Tudo bem, vó?_ perguntei.

_Sim..._ ela falou sem muita certeza _Vamos dormir, amanhã vai ser um longo dia.

Ela passou a mão sobre o peito, me lançou um sorriso vacilante e cada um de nós se encaminhou para seu quarto. Eu não consegui dormir naquela noite. Por mais que eu não tivesse visto nada, eu senti... Eu posso me enganar dizendo que eu estava impressionado pelo sonho e raciocinando pouco devido ao sono, mas o que eu senti naquele momento nunca me deixaria esquecer...

[...]

Foi uma boa semana, bem tranquila, apesar de ter saído bastante com meus primos, Klaus e tio Aurélio para explorar a cidade.

O meu voo era depois do almoço, então assim que acabei meu café da manhã, fui arrumar minha bagagem. Minha avó pareceu no quarto.

_Tem certeza que não quer ficar mais?_ ela perguntou.

_Minha mãe me mataria._ falei tentando forçar uma brincadeira, mas nem eu ri dela _Eu tenho compromisso no sábado à tarde, vó. Tenho que voltar de qualquer forma.

A festa de aniversário de Pedro. A bendita festa que ele convidou Rafael e Ricardo, o que já estava me deixando nervoso por antecipação.

_Tenha paciência com ela, Bernardo._ falou minha avó _Ela te ama.

_Eu sei...

_Ela vai aprender mais rápido do que eu aprendi, eu tenho certeza. E quando isso acontecer, vai valer a pena.

_É..._ falei sem saber como responder aquilo.

Ela ficou parada olhando pela janela enquanto eu terminava de arrumar tudo. Era estranho, ela nunca foi a avó mais carinhosa comigo, e também não estava interessada em forçar alguma coisa tão tarde. Então, eu ficava constrangido.

_Aproveite pra se despedir dessa casa._ ela falou.

_Como assim?_ perguntei confuso.

_Eu a coloquei à venda. Devo assinar tudo no começo do mês que vem.

_Por que? É a casa onde a senhora passou quase a vida toda.

_Exatamente por isso. É a casa onde passei quase toda a vida. Eu estou em uma nova fase, preciso seguir adiante.

_E para onde a senhora vai?

_Eu vou para um lar de idosos. Não um asilo mesmo, mas um condomínio onde mora apenas gente da minha idade. Tem a área comum, mas cada um tem seu quantinho, sua cozinha, seu jardim... Tudo muito bonito, e há liberdade total para eu sair quando quiser. E eu vou sair: pretendo gastar a pensão que eu ganho como viúva e minhas economias para viajar por aí. Talvez até passar um tempo com vocês em Belo Horizonte, ou com seus tios em São Paulo ou Berlim. Enfim, viver...

Eu sorri sinceramente para ela.

_Isso é bom, vó. A senhora merece.

_Pois é, além do mais, essa casa é muito grande para eu morar aqui sozinha. Eu não gosto.

_Sim, tem a questão da segurança, a sua saúde vai começar a ficar mais frágil...

_Sem contar o fantasma do seu avô.

Minha espinha gelou. Lembrei do meu sonho e da minha caminhada noturna.

_Eu olho pra minha cama e vejo seu avô. Me sento pra assistir televisão e vejo seu avô. Me sento à mesa para jantar e vejo seu avô. Não quero mais. Ele morreu, tem que ficar para trás.

Eu não tinha certeza se ela estava falando do fantasma do meu avô em sentido figurado, o que só me causava mais mal estar. Ela pareceu não perceber ou não se importar.

_Sua mãe não entendeu que a morte é o fim. Eu fui fiel aos desejos e às vontades do seu avô durante todo o nosso casamento, agora é hora de deixá-lo para trás. Não existe isso de “respeitar sua memória”. Ele não está vivo, não tem que ter opinião em nada.

Como eu não sabia o que responder, permaneci em silêncio arrumando minha mala.

[...]

Parti no início da tarde num voo com destino a São Paulo que depois seguiria para Belo Horizonte. No caminho, eu refleti muito sobre tudo o que estava acontecendo comigo.

Com minha mãe não tinha outra maneira a não ser deixar ela lidar com a questão sozinha. Como foi dito, eu não podia pressioná-la, ou as coisas poderiam ficar piores. Por mais doído que fosse, eu tinha que aprender a ignorá-la como ela fazia comigo. Ela continuaria a ser a minha mãe, assim como em nenhum momento eu deixei de ser seu filho, mas eu deixaria de correr atrás de algum “perdão” ou entendimento. Eu não podia virar refém da esperança que tudo se resolvesse rápido. Eu tinha que continuar vivendo, ainda que andando por aí com uma ferida aberta.

Quanto a Rafael, eu resolvi seguir o conselho de Pedro. Eu tinha que deixar ele lidar com seus próprios problemas. Parece horrível falando assim, mas foi exatamente o que ele fez comigo. Não que houvesse algum tipo de revanchismo da minha parte, de jeito nenhum, mas simplesmente não me cabia um papel no seu namoro com Carol. Ele tinha que sair sozinho da armadilha que entrou, do mesmo jeito que eu arrumei um jeito de sair da minha. No fundo, acho que não era nada disso. Eu apenas queria que ele lutasse por mim, que ele corresse atrás um pouco.

Eu ouvia música distraidamente dentro do avião enquanto eu esperava novos passageiros embarcarem em São Paulo para seguirmos viagem. Tão distraído, que não percebi quando aquele rapaz entrou, se escorou na poltrona à minha frente e me encarou. Um sorriso instantâneo se formou no meu rosto quando o vi.

_Ricardo!

Seu sorriso parecia ainda mais sincero e amoroso do que eu me lembrava.

_O que você está fazendo aqui?_ perguntei incrédulo.

_Ora, me convidaram para uma festa em Belo Horizonte esse fim de semana._ respondeu travesso.

E assim, o acaso trouxe de volta Ricardo à minha vida. Por mais confusão que aquilo fosse trazer, eu não estava reclamando. De jeito nenhum! Afinal, o passado não é feito apenas de fantasmas.


Ele continuava lindo. De olhos fechados, ele recebia o vento gelado no rosto com um sorriso nos lábios, como se aquilo lhe causasse um grande prazer. Seus cabelos, muito finos, eram reféns do vento frio e se sacudiam vigorosamente para trás. Sua barba estava perfeitamente aparada, não restando mais do que uma leve sombra sobre seu queixo. Eu não cansava de admirá-lo. Era tão bom estar ali com ele. Era como ter meus problemas anestesiados. Tudo podia esperar. Mesmo amando Rafael, era Ricardo o meu refúgio.

_Guardada as devidas proporções, isso aqui me lembra os Jardins de Luxemburgo._ ele falou.

Estávamos sentados na grama da Praça do Papa, na zona sul de Belo Horizonte, um dos principais cartões postais da cidade. O fato de estar acima da cidade (1100 metros de altitude contra os 900 de média da cidade) nos proporcionava duas coisas: uma vista privilegiada e rajadas de vento. Era sábado de manhã e Sol brilhava preguiçoso, incapaz de nos esquentar para valer. Em volta de nós, vários pais soltavam pipas com seus filhos, adolescentes andavam de skate, pessoas caminhavam pensativas e grupinhos conversavam animadamente espalhados pela grama.

_É, talvez..._ respondi.

Havia uma diferença crucial que separava a Praça do Papa e os Jardins de Luxemburgo: ali, em Belo Horizonte, eu não poderia abraçar intimamente Ricardo, ou mesmo beijá-lo. Se o fizesse, sofreríamos sérias represálias de todos ali, dizendo que estávamos ferindo suas vistas e influenciando suas crianças. Seríamos vítimas de olhares maldosos, talvez até mesmo agressões verbais ou físicas.

Mesmo se vivêssemos num lugar que nos aceitasse tão bem quanto Paris o fez, eu não sei se estaria abraçado ou mesmo beijando Ricardo. Eram dois momentos diferentes. Agora, não éramos mais namorados, não estávamos juntos. Rafael estava a poucos quilômetros dali e prestes a terminar com a namorada para ficar comigo. Eu acho. Se não era antes, agora tentar qualquer coisa com Ricardo seria uma traição.

“Mas você nem estão juntos? Não seria errado se divertir com Ricardo!” vocês dizem.

Ao menos na minha cabeça, seria errado sim. Primeiramente, seria errado com Rafael, pois depois de tudo que foi dito e prometido de ser feito, eu estaria traindo suas intenções. E depois, seria errado com Ricardo, eu não tinha direito de brincar com seus sentimentos desta maneira.

“Então, o que diabos você está fazendo?!”

Não sei. Eu estava tirando férias dos meus problemas com Rafael e com minha mãe, de um modo parecido como tinha feito Paris. Era bem isso, eu buscava em Ricardo um pedacinho de Paris, um pedacinho daquela felicidade infantil que eu sentia todos os dias. Eu e Ricardo... Eu acho que estávamos mentindo um para o outro que conseguiríamos ser amigos, e que estávamos sendo ali, naquele momento. Admiro muito quem consegue segurar uma amizade com seu ex, eu não consegui. Não consegui com Rafael, e não conseguiria com Ricardo. Tinha acontecido muita coisa para simplesmente voltarmos duas casas no tabuleiro.

A gente fingia que não sabia disso e empurrava a situação com a barriga.

_Você já falou tudo o que queria sobre a sua mãe e eu já te dei todos os conselhos possíveis._ falou Ricardo _Quando você vai começar a falar sobre Rafael?

Ele sorriu travesso quando fez aquela pergunta, me fazendo sorrir acanhado. Eu evitei aquele tópico durante todo o tempo que conversamos. Ele sabia que havia alguma coisa errada entre mim e Rafael, que não estávamos juntos, mas ele não sabia o que. Eu não disse para protegê-lo, sei lá, ou evitar que ele criasse esperanças que eu sabia ser incapaz de corresponder naquele momento. Mas eu sabia que uma hora ou outra o assunto surgiria.

_Ai, Ricardo..._ suspirei enquanto deitava na grama de olhos fechados.

Eu não sabia como começar aquele assunto. Mesmo de olhos fechados, senti ele se deitando ao meu lado. Não nos encostávamos, mas mesmo assim era bom sentir seu perfume e seu calor tão perto.

_Pode falar. Eu tô grandinho já, eu aguento._ ele tinha um certo humor na voz, como se tentasse descontrair o ambiente.

_É que..._ falei tomando coragem para começar _A mãe da namorada do Rafael está doente em estado terminal. Ele se sente um lixo por ter que terminar com ela num momento assim. Ele não sabe o que fazer e eu também não. Pressiono ele? Espero ele? Desisto dele? Viro o “outro” da história? Qual a opção menos cretina?

Eu olhava céu, não olhava diretamente pra Ricardo, não sabia como ele recebeu tudo isso. Sua respiração ao meu lado se manteve inalterada.

_Você devia pressioná-lo._ ele respondeu enfim.

Olhei para ele que me deu um sorriso fraco. Meu coração se partia um pouco quando ele fazia isso, tentava passar por cima dos seus sentimentos para ser um bom amigo para mim.

_Você acha?

_Sim._ ele respondeu calmamente _Se ele te ama, ele devia ficar com você e chutar essa menina com seus problemas para longe. Sua única função é ficar ao lado dele quando o barco virar.

Eu sorri sem jeito para e ele me devolveu um sorriso sincero desta vez. Era mais ou menos o conselho que Pedro tinha me dado.

_Vou conhecê-lo hoje à noite?_ ele perguntou.

_Sim. Seja o que Deus quiser!

Era o dia da festa de Pedro. Aliás, era esse o motivo de Ricardo estar passando o fim de semana em Belo Horizonte. Fora convidado por Pedro e Alice simplesmente para verem o circo pegar fogo. Isso porque eram meus amigos, imagina se não fossem!

_Vai dar tudo certo._ Ricardo respondeu rindo.

_Duvido muito. Ele quase teve um ataque de ciúme quando desembarquei do avião usando a nossa aliança ainda.

_Ele é muito ciumento?

_Tudo dele é extremo. Ciúme também.

_Prometo me comportar.

Me virei para ele e pedi encarecidamente:

_Você tem a cabeça bem mais no lugar do que ele, então, se ele fizer qualquer provocação, você me promete não revidar?

_Prometo._ ele falou antes de completar _Por você.

_Obrigado. Ele vai estar com Carolina o tempo todo, duvido muito que ela vá deixá-lo por muito mais tempo que o educadamente necessário perto de mim, mas em todo caso, esteja prevenido.

_Ele está prevenido?

_Ele... Ele não sabe que você está indo.

Ricardo sorriu claramente se divertindo com a situação.

_Isso vai ser divertido!

_Ricardo...

_Mas prometo me comportar.

_Obrigado.

Ele olhou em volta e ao perceber o Sol já alto, perguntou:

_E a dupla dinâmica, quando vou conhecê-los?_ se referindo a Pedro e Alice.

_Eles já devem estar nos esperando para almoçar. Vamos?

_Você que manda. É a sua cidade, você é o guia.

[...]

A festa de Pedro seria na verdade um mega churrasco na sua casa. Assim, ele e a família passaram o dia arrumando a casa. Por isso, ele e Alice fizeram questão que almoçássemos com eles lá, pois não tinham tempo de encontrar com a gente em outro lugar.

_Obrigado Rita, estava ótimo!_ falou Alice para a cozinheira da casa de Pedro que tinha nos servido o almoço.

_Obrigado Rita!_ falamos eu, Pedro e Ricardo também.

_De nada. Agora vão brincar lá fora porque preciso arrumar a cozinha._ ela respondeu.

Nós quatro nos sentamos na sala de estar da casa de Pedro esperando a digestão da enorme quantidade de comida que tínhamos consumido.

_Sabe, até gostei de você._ falou Pedro para Ricardo _Você não é tão chato quanto Bernardo falava.

_Nem tão feio._ completou Alice.

_Já sobre vocês, ele sempre me alertou que eram meio folgados.

_Nós?!

_Você não viu nada._ me intrometi _Você acha que nos trouxeram para cá à toa? Pra quem você acha que vai sobrar tirar os móveis da sala?

_Não..._ falou Ricardo fingindo indignação.

_Sim!_ respondemos eu, Pedro e Alice juntos.

Nós quatro rimos.

_Mas sério, cara._ falou Pedro _Eu gostei de você. Mais do que gosto do Rafael, devo acrescentar.

Alice respondeu com um soco no braço dele. Eu balancei a cabeça constrangido enquanto Ricardo ria.

_O que?!_ perguntou Pedro indignado para Alice _Mas é verdade! Percebeu que a gente está com eles a uma hora e ainda não presenciamos nenhuma briga?

_Pedro!_ ralhei.

_Calma, Bernardo._ respondeu Alice _Estou educando aos poucos. Ainda não cheguei na lição de aprender a controlar a própria língua.

Ricardo apenas ria. Certamente ele estava muito satisfeito com o que ouvia ali.

_Não é assim..._ respondi constrangido por Ricardo.

Alice inclinou a cabeça como se dissesse “é assim sim”.

_Alice!_ falei.

_O que?

_Tô entendendo de onde o Pedro está tirando essas coisas.

_Ah, normal._ respondeu Pedro _A gente conversa muito sobre você.

_Ah, é?_ perguntei cruzando os braços e fazendo cara de zangado.

_Sim!_ ele respondeu _Se um dia você topasse escrever e publicar sua história, a gente até já pensou no título perfeito.

_Qual?_ perguntei temendo a resposta.

Pedro e Alice se olharam rindo e responderam numa só voz:

_A arte do desencontro.

Ricardo caiu na gargalhada, e meus amigos o acompanharam. Eu me fiz de sério e fiquei esperando eles recobrarem o fôlego.

_Não entendi a piada.

_Eles tem razão, Bernardo._ falou Ricardo _É o título perfeito.

_Não concordo.

_É sim, veja só._ começou Alice _Se você tivesse se entendido bem consigo mesmo desde o começo, teria se dado muito bem com Eric. Se tivesse a coragem necessária, estaria completando anos de namoro com Rafael. Se não estivesse tão apaixonado por outro, teria se casado com Ricardo. Quando enfim você se entendeu consigo mesmo, Rafael estava preso num namoro. Tipo, sua vida é toda desencontrada! O seu timing é terrível!

E não sabia muito bem como responder aquilo, principalmente porque era verdade. Minha vida poderia ser resumida como uma série de desencontros. Eu nunca estava no momento certo com a pessoa certa. Realmente, meu timing era terrível.

Vendo que se aquele assunto se prolongasse, o clima ficaria ruim, Pedro tratou de emendar:

_Então, rapazes. Esses sofás não sairão sozinhos daqui.

Rimos e lá fomos nós trabalharmos. Tinha muita coisa para ser feita. Em algum ponto da tarde, Ricardo ajudava Pedro a pendurar lâmpadas enquanto eu e Alice terminávamos de secar as mesas. Pedro e Ricardo conversam animadamente, o que me deixava curioso por não poder ouvir o assunto.

_Quer que eu peça eles para falarem mais alto?_ perguntou Alice.

_Sou curioso mesmo, e daí? Até porque, tenho a ligeira impressão que o assunto sou eu.

_Ah, com certeza.

Ela viu que eu estava realmente curioso para saber o teor daquela conversa.

_Possivelmente Pedro está falando que prefere ele a Rafael.

Arregalei os olhos para Alice.

_Ricardo tá bem grandinho, deve saber não alimentar esperanças a partir disso.

_Mas..._ notei que ela desviou os olhos quando falou isso _Alice...

_O que?

_Você também tem essa opinião?

Ela de um longo suspiro e falou sem me olhar.

_Sei lá. Você e Ricardo parecem um conjunto mais harmonioso. Não é que eu goste menos de Rafael, você sabe que eu gosto dele. Só acho que Ricardo combina mais com você.

_Mas...

_Mas isso não significa nada._ ela completou antes que eu pudesse falar alguma coisa _Quem tem que escolher é você, não eu ou Pedro. Faremos maravilhosos programas de casal independente de quem seja seu namorado.

Aquela última parte ela falou com a voz afetada, em tom de gozação, mas mesmo assim aquilo ficou na minha mente.

[...]

Quando começava a anoitecer, fomos embora e eu deixei Ricardo em seu hotel. Mais tarde passei para buscá-lo.

_Você está lindo!_ ele falou quando entrou no carro _E cheiroso!

Ele completou isso enfiando o nariz no meu pescoço e respirando fundo. Eu fiquei desconcertado, não esperava por isso.

_Obrigado..._ falei sem jeito, mas completei rápido _Você também está lindo.

_Obrigado!_ falou sorrindo _Vamos! Estou ansioso para conhecer meu rival!

O seu tom era de brincadeira, mas desconfiei das suas intenções. O que será que Pedro tinha falado com ele?

Quando chegamos, a festa já estava animada, custei a achar uma vaga para estacionar.

_Esqueci meu celular no carro._ falou Ricardo quando íamos bater campainha _Me empresta a chave do carro?

_Claro._ falei lhe entregando a chave.

Me virei para ver Ricardo correr até onde tínhamos estacionado, e não vi quando eles chegaram atrás de mim.

_Boa noite.

Me virei rapidamente assustado com o som daquela voz.

_Oi._ falei rapidamente _Boa noite.

Rafael estava lindo e exibindo um largo sorriso. Ao seu lado, Carolina exibia um sorriso mais fraco ao me ver, mas me pareceu apertar a mão de Rafael quando me viu.

Eu já devia ter me preparado para o momento que Rafael e Ricardo se encontrariam, mas foi impossível não ficar nervoso com a eminência daquele encontro.

_O que foi, Bernardo?_ perguntou Rafael curioso _Você ficou branco de repente...

_Não, é que...

Ricardo se aproximou de cabeça baixa, ele não viu com quem eu estava conversando.

_Toma.

Ele me entregou a chave do carro e só então olhou com quem eu conversava. Os olhos de Rafael vacilaram por um segundo, tentando reconhecer o rosto que ele só vira por fotos no meu Orkut. Meu coração parecia ter parado e meu estômago congelado. Ricardo abriu o mais sincero dos sorrisos e estendeu a mão:

_Você deve ser o Rafael. Prazer, eu sou o Ricardo.

Rafael mudou o olhar de Ricardo para mim. Seus olhos pegavam fogo.


A noite do aniversário de Pedro seria conhecida mais tarde como a noite dos corações partidos. Quando eu digo “conhecida”, leia-se “nomeada por Alice e Pedro”. Seria naquela noite que a minha relação com Rafael presenciaria seu grande ponto de inflexão. E as vítimas seriam Ricardo e Carolina.

O ar estava tenso. Ninguém ousava falar nada. Ricardo, apesar de eu ter pedido para ele evitar, estava sim provocando Rafael. Sua mão permanecia erguida no ar, embora Rafael não mostrasse o mínimo interesse em retribuir o cumprimento. Rafael simplesmente não tinha o sangue frio necessário para tanto. Carolina estava constrangida. Pela minha foto do Orkut, ela devia saber o que Ricardo significava, e devia estar sendo atingida pela reação de Rafael.

Rafael só olhava para mim. Seus olhos me queimavam. Embora eu não tivesse feito nada de errado, eu sentia culpa por estar ali com Ricardo. Não era difícil imaginar o que Rafael estava pensando, eu acho que pensaria o mesmo se estivesse no seu lugar. Para ele era uma traição. Eu traí ele com Ricardo. Nada mais longe da realidade, mas eu entendia seu pensamento e me culpava por ele. Me culpava por fazer ele se sentir o lixo que devia estar se sentindo.

Antes que alguém pudesse falar qualquer coisa, o portão se abriu e de lá saiu Pedro já um pouquinho alto.

_Casal! Vocês demoraram!_ ele abriu os braços quando viu Ricardo e eu.

Ele não poderia ter escolhido piores palavras. Só então ele viu Rafael e Carolina parados ali perto. Ele viu o tamanho da burrada e quase ficou sem palavras.

_Carol! Rafael! Vocês vieram!_ falou tentando fingir a mesma empolgação.

Rafael saiu arrastando Carolina pela mão para dentro da festa. Quando passou por Pedro, se limitou a lhe dar um tapinha nas costas e dar um “parabéns, cara” apressado. Pedro continuou muito constrangido.

_Desculpa, cara. Eu juro que não vi eles ali._ ele falou para mim.

_Não foi sua culpa, não tem do que se desculpar. Está tranquilo.

_Como ficam as coisas agora?

_Não sei. Posso conversar a sós com o Ricardo por um instante? Já entramos.

_Claro._ falou entrando de volta na festa, mas deixando o portão.

Ricardo me olhava com um sorriso sem graça.

_Ele é bonito, sem dúvidas...

_Ricardo...

_Desculpa, eu não devia ter falado nada com ele.

_Te conheço o suficiente pra saber que você sabia o que está fazendo. Mas tudo bem. Você deve ser a pessoa que está menos errada nesta história.

Ele não me respondeu, permaneceu me olhando em silêncio.

_Quer ir embora?_ ele perguntou.

_Não..._ falei suspirando _Só vai piorar as coisas. Sem contar que Pedro nunca me perdoaria. Vamos entrar. Seja o que Deus quiser.

E lá fomos nós festa a dentro. Estava tudo já muito animado. Eu conhecia boa parte das pessoas, já que tinha muita gente da faculdade. Ricardo ia andando ao meu lado, mas eu tomava o cuidado de não andar colado nele. Era uma coisa idiota, eu sei. Eu não devia nada a ninguém ali. A quem eu devia alguma satisfação, já sabia. Acho que nem era medo de preconceito, mas medo de Rafael ver. Eu tinha medo dele achar que eu tinha voltado com Ricardo e desistir de mim de vez. O que eu não percebi naquele momento, é que Ricardo notou tudo, e isso o machucou

_Que história é essa de que vocês chegaram juntos com o Rafael?_ Alice já chegou pelas nossas costas atrás de fofoca.

_Não chegamos juntos, aconteceu dele ver a gente juntos.

_E...?

_E... Nada. Ele não disse nada. Entrou e não o vi até agora.

_Tá ali com cara de poucos amigos._ falou apontando com a cabeça.

Olhei na direção que ela apontou. Carolina conversava com o pessoal da rodinha em que eles estavam, mas Rafael nos encarava bebendo.

_Isso vai acabar mal..._ comentei antes de desviar o olhar.

_Quem sabe assim ele não toma uma atitude?_ falou Ricardo.

Eu e Alice olhamos para ele curiosos com aquele tipo de comentário.

_Quem sabe ele não sai do caminho de vez?_ ele completou com um sorriso maldoso.

_Ricardo..._ falei pedindo cautela enquanto Alice ria.

_O que foi?_ ele perguntou se fazendo de inocente _O juiz não apitou o final da partida ainda. Todo resultado é possível.

Alice arrastou Ricardo para apresentá-lo a não sei quem. Eu fui pegar uma bebida e Pedro logo apareceu.

_Complicado..._ falou meio sério, meio rindo.

_Você falou com Ricardo para insistir comigo?_ perguntei sem olhá-lo.

A cara de sem jeito que ele fez deixou bem claro que ele tinha culpa no cartório.

_Pedro, Pedro, Pedro..._ balancei a cabeça em reprovação.

_Desculpa. Eu só queria ajudar.

_Ajudar como? Enchendo o Ricardo de esperanças?

_Mas eu vejo vocês dois juntos, funciona muito mais do que com Rafael.

_E daí que funciona mais?! As coisas não são assim!

_Mas...

_Você acha que não sei!_ minha voz ia se erguer, mas tratei de baixar o tom e sussurrar para ele _Você acha que não sei como é com Ricardo? Eu não sou cego!

_Então!

_Eu amo Rafael mais! Eu não escolhi isso. Se eu pudesse, é lógico que eu teria escolhido Ricardo.

Ele me olhou penalizado. Eu sei que ele queria me ajudar, que as intenções eram as melhores possíveis, mas aquilo ia machucar Ricardo. Eu não era capaz de realizar suas expectativas.

_Desculpa..._ ele pediu novamente.

_Tá. Agora já foi. Vou ver o que eu faço.

Procurei Ricardo pela festa e o encontrei em uma roda de conversa com Alice. Ele falava e as pessoas em volta riam. Eu sorri mesmo sem saber o teor da conversa. Ricardo tinha esse poder, ele conquistava as pessoas. Fui chegando perto e descobri que o assunto era eu.

_Ah, Bernardo, ainda bem que você chegou_ falou me puxando para perto dele _Conta da vez que você tava bêbado e cismou de pular no rio Sena.

_Essas coisas não se contam, Ricardo!_ falei fingindo raiva e todos riram.

Ricardo teimava em contar mil histórias sobre a nossa estadia em Paris, sempre evitando falar sobre nossa relação. Talvez as pessoas soubessem, afinal tinham visto a nossa foto junto no perfil do Orkut, mas não pareceram se importar.

Eu até teria relaxado, se não fosse os olhos de Rafael fixos em nós. E ele continuava bebendo, o que eu previa que ia dar em merda. Pelo canto do olho, vi que Carol começou a brigar com ele, mas ele pareceu não dar importância. Decidi que eu o melhor a se fazer era deixar passar, se fosse conversar com ele, ia dar confusão. Mas ele não parecia compartilhar da minha ideia. Foi só eu ir ao banheiro. Assim que saí, fui brutalmente puxado pelo braço para dentro de um quarto.

_O que você está fazendo?_ perguntei assustado.

Rafael estava com o rosto a poucos centímetros do meu. Seu hálito denunciava que ele tinha bebido bem mais do que devia, mas seus olhos marejados me comoveram.

_O que você está fazendo com ele?_ ele perguntou com a voz embargada.

_Rafa..._ falei tentando afastá-lo, sem sucesso.

Estávamos no escritório da casa de Pedro, as pessoas não podiam nos ver, mas a porta estava aberta. Eu fiquei receoso do que as pessoas poderiam falar por aí ao nos ver tão próximos daquele jeito. Não por causa da minha sexualidade, mas por ele ainda namorar. Eu não queria ser “aquele” tipo de cara.

_Você desistiu de mim?_ ele perguntou já chorando.

Foi a minha vez de começar a derramar lágrimas. Eu não resisti e o abracei. Ele deixou a cabeça cair em cima do meu ombro e me apertou entre seus braços.

_Não, eu não desisti de você, Rafa..._ falei enquanto acariciava seus cabelos _Ricardo veio como meu amigo. Eu nunca vou desistir de você...

Ele chorava baixinho no meu ombro. Meu peito se aquecia com o calor do seu corpo tão próximo do meu. Eu nem pensei que alguém poderia nos pegar naquela situação.

_Desculpa..._ ele falava entre pequenos soluços _Eu sou um covarde. Eu estou perdendo você...

Eu não disse nada. Eu queria apenas aproveitar o calor do seu corpo, a oportunidade de acariciá-lo.

_Eu não posso nem pedir para você esperar por mim, porque eu não esperei por você um dia... Deixei você cair na escuridão sozinho... Eu nunca vou me perdoar... Eu não sei o que faria se você tivesse...

O apertei ainda mais forte no meu abraço para que ele não terminasse a frase. Todo aquele tempo, Rafa reagiu com raiva à minha tentativa de suicídio, mas era só um disfarce. Com ajuda do álcool, ele revelou que era apenas medo, medo de me perder. Não que algum dia eu tivesse duvidado.

_Nossa história não teria graça se não fosse nossos desencontros..._ falei sorrindo para ele.

Ele levantou a cabeça e sorriu para mim também. E como eu amava vê-lo sorrindo para mim daquele jeito tão sincero e amoroso. Eu o amava e pronto.

_Me desculpe se alguma vez fiz você duvidar..._ ele falou me encarando como se repentinamente sóbrio _Eu te amo. Você e mais ninguém. É só você que eu quero.

Eu queria dizer que fui forte e resisti ao seu beijo. Mas não fui. Eu cedi. Quanto eu desejava aqueles lábios. Quando fora a última vez? Quando terminamos nosso namoro? Quase dois anos... Mas o sabor daqueles lábios era o mesmo. Aliás, era melhor, porque tinha o gosto da saudade assassinada. Tinha urgência e tinha calma. Tinha amor e desejo. Tinha desespero e tinha a eternidade naquele beijo.

Eu estava em transe, só me separei dele ao pensar ver uma sombra perto de nós. Abri os olhos rapidamente e não havia ninguém. Rafael me olhava sorrindo.

_Rafa, a gente não devia...

_Eu vou terminar com ela. Nada mais importa. Que o mundo caía então! Já perdemos tempo demais!

Ele falou aquilo sorrindo e saiu correndo do quarto. Fiquei feliz por um mísero segundo, pois logo após eu me lembrei do seu estado etílico e temi que ele fizesse algo errado. Mas era tarde demais. Quando saí daquele quarto para ir atrás dele, me deparei com Ricardo sentado no sofá tampando o rosto com as mãos.

Senti minha garganta queimar. Eu não precisava ver rosto para ver a sua dor. Eu o tinha machucado. De novo. Todo o meu corpo parecia doer, como se me punissem pelo meu crime.

_Ricardo..._ falei choramingando e chegando perto dele.

Ele levantou a cabeça. Seus olhos estavam molhados, mas ele sorria. Era um sorriso triste e fraco, mas era um sorriso.

_Você não fez nada, Bernardo. Ele também não. Eu teria feito a mesma coisa. Mentira. Teria feito antes.

Ele se levantou e acariciou meus cabelos.

_Eu vim sabendo no que estava me metendo. Você foi muito claro comigo. Eu me iludi porque sou assim mesmo, fazer o que?

_Se eu pudesse...

_Você teria me escolhido? Você já me disse isso antes, e eu acredito. Infelizmente, não podemos mudar o que sentimos. Você o ama, eu entendo e aceito, mesmo que doa._ ele deu um longo suspiro _Mas dói. E é uma idiotice sem tamanho continuar me machucando assim. Eu acho que preciso de um tempo de você, Bernardo. Eu preciso me afastar para poder respirar. Eu preciso não ver ou falar com você para dar a chance de outra pessoa aparecer.

Não ver Ricardo? Não falar com ele? Como? Ele já era uma parte de mim. Por mim, ele estaria sempre por perto. Mas eu não podia pedir isso a ele. Era injusto, era cruel.

_Quem sou eu pra te pedir pra ficar?_ falei com a voz embargada.

_Adeus, Bernardo._ ele falou me dando um beijo no rosto _Se despede do Pedro e da Alice por mim.

_Eu te levo pro hotel.

_Não precisa.

Ele foi caminhando para fora da casa de Pedro e eu fui atrás. Eu insistindo para levá-lo de carro e ele recusando.

_Tem um ponto de táxi ali embaixo, Bernardo._ ele falou quando chegamos na rua.

_É o mínimo que eu posso fazer, Ricardo.

Antes que ele pudesse responder, escutamos um burburinho vindo de dentro da casa. Certo, era uma festa grande e tinha muito burburinho, mas tinha uma voz que se destacava: Rafael. Aos poucos, todos foram se calando para ouvir o que ele falava e eu pude ouvir claramente suas palavras.

_Não dá mais, Alice! Eu não posso fazer isso mais. Eu amo ele!

Meus olhos se arregalaram. O que Rafael estava fazendo?! Ele resolveu terminar com Carolina e se declarar para mim na frente de todo mundo?

Ricardo sorriu triste.

_Você vai ter uma longa noite pela frente, boa sorte._ ele colocou a mão nos bolsos e caminhou em direção ao ponto de táxi _Adeus, Bernardo. Eu te ligo um dia...

E foi embora. Eu não sei se deveria tê-lo impedido. Eu não sabia bem como reagir. Tudo acontecia muito rapidamente.

_EU AMO O BERNARDO!_ gritou Rafael eufórico.

Cobri meu rosto com as mãos e me deixei cair encostado no portão de Pedro. Ali, do lado de fora, ninguém podia me ver, mas era como se pudessem, tamanho era a vergonha que eu sentia.

Alguém passou por mim rapidamente, saindo quase correndo da festa. Levantei a cabeça: Carolina. Ela chorava e eu tive muito pena dela. Ela me olhou e vi raiva nos seus olhos. Mas acho que quando ela viu no meu rosto a dor e a vergonha, talvez ela tivesse visto que eu nunca quis que aquilo terminasse daquele jeito. O olhar dela transformou-se em conformação, mas ela não me disse nada. Apenas caminhou mais calmamente até seu carro, ainda que não tivesse parado de chorar.

Lá iam embora dois corações partidos. Partidos por mim e Rafael. Era o preço do nosso amor. Para que ficássemos juntos, alguém tinha sempre que estar triste: Eric, Carolina, Ricardo... Eu e Rafael... Será que tinha que ser sempre assim? Era nosso destino? Nunca teríamos paz?

Talvez um dia tivéssemos a tão sonhada paz, mas ela tardaria. Ao ouvir os gritos apaixonados de Rafael do lado de dentro da casa, eu tive certeza que eu não teria paz por muito tempo...


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Ficha do conto

Foto Perfil contosdelukas
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Nome do conto:
Bernardo [70-72] ~ E a noite dos corações partidos

Codigo do conto:
217955

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
13/08/2024

Quant.de Votos:
2

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