_Faz um pedido._ falou Rafael baixinho no meu ouvido.
_É ano novo, não meu aniversário.
O relógio tinha acabado de virar meia-noite e nós olhávamos os fogos de artifício explodirem no céu. Estávamos num na sacada de um clube à beira da lagoa da Pampulha numa festa com os pais de Rafa. Definitivamente, eu estava bem mais confortável ali do que sob os olhares atravessados na minha sogra à mesa.
_Você não faz pedidos no ano novo?_ ele me perguntou.
_Não, apenas faço uma retrospectiva do meu ano.
Um ano que começou aos pés da Torre Eiffel com Ricardo. Fazia seis meses que Ricardo não me dava notícias. Eu o tinha no meu Orkut, então eu sabia que ele estava bem, enfim, vivendo, mas era doloroso não poder conversar com ele. Nossa única comunicação fora em agosto quando eu lhe desejei feliz aniversário por SMS e ele agradeceu. Eu estava cumprindo o que prometi, eu me afastei dele para que, nas suas palavras, houvesse a chance de uma outra pessoa aparecer na sua vida. O que mais eu podia fazer? Seu pedido não foi nada mais do que justo.
_O saldo é bom?_ perguntou meu namorado fazendo um carinho discreto nas minhas costas.
_Sim._ respondi olhando no fundo de seus olhos
Ele sorriu, chegou perto do meu ouvido e falou com a voz rouca:
_Então, a gente já fez um social. Que tal aproveitarmos a minha casa vazia e comemorar a virada de ano do jeito que se deve?
_Eu acho que é uma ótima ideia...
Ele riu e saiu me puxando pra fora do clube sem nem mesmo se despedir dos seus pais.
[...]
_Velho... Te amo!_ ele exclamou ao cair ao meu lado na cama exausto.
_Nós estamos ficando muito bons nisso._ comentei rindo me abraçando ao seu corpo nu e suado.
_Sim, mas não quero você se descuidando no treino, viu?
_Sim, senhor capitão!
Em algum ponto do quarto de Rafael, no escuro em meio às nossas roupas jogadas às pressas pelo chão, meu celular começou a tocar.
_Não atende!_ falou Rafa quando fiz menção de me levantar _Fica aqui.
_Pode ser alguém lá de casa.
_Eles sabem que você está bem.
_Podem estar querendo me desejar feliz ano novo.
_Podem desejar amanhã!
Eu ri e deixei que ele me segurasse na cama enquanto o telefone parava de tocar. Quando Rafa recomeçou a beijar meu pescoço, o celular voltou a chamar.
_Ahhhhh!
_Desta vez que tenho que atender, amor._ falei me levantando.
Eu realmente achava que era alguém da minha família me ligando. Por isso, paralisei com o choque do nome no visor. Rafael percebeu.
_O que foi? Não vai atender?
_É o Ricardo.
Lhe lancei um olhar constrangido, embora eu não tivesse motivos para estar.
_Atende, uai._ ele falou tentando parecer tranquilo em relação a isso.
Eu conhecia Rafael muito bem pra saber que ele queria que eu apenas desligasse o telefone e voltasse para cama. Mas eu não podia, era Ricardo. A saudade que eu sentia dele me doía, eu não podia perder aquela oportunidade.
_Alô?_ falei ao atender.
_Alô? Bernardo?!
_Sim, Ricardo, sou eu.
Ele falava de algum lugar muito barulhento, talvez uma festa, mas eu conseguia ouvi-lo bem. Me sentei na cadeira da escrivaninha de Rafael, enquanto o mesmo ficou deitado encarando o teto. Eu sabia que ele estava prestando muita atenção na minha conversa.
_Bernardo!_ gritou Ricardo ao telefone, me dando a certeza de que ele tinha bebido _Que saudade de você!
_Saudade de você também._ eu ri e respondi no automático.
Rafael bufou alto, o que me fez perceber que aquela noite não ia acabar bem. Fiquei terrivelmente dividido entre desligar o telefone para não magoar Rafael e continuar matando as saudades de Ricardo.
Eu te liguei pra te desejar feliz ano novo._ ele falou com a voz mais calma, mas ainda denunciando algum consumo de álcool _Eu estava aqui rodeado por toda essa gente e comecei a lembrar de você, do nosso beijo embaixo da torre Eiffel quando o ano virou. Quando eu percebi, eu já estava chorando. Não é aqui que eu queria estar, não é com essas pessoas que eu queria estar.
_Ricardo...
Ao mesmo tempo que eu fiquei sem jeito pelas palavras dele, eu lutava contra as minhas emoções para não falar a coisa errada pra Rafael ouvir.
_Porra, Bernardo! Você está com ele, não comigo!_ ele gritou claramente derramando lágrimas _Eu juro que estou tentando seguir em frente, mas é difícil quando vejo seu rosto em todos eles. Eu não sei mais o que fazer...
_Eu... Eu não sei o que te dizer, Ricardo..._ falei lutando pra manter a voz firme.
_Desculpe. Eu não devia ter ligado. Eu só queria dizer que eu te amo.
_Eu..._ eu gostaria de poder responde-lo como devia, mas não podia fazer isso com Rafael _Feliz ano novo, Ricardo.
_Tchau..._ ele falou triste antes de desligar.
Eu desliguei e fiquei encarando o telefone. Fui impossível segurar uma fungada.
_Sabe o que adoro?_ falou Rafael sem deixar de encarar o teto _Ver o meu namorado chorar por outro homem.
_Rafa, por favor..._ pedi implorando pra ele deixar aquilo passar.
_Eu estou errado? Você acharia isso confortável, por acaso?
Esfreguei meus olhos com força tentando me manter lúcido para a briga que Rafael queria ter.
Não, não está errado, realmente deve ser muito desconfortável. Mas você devia saber que é a primeira vez em seis meses que falo com uma das pessoas que mais marcaram a minha vida, e eu realmente não queria brigar por isso._ falei meio que contra-atacando _Só esperava um pouco de solidariedade de você nesse momento.
_Solidariedade uma porra! Eu não tenho sangue de barata!
_Ser solidário aos problemas do seu namorado é ser fraco?
_É, se os problemas forem relacionados ao ex-namorado!
_Então, na sua visão, eu devia ter um ataque toda vez que você fala de Carolina?!
_Não se faça de idiota!_ ele falou se sentando na cama e me encarando _Você sabe que a situação é completamente diferente?
_Diferente por que? Você se compadece da dor que causou nela, eu me compadeço da dor que causei nele.
_É diferente, sabe por que?_ ele falou com lágrimas nos olhos _Porque eu deixei de amar Carolina, mas você nunca deixou de amar Ricardo!
Eu engoli aquilo em silêncio. Como negar? Como responder? Eu realmente amava Ricardo, nunca deixei de amá-lo, mesmo à distância. Logicamente, meu silêncio após aquela declaração não soou bem.
_Eu devo ser um trouxa!_ Rafael falou ferido.
_Rafa..._ comecei, mas não sabia o que responder ainda.
_Vai lá! Pega um avião e corre atrás do seu namoradinho! Ele tá lá te esperando.
Ele correu pro banheiro e bateu a porta. Eu fiquei no mesmo lugar pensando melhor nas minhas palavras. Eu não tinha nenhuma dúvida sobre meus sentimentos por Ricardo e Rafael, ou seja, que eu amava meu namorado mais do que meu ex. O que eu não sabia era como explicar para Rafael aquilo. No momento em que voltei a namora-lo, não foi como se todo o meu passado amoroso tivesse desaparecido. Muito pelo contrário, se não tivesse havido Ricardo, talvez eu não fosse a pessoa que eu sou hoje e, por extensão, não estaria com Rafael.
Rafael saiu do banho mais calmo, mas ainda ferido, o que era demonstrado pelo seu silêncio. Ele se deitou na cama e se virou para o canto da parede, como para mostrar que não queria nem me ver. Eu calmamente me deitei na cama ao seu lado, mas não fiz nenhum movimento de aproximação. Fiquei olhando para o teto ainda pensando nas palavras certas.
Eu ainda amo o Ricardo, Rafa, eu não posso mentir pra você sobre isso. E eu não estou nem mesmo tentando esquecê-lo, porque eu não quero. Só que eu te amo muito mais do que amo ele.
Rafael deu um forte fungada, indicando que estava chorando.
_Ele foi uma parte muito importante da minha vida. Aliás, durante todo um ano, ele foi toda a minha vida. Não se joga fora alguém assim. Eu sempre vou escolher você, mas não me peça pra fazer essa escolha, por favor. Deixa eu ficar com a última migalha do que foi Paris para mim?
Ele não respondeu. Permaneceu na mesma posição.
_Eu amo ele e vou amar pra sempre, mas meu escolhido é você. Eu podia ter escolhido ele quando voltamos para o Brasil ou quando ele veio pra festa do Pedro, mas eu escolhi você. Então, para de sofrer com isso. Eu entendo o seu ciúme, e é por causa dele que nunca falo de Ricardo com você, mas isso não quer dizer que ele deixou de existir para mim. Sempre foi você, Rafa. Então, não, eu não vou pegar um avião e me jogar nos braços dele. Eu já estou nos braços de quem eu queria.
Rafael se virou e, ainda sem me olhar, me abraçou com muita força, como se tivesse medo de que eu fugisse.
_Eu não gosto dele. Eu sempre acho que ele vai te roubar de mim._ ele falou com a voz quebrada.
_Ninguém vai me roubar de você._ respondi o abraçando de volta _Ricardo se declarou para mim muitas vezes, mas ele nunca fez nada para me roubar de você. Ele é um bom perdedor.
_Que seja._ ele deu um longo suspiro _Sei lá... Eu tenho medo que um dia você canse de mim e corre de volta pra ele.
_Eu nunca vou cansar de você, Rafa.
_Vai... Um dia você vai se cansar do meu ciúme, dos meus ataques, das minhas explosões...
_Do mesmo jeito, você um dia pode se cansar da minha insegurança, da minha mania de pensar demais, da minha frieza. É um risco que assumimos.
Pensei com muito cuidado antes de dizer as próximas palavras.
_Eu posso te prometer de amar pra sempre. Eu tenho essa certeza. Mas eu não posso te prometer que ficaremos juntos para sempre. E você também não pode prometer e eu não duvido do seu amor por mim. Um relacionamento é um risco que se assume, Rafa. Só que ninguém para muito pra pensar nisso.
_Nós não vamos ficar juntos pra sempre?
_Nós vamos ficar juntos até o momento em que esse relacionamento fizer bem para nós. E eu espero que seja pra sempre.
Não era bem a resposta que ele queria ouvir, mas foram as mais sinceras que pude dar. Rafael sempre foi um romântico incorrigível, para o bem ou para mal. Na sua cabeça, amor eterno ainda era sinônimo de ficar junto para sempre. Eu sempre fui mais realista. Essa era nossa eterna disputa. Não seria apenas uma ou duas vezes que ele me acusaria de não acreditar no nosso futuro e eu o acusaria de ser muito ingênuo.
_Eu escolhi você porque eu sei podemos fazer ser para sempre.
Ele ficou calado por um tempo, ainda se abraçando com força em mim. Ele levantou a cabeça e eu encarei seus olhos molhados.
_Promete me amar pra sempre?
_Prometo._ respondi com toda a certeza do mundo.
Ele me deu um longo beijo e se deitou sobre meu peito. Fiquei acariciando seus cabelos até ele cair no sono.
Assim terminou nossa primeira briga. No dia seguinte, Rafael me acordaria risonho e procurando por sexo, como uma criança travessa. Minhas palavras o afetaram, com certeza, mas eu não sabia se ele realmente entendia a minha visão ou se apenas ignorava achando que eu adotava um discurso realista por segurança. O fato é que aquela briga foi realmente deixada para trás.
Porém, aquela não foi a nossa última briga motivada por Ricardo.
A mãe de Carolina morreu na madrugada de um sábado no início de janeiro. Dentro dos limites da sua situação, foi inesperado. Sua condição estava estável, fazendo os médicos acreditarem que ela poderia chegar até o fim de fevereiro ou março. Mas não, seus órgãos começaram a falhar um por um e muito rápido. Seu corpo já estava muito fraco, então não houve muito o que os médicos pudessem fazer por ela.
_Tem certeza que você vai nesse funeral, Rafa?_ perguntei preocupado ao telefone.
Meu namorado ficou em silêncio por um momento, como se estivesse pensando melhor.
_Vou..._ ele deu um longo suspiro _Não quero ir, mas eu devo ir.
_Não existe o risco deles te hostilizarem lá?
_Existe, mas eu tenho que assumir a minha culpa pelos erros que cometi.
_Você que sabe...
Eu senti que ele estava prestes a me pedir pra ir junto, o que era impensável.
_Eu adoraria estar lá pra segurar sua mão, Rafa, mas seria mil vezes pior. Sinto muito em te deixar sozinho nessa hora.
_Eu sei, não encuca com isso. Mas posso te pedir uma coisa?
_Claro, o que quiser.
_Me espera lá em casa? Eu acho que vou precisar de colo hoje.
_Claro, espero sim.
Não seria a situação ideal passar um tempo a sós com meus sogros na casa deles, mas a situação não me permitia negar isso a Rafael.
Quando eu me preparava para sair de casa rumo à casa de Rafael, fui desligar meu computador e me deparei com um novo depoimento no Orkut. Meu coração bateu mais rápido quando li que o remetente era Ricardo.
“Oi, tudo bom?
Tô escrevendo aqui meio envergonhado. Aliás, demorou até eu tomar coragem em lhe escrever isso. É um pedido de desculpas por aquela ligação, eu não devia ter feito aquilo. Como você deve imaginar, eu bebi um pouco além do que devia naquele dia.
Mas a bebida não explica tudo. Você vai saber algum dia pelas minhas fotos, então vou te contar de uma vez: conheci um cara. Não qualquer cara, um cara muito especial. E ele é especial porque foi o primeiro cara que me fez parar de pensar em você enquanto estávamos juntos. Foi essa a razão da bebedeira daquela noite, eu fiquei em dúvida se realmente queria te esquecer e te deixar para trás. Mas que outro caminho haveria para seguir?
Acabei por contar a ele toda a nossa história. Aliás, o nome dele é Talles. Ele se assustou um pouco no início, claro, mas compreendeu. Me perguntou se eu estava pronto pra seguir em frente e eu disse que sim. Ele então me pediu uma prova. Esse recado aqui é a prova que dou a ele. Eu estou te deixando para trás, Bernardo. Como namorado, claro, pois eu vou ser sempre seu melhor amigo.
Quem sabe um dia, num futuro onde todos nós já sejamos muito mais maduros, nós quatro não saímos juntos e rimos dessa história?
Até mais, Bernardo. Prometo não sumir mais!”
Eu não respondi. Deixei o depoimento lá na minha caixa de entrada e desliguei o computador. As palavras de Ricardo não saíram da minha cabeça por um só segundo enquanto eu dirigia em direção à casa de Rafael. Doía. Doía de um jeito muito parecido como deve ter doído em Rafael na noite do telefonema de Ricardo, ou mesmo em Eric quando me viu beijando Rafael. E isso não tem nada a ver com o tamanho do sentimento que eu tinha por Ricardo, porque a dor era puro ciúme, e o ciúme, meus caros, não é necessariamente proporcional ao amor.
Ricardo seguir em frente. Era óbvio que ele seguiria em frente. Ele pode ter todos os mais fortes sentimentos por mim, mas ele nunca foi burro, uma daquelas pessoas que passam a vida batendo cabeça por aí. Ele chegou a um ponto que percebeu que não podia insistir, pois eu não ia ceder. E Ricardo era o rapaz dos sonhos, talvez a melhor pessoa que eu já tive o prazer de conhecer, então, era questão de tempo até ele achar alguém que soubesse valorizar isso.
Esse é meu lado racional falando, mas não somos seres inteiramente racionais, somos? Sim, eu sentia o veneno do ciúme ardendo dentro de mim. E eu tenho pleno conhecimento que isso era puro egoísmo, afinal, o que eu poderia querer? Ricardo eternamente preso a mim vivendo com as migalhas que eu estivesse disposto a dar? Não, Ricardo era um cara muito inteligente e bem resolvido para cair na mesma armadilha de Eric.
E isso me fez pensar: não era eu que inconscientemente criava essa armadilha para eles? Eric, Ricardo... Mesmo Rafael se manteve preso a mim enquanto namorava Carolina. Mais ainda: antes de partir pra Paris, eu fui à sua casa, lhe fiz uma promessa e com isso o prendi na minha armadilha também. Mesmo Alice e Pedro! Minha insistência no relacionamento dos dois não era puro egoísmo? Fazer com que meus dois melhores amigos namorassem era muito confortável pois os mantinha próximos a mim, o que não aconteceria se eles namorassem pessoas fora do nosso restrito círculo social. Eu era esse tipo de pessoa? O tipo de pessoa que gostava de manter os outros sempre ao seu alcance, de modo que seria possível “utilizá-los” sempre que necessário?
Minha cabeça ainda fervia com esses pensamentos quando toquei a campainha da casa de Rafael. A mãe dele me atendeu com seu habitual meio sorriso.
_Bernardo!
_Oi, Rafael me pediu pra...
_Ele me avisou._ falou me cortando _Entre, por favor. Fique à vontade.
_Obrigado.
Eu entrei sem jeito no apartamento. Minha vontade era me trancar no quarto de Rafael esperando por ele, mas seria muito feio fazer aquilo.
_Sente-se._ falou minha sogra me indicando o sofá _Quer beber alguma coisa?
_Não, obrigado. Acabei de almoçar.
Ela se sentou em frente a mim. É importante ressaltar aqui que, por mais que deixasse claro que me desaprovava como namorado do filho, ela nunca fez nada contra o nosso namoro. Se houve alguma conversa com Rafael a respeito, nunca chegou aos meus ouvidos.
_Então, você acha que foi uma boa ideia ele ter ido lá?_ ela perguntou.
Eu não estava preparado para aquele tipo de conversa com ela, mas não havia escapatória.
_Eu não sei como ele teve coragem de ir, eu não teria. Se vai ajudar ele e Carolina a superarem tudo? Não sei... Eu realmente acho que ele acredita que os resultados dessa ida lá serão os piores possíveis.
_E por que ele iria, então?_ ela perguntou.
_Acho que ele busca algum tipo de punição para o que fez com ela.
_Não é um pensamento saudável. Você falou isso pra ele?
_Não, achei que não deveria.
_Mas não seria seu dever como namorado?
_Meu dever como namorado é ficar ao seu lado quando as coisas ficarem ruins. Mas eu não posso enfrentar seus demônios por ele, ele precisa se entender sozinho.
Ela me olhou pensativa por instante, antes de se levantar.
_Bom, vamos esperar pelo melhor. Tem certeza que não quer beber alguma coisa?
Ela se virou para a cozinha, mas eu a chamei.
_Sim?_ ela perguntou curiosa
Tudo o que pensei no caminho ainda estava indo e vindo com força na minha cabeça. Foi impossível segurar.
_Eu acho que nunca te pedi desculpas, né?
_Pelo que?_ ela perguntou confusa.
_Por ter feito seu filho sofrer quando namoramos pela primeira vez.
Ela me olhou confusa.
_Vim pensando sobre isso no caminho._ falei _Sei que o Rafa contou pra vocês sobre o nosso primeiro namoro, com todos os problemas que coloquei no nosso caminho.
Ela me olhou atenta, sem me responder. Isso só me deixou mais aflito, mas resolvi continuar mesmo assim.
_Eu fiz o seu filho sofrer, e eu tinha consciência que estava fazendo isso.
_Bernardo...
Ela ficou me olhando procurando as palavras certas.
_Somos todos adultos aqui. Não estou completamente feliz com o namoro de vocês, e você sabe que isso não tem nada a ver com a sexualidade do meu filho.
_Sim, você desaprova o nosso namoro por causa do que eu fiz ele passar.
_Mais ou menos. O problema não é só você, é Rafael também.
_Como assim?
Ela deu um longo suspiro antes continuar.
_Posso ser sincera? Não vejo futuro no relacionamento de vocês. E a culpa não é de nenhum dos dois em particular.
Abri a boca para protestar, mas ela foi mais rápida ao continuar.
_Eu simplesmente acho que vocês dois não encaixam. Eu acredito que você ama meu filho e que ele te ama, mas isso só não basta, como vocês vão descobrir. Essa coisa toda de atração entre opostos não funciona no longo prazo.
_Nós temos muitas coisas em comum.
_Gostos musicais? Os mesmos programas? Os mesmos filmes favoritos? Não é disso que eu estou falando, Bernardo. Vocês têm personalidades diferentes, e é isso que acaba importando no final, porque implica em visões de mundo, sonhos e trajetórias diferentes. Não vejo vocês caminhando na mesma direção.
Aquilo me pegou desprevenido.
_Sim, é verdade que temos nossas diferentes, mas não é nisso que mora a graça de um relacionamento? Podemos até estarmos destinados a seguir por caminhos diferentes, mas e se acharmos juntos um terceiro caminho?
_Aos vinte anos de idade? Acho muito difícil, meu querido.
_Mesmo se der errado!_ falei num desespero contido _Não vai ter valido à pena? Nem mesmo tentar não é uma opção neste caso.
_Talvez. Mas como eu prevejo um final com vocês separados e vocês se amam, eu estou antecipando que meu filho vai sofrer muito quando acontecer._ ela fez uma pequena pausa _Esse é meu problema com o namoro de vocês.
_E você acha que seria melhor se ele estivesse com Carolina ainda?_ perguntei ainda atordoado com suas palavras.
_Ele a amou bem menos do que você, eu sei disso, mas os dois tinham um encaixe melhor. Aquela era uma situação em que eu via um futuro, por mais que a própria sexualidade dele pudesse ser uma eventual dificuldade.
Eu estava prestes a chorar. Aquele realmente não estava sendo o meu dia. E sabe o que mais me impactou nas palavras dela? Ver alguma verdade.
Eu nunca impus barreiras a esse namoro, e não vai ser agora que eu vou começar._ ela continuou _Apesar dos pesares, eu acho que há erros que devem ser cometidos na vida para que possamos evoluir a partir deles. Quando você tiver a minha idade, você verá isso mais claramente. Por enquanto, sou eu que te peço perdão, Bernardo?
_Pelo que, exatamente?
_Por não ter sido a pessoa mais receptiva do mundo com você. O primeiro namoro de você não deu certo e eu realmente te culpei por fazê-lo sofrer, mas eu te perdoei por isso no momento eu percebi que você estava por inteiro nesse namoro. Que você está disposto a fazer meu filho feliz._ ela fez mais uma pausa e me encarou antes de continuar _Você me perdoa por ter te tratado mal baseado num simples futuro hipotético?
_Sim..._ falei um pouco confuso.
_Tudo certo, então. Acho que não há mais nada a ser dito, só que eu vou tentar ser uma sogra melhor a partir de agora.
_Obrigado...
_Quer esperar Rafael no quarto dele?
_Se você não se importar.
_Claro que não, pode ir.
[...]
Logicamente, as palavras da mãe de Rafael ficaram na minha cabeça por muito tempo, mas eu escolhi não dizer nada a ele sobre nossa conversa. Pra falar a verdade, eu disse a mim mesmo que Joana estava errada, que Rafael e eu acharíamos um jeito de dar certo. Essa conversa se esqueceu dentro de mim por muito tempo até um dia onde realmente nossa diferenças começaram a pesar, apesar de não ter acontecido do jeito que ela previu.
_Podia ser sempre assim..._ falou Rafael.
Ele me encarava encostado na porta, me admirando. Eu, perdido em pensamentos, não sei por quanto tempo ele ficou ali.
_Assim como?
_Você deitado na minha cama me esperando chegar
Eu ri do seu gracejo. Ele fechou a porta do quarto, tirou os sapatos e se deitou ao meu lado depois de me dar um beijo.
_Como foi lá?_ perguntei.
_Melhor do que eu imaginava que seria.
_Foi?
_Pois é. Aparentemente, só Carol e seus pais sabiam de todos os detalhes de como terminamos, então não teve uma multidão enfurecida querendo minha cabeça. E o pai dela estava muito abalado com tudo para sequer notar minha presença lá. Eu consegui conversar com ela a sós.
_E como foi essa conversa?
_Foi estranho. Primeiro, que ela não estava nem um pouco agressiva como ao telefone nos últimos meses. Acho que a morte da mãe pegou ela desprevenida, apesar de tudo. Peguei ela de guarda baixa._ ele brincou.
_Isso não é coisa que se diga, Rafa!
Ele riu e continuou.
_Foi uma conversa rápida. Eu implorei por perdão e ela deu. Disse que se era o perdão dela que eu precisava para seguir em frente, que ela me dava. Disse que não queria se tornar uma pessoa amargurada por causa disso, ou forçar esse laço entre nós.
_Deve ter sido algo não muito fácil de aguentar.
_Não, não foi, ainda mais depois dela dizer que apesar de perdoar, nunca ia esquecer a humilhação, e isso a impedia de sequer me querer bem._ ele falou suspirando.
_Nossa... Você está bem?
_Não sei. Meio aliviado, meio ferido... Vou sobreviver.
_Ela volta pra faculdade?
_Disse que vai cuidar do pai dela, ou seja, pelo menos não no próximo semestre.
_Enquanto ela não voltar e mostrar que te perdoou, seus amigos não vão te aceitar de novo.
_Eles não são mais meus amigos, Bernardo, quem você está tentando enganar?_ ele devolveu me olhando com um sorriso triste.
Eu me virei ficando de frente para ele e o abracei, fazendo nossas testas ficarem encostadas.
_Ricardo me mandou uma mensagem hoje._ falei.
Ele fechou os olhos como se não quisesse escutar sobre aquilo, mas ignorei.
_Ele me pediu perdão sobre o telefonema daquela noite, falou que estava bêbado.
_Hum.
_E falou que está namorando.
Rafael abriu os olhos curioso.
_E como você se sente sobre isso?
_Hum... 90% feliz por ele.
Ele riu da piadinha, e não disse mais nada. Fechou os olhos e acabou dormindo ali comigo. Eu não dormi imediatamente, fiquei admirando seu sono. Ele parecia mais tranquilo do que nos últimos meses. Carolina, meio que pela metade, tirou um peso das costas dele. Ela não tinha nenhuma obrigação, mas fez por caridade, para ajudar Rafael a seguir em frente.
Com tudo que tinha acontecido naquele dia, adormeci desejando ter ouvido de Eric que ele havia me perdoado também.
Antes das aulas recomeçarem em março, os meus amigos se organizaram para passar o carnaval em Ouro Preto. Para quem não conhece, o carnaval de Ouro Preto é conhecido pelo alto grau de loucuras e a política do “ninguém é de ninguém”. Não podia ser diferente, uma vez que se tratava de uma cidade universitária. Enfim, não seria o lugar o ideal para se passar o carnaval se você está namorando sério. Alice sabia disso, por isso tratou de arrastar Pedro para uma praia mais familiar no Espírito Santo. Eu e Rafael não resistimos à pressão psicológica dos nossos amigos e fomos.
_Bem-vindos! Aqui não tem muito espaço ou divisão, então onde quiserem deitar é isso mesmo._ falou Henrique.
Henrique era o “chefe” da república onde ficaríamos hospedados e um velho conhecido de Paulinho. No carnaval de Ouro Preto, as repúblicas funcionavam em sistema de rodízio: o primeiro grupo dormia enquanto o segundo grupo farreava, depois trocávamos. Eu e Rafael mal guardamos nossas coisas e fomos pra rua.
Eu sempre passei o carnaval viajando com minha família, nunca fui pra farra mesmo, então era tudo novidade pra mim. Os trios elétricos, que não eram mais do que pequenos caminhões com muitas caixas de som, passavam pelas ladeiras estreitas da cidade se espremendo entre os foliões. Ninguém estava muito preocupado com isso. Rapidamente você se acostuma com aquela multidão de pessoas suadas relando em você e entra na brincadeira. Hoje, eu não aguentaria ali por cinco minutos e já estaria louco de vontade de ir pra casa, mas eu me diverti muito na época.
Estava todo mundo tão louco ali, que eu e Rafael trocamos vários beijos no meio na multidão e ninguém ligava. Aliás, ninguém parecia mesmo estar vendo. Eu logo entendi porque aquilo não era um programa de casal: várias meninas (e alguns poucos meninos), já chegavam em mim ou em Rafa procurando por um beijo. Era um pouco chato, porque você tinha que empurrar as pessoas pra longe, mas a gente entendia muito bem a situação, então não teve nenhuma briga por ciúme.
_Qual a sua opinião sobre seu primeiro carnaval de verdade?_ perguntou Rafa depois que eu saí do banho e caí exausto numa cama ao seu lado.
_Muito bom!_ falei já quase desmaiando de cansaço _Me ajudou a descobrir que tenho o preparo físico e a disposição de um senhor de setenta anos de idade.
Ele riu e logo dormiu também. Era um monte de colchões jogados no chão, com a maioria dos caras bem bêbados dormindo um em cima dos outros. Eu e Rafa conseguimos dormir juntinhos, mas nada de diversão, obviamente.
O grande acontecimento daquele feriado aconteceu no nosso penúltimo dia em Ouro Preto, na terça-feira de carnaval. Como fizemos nos outros dias, levantamos um pouco depois do almoço, forramos o estômago com um lanche qualquer e fomos pra rua. Paulinho, Bruno e Mariana, que estavam com a gente, logo ficaram para trás presos na boca de alguém. Rafael e eu já estávamos um pouco bêbados, pulando sem camisa ao lado do “trio elétrico”. Com os reflexos prejudicados com o álcool, mal percebi o que aconteceu quando um cara musculoso me puxou e me lascou um beijo. O cara se desgrudou antes que eu pudesse raciocinar direito. Era Rafael puxando ele.
_Você ficou louco, cara? Ele é meu namorado!_ Rafael gritou bravo.
O cara era mais forte que Rafael, fiquei com medo de ele apanhar ali. Me preparei para intervir, mas o cara foi mais rápido. Ele sorriu e puxou Rafael num beijo também. Não sei quem ficou mais surpreso, eu ou Rafa. Eu assisti abismado os movimentos da língua daquele cara dentro da boca do meu namorado. Minha garganta se fechou e eu senti meu rosto arder, como se todo o meu sangue tivesse entrado em ebulição. Quando o cara soltou da boca de Rafael, meu namorado me olhou com um misto de confusão e culpa.
_Venham aqui!_ falou o cara e saiu nos puxando pela multidão
No meu estado normal, eu nunca teria ido com aquele cara, vai saber as intenções que ele tinha. Mas eu e Rafa já estávamos bem bêbados, então a gente se deixou ser levado. A gente seguiu o cara não pelo tesão, mas por pura inércia. Começava a anoitecer e chegamos a um beco bem escuro, onde os variados gemidos que escutávamos deixavam claro o que acontecia ali.
Eu e Rafa fomos brutalmente jogados contra uma parede. O cara nos envolveu em seus braços e começou a revezar entre a minha boca e a de Rafael. Ele nos puxava um contra o outro, como para deixar claro que íamos fazer aquilo a três. Ainda um pouco confuso, troquei um rápido olhar com Rafael. Eu confesso que ainda estava um pouco relutante em deixar que aquilo acontecesse, mas cedi quando vi desejo nos olhos do meu namorado. Decidi embarcar naquela fantasia e o puxei para um beijo intenso.
O cara, vendo que nós dois já nos deixávamos levar pelo tesão, se agachou e abriu nossas bermudas. Eu e Rafa continuamos nos beijando enquanto ele tirava nossos paus para fora e os chupava. Ele segurava os dois e revezava a boca, mostrando que tinha muita habilidade naquilo. Eu sentia um tesão incrível, como se eu estivesse ardendo em febre.
_Que tesão!_ falou Rafael entre gemidos.
O cara se levantou e começou a beijar e se esfregar no meu namorado. Eu senti muito ciúme, apesar do tesão. Rafa beijava o cara de olho aberto e me encarando. Ele estava se divertindo com meu ciúme. Decidi não deixar por menos: me posicionei atrás do cara e comecei a beijar sua nuca enquanto relava meu pau na sua bermuda. Como meu namorado fizera comigo, eu fiz isso de olhos abertos o encarando, me divertindo com o fogo nos seus olhos. Meus movimentos chamaram a atenção daquele desconhecido e ele abaixou a bermuda, deixando a sua bunda exposta para eu relar nela.
Você quer ser fodido, né?_ falei no ouvido dele, mas ainda olhando pra Rafa.
_Quero..._ ele falou num som abafado de tesão.
Ele se abaixou e pegou uma camisinha na bermuda para mim. A desenrolei em mim e comecei a penetrá-lo. Não encontrei nenhuma resistência, ele devia estar se divertindo muito naquele carnaval...
_Vou te ensinar a não mexer com o namorado dos outros._ falei.
Comecei a bombar com força e ele se segurava em Rafael, o beijando de vez em quando. Rafa me olhava com uma expressão mista de raiva e tesão.
_Você gosta disso, né?_ perguntei no ouvido do cara.
Era tudo uma provocação com Rafael, eu estava excitado com a situação, mas também com raiva dele.
_Gosto!_ ele respondeu rebolando.
Rafael me conhece bem, sendo capaz de prever o que vai acontecer pelas minhas expressões. Ele sabia que eu estava prestes a gozar, mas ele não ia me deixar escapar fácil assim.
_Minha vez!
Rafael puxou o cara pra si e o jogou contra a parede. O cara lhe entregou outra camisinha, e Rafa começou a meter assim que a vestiu. Foi tão rápido que fiquei sem ação por alguns segundos, com o pau parado no ar. Me deu raiva de Rafael, o que se misturou ao ciúme. Mesmo no escuro, eu conseguia ver os movimentos intensos da bunda de Rafa toda vez que ele dava uma estocada. Era quase que fisicamente doloroso assistir aquela cena. Se não houvesse a presença do tesão ali, eu com certeza estaria assistindo em lágrimas meu namorado fudendo outro cara.
Mas eu não deixei por menos. Passei saliva no meu próprio pau para lubrifica-lo. Sem aviso ou carinho, cheguei por trás de Rafael e meti meu pau nele. Ele recuou de susto e dor, mas eu o segurei. Eu não conseguia ver seu rosto daquela posição, mas eu podia imaginar sua expressão de dor e tesão. Do mesmo jeito que ele sentia um prazer sádico com aquela dor, eu também sentia tesão em provocar nele aquela dor. Era como se eu estivesse me vingando dele por estar comendo aquele cara. Com uma mão eu segurava sua cintura e com outra eu segurava seu ombro, mas eu segurava com força, quase que machucando ele. Eu bombei violentamente, e o meu movimento era o bastante para fazer seu pau entrar fundo naquele cara. Eu controlava todo o movimento daquela transa. Rafael não reclamou uma só vez, apenas gemia, ora de dor, ora de prazer.
Toda aquela ação não deve ter demorado mais do que vinte minutos. Quando nós três gozamos um dentro do outro, levamos mais alguns minutos para recuperar o fôlego. A sensação era que alguém tinha arrancado meus pulmões fora, enquanto meu pau ardia pela violência dos movimentos.
_Valeu demais!_ falou o cara.
Foi tudo o que ele disse. Subiu a bermuda novamente e saiu pelo mesmo lugar de onde viemos. Nunca soube nem seu nome. Foi realmente um “qualquer um” que pegamos na rua. Sem que uma só palavra fosse trocada, eu e Rafa subimos nossas bermudas e saímos daquele lugar também, pegando o caminho em direção à república. Nós nem nos olhávamos. Havia um misto de raiva que ficou pelo ciúme e vergonha pelo que tínhamos acabado de fazer. Eu não sou um puritano, não condeno sexo a três, ou sexo com desconhecidos, ou sexo com um pouco de violência. Rafael também não. O problema era como tudo aconteceu, como deixamos o nosso lado mais animal e primitivo vir à tona naquele beco escuro.
Caminhamos lado a lado em silêncio pela noite até a república.
_Estavam se divertindo, né, seus safados?!_ falou Paulinho ao nos ver chegando suados e cheirando a sexo
Respondemos apenas com um par de sorrisos amarelos. Claro que não contamos para ele o que tinha acontecido. Além dos três envolvidos, a única pessoa que um dia soube o que aconteceu naquele beco foi Pedro, e ele se assustou tanto que nunca ousou fazer alguma piada sobre o ocorrido. Depois disso, cada um tomou seu banho e desmaiou no colchão. Tudo isso sem trocar uma só palavra.
[...]
Mesmo no dia seguinte, só conversamos um com o outro dentro da mesma roda de conversa que nossos amigos. Mariana, Bruno e Paulinho voltaram com a gente no carro e com certeza perceberam o clima estranho, mas não falaram nada. Talvez até soubessem, uma vez que não é difícil imaginar qual o motivo número um de brigas entre namorados num carnaval como o de Ouro Preto.
Só fomos realmente conversar um com o outro a sós quando chegamos a Belo Horizonte e fomos caçar algum lugar pra almoçar.
_Pode ser no shopping?_ ele perguntou.
_Claro.
Como era um resto de feriado à tarde, o shopping estava vazio, então pegamos uma mesa mais afastada. Parecíamos adivinhar que não gostaríamos de audiência para a conversa que teríamos. O papo surgiu quase que naturalmente: Rafael fez uma cara de dor quando se sentou na cadeira.
_Me desculpa por isso._ falei envergonhado _Eu não sei o que me deu...
_Tá, deixa pra lá._ ele falou sem me olhar.
Não acho que ele estava com raiva de mim, ele estava ressentido. E não por causa da “violência”, mas pela situação como um todo. Eu sei bem porque era exatamente o que eu estava sentindo também. Voltamos a atenção para nossos pratos e novamente aquele silêncio constrangedor se instalou entre nós.
_Acho que a gente precisa conversar sim._ falei.
Ele deu um longo suspiro e me encarou com um olhar cansado.
_Não é a dor, isso passa._ ele falou _É que, sei lá, parecia que você queria me machucar.
Me envergonhei quando ele falou isso. Eu realmente quis machuca-lo.
_Me desculpa, eu não sei o que me deu. Acho que fiquei com ciúme.
_Ciúme de que? Você também estava ali!
_Sem hipocrisia, Rafa. Você também estava morrendo de ciúme.
_Mas eu não te machuquei pra me vingar!_ ele falou com raiva, apesar de não gritar.
_E você gostou, né?_ respondi adotando a defensiva automaticamente.
Nos olhamos feridos. Nós dois tínhamos nossa parcela de culpa por tudo que tinha acontecido, mas um culpava o outro mais.
_Imbecil._ ele falou entre os dentes voltando a comer.
Me revoltei com o xingamento.
_A gente pode ter uma conversa de adultos? Ou isso é muito difícil pra você?
_A gente vai conversar sobre o que? Já aconteceu, você me pediu desculpa e eu aceitei. Bola pra frente.
_E vamos fingir que nada nunca aconteceu?
_É, porque não temos nada o que conversar sobre aquilo. Ou você tem?
_Tenho.
_O que é?
_Eu confesso ter ficado surpreso em saber que você queria experimentar outros caras por aí._ falei magoado com lágrimas prestes a se formar.
Ele voltou a me encarar com raiva.
_Eu?! Você que tava viajando enquanto comia aquele cara.
_Ah, claro, porque você não! Quando o cara me beijou pela primeira vez, você bancou o namorado ciumento arranjando confusão, mas se calou rapidinho quando ele te beijou.
_Quem é o hipócrita aqui agora?!
Eu estava prestes a chorar, mas eu me recusava a fazer isso em público, mesmo que ninguém estivesse nos ouvindo.
_Quer saber, Rafa, você tem razão. Vamos deixar pra lá?_ falei me levantando e deixando a comida pela metade _Eu vou pra casa e depois a gente se fala.
_Eu te levo._ ele falou se levantando também.
_Não precisa.
_Eu quero te levar.
_Mas eu quero ir sozinho. Posso?_ falei impaciente.
_Faz o que você quiser._ respondeu com raiva voltando a se sentar.
Fui embora de ônibus e só voltamos a nos falar três dias depois. O clima ruim entre nós só passou mesmo depois de uma semana, mas nós nunca mais conversamos sobre o que tinha acontecido. Nem tinha o que conversar. Nós dois nos deixamos ser guiados pelo tesão. O que aconteceu no carnaval, ficou só no carnaval.
A vida é injusta. Ela te obriga a escolhas impossíveis, te leva por caminhos que você não quer seguir e destrói sem cerimônias cada um dos seus planos. Não importa o quão bom você tenha sido, ali na esquina sempre tem um rasteira da vida te esperando.
Vou pegar o meu caso como exemplo. Eu escolhi uma carreira rentável, me cerquei de amigos fiéis e consegui ficar com o cara que eu amo. Até aqui, então, tudo certo. E eu fiz sacrifícios, pequenos ou grandes, para conquistar cada uma dessas coisas. Mas e se amanhã elas me forem tiradas? Se eu acordar daqui a dez anos sem nenhuma dessas coisas? Meus sacrifícios teriam sido em vão? Uma vida jogada fora? De que adiantou tudo então?
Era nisso que eu pensava quando descobri que minha avó materna começou a apresentar os primeiro sinais do Mal de Alzheimer. Uma vida inteira de privações e não foi possível aproveitar nem mesmo seus anos finais? Quão injusto é isso?
A desconfiança começou quando ele confundiu meus primos com meus tios e Laura com minha mãe. Ela alegou apenas que estava um pouco cansada, mas o alarme soou quando esses lapsos de memória se tornaram mais frequentes. O diagnóstico foi confirmado em março daquele ano e caiu como uma bomba na família.
_Quem vai buscar papai e mamãe no aeroporto, eu ou você?_ perguntei a Tiago.
Minha mãe foi a Porto Alegre acompanhar os testes finais e os resultados dos exames da minha avó, e meu pai foi ajuda-la
_Eu vou, pode deixar._ ele respondeu _Foda, né?
_Foda... Isso não te deixa preocupado?
_Eu fico com pena da vovó, mas fazer o que? Vamos cuidar dela.
_Mas a doença é genética, Tiago. Nós temos uma chance de ter herdado o gene.
_Ah, eu li a respeito e é meio difícil. Só se a mamãe tiver herdado da vovó e nós tivermos herdados dela. E é incomum que passe da mãe pros filhos homens. E mesmo que passe, ter o gene não significa que a doença vai se desenvolver.
_Mesmo assim, já imaginou acordar sem saber quem é você? Quem são as pessoas que você ama? Sem se lembrar de tudo o que você viveu?
Meu irmão ficou pensativo por um tempo.
_Sinceramente? Você não teria consciência do que está acontecendo, então não seria tão ruim pra você. O grande fardo quem carrega são as pessoas que estão em volta.
_As chances da mamãe ter herdado o gene são enormes.
_Eu sei, e isso me preocupa mais do que a vovó.
Aquilo ficou na nossa cabeça durante muito tempo. Aliás, nunca saiu. Ainda mais depois de meu pai chamar eu e Tiago num canto e nos contar que minha mãe tinha feito o teste genético e o resultado tinha sido positivo.
_Mas isso não significa que ela vai desenvolver a doença, certo?_ falou Tiago abalado _E se acontecer, pode demorar décadas até os sintomas aparecerem.
_Eu sei, mas é muita coisa pra cabeça dela._ meu pai falou _Então, por favor, evitem maiores comentários sobre isso. Sejam compreensíveis com sua mãe.
Eu fiquei calado durante todo aquele papo. Minha mãe tinha o gene, e era possível que eu também tivesse, embora eu nunca tenha feito o teste. Eu não queria correr o risco de ver o resultado positivo e passar a guiar toda a minha vida em volta daquela doença. Para falar a verdade, eu concordava com Tiago, o efeito era muito pior para quem teria que conviver com o doente. Por isso, o fato de minha mãe ter o gene me era mais preocupante do que se eu mesmo tivesse. E se minha mãe acordasse um dia sem se lembrar de mim?
Embora meu pai tenha nos pedido para evitar o assunto com mamãe, eu não pude evitar. Aquele assunto dominava meus pensamentos. Então, num sábado à tarde que coincidiu de eu e minha mãe estarmos sozinhos em casa, aquela conversa aconteceu.
_Eu decidi não fazer o teste._ falei sem uma introdução.
Minha mãe, que olhava para televisão sem realmente assistir nada, desviou sua atenção para mim. Ela demorou alguns segundos para entender do que eu estava falando.
_Você tem certeza?
_Tenho, eu não quero viver com essa sombra.
_E você vai conseguir conviver com a dúvida?
_Mesmo se desse positivo, ainda é uma dúvida, não?
_Talvez...
_Você se arrepende de ter feito o teste?
_Às vezes sim, às vezes não.
Aquele rascunho de diálogo era a primeira conversa não-superficial que tínhamos desde que contei que era gay, e lá já iam nove meses.
_O que vai acontecer com a vovó?_ perguntei.
_Não sei. A doença dela está na fase inicial e pode ficar assim por anos. Vamos contratar um serviço de acompanhamento para ela em tempo integral. Mas se a doença se agravar, ela vai ter que ser internada.
Ficamos em silêncio.
_Eu não posso não pensar em como isso é injusto._ eu falei.
_Adoecer nunca é justo, Bernardo.
_Mas a vida que ela levou. Ela deveria ter o direito de ter aproveitado melhor sua viuvez.
_Não fale do que não sabe._ falou sem me olhar.
_Por favor._ pedi sem paciência _Estamos só nós dois aqui, não tem ninguém pra quem mentir. Você realmente acha que sua mãe foi feliz naquele casamento?
Ela não respondeu nada. Mas, nesse caso, o silêncio não era uma resposta afirmativa, e sim um meio de dizer “não vou conversar sobre isso com você”.
_Para de mentir para si mesma, mãe. Vovó levou uma vida infeliz, vovô não era uma boa pessoa, e sua família não era perfeita. Nenhuma família é. É injusto você culpa tio Aurélio sobre isso.
Eu não pretendia seguir por esse caminho, não planejei aquela conversa. Só que era a primeira vez que tínhamos uma conversa de verdade em tempos, então foi impossível segurar tudo que eu já vinha segurando a meses para lhe dizer.
_O que foi? Voltamos à fase do tratamento de silêncio?_ perguntei irônico.
_Cale a boca._ ela falou fria _Se não entende, pelo menos respeite a morte do seu avô. Ele não está aqui para responder.
_Eu não posso deixar ele para trás se as coisas que ele disse e fez continuam influenciando minha vida através de você.
_Cala a boca!_ ela gritou _Por que diabos você está falando disso?!
_Por que?!_ falei com lágrimas nos olhos _Porque eu hoje acordei me perguntando o que aconteceria você se desenvolvesse essa maldita doença! E se você esquecer quem eu sou antes de poder me dizer que você me aceita do jeito que eu sou?! Como eu conseguiria viver com essa peso nas costas pelo resto da minha vida?!
Ela ficou me encarando com os olhos vermelhos. Eu escondi meus rosto com as mãos e comecei a chorar de verdade. Quando brigamos com alguém, ficamos de mal e viramos a cara, nunca paramos para pensar: e se alguma acontecer? Como eu conseguiria viver com o peso de ter deixado a pessoa ir achando que não era querida por mim? Nós e nossa irritante mania de achar que somos imortais.
_Olha o que nós viramos..._ falei ainda escondendo o rosto _Dois estranhos. Você não sabe nada do que está acontecendo comigo. Você não sabe mais nada da minha vida. E daqui a pouco eu estou saindo de casa, começando minha vida em outro lugar, e onde nós dois vamos ficar? Cavando ainda mais esse abismo que se formou entre nós? Se você não começar a repensar o jeito como você me trata, sinto muito, mas nossa relação não tem nenhum futuro.
Eu não olhava para ela, mas sentia seus olhos em mim.
_Eu não consigo parar de pensar onde eu errei com você._ ela falou enfim.
Era como se não tivéssemos chegado a lugar nenhum! Ela ainda achava que eu ser gay era um erro, uma fatalidade do destino. Eu me levantei sem paciência e para cozinha beber água para ao menos tentar me acalmar.
_Você errou sim comigo._ falei da cozinha num tom alto o bastante para que ela me ouvisse, mas sem gritar _Você sempre soube de tudo e se calou. Você deixou que eu me afogasse num mar de agonia e se sentou para assistir.
Eu voltei para sala e encarei.
_Você me contaminou com essa sua ridícula busca pela perfeição e me fez jogar fora anos da vida. Me fez desperdiçar experiências maravilhosas e pessoas maravilhosas. Coisas que eu nunca vou poder recuperar._ eu dei uma risada triste _E ainda sim, eu sou o único aqui pedindo perdão.
Ela não chorava, mas me encarava com os olhos vermelhos. Eu sabia que ela estava no seu limite, mas não tinha forças para brigar comigo.
_Sim, eu sabia desde o que você era desde pequeno._ ela falou _Eu não sei... Acho que eu sempre tive medo de você repetir a história do meu irmão.
_Você ainda culpa a homossexualidade do seu irmão pela destruição de sua família, mas você está errada. O que destruiu sua família foi o fato de seu pai colocar seu preconceito acima do amor que sentia pelo filho. Eu não estou cometendo o mesmo erro que tio Aurélio, você é que está cometendo o mesmo erro do seu pai.
Ela pousou a cabeça sobre as mãos e ficou mexendo nos próprios cabelos.
_Você ao menos entende que eu ainda sou a mesma pessoa?_ perguntei _Que eu não sou nenhum estranho morando sobre o seu teto.
_Para com isso, Bernardo!
_Mas eu realmente não sei! Olha o jeito que você vem me tratando todos esses meses! Eu não sei mais o que eu sou pra você.
_O que você quer de mim afinal? Não, eu não consigo achar normal!
_O que eu quero é que você pelo menos abaixe a guarda e deixe eu te mostrar o meu mundo. Quando você conhece-lo, você vai ver que ele é o mais natural possível.
Ela não me respondeu, permaneceu naquela mesma posição.
_Olha o exemplo da sua mãe._ falei _Ela precisou de quarenta anos para entender e fazer as pazes com seu filho, e quando aconteceu, ela não tinha mais saúde para recuperar o tempo perdido.
As lágrimas voltaram a encher meus olhos e a minha voz a falhar.
_Eu morro de medo que isso aconteça com nós dois, mãe
Me sentei no sofá de frente para ela.
_Mês que vem é meu aniversário, mas eu não quero nenhuma grande comemoração. Minha ideia é fazer um churrasco aqui em casa só com os amigos mais próximos. E eu vou convidar meu namorado.
Ela não apresentou nenhuma reação.
_Eu gostaria muito que você estivesse presente para conhece-lo._ falei _Rafael é o amor da minha vida, a pessoa com quem eu quero passar o resto dos meus dias e um dos pais dos seus futuros netos. Eu realmente queria que você o conhecesse.
_Eu não sei, Bernardo..._ ela falou.
Só o fato de não ter havido uma negativa imediata, era um imenso avanço, mas decidi forçar um pouco mais.
_É o Rafael, lembra dele? Ele andou aqui em casa por tempo no início do ano retrasado após a morte daquele colega. Nós namoramos desde que eu voltei ao Brasil e nos amamos muito. Ele me ama e cuida muito bem de mim, e isso já é motivo suficiente para você gostar dele.
Me levantei do sofá e limpei minhas lágrimas.
_Eu vou tomar um banho e sair com ele. Vou aproveitar para fazer o convite.
E foi assim que aconteceu aquela conversa definitiva com minha mãe. Podem me acusar de ter pegado pesado usando a doença da minha avó e a possibilidade dela desenvolver a doença também, ou mesmo de me aproveitar de um momento que ela estava fragilizada, mas eu não penso assim. Eu não escolhi aquele momento por ele ser oportuno, apenas aconteceu de aquela doença mexer comigo também. Eu tive e tenho medo que minha mãe desenvolva a doença e se esqueça de mim. E, infelizmente, não há como saber se isso vai acontecer e quando. Por isso, eu me senti obrigado a forçar ela a me conhecer. Talvez com um pouco de egoísmo, eu fiz aquilo para que eu pudesse aproveitar mais da minha mãe antes que a vida a tirasse de mim. Minhas palavras não poderiam ter sido mais verdadeiras: eu morria de medo que repetíssemos a história de vovó e tio Aurélio.
17 de abril de 2009, sexta-feira.
_Ao contrário de tudo o que você possa me dizer, matar aula é sempre uma boa ideia._ falou Rafael me fazendo rir.
Estamos deitados nus no chão da sua casa de campo. Suados e exaustos, falávamos com largos espaços tentando recobrar o fôlego.
_Matar aula com você é sempre uma boa ideia, amor._ respondi _O que eu discordo é da frequência com que você propõe isso.
_Mas hoje é especial._ ele falou se virando de lado e me olhando _Feliz aniversário, amor.
_Essa é décima vez que você me deseja feliz aniversário hoje._ falei rindo.
_Só se faz 21 anos uma vez na vida!
Me virei de frente para ele e ficamos nos encarando nos olhos um do outro, perdidos naquela nossa simbólica eternidade.
_Ansioso pra hoje à noite?_ perguntei.
_Muito! Mas é uma ansiedade boa. Eu vou conhecer meus sogrinhos!
_Eu estou nervoso._ falei já sentindo um frio na barriga.
_Vai dar tudo certo. Pelo que você contou, sua mãe já está ok com a questão do nosso namoro, ela só precisa nos ver juntos.
_É... Vai dar tudo certo..._ respondi sem muita certeza.
_Bom, já posso te dar meu presente?
_Tem presente?
_Claro!
Rafael rastejou até a sua mochila, pegou um pequeno embrulho e me deu. Eu abri curioso e me deparei com um par de alianças prateadas.
_O que é isso, Rafa?_ perguntei sorrindo.
_O que você acha que é?_ ele respondeu rindo.
Rafael pegou uma das alianças e colocou no meu dedo.
_Bernardo, aceita namorar comigo?
_Seu lesado, estamos namorando a quase um ano já!_ falei rindo.
_Mas agora é oficial, já que vou conhecer seus pais. Aceita?
_Claro que aceito!_ e coloquei a aliança no seu dedo também.
Selamos a troca de alianças com um longo beijo, que logo foi evoluindo...
[...]
Meu aniversário de 21 anos foi comemorado de uma forma muito íntima. Eu não tinha nenhuma vontade de fazer uma grande festa, aliás, nunca tive. Sem contar que eu não queria pagar por uma festa para pessoas que mal me olhavam na faculdade, e eu tinha me afastado dos meus amigos mais antigos nos últimos anos. Logo, decidi fazer um churrasco só com as pessoas que realmente estavam participando na minha vida.
Três semanas haviam passado desde aquela conversa que tive com minha mãe, e não houve mais nenhuma menção ao assuntos, nem por parte dela, nem por minha parte. Eu entendi que ela precisava daquele tempo para digerir tudo. Quando os meus amigos começaram a chegar, ela ainda estava trancada no quarto.
Alice e Pedro foram os primeiros e, estando cientes da situação, a ausência dela foi a primeira coisa que perguntaram:
_Cadê sua mãe?_ perguntou Pedro.
_No quarto. Ela acabou de chegar do trabalho.
_Mas ela vai aparecer, certo?
_É o que eu espero. Deixou a comida pré-pronta em cima do fogão e se trancou no quarto.
_Bom, paciência.
É, não havia outro jeito mesmo, era preciso ter paciência.
Às oito da noite, todos os convidados já haviam chegado, faltando apenas os dois principais: Rafael e minha mãe. Meu pai e Pedro cuidavam do churrasco, enquanto Tiago e Laura entretinham meus amigos. Até Caio estava bem mais sociável do que o usual. E eu suspeitava que isso tinha muito a ver com a presença de Mariana.
Minha mãe ainda não havia aparecido quando meu namorado chegou.
_Tudo certo?_ ele perguntou na porta e me deu um rápido selinho.
Eu me assustei, mas consegui disfarçar para ele. Acho que o fato de a casa estar cheia ainda me colocava algum freio em relação a troca de carinhos com meu namorado.
_Mais ou menos. Minha mãe ainda não saiu do quarto.
_Bom, a noite é uma criança!_ ele falou animado _O seu pai eu já posso conhecer?
_Vamos lá.
Meu coração batia forte enquanto caminhava em direção à varanda de mãos dadas com Rafael. Meus amigos estavam na sala e riram, até mesmo Caio. Pedro estava saindo da varanda na hora, e fez um sinal de duplo “joinha” por puro deboche. Meu pai estava de costas para mim cuidado do churrasco quando chegamos na varanda.
_Pai?
_Já tá quase saindo._ ele respondeu sem me olhar.
_Não é isso._ falei quase sem forças _Eu queria te apresentar o Rafael.
Meu pai demorou mais do que o suficiente para parecer natural para se virar para nós. Ele não desaprovava, apenas estava sem jeito com a situação. Além do fato de eu e Rafael sermos homens, havia o fato de aquela ser a primeira vez que um dos seus filhos lhe apresentava alguém.
_Prazer, seu Olavo._ falou Rafael animado lhe estendendo a mão.
_Prazer, Rafael. Pode me chamar só de Olavo.
_Bernardo!_ gritou Alice me chamando
Fui correndo de volta pra sala e ela me chamou num canto.
_O que foi?_ perguntei preocupado.
_Nada, só te chamei pra você deixar seu pai conversar em paz com Rafael.
_Alice!_ bufei e me virei pra voltar pra varanda.
_O senhor fica aqui com a gente._ falou Pedro me segurando.
_Relaxa, Bernardo._ completou Tiago _O papai é tranquilo.
Não que eu tivesse outra alternativa, mas deixei que meu pai conversasse com Rafael em paz. Mais tarde, meu namorado me confessaria que foi um papo normal, onde meu pai só queria conhece-lo um pouco melhor e deixar claro que estava de acordo com o namoro. Os dois ainda conversavam a sós quando minha mãe saiu do quarto.
Troquei um rápido olhar com Alice, denunciando a minha tensão com os possíveis rumos daquela noite. Ela foi a única pra quem contei sobre a conversa que tinha tido com minha mãe, pois tive medo que me recriminassem por usar a doença da minha avó daquela maneira. Não que Alice não tivesse feito isso, mas com as broncas dela eu já estava acostumado.
_Boa noite, meus queridos, sejam bem-vindos._ minha mãe falou para meus amigos na sala.
Ela estava sendo educada, mas bastante econômica com eles. Ela era bem mais animada e entusiasmada do que aquilo. Em seu estado normal, teria sentado ali e conversado por pelo menos uns dez ou quinze minutos com a gente.
_Eu vou checar como anda o restante da comida na cozinha._ ela completou e se virou para ir pra cozinha.
_Tereza._ chamou meu pai aparecendo na sala com Rafael _Esse é o Rafael.
Ali, apenas Paulinho, Bruno e Mariana não sabiam a real dimensão do que estava acontecendo. Para eles, a tensão toda ali era por eu estar apresentando alguém aos meus pais, embora com certeza estranhassem porque eu demorara tanto para fazer isso.
_Ah._ minha mãe vacilou por um instante _Claro!
Ela caminhou até meu namorado, pegou nas suas duas mãos com força e beijou o ar próximo a sua bochecha.
_É um prazer, Rafael! Fique à vontade!
Era um exagero. Saiu muito falso, pelo menos para mim que tinha as informações completas sobre a situação. Rafael não, então ele sorriu animado com seu cumprimento.
_Eu vou à cozinha e já me junto a vocês.
Ela foi pra cozinha e meu pai a seguiu. Rafael se sentou ao meu lado na sala e entrou no papo com o restante da turma. Meus irmãos não fizeram nenhum comentário, embora com certeza também tivessem captado a falsidade na voz da minha mãe. Eles não falariam nada ali na frente dos meus amigos, afinal, naquela família sempre tivesse aulas intensivas de discrição.
Eu dei um voto de confiança à minha mãe. Por mais que eu não concordasse nem um pouco com a maneira como ela pensava, eu lhe dei crédito por pelo menos tentar. Talvez minhas palavras tinham tido efeito, afinal. Mas com ela, é sempre bom forçar a barra mais um pouquinho a fim de conseguir alguns avanços: quando eu cortei o bolo, fiz questão de dar o primeiro pedaço para o meu namorado, e este veio acompanhado de um estalado beijo na bochecha.
Nos olhos do meu pai eu vi constrangimento, nos da minha mãe vi desaprovação. Mas nenhum deles disse nada, ou mesmo deixou que os sorrisos caíssem. Eu disse para mim que aquele já era um passo enorme.
17 de abril de 2010, sábado.
_Não vai mesmo me dizer para onde está me levando?_ perguntei no carro.
_Qual o seu problema com surpresas?_ ele falou sorrindo sem desviar sua atenção da direção.
_Eu gosto de saber onde estou pisando.
_Triste notícia pra você: pretendo continuar te aprontando surpresas pelo resto da vida.
Eu ri e relaxei. Deixei meu namorado me levar.
_Estamos indo comemorar o meu aniversário de 22 anos ou o aniversário de um ano dessas alianças?_ perguntei.
_O seu._ ele respondeu rindo maliciosamente _O das alianças a gente comemora mais tarde...
Tive que driblar um manhoso Tiago para que Rafael pudesse me levar para comemorar meu aniversário. Tiago sempre foi da opinião que aniversário é uma coisa para se comemorar cercado do máximo possível de pessoas.
_Estamos chegando, põe a venda que está no porta-luvas._ Rafa falou.
_O que?
_Você entendeu.
_Venda para que?
_Você pode por favor não estragar meus planos?_ ele falou rindo.
Bufei e decidi embarcar na sua pequena aventura. Vendei meus próprios olhos. Não demorou muito até ele parar o carro, vir ao meu encontro e me guiar por um caminho desconhecido.
_Cuidado com o degrau._ ele falou.
_Pra onde você está me levando, Rafa?
_Você já vai ver.
Ele tirou a venda e eu me vi parado em frente a porta de uma casa toda pintada de branco num bairro da zona sul de Belo Horizonte. O consultório da minha mãe.
_Mas o que...?_ perguntei confuso.
Antes que eu pudesse raciocinar, Rafa abriu a porta e acendeu a luz. O que pareceu um milhão de pessoas pularam na minha frente gritando “surpresa!”.
_Vocês!_ eu falei ainda sem ação e todos riram de mim.
Estavam ali meus pais, meus irmãos, meus amigos de faculdade, alguns amigos mais antigos, alguns tios e primos, e até meus sogros. Totalizavam umas cinquenta pessoas. Tinham retirado todos os móveis do primeiro andar da casa que minha mãe usava de consultório, que era usado como recepção e sala de espera, revelando um espaçoso salão. Tudo estava decorado sobriamente, e tinha até mesmo dois garçons para servir bebidas e salgados.
_Você!_ falei me virando para Rafael que sorria como uma criança travessa.
_Você merece!_ rebateu debochado.
Lhe dei um raro beijo em público, ainda que muito breve e fui cumprimentar meus convidados.
_Seu mentiroso de uma figa!_ falei dando um soco no braço de Tiago.
_Você não podia desconfiar, uai!_ ele respondeu rindo.
_Feliz aniversário, Bêzinho!_ falou Laura apertando minha bochecha, o que ela sabia que eu odiava.
_Vocês que armaram tudo isso com Rafael?
_Na verdade, foi a mamãe que armou com ele._ respondeu meu irmão mais velho.
_Sério?_ estranhei.
_Pois é, vamos caminhando a pequenos passos._ ele falou _Quem sabe ano que vem ela já esteja chamando ele de genro?
_Sonhar é de graça, né?
Meus amigos estavam todos juntos numa rodinha de conversa.
Parabéns!_ eles gritaram juntos e me deram uma abraço coletivo, o que eles sabiam que eu também não gostava.
_Muitos felicidades, cunhadão!_ falou Mariana me dando um beijo na bochecha.
_Obrigado, cunhadona.
_Não vai cumprimentar seu irmão?_ falou Mariana batendo no ombro de Caio _Cadê seus modos?
Caio me deu um abraço contrariado e resmungando qualquer coisa, o que me fez rir.
_Está botando ele no eixo, hein?_ eu falei pra Mariana.
_Me dá mais um ano e eu vou deixa-lo no nível de um lord inglês.
Alice e Pedro me puxaram para um canto.
_O que você diria se a gente te dissesse que convidamos Ricardo sem Rafael saber?_ perguntou Pedro baixinho.
_Por que vocês fazem essas coisas?_ perguntei bravo _Querem ver Rafa brigando comigo no dia do meu aniversário?
_Não te avisei, seu jumento._ falou Alice para o namorado _Ainda bem que eu não te deixei fazer essa idiotice.
_Hã?_ perguntei sem entender o que estava acontecendo.
_Pedro achou que era uma ideia maravilhosa, mas eu, a parte sã do casal, impedi. Ele te perguntou pra provar pra mim que eu estava errada e se ferrou.
_Ah!_ falou Pedro fazendo pouco da situação.
_Então, nada de Ricardo?_ perguntei para ter certeza.
_Nada de Ricardo._ Alice confirmou.
Por um lado, fiquei triste. Por mais que com certeza levasse a uma briga com Rafael, eu estava com saudade de Ricardo. Embora nos falássemos pela internet de vez me quando, fazia quase dois anos que a gente não se via.
Fui despertado do meu breve devaneio pela visão da minha mãe e Rafael juntos conversando com um garçom. Quando eu imaginaria aquela cena?
_Muito obrigado pela festa, gente._ falei chegando perto deles _Não tenho como agradecer.
_Você merece, meu filho._ minha mãe respondeu me dando um beijo no alto da cabeça.
_Merece uma festa até muito maior, mas você é chato e não gosta._ falou Rafael.
_Ainda bem que você sabe._ respondi o abraçando pela cintura.
_Bom, vou resolver algumas coisas ali na cozinha._ falou minha mãe.
Ela ainda se incomodava com minhas demonstrações de carinho com meu namorado. Uma parte ainda era um resquício de preconceito, outra era o velho ciúme de mãe que sofre ao com a proximidade do momento em que seu ninho ficará vazio. Com relação ao meu namoro, ela ainda tinha um longo caminho a percorrer, mas eu não tinha pressa. Afinal, como aquela festa me ensinou, nada como o tempo para colocar as coisas nos seus devidos lugares.