ERA ESTRANHO que a porta do elevador de serviço se fechasse no momento em que a do social se abria. Que o papaiz do apartamento pedisse uma volta a mais do que eu usara pra fechá-lo de manhã. E ainda mais que, ao tilintar das minhas chaves, meu marido se precipitasse do banheiro como se ao disparo de um alarme de incêndio, nu da cintura pra cima, toalha nos ombros, vestígios de shampoo na dobra da orelha, quando deveria estar no escritório pelas próximas duas horas. Questionado, respondeu que o serviço do dia fora prestado em casa. A pilha de indícios já batidos e numerosos crescia em progressão geométrica. Os atrasos frequentes, o celular desligado, o jogo de cama trocado sem motivo aparente, no qual me deitei em silêncio pra uma noite insone. Os passos da rotina matinal se sucederam com torpor tamanho que trombei em cheio num vaso de porcelana pintada, falsificação de um estilo tradicional, nem de longe um dos meus preferidos. Entre os cacos descobri um folheto de vidência de origem misteriosa, dado nosso ceticismo sobre esse tipo de coisa. Iago era o nome do cigano que atendia no coração de um bairro de classe média convenientemente próximo. Ainda no automático, pus o folheto na bolsa, guardei os cacos sabe-se lá pra que e saí pro expediente que prometia ser longo. Meus pensamentos escorregavam do trabalho de criação e meus olhos fitavam já sem tanta resistência a propaganda de ajuda mística. Não poderia trazer estrago muito maior que uma despesa isolada. Faltando quinze pras cinco, marquei uma consulta. A sala limpa e perfumada de alfazema era mobiliada por três mesas: uma de canto com velas coloridas, cristais, moedas douradas, lenços e incensos; outra de canto com um vaso de planta cheio de pétalas de rosa branca; e uma central com dados, runas e tarot, essa a de leitura. O cigano usava barba rente e camisa social preta bordada de branco na gola, pulsos e centro. Ele era bonito. Mais que bonito. Depois das apresentações, pediu que eu tirasse três cartas de um tarot colorido e a partir de cada uma descreveu meu casamento com minúcia tal que me peguei quase acreditando em vidência. Seu parecer final foi ainda mais convicto: “Ele está tendo um caso sim. Mas antes que você se pergunte onde errou, saiba que homens traem por motivos inteiramente pessoais”. Paguei pelo serviço e nos despedimos com um “boa noite”. Já da porta vi Iago, de costas, como se inadvertido da minha permanência, acender uma vela de fita amarela, cor de agradecimento por vitória alcançada. A parede de frente pra entrada exibia uma oração a Santa Sara que eu começava a ler quando ele se voltou com um conselho um tanto enigmático: “Esqueça o vaso. Ah, e você pode querer dar uma olhada no banheiro da suíte. Sabe, tirar as gavetas e tal. Talvez ache algo interessante”. Da suíte. Como se já tivesse estado lá. Sim, o gabinete provou merecer a varredura. Atrás da primeira gaveta se escondia, colada com durex, uma foto dos dois abraçados como amigos íntimos. Atrás da segunda se escondia um pendrive fino. Seu único arquivo era um vídeo cujos primeiros segundos já traziam imagens de Iago fazendo de buceta a boca de Hector, que mesmo entre as estocadas profundas achava brecha pra lamber-lhe a chapeleta. Quando teve todo o espaço desocupado, só pedia pro cigano fodê-lo com a língua. E como o cigano o fodeu com a língua. Escancarou-lhe a bunda com as duas mãos e mergulhou a cara. Por uns cinco minutos, se revezou entre o cu e o pau puxado pra trás. Foram as preliminares de uma foda com força e ritmo, bolas quicando na bunda que por sua vez centrifugava o pau a toda. Meu marido parecia nem se dar conta dos próprios gemidos, dos cabelos grudados na testa, das unhas cravadas no colchão da cama conjugal. Fora de si. Foi com gestos de sonâmbulo que obedeceu à ordem do outro pra se virar de frente e à sua própria necessidade de esticar a mão pra uma punheta. O cigano o proibiu de gozar. Não enquanto ele não mandasse, do jeito que mandasse. Em investidas vigorosas, Iago o alagou com tudo que tinha. Se esfregou provocantemente em Hector, que quase gritou com a fricção dos paus melados, desesperado pelo orgasmo negado. Os dedos do cigano apertaram de leve suas bolas antes de ancorarem no buraco violado, inchado, melado, sujo. “Aqui. Só por aqui você vai gozar. Se entrega. Pára de tentar controlar. O controle é meu e eu digo que vai ser assim, só com meus dedos.” Eram três revolvendo e procurando o ponto a ser atacado com persistência, lubrificado pela porra gradualmente expulsa pro lençol que naquele momento nem passava pela cabeça de Hector; todo o seu esforço parecia concentrado em subir e descer os quadris na cadência dos dedos, cada vez mais perto do alívio que dependia só do outro. O gozo represado irrompeu com tanta pressão que chegou à base do pescoço. Mesmo satisfeito sem transpor os limites impostos por Iago, Hector quis um segundo tempo na ducha, decerto fria pra não embaçar a lente da testemunha que registrava cada gesto da “brincadeira” dos dois. Se empinou pro cigano e suspirou de impaciência pela lentidão com que as mãos ensaboadas tomaram o formato da bunda, acariciando, apertando. A penetração, ao contrário, não lhe deu tempo nem de se virar. Num segundo Iago estava todo dentro e começava um vaivém lento e gingado, massageando Hector por dentro e por fora. Sem beijo, sem carícias, nada além do corpo maior curvado, conectado ao menor pelas mãos e pau. Que imagem, aquela dos dois corpos masculinos entregues a movimentos já sem ritmo ou razão, só urgência. Não sei de onde o cigano tirou controle pra sair de dentro na hora H. “Olha, puto. Olha esse pau, essa pica, esse caralho, essa piroca, esse cacete cobrindo sua bunda de porra”, sussurrou com voz falhada de tesão. Hector se virou a tempo ver o primeiro dos três jatos se espalhar pela pele, se diluir na água do chuveiro e descer pro chão do box. Evidência de infidelidade derramada pelo ralo. Apagada. Desaparecida de cena como o próprio cigano logo depois do último suspiro. Teria sido aquele o banho que fez Hector se precipitar pela sala com olhos de infrator pego no flagra? A revelação me lembrou certas opiniões de uma amiga íntima sobre nossos brinquedos, swings e ménages. Que o vibrador na verdade era pra ele, embora o fato isolado não atestasse nadinha sobre sua orientação sexual. Que o swing era porque queria ser corno, mas não sozinho. Que o bi feminino era uma sublimação do bi masculino. Perguntei por que ele fazia questão de flertar com minhas amigas, então. A resposta categórica foi “necessidade de afirmação de uma heterossexualidade que ele no fundo reconhece não ter”. Me lembro de ter desatado numa gargalhada tão escandalosa que beirava a histeria, incapaz de admitir a realidade trágica de desconhecer meu próprio marido. E agora Iago, tendo reconhecido meu rosto das fotos espalhadas pela nossa casa, me oferecia um motivo mais que concreto pro divórcio. O que nenhum de nós esperava era meu tesão em ver meu marido dando pra um homem. Naquela noite fodemos com fogo acima do habitual, todas as cenas do vídeo se desenrolando na minha cabeça como um pornô de primeira qualidade. Enfiei na boca de Hector meus dedos melados de siririca e resgatei da memória uma imagem daquele boquete que me fez gozar quase instantaneamente. Chupa com aquela gana por porra, amor. Quero ver sua boca trabalhando nos meus dedos como naquele pau. Semana seguinte, sem objetivo ou decisão sobre o assunto, passei pela rua de Iago. Pela vidraça do apartamento se via a sala desprovida dos antigos móveis e adornos, tudo vendido ou empacotado porque o lado nômade do cigano já o chamava pra outras paragens. Ia-se o amante. E a esposa? Que fazer com a traição, as mentiras, os registros dos quais Hector precisava tanto quanto o próprio casamento, a ponto de mantê-los sempre à mão pra quando batesse o vício? Era impossível lidar com aquela sua segunda vida escondida atrás das gavetas. No primeiro baque, o vaso colado se desmancharia numa miríade de cacos ainda menores; melhor arranjar outro e jogar fora os restos daquele antes que alguém mais se machucasse.
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