Embora não revogasse a proibição, não preciso dizer, se não havia surtido efeito durante cinco minutos, não havia como perdurar no outro dia, depois de uma noite de sono, malgrado as promessas de Camila – afinal, promessas existem para serem quebradas, quem não sabe?
Logo pela manhã, os três tornaram a aparecer. Quando bateram palmas, como ainda se fazia no nosso bairro, eu estava tomando café, lendo o jornal, enquanto Camila, que costumava levantar mais cedo com os passarinhos, lia um romance de Dickens na poltrona.
- Oh, entrem! – abri a porta, não sei porque surpreso ao vê-los.
Com uma blusa cortada pouco abaixo dos seios, qual um rudimentar bustiê cuja bainha feita à tesoura não chegava a tocar a pele, e um shortinho jeans, Camila não estava indecente – digo, estava apetitosa, mas apetitosa era todo o tempo, o que podia fazer? A rigor, seu shorte era um daqueles... Também cortado a partir de uma velha calça, mais do que deixava as pernas nuas – deixava metade do traseiro de fora. Mas Camila só possuía shortes assim, era preciso vê-la de biquíni! Como expliquei, se já não gostava de sair vestida na rua, em casa... Absolutamente não ajudava. Mas, pelo menos estava sentada e sentada permaneceu quando entraram e, um a um, a foram cumprimentar com dois beijinhos no rosto, como manda o costume. É verdade que tive a impressão de ver Grandão cheirar o seu pescocinho e que nenhum deles se esquivou a segurá-la pela cintura, talvez para resistir à força gravitacional que exercia, sei lá. Mas não maldei. Diante do que havia ocorrido no dia anterior, aquilo era nada e, além do mais, não lhe dedicaram mais do que essa atenção, vindo sentar à mesa ao meu redor.
- Estão servidos? – perguntei.
- Já está quase na hora do almoço, Ruy! – brincou Rafael. – Isto são horas de acordar?
- Às 10 da manhã?! – olhei o relógio. – Hoje é domingo!
E ficamos conversando as bobagens de sempre.
- Que milagre é esse de aparecerem aqui?
- Viemos perguntar se não quer bater bola
- Nem pensar! – a desculpa era furada, os domingos não eram dia de pelada, mas como os homens não se tornam adultos jamais, continuam garotos não importa a idade, concedi-lhes o benefício da dúvida. – Hoje é domingo – repeti. – Camila vai preparar uma feijoada e tenho que ajudar se quiser que haja ao menos paio. Aqui em casa é raro os bichos irem para a panela e eu preciso cortar a carne. Por ela basta feijão e couve. A lingüiça de ontem foi uma homenagem a vocês. Se quiserem ficar...
- Sempre é bom! – disse Grandão alisando em círculos a barriga de rato magro.
E a conversa seguiu por aí a respeito de tudo, como costuma ocorrer entre amigos, com comentários ora sobre o jogo que não havíamos conseguido assistir ora sobre política, lançando maldições contra o prefeito prestes a deixar o cargo, estupefatos com a mais nova denúncia que o candidato da oposição, o futuro alcaide Ramiro de Antunes, fizera no rádio – suas denúncias haviam se tornado febre na cidade, a ponto de desinteressados de política passarem a andar com broches de cães pastores, símbolo da campanha (dizia que ao assumir iria soltar cachorros sobre quem roubava dinheiro público e todos queriam ver, mesmo porque a Polícia Federal havia feito algumas prisões com base em suas acusações, ganhando as páginas dos jornais da capital). Dois dos meus amigos estavam inclusive com esses bichinhos na blusa, observei, um sob a forma de estampa e outro com o broche tradicional. Não sei a que altura da conversa, porém, percebendo-os inquietos, segui os seus olhos e – qual surpresa? Camila lia mordendo o lábio inferior. Mas o detalhe não era este e, sim, as pernas abertas, os pés na mesinha de centro e, outrossim (como gostam de dizer no serviço público), suas carícias em si própria, preliminares de uma siririca. Se fosse apenas isto! O problema, como sempre em tudo que dizia respeito a ela, era a roupa, roupa que não a cobria, nunca a cobria por inteira, e não ocultava a sua buceta: não escondia em nada, mesmo porque havia puxado para o lado a divisão do shorte, mostrando. Àquela distância dava para ver perfeitamente a rachinha por entre os pentelhos loirinhos e os dedos que somente não enfiava porque as unhas compridas, pintadas de vermelho, a machucariam. Não a impediam, no entanto, de brincar com o clitóris, depois de umedecido na boca o maior-de-todos, enquanto os vizinhos cuidavam de manter abertos os lábios. Excitada com o livro não estava: era o Pickwick.
- Camila! – reclamei. – Temos visitas! Vá se vestir!
Surpresa, estranhando o tom, os olhos verdes arregalados, fitou-me com aquele rostinho de boneca, ar de sonsa.
Detestava que brigassem com ela.
- Mas estou vestida – deixou cair o livro, espreguiçando-se. – Na praia fico quase nua e você não se importa – acrescentou erguendo-se como se desembarcasse de uma nau de sonhos.
Caminhando sobre nuvens, anjinho sapeca, atravessou a sala e apoiou a mão no ombro de Grandão, que se retesou de tensão e, provavelmente, tesão.
- Além disso, todos aqui já me viram nua, não viram? – perguntou sem esperar resposta do silêncio sideral que se apossou da casa, do mundo lá fora e do universo inteiro, curvando-se sobre Grandão e depositando um selinho sem esquecer de mordiscar um dos beiços, sorrindo da cara atarantada do crioulo.
- Ontem foi ontem – insisti firme. – Hoje é outro dia.
- Mas quem disse que estou nua? – retorquiu. – Nua estaria se fizesse assim, veja... – e despiu a blusa com um movimento de ombros, fazendo que caísse pelo corpo, fugindo do negro que ensaiou enlaçar a sua cintura para se refugiar rindo atrás de Rafael, que também se retesou, a jugular inflada por causa do súbito afluxo de sangue. – Assim estaria nua! – debochou moleca. – Não estaria, rapazes?
- Camila... – gemi pousando a testa na mão.
- Ou ainda não – continuou provocante por trás de Rafael, alcançando sua boca e quase repetindo o beijo: só não o repetiu porque não mordeu, lambeu. – Estaria nua se fizesse isto...
E de novo escapando do braço que se erguia, afastou-se e, um polegar em cada lateral, desceu o shorte não abotoado, livrando-se dele com um trejeito do pezinho, rodopiando até cair no colo de Paulo, envolvendo-o e lascando-lhe um chupão, as pernas erguidas dobradas.
- Meu Deus... – murmurei.
Hirto, o advogado deixou-se beijar, foi o único que não tentou enlaçá-la. Quando teve a idéia Camila já tinha se posto de pé e, num requebro, mãos na cintura, fitando-me desafiadora, linda em sua nudez sorriu:
- Assim estaria nua! E aposto que muito melhor vestida do que qualquer outra.
Então, demonstrando toda a sua zanga e indignação, ergueu a cabeça com desdém e saiu da sala rebolando, deixando-nos petrificados:
- Com licença, rapazes! Vou me vestir. O meu marido mandou. Ele disse que estou nua.
- Puta que pariu! – Rafael exclamou. – Deve ser foda ter uma piranha dessas em casa!
Nem percebi a grosseria e não lembro se alguém concordou, porque Paulo logo catou as peças de roupa no chão e ficamos em volta do shorte pelo avesso e dos restos de blusa como um grupo de sábios em torno de um problema insolúvel, sem a menor idéia do que dizer, até que ela tornou a aparecer, mas só o bastante para que visse que estava com um daqueles vestidinhos que pareciam dizer por favor, me comam: jeans de abotoar na frente cujos botões enfrentavam sérios problemas para conter os seios – ela tinha razão, tanto fazia estar nua...
- Vou preparar o almoço. Alguém pode ajudar? – Fiz menção, mas me deteve com um gesto. – Você não! – disse zangada. – Temos visitas, esqueceu? Faça sala. Só me empreste um – todos levantaram. – Os três não! – riu divertida. – Um! – elevou o dedo aos lábios em sinal que tanto podia ser numérico quanto de silêncio. – Um por vez, pelo menos. Preciso de alguém para lavar as panelas, porque se lavo não cozinho... – acrescentou, criança, desaparecendo dentro de casa.
Se ainda possuíam alguma dúvida, naquele instante todos tiveram certeza de que eu era um corno e que iriam continuar comendo a minha mulher. Não sei porque, talvez em deferência ao tamanho do cacete, pensei que Grandão fosse primeiro, mas Paulo, mais esperto, aproveitou a pasmaceira e, quando vimos, já tinha ido.
- Filho da puta... – o crioulo rangeu entredentes tornando a sentar.
Ainda antes do almoço, flagrei Paulo e Grandão cochichando na varanda:
- Ela toda é ótima, Deus do céu! Mas não resisto àquela bunda...
- Nem fala! Que cu!
E Paulo contou baixinho, mas não o suficiente que não desse para escutá-lo, paralisado e semi-oculto no vão da porta, que ao entrar na cozinha Camila parecia querer mesmo preparar o almoço, mas bastara puxá-la pelo braço para vir beijá-lo.
- Aquele vestidinho não serve para nada! Quando percebi que estava nua por baixo, não me controlei. Curvei-a sobre a pia e meti a rola. Ela parecia não saber o que era pau há semanas, acredita? Que demônio de mulher é este?! Como gosta de foder! E não só dá como goza! Goza o tempo inteiro! Goza dando o rabo! E que cu apertado! Nem parece que todo mundo a enrabou ontem! Nem é preciso fazer carinho na buceta. Já começa a gozar no beijo, se derrete todinha, a piranha! Não é a gente quem come. É ela quem come a gente, tô dizendo! Como Ruy pode ser tão corno? Ele é legal, mas dividir a esposa! Não consigo compreender...
- Melhor pra gente! Fica na tua. Eu a peguei no tanque para o caso dela começar a gritar – ia começando Grandão, mas ao darem por mim tossiram, disfarçando, sem saberem o quanto havia escutado, mentindo que comentavam sobre uma morena da padaria.
- Muito boa ela, não? – desconversei contrariado, deixando passar.
- Mas nem venha com o seu caminhãozinho – Paulo brincou. – Com um pau como o seu e uma mulher igual a Camila, se não economizar porra, arria. É muita areia.
Sorri do despiste, mas inquieto, pretextando escutar a campainha do telefone, entrei em casa e fui à cozinha. Não deu outra. De costas para mim, na pia, a torneira aberta, Rafael fodia a minha mulher, também comendo o cu, o vestidinho arregaçado, as mãos na cintura, o shorte nos calcanhares.
- Piranha – murmurava metendo.
Era o caso de interromper? De participar? Não sei. Fiquei de pau duro, não vou negar. Aliás, já havia chegado com ele ereto, estava assim desde que surpreendera a conversa, se não desde que eles haviam chegado, antes de ver Camila brincando com o clitóris enquanto mordia o lábio. Ela me deixava desse jeito, não havia o que fazer, e a idéia de que eles a haviam comido na véspera era por demais perturbadora. Mas também fiquei chateado, a respiração presa diante do impacto da imagem quase como se Rafael metesse em mim e não nela – não era raro isto, às vezes me sentia tão confuso que, como na canção de Georges Moustaki, perdia a noção de onde ela começava e aonde eu terminava. Apreciá-la foder com outros caras é algo que aprendi com o tempo, é igual saborear um bom conhaque, nunca consegui me habituar ao efeito de uma coisa ou outra. Apesar de toda a delícia, me desgosta a mente turva, esta bebida é para mim o diabo na garrafa – naquela época sobretudo, em que apesar de saber que trepava com não sei quantos na rua e ter dado permissão para isto ainda não estava acostumado (quem se acostuma?). Sentia-me sufocado, sem ar, entupido de pau. Não era diferente, só mais suave, quando me via num lugar qualquer com homens que sabia já a terem comido ou, pior, que a vinham comendo, mesmo que não diante de mim, mesmo sem saberem que sabia. Sentia-me inferior ébrio, fraco, incapaz de falar sobre qualquer assunto, ainda que o dominasse. Antigo alcoólatra, aprendi a controlar isto, mas a embriaguez continua lá, invisível para o interlocutor igual o hálito de vodka, tornando-me insensível ao frio que lacera-me a carne e à dor que percebo com um vago e inexplicável prazer.
Não tive o ímpeto de me aproximar – nem para interromper nem para gozar. Sabia que ela não iria me rejeitar e que pararia no ato, o ato, se mandasse parar. Mas não queria estragar o seu prazer, tanto quanto Camila não seria capaz de me negar usufruí-la. Não é que não sentisse vontade. As pessoas compreendem mal os cornos, pensam que gostamos de ver outros metendo nas nossas esposas e nos contentamos com uma punheta igual estivéssemos frente a um filme 3D, que somos onanistas e preferimos a palma da mão à buceta – Camila ainda pensa assim, eu nunca consegui fazê-la compreender. É um equívoco. A dor da infidelidade – não a da traição, a infidelidade é outra coisa – não se aplaca com o tempo ou costume. Não diminui, a perplexidade jamais desaparece, o desejo de que aquilo não estivesse acontecendo e que não fosse assim. Dói, sempre dói, dói do mesmo jeito, trata-se de uma dor. Mas é uma dor que aprendemos a suportar, não porque vá diminuir ou passar: não vai. Mas por amor, porque é o prazer dela, um prazer que você quer que desfrute e que não é capaz de proporcionar, pelo menos não o bastante ou o que ela estabeleceu como bastante – para Camila, nenhum prazer era o bastante. Ela se saciava, sim, embora não parecesse, mas essa saciedade era por demais fugaz e fazia com que breve quisesse mais, algo que nenhum homem era capaz de proporcionar – não de forma ininterrupta. Ela só se sentia satisfeita, realmente satisfeita, com um pau enfiado. O prazer de ter dado rápido se esvaía. Era viciada em gozar e gozava – à toa, por nada, vezes sem fim. O que a atraía em mim não era a capacidade de fazê-la gozar, isto todos tinham, durante um segundo ou horas a fio, enfiando ou com um olhar, uma passada de mão num ônibus lotado ou comício, amigo ou desconhecido, bonito ou feio, pobre ou rico. Dentre todos, igual Hefestos, o deus coxo a quem Zeus presenteou Afrodite por esposa, ninguém era mais improvável que escolhesse para marido. Igualzinho a ela, eu gozava por nada, não conseguia conter a ejaculação e esvaía-me assim que penetrava. Porém, numa cruel inversão, como se fosse a minha imagem no espelho, a outra metade não da laranja, da maçã, não podia continuar a penetrá-la e a fazia subir que nem lagartixa pelas paredes – não de prazer, mas agonia: eram os outros que lhe davam o que queria mas não podia proporcionar. Mesmo que não tivesse sido amaldiçoado com essa ejaculação precoce não poderia, ninguém o poderia – não sozinho. Porém, depois que eles iam embora, era eu quem ficava e cuidava dela, a alimentando, paparicando, ninando, protegendo, lambendo, adorando, amando, sem cobrar esse amor, satisfazendo-me em amar, olhar, possuir, mesmo sabendo que jamais seria minha – notem que não afirmo que não seria só minha, mas que jamais o seria. Qual homem de fato possui uma mulher? Os homens dizem isto como sinônimo de que comeram, levaram para cama – foderam, se preferem português claro. Mas assim que gozam não possuem mais, se é que a possuíram. No início também experimentei esta ilusão – que rápido se desfez igual o nevoeiro de uma noite em Coimbra. Triste sina, podem dizer, amar alguém que não lhe pertence, um corpo que não é seu, um prazer que você não sente, doando a vida a outra pessoa, deixando que qualquer se satisfaça nela, goze, faça o que quiser. Pode ser, pode ser... Mas vocês jamais a conheceram, é tudo o que posso responder. Nunca a viram foder.
De pau duro, fiquei por algum tempo olhando até que, com medo de que estranhando a minha ausência os outros viessem, recomeçando o absurdo da véspera, voltei angustiado para a varanda. Nem me ocorreu bater uma punheta ali ou no banheiro – não que não desejasse. Sequer precisaria ter me escondido. De costas e entretidos na foda, com certeza não perceberiam – e se percebessem, o que teria de mais? Camila poderia ter até me pago um boquete para compensar, como costumava dizer e fazer. Não sei o que deu em mim. Acho que compreendi que o sabbath ainda estava recente, reconheci que era mesmo difícil resistir à Camila, impossível, e não mais haveria jeito de me livrar daqueles três, decidindo manter a proibição. Conquanto soubesse que somente eu sairia perdendo, pois seria uma proibição para inglês ver, cujo único efeito seria me impedir de participar das trepadas entre eles, eram mesmo os ingleses que queria que vissem – melhor, não vissem. No momento em que a havia formulado, não. Mas, agora... Diz Guimarães Rosa, porteira arrombada, passa boi passa boiada. Tinha que conter os prejuízos, impedir que se alastrassem. Preocupava-me não que outros homens viessem comer a minha mulher, entendam. Mas, sim, que outros, que não os que já fodiam, soubessem. Os outros, os ingleses... E pior, que aqueles o faziam com a minha permissão.
E realmente, embora a partir daquele dia eles tenham passado a fodê-la como se fossem também maridos, quero dizer, sem preocupação de seduzir, puxando pelo braço quando tinham oportunidade e vontade (ela se entregava!), fiquei de fora – eu, que era o marido, fui o único que ficou de fora. O problema era a proibição que fingiam respeitar e eu fingia crer que respeitavam. Um idiota teria percebido que o traíam, depunha contra a inteligência deles acreditarem que me enganavam. Era o que queria, entretanto, ainda que saísse perdendo: obrigando-os a disfarçar, forçava-os a terem cautela e a não se deixarem ver pelos vizinhos, mantendo-os calados – ou, ao menos, era o que julgava.
Erro crasso.
De certo modo, ao menos por algum tempo, a estratégia deu certo. No dia seguinte não voltaram, nem no outro, até que veio o final de semana – mas menos mal. Se tinham de fodê-la, que fodessem comigo em casa. Aonde a comiam, no corredor, não havia janelas e ninguém que os visse entrar em minha casa imaginaria que se atrevessem a tanto debaixo das minhas barbas – não que use barba. Conformado, em associação com esse verbo comer, inapropriado e excitante, pensei que poderia encarar aquilo como uma dieta em que os forçava às couves e só aos sábados e domingos liberava as carnes – no caso, de minha mulher. Mas vocês compreenderam, claro...
Ledo engano.
Camila nunca foi dessas mulheres de reprimirem o marido, o cercarem, o modificarem a seu gosto, nem para o seu bem nem o seu pesar. Qual um animalzinho aceitava-me como era, tal e qual aceitava-se do jeito que era. Graças a Deus nunca ocorreu, pelo menos não até agora, mas se perdesse um dos braços, a visão ou o pau, igual a uma gatinha – que de fato era – isto não lhe causaria maior impressão do que se deixasse crescer a barba. Gostava do meu cheiro, ainda que misturado ao de cigarros ou álcool. Sabia quem eu era e me beijava, lambia, se aconchegava no meu colo na frente da televisão. Eu era seu marido – o seu dono. Podia passar toda a madrugada caminhando sobre os muros dos vizinhos, mas era entre as minhas pernas que vinha se aninhar depois do sol nascer, exausta de tantos ratos. Ela não vinha me buscar no bar ao sair do colégio, implicando com o costume da cerveja. Concedia-me como direito aquele tempo livre e egoísta. Se veio antes duas ou três vezes, vezes bastantes para que os meus amigos a tivessem conhecido antes daquele sábado em que, imprudente, os convidei para assistir o futebol, vaidoso da minha TV recém-adquirida, foi por acaso, porque estava a caminho de casa e quis seguir junto comigo. Foi mero acaso. Mas eles a tinham visto de uniforme, no uniforme de escola e – diabos! Vocês não têm idéia do que era uma garota daquelas, quase uma adolescente, a própria expressão do pecado, num uniformezinho de colégio público, a saia azul plissada curtinha, a blusa branca sem sutiã (ela gostava tanto de sutiã quanto de calcinha), meias ¾ e saltos altos (não pertenciam ao uniforme, mas usava-os mesmo assim, sem que nenhum inspetor da escola ousasse impedi-la de cruzar os muros). Aliás, foi vestida desse modo que a vi pela primeira vez e, embora não tivesse sido o que fez com que me apaixonasse, jamais permiti que jogasse fora o uniforme, inúmeras vezes pedi que tornasse a vesti-lo para mim, somente para mim, ainda hoje por vezes peço. Mas, depois daquele sábado, fatídico sábado, confirmado pelo domingo, por um bom tempo não veio mais me buscar. Não porque, tomada por arrependimentos, não quisesse tornar a encontrar os meus amigos. Nada disso. Depois daquele final de semana, também não mais consegui tornar a encontrar os três juntos no bar. Os cretinos combinaram e, distribuindo em rodízio os dias da semana, enquanto não se sentiram à vontade como em breve iriam ficar, ao passo que dois me entretinham e retardavam, pedindo saideiras sobre saideiras, predispondo-se a pagar, o terceiro a ia buscar no colégio e levava para um quarto de hotel – hotel barato porque eram duros, desses à hora, que não possuem mais do que a cama e uma pia na parede, a comendo com gosto, a gosto. Deus, chegam a vir lágrimas quando recordo que enquanto estava no bar, hoje Grandão, amanhã Paulo e depois Rafael aproveitavam para buscá-la e a levavam para aquele pulgueiro de quinta, subindo as escadas, ela linda na minissaia pregueada, os canalhas guiando pelo corredor, a mão na sua bunda, abrindo a porta e a derrubando na cama, fodendo-a naquele colchão imundo, nos lençóis sujos, hoje num papai-e-mamãe, amanhã de quatro, penetrando a buceta e o cu, fazendo-a chupar, esfregando a pica nos seios e no rosto, ela com a língua de fora, gozando na sua cara e na boca, mandando que engolisse.
Este virou o padrão. Nos fins de semana, quando eu não tinha que trabalhar e ela de ir à escola, enquanto os dois me entretinham, o terceiro a levava para comer no corredor, à parede-meia da sala e de mim. Pela velocidade com que Camila vinha se a chamava, só podiam estar no corredor. Despenteada, surgia desamarrotando a minissaia. Elementar. Não era preciso a técnica de Sherlock Holmes para adivinhar. Já antes de sair da sala, seguida primeiro por este, depois aquele e, em seguida, aquele outro, alguém sempre se interpunha entre nós, mantendo discussão sobre qualquer assunto que me forçasse a olhar para ele, me contradizendo, enquanto às minhas costas dois a alisavam, empalmavam os seus seios, enfiavam as mãos pelo decote ou subiam por baixo das blusas sempre mínimas, até que afinal a convenciam a ir para o corredor. Ali, um por vez, deviam imprensá-la contra a parede, subindo uma das mãos sob a blusa, a outra por baixo da saia, até virá-la de costas, puxá-la pelos quadris e fazer com que empinasse a bunda, enfiando só com a braguilha aberta. Digo que é certo porque, se eu a chamava, ela vinha primeiro, depois ele, quando vinha. Se não havia gozado, não vinha. Ficava lá, à espera de que ela voltasse, e ela voltava, a pretexto de uma mentira qualquer. Se ele vinha, às vezes calculava mal o tempo e eu o flagrava abotoando a calça, como saindo do banheiro – ao menos, era o que alegava. Desculpa feliz porque, grotesca embora, observar seus movimentos freqüentemente dava-me a impressão de que vinham mesmo do banheiro, imagem fácil de compreenderem se algum dia já sentaram numa mesa de botequim próxima ao mictório. Quando vinham juntos, as posições mudavam. O que voltava tomava o lugar deste que também dizia ter que ir ao banheiro e Camila o seguia. Era insaciável. Dava para os três, um após o outro – e para mim, depois que iam embora. O meu pau chegava a deslizar, tanta porra trazia na buceta, e eu gozava no mesmo instante. Não conseguia resistir! A movimentação deles, não só o entra e sai, mas quando a tomavam ou puxavam pelas mãos, arrastando-a para algum canto dentro ou fora da casa, fazendo-a rir e reclamar que não, não, não... – acabava comigo. Se acaso não estava na sala quando chegavam, mal escutava suas vozes vinha do jeito que estivesse, de vestidinho vermelho hoje, amanhã de camisola, de malha de ginástica, biquíni ou calcinha com um pequeno top ou aquela blusa cortada que para a minha (in)felicidade nunca tirava – ou tirava, fácil demais.
Chegava de mansinho por trás, fazendo carinho na careca e na nuca de Paulo, curvando-se por sobre o ombro de Rafael para beijar o seu rosto, deixando-o sentir os seios, dando-me um selinho nos lábios e ficando a partir dali ao lado de Grandão, seu preferido, alisando a carapinha enquanto ele, com naturalidade, enlaçava a cintura puxando-a para perto, fazendo-a encostar, a mão na bunda ou percorrendo as coxas, subindo e descendo entre elas, agarrando, apertando... A ereção me sobrevinha em uma agonia indescritível e não poucas vezes não suportei e tive que ir ao banheiro bater uma apesar de (se não por) saber que era só o início, o melhor estava por vir – de qualquer modo não iria participar, tentava justificar diante do vaso, o suor pingando. O gozo nestas horas, porém, não me satisfazia; era igual a ela. Imaginava que aproveitando-se da minha ausência a levavam para a cama e a idéia de que a comiam era tão forte quanto assistir, vê-la, as pernas para o alto, um deles fodendo, fodendo e fodendo – mais do que fodê-la, a idéia de que a fodiam na minha cama era o que me atordoava, mais até do que no corredor, tão perto de mim. Mas se estava em casa, muito difícil era que a levassem para o quarto (não imagino porquê, não sei se achavam que seria abuso, embora isto não importasse se estivesse na rua). Mais fácil era surpreendê-los em locais improváveis, do lado de fora da casa, ela de cócoras, costas no muro, chupando, ou apoiada na parede, saia levantada, rebolando (oh, eles metiam, sim, na buceta, que era qualquer coisa, mas tinham fascinação por enrabá-la, não sei se por ser mesmo delicioso ou porque divertia-os ver como gozava e mulher casada a gente tem que enrabar, sobretudo quando o corno é amigo). Eles a comiam um a um, um depois do outro. Juntos, só quando eu não estava ou apareciam pela manhã num dia de semana, na hora em que tinha que trabalhar e era obrigado a deixá-los a sós. Então, sim, iam para o quarto, onde podiam ficar à vontade. Quando estava de folga não arriscavam tanto, mesmo que desse uma saída para comprar cigarros ou algo assim.
Depois que partiam, eu a comia todinha melada, inteira esporrada. Camila sabia que eu sabia, ora não! Sempre soube. Compreendia o porquê da proibição e sabia que não era preciso obedecer. Eram eles apenas quem pensavam me enganar, como queria que pensassem. Oh, sim, ela me dava por prazer, somente prazer. O problema entre nós, mais do que no tamanho da pica, estava em eu gozar muito rápido (ela me excitava demais, o que era frustrante para alguém que gostava tanto de foder horas a fio). Reconheço, porém, que mais do que me dar, gostava de dar para os outros e depois para mim. Isto a excitava. Não trepar comigo esporrada de outros (isto excitava a mim), mas ficar ao meu lado suja deles – trepar era conseqüência. Mulheres também têm fetiches, pensam que não? E, entre os seus, eu encarnava o do marido. Ao foderem-na, os outros substituíam o que em um mundo perfeito deveriam ser as nossas preliminares. Talvez ela até preferisse trepar com os outros melada de mim, escorrendo de mim, pois me amava e, se não conseguia nem queria se abster deles, sabia que isto me diminuía aos meus próprios olhos (para ser sincero, por mais que depois tenha aprendido a gostar, ainda diminui). Mas eu estava longe de ser esse marido ideal.
Camila gozava o tempo inteiro. Começava a gozar mal um deles se interpunha entre nós no sofá e outro a tocava nos joelhos – nem digo nas coxas, nos joelhos! Era, porém, comigo que atingia o clímax, era comigo o seu orgasmo definitivo e final – não sei bem se naquele dia, mas naquela hora. Oh, sim, Camila me amava, disto não tenho, nunca tive dúvidas. Amava-me tanto que por mais demorados que os outros fossem, com os seus paus maiores, jamais a conseguiram tomar de mim – e não foram poucos os que tentaram. E eu também a amava (amo) sem que isto se interpusesse entre nós, quer como causa ou conseqüência deste amor, embora hoje saiba que dele sempre tenha feito parte. Eu não a amo porque me trai e não me apaixonei por vislumbrar a oportunidade de ser corno, tentem compreender, mas se me trair nunca diminuiu o meu amor e ser (não gosto da palavra, mas vá lá) promíscua sempre me excitou, dificilmente teria suportado não fosse quem eu sou, embora não a tivesse amado menos caso fosse fiel. Juro por Deus que a preferia fiel – mas não era e a amava qual era, por ser quem era. Ainda amo, apaixonadamente.
É estranho, indefinível, o prazer de ser corno. Um prazer que não sentimos, que não se tem. Um prazer que quem usufruí é o outro, mas que não é uma doação de si, como ocorre numa chupada – na qual proporcionamos um prazer maior do que desfrutamos. Um corno não desfruta nada, não goza. Na verdade, não tem sequer certeza do que ocorre, mesmo que saiba que ocorre. Um sujeito pode ser traído, mas nem por isso é um corno. Foi traído, só isto, pode ocorrer com qualquer um. O corno nasce corno. É diferente. É como o gay. Ele vai descobrindo quem é aos poucos. O exemplo talvez seja ruim. Hoje, os viados são bichos não só aceitos, mas valorizados. Mas nem sempre foi assim e a bicharada já sofreu bastante no passado, vejam Oscar Wilde. A sociedade rejeitava e destruía os homossexuais. Um corno, no entanto, sofre mais. Se ele não for capaz de saborear a infidelidade, uma mistura complicada de tesão, ciúme, frustração, complexo de inferioridade, raiva – e homossexualismo também, não há como negar –, é pior porque a dor provocada pela infidelidade é multiplicada pelo sentimento de perda e pela chacota. A dor existe mesmo quando o corno é consensual, um sentimento estranho que, se não é igual à mágoa de ser passado para trás, visto o ato ter o seu consentimento, é provocado por ser deixado de fora da brincadeira. Pode provir de imaturidade, se preferirem de um trauma de infância, nem tanto por quase sempre resultar em masturbação, na hora ou depois, mas por abrir mão de sua mulher para outro. Não sei se seria forçar a barra dizer que é igual à situação do filho quando descobre que o pai (ou padrasto) fode a sua mãe, por quem é naturalmente apaixonado. Mas é uma abdicação semelhante em favor de outro macho mais forte em vigor e poder – não são os mais fortes que ficam com as fêmeas? Daí esse sentimento de perda, que pode ou não se tornar realidade a partir da cessão, seja pelo desgaste da relação que a provocou ou foi provocado por ela, caso o amante se mostre muito melhor. A dor é real e vicia. A dúvida que cria é igual à que sentimos diante da roleta girando, vicia igual a derrota nas máquinas de aposta. O jogador finge que não é viciado e crê que ninguém percebe sua fraqueza. Nem a família nem os amigos, de quem pensa esconder, nem o dono do botequim, que lucra com seu azar. Ao passo que aqueles lamentam em silêncio, respeitando seu direito de desperdiçar o próprio salário, este o ilude com sorrisos, corroborando com sua fantasia, fingindo crer que se trata de um milionário para quem nada valem as moedas, quando mesmo o senso comum reza que ninguém preza tanto os centavos quanto os ricos. A humilhação de perder todo o dinheiro para a banca e a escravização ao agiota que daí decorrem não diferem da ejaculação de um outro homem na sua mulher. Ambos ficam com a melhor parte e os gastos fixos permanecem por sua conta. A situação não pode ser mais ridícula, mas o que há de mais ridículo do que um marido traído? Os antigos faziam com que desfilasse pela aldeia com um chapéu de chifres sentado ao contrário sobre um burro. As pessoas não gostam de quem é diferente. Não à toa retratavam o demônio nas pinturas medievais também ao contrário na sela dos asnos – por aí se vê.
A minha angústia em tentar e não conseguir conter Camila não era por ela não me amar ou gostar de transar comigo, mesmo porque num casamento isto não importa, desgraçadamente. Ela tampouco continuou transando com os meus amigos como vingança por a ter compartilhado naquela tarde, algo que sempre poderia ser posto na conta da sacanagem, uma maluquice que a gente faz uma vez e nunca mais. Deu para eles no dia seguinte por pirraça, para me provar que fazia o que queria, que estava comigo porque era sua vontade. Camila havia gostado da suruba, não era esse o problema. Ela já havia tirado a prova de quanto me excitava não somente que a cobiçassem, mas que se entregasse a qualquer um, sem restrições. Nunca o havíamos feito em casa, porém, com pessoas que morassem tão próximas, praticamente vizinhos. O que assustava era vê-la brincar daquela forma com o perigo, correndo pelo campo de centeio, sem apanhador nenhum para impedir quando se aproximava demais do precipício que havia por ali, como se o risco da queda ou a própria queda fizesse parte do tesão que sentia, qual deve ter ocorrido com o anjo de luz ao despencar do céu. Eu não era inocente, mas era ela quem dava as cartas e não só as cartas. A seu lado, por mais que me excitasse e (por que não?) agradasse sua safadeza, sentia-me frustrado por vê-la arriscar tanto por tão pouco, como a viciada que despeja na roleta numa única tarde o salário antes de fazer compras no supermercado e pagar o aluguel. Era isto o que gostaria de evitar, mas na impossibilidade de evitá-lo, diante de sua recusa em obedecer, diante de mentiras deslavadas difíceis de contestar por não terem intenção de convencer (por sabermos os dois que eram falsas e, por isso, tão fáceis de substituir por outras ainda mais descaradas), o jeito era aceitar.
- Não estou entendendo. Você não disse que não se importava de ser corno, até gostava, e sabia que outros caras a fodiam na rua, tendo-a liberado para transar com quem bem quisesse? Por que não com estes também? E, afinal, a parábola da roleta se aplica a você ou a ela? – pode ser que perguntem.
- Sim, sim, sim... – respondo. – É difícil mesmo compreender. Serve para nós dois. Eu a perdia e ela me punha a perder. Eu sabia que era corno – adjetivo, atribuía a minha cornitude a ela, à ação dela que aceitava meio a contragosto, por mais que gozasse, para não a perder. Não queria, porém, ser visto pelos outros como um corno – substantivo, ou seja, alguém que sentisse tesão nisto e, mesmo que não fosse casado ou Camila fosse fiel, se excitasse à idéia de que ela pudesse ser ou ter sido de outros, quer depois ou antes de começarmos a namorar, por mais que soubesse e a saboreasse melada, fedendo esperma, pois seria a nossa desgraça. Eu temia, muito mais do que ser corno, que soubessem que era. Houve mesmo um tempo em que temi que ela o soubesse – ela! Nunca consegui enganá-la, contudo.
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