Todas as grandes decisões da vida seguem a lógica e a dinâmica das estações do ano. Principalmente quando decidimos mudar de vida. Primeiro experimentamos o calor da atitude, o verão intenso dos desejos e esperanças, a plenitude das variações extremas entre manhãs ensolaradas e tardes tempestuosas. Pouco tempo depois, a desconstrução daquele passado passa pelo processo de amarelar as folhas e deixá-las partir rumo à morte ou ao esquecimento. É nesse momento que as calorosas certezas dão lugar à brisa fria das dúvidas que se agigantam no horizonte. O inverno chega e com ele vêm o recolhimento e a sensação de solidão. O frio intenso é solitário. Sentir frio é sentir-se só. E, por fim, se sobrevivemos às nossas próprias decisões e suas intempéries, a neve vai dando lugar aos campos verdejantes, minúsculas folhas começam a brotar nos troncos desnudos e uma paleta de cores tinge os jardins.
A firmeza do verão, as dúvidas outonais e a solidão do inverno dão lugar a todas as possibilidades de uma primavera. É por isso que o tempo é tão imperioso e impiedoso com cada um de nós quando tomamos uma decisão importante na vida. O tempo — e só ele — é capaz de nos colocar diante daquilo que mais nos assusta ao longo da existência: a liberdade e a responsabilidade de sermos nós mesmos e tomarmos nossas próprias decisões. Decidir é um processo, um percurso, um ciclo. E nunca terá um fim em si mesmo.
O avião decolou no Brasil em pleno inverno de julho e, no início da tarde do dia seguinte, quando Gabriel Campos colocou seus pés no Logan International Airport, o verão de Boston parecia aquecê-lo mais que qualquer outro passageiro do voo 7415 da United Airlines. Era uma chancela para a sua decisão de deixar a terra natal e ir estudar, e quem sabe fixar morada, nos Estados Unidos. Depois de encarar uma longa jornada aérea de mais de vinte e duas horas, com cansativas conexões no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, e no Dulles International, em Washington, finalmente tinha desembarcado em Boston, a ogiva financeira, cultural e educacional do estado de Massachusetts e de toda a região da Nova Inglaterra, na Costa Leste do território americano. O gigantesco e frenético movimento do Logan convidava suas emoções à certeza da escolha pelo monumental leque de oportunidades que aquela cidade e aquele país lhe ofereciam. Um convite irrecusável, a princípio. Mas, com certeza, incoerente com tudo que havia sido sua vida até então.
Aos trinta e dois anos, apesar de uma vida solitária, era a primeira vez que Gabriel estava,
de fato, só. Filho único de um pequeno sitiante agricultor e uma mãe devotada, crescera na zona rural de uma cidadela da região serrana do estado do Rio de Janeiro. Suas grandes aventuras pueris aconteciam pelos trilhos que os bois deixam no pasto, subindo serras intermináveis girando nas mãos um galho retorcido como se fosse um volante. Desejava ter um Jeep prateado e conversava com um companheiro imaginário. Às vezes acelerava para fugir de alguma temperamental vaca parida, ou estacionava à sombra de alguma árvore frondosa que lhe servia de abrigo, fosse para um descompromissado sono de dez minutos ou para ocultar, atrás dos troncos, suas primeiras experiências sexuais solitárias. Os melhores beijos sempre foram dados nas pedras lisas que colhia nas margens arenosas do riacho de águas turvas que cortava o sítio de sua família. Essas sinuosas pedras de branco perolado eram tão lisas que pouca saliva era suficiente para fazer seus lábios deslizarem no movimento daquilo que lhe parecia o maior dos erotismos.
Crescer foi tão difícil quanto convencer seus pais de que queria ser médico e não mais amarrar a peia nas pernas de bezerros e tirar o leite das vacas. Queria cuidar das pessoas, salvar vidas, e não ficar aguando a pequena horta de alface, repolho e temperos verdes. Queria conhecer o mundo e não mais ficar refém dos esteios e arames farpados que cercavam a pequena propriedade, estabelecendo as fronteiras de seus sonhos. Seus desejos o chamavam para além de tudo aquilo.
Só conseguiu sair de casa às vésperas de completar vinte e cinco anos, quando embarcou na extensa e exaustiva jornada acadêmica que a medicina impõe a seus aprendizes. Após a rejeição inicial, seus pais começaram a sentir orgulho do futuro doutor. Enquanto isso, Gabriel aprendia suas lições sobre a anatomia humana e a anatomia da sociedade. Continuava sem saber se era melhor ter companheiros imaginários que nunca respondiam suas perguntas ou ter amigos reais que, com frequência, lhe apresentavam questões para as quais não tinha respostas.
Quantas assustadoras semelhanças havia entre a solidão do asfalto e a quietude dos trilhos de boi? Muitas. Mas as diferenças ele experimentou ao perceber que as pedras do riacho deslizavam mais que os verdadeiros lábios molhados, e estes provocam reações mais rápidas e perigosas, na maioria das vezes sem troncos de árvores frondosas para esconder-lhe o ato. Por isso mesmo, todos os beijos reais lhe queimavam o rosto e evidenciavam as maçãs avermelhadas naquela pele tão alva quanto as pedras lisas que colhia e colecionava quando criança.
Durante os seis anos de estudo na Faculdade de Medicina de Petrópolis, dividiu um pequeno apartamento no Centro Histórico da cidade imperial brasileira com dois colegas de classe. Um mineiro da longínqua Unaí e um paulista da próspera São José dos Campos. Pelos dois nutriu todas as variáveis platônicas. Durante todo o curso, com o primeiro não realizou nenhuma de suas fantasias, apesar das similaridades de origem e criação que os aproximavam. Já com o segundo, sentia-se como num daqueles romances de Jane Austen que o encantaram na adolescência, onde o confronto romântico dos sentimentos é adornado por uma espécie de sermão dramático, permeado de preconceitos e orgulhos tolos, mas que sempre colocam em duelo o racional e o passional de cada personagem. Por isso mesmo, passou os seis anos sem trocar o colchão de seu beliche que, menor que a cama, permitia-lhe passar madrugadas vislumbrando, através das madeiras do estrado, a silhueta bem desenhada do paulista que ocupava a cama de baixo. Em noites de sorte, a claridade da lua que atravessava a fresta da cortina fazia seus olhos brilharem ao ver algo ereto apontar pelas pernas curtas de uma cueca boxer de algodão branco, nas constantes poluções noturnas de seu colega de quarto.
Certa noite, em meados do quarto semestre letivo, exausto com a miscelânea didática que o estudo simultâneo das disciplinas de Anatomia, Saúde Coletiva, Farmacologia, Fisiologia, Microbiologia e Parasitologia provocava em sua mente, passou poucos minutos observando o sono erótico do colega logo abaixo e, ao virar-se na cama para finalmente dormir, cruzou seus olhos com o mineiro na cama ao lado, que estava a observar-lhe os movimentos suspeitos. O olhar curioso e, de certa forma, reprovador, fuzilou seus olhos apavorados, descobertos em seu mais profundo e tolhido desejo. E quando segredos de tal natureza são revelados nesses supetões de cruel realidade, dificilmente é possível estabelecer um diálogo que, quando não os explique, pelo menos os supere. Assim o fizeram e nunca houve uma única menção à possibilidade de conversa a respeito.
Talvez, por isso, o mineiro tenha insistido em apresentar com constância as mais variadas amigas a Gabriel, duas das quais se tornaram namoradas de curta duração. Fosse por reprovação, vigilância ou até mesmo por alguma tara sexual reprimida ou puro voyeurismo, sempre que o sono lhe permitia, fixava o olhar em Gabriel durante as madrugadas como um ciclope siciliano, um pastor sem leis que acreditava na surreal redenção daquela ovelha desgarrada, um ferreiro tentando forjar uma espada que considerava torta para os padrões de sua convivência. Contudo, era sempre vencido pelo cansaço e, ao sinal do primeiro ronco do colega, lá estava Gabriel na conflituosa e diária tarefa de vislumbrar e conter qualquer desejo ou ousadia.
Logo no início do penúltimo semestre letivo, um ataque cardíaco fulminante derrubou seu pai enquanto, sob um sol escaldante, dirigia o trator para arar a terra. Ainda que fosse possível qualquer tipo de socorro, a distância entre o sítio e a zona urbana da cidade seria um obstáculo quase intransponível. Seu pai só conseguiu parar o pequeno Massey Ferguson 255 e tombou pelo lado direito, estirando-se na terra frouxa numa morte rápida e dolorosa. Até o último minuto de sua existência, fez o que mais lhe dava prazer, foi exatamente aquilo que acreditava ter nascido para ser. Seu derradeiro suspiro foi dado cuidando daquilo que ele dizia ser seu bem mais precioso: sua própria terra.
As discrepâncias entre as leis da vida e da natureza e os poderes da ciência começaram a rondar os pensamentos mais profundos de Gabriel, questionando o alcance da profissão na qual estava prestes a se formar. No entanto, mal deixando o luto devastador pela morte do pai, o jovem formando encontrava-se à margem de um dos grandes desafios de sua vida: cuidar da própria mãe. Acometida por uma forte depressão pela perda do marido, ela deixou-se abater por uma gripe que em poucos dias transformou-se em pneumonia. Foi internada às pressas no iníquo hospital local e Gabriel logo conseguiu sua transferência para o Hospital de Ensino Alcides Carneiro, em Petrópolis, com melhores recursos e onde ele poderia manter-se próximo e auxiliar no tratamento.
Após cinco dias de internação, o quadro mantinha-se grave e a equipe médica — muitos dos quais professores — temia pela resistência daquela senhora. Nas raras vezes em que acordava, o próprio Gabriel percebia a distância opaca nos olhos de sua mãe em meio ao
silêncio opressivo e necessário dos tubos de oxigênio. Não queria perdê-la sob nenhuma circunstância, mas reconhecia em seus olhos a impossibilidade de continuar vivendo sem o grande amor de sua vida. O amor entre uma mãe e um filho é sublime pela imperiosa força da natureza que os une do início ao fim. Mas o amor entre duas pessoas que se escolhem e decidem se unir pelo resto de suas vidas é soberano, é uma necessidade, é uma condição vital. No último olhar que trocaram, Gabriel pôde constatar que, apesar de tudo que era feito para manter sua mãe viva, ela já tinha tomado sua decisão: era impossível continuar vivendo sem seu marido. Ela partiu pouco antes das nove horas da manhã seguinte, serena como a névoa que cobria a região. Em seu rosto era possível encontrar um leve esboço de sorriso, como quem segue ao encontro de uma felicidade distante, uma pedra lisa que é levada pela correnteza das águas.
Gabriel concluiu o curso de Medicina em um assombroso silêncio enlutado. Dedicou-se exaustivamente aos estágios em plantões diversos para esquecer no que sua vida tinha se transformado: estava só. Absolutamente só. Até com os companheiros de quarto reduziu as palavras e, por mais que insistissem numa interação, impôs uma distância fria e melancólica. Não compareceu aos ritos de comemoração de formatura e sua última visita à Faculdade de Medicina de Petrópolis foi para pegar o diploma e assinar os papéis de conclusão. Naquela mesma manhã, seu colega paulista havia se despedido e seguido para a terra natal, encerrando assim mais um capítulo de sua história pessoal. Tanto Gabriel quanto o mineiro já tinham encaixotado seus pertences e pretendiam entregar o apartamento ainda naquela semana. Um voltaria para Minas Gerais e o outro tinha conseguido ingressar em residência médica no Hospital Miguel Couto, na cidade do Rio de Janeiro.
Quando chegou ao apartamento, Gabriel encontrou apenas suas caixas, encostadas em um dos cantos da pequena sala. Tudo indicava que o último companheiro de quarto havia partido sem se despedir. Talvez para evitar as lamúrias desse tipo de situação, pensou. Talvez até por entender que ele vinha de um período de tantos sofrimentos e despedidas que evitar outra seria o mais adequado, concluiu. Pela primeira vez em seis anos, tirou toda a roupa e andou nu pelo apartamento. Foi ao banheiro, ligou o chuveiro elétrico para esquentar a água e o ambiente, e ficou transitando entre a sala e o quarto, por vezes fixando os olhos naquele beliche que tantos sonhos lhe proporcionara.
O banheiro estava repleto de vapor e a água, tão quente quanto aquela em que sua mãe enfiava os frangos mortos para depená-los. É impossível dizer por quanto tempo ficou ali, parado, com a testa encostada na parede, deixando a água escaldante percorrer o corpo, perdido em pensamentos. De tão ensimesmado, não escutou que alguém andava pelo apartamento, nem o som dos sapatos e das roupas sendo jogadas pelo chão. Também não escutou o abrir e fechar da porta, nem percebeu que ali havia outra pessoa. Deu por si quando o mineiro, companheiro de quarto que julgava ter partido, completamente nu, agarrou-lhe por trás e com uma das mãos tapou-lhe a boca, enquanto com a outra abarcava-lhe o tórax. Apesar de ter um porte alto e forte e de todos os esforços e murros empenhados, Gabriel não conseguiu se soltar, nem sair daquela posição. Seu algoz, com a mesma altura, tinha um corpanzil gordo e, talvez pela obstinação do ato, mostrava-se naquele momento com muito mais força. Apertado contra a parede como um chiclete a ser grudado, ouviu apenas quando o mineiro disse:
— Fique quieto! Não resista! Vou soltar sua boca e você não vai gritar... — e enquanto ele tirava lentamente a mão, Gabriel ensaiou o início de um pedido de socorro ao que foi reprimido por um violento soco no lado direito do maxilar que, de tão forte, cortou um pedaço da língua e fez-lhe cuspir sangue na parede. E o mineiro reforçou as ordens:
— Já falei pra calar a boca! Se gritar, eu mato você aqui! — disse, e deu-lhe um soco na lateral direita das costas, bem na altura do pulmão.
— Agora eu vou te dar o que você sempre quis. Vou te dar o que você gosta. — Enquanto falava, pegou o sabonete e o esfregou por todo o pênis já em ponto de bala.
Penetrou sua vítima, como quem sacia uma fome ancestral, bufando como um touro. Gabriel não conseguia produzir qualquer som. Sentia um rasgar interno e uma vontade de vomitar, enquanto o sangue escorria de sua boca e por suas pernas, tingindo o chão no caminho em direção ao ralo. Seus olhos pareciam querer saltar do crânio e nada mais conseguia ouvir, como se estivesse surdo. Suas lágrimas misturavam-se com a água quente que caía ininterruptamente do chuveiro, assim como os movimentos fortes e socados daquele excompanheiro, ex-colega, ex-amigo e agora brutal e violento estuprador.
Sentiu quando o mineiro terminou e, tão logo se afastou, desferiu-lhe um soco no meio das costas que fê-lo despencar ao chão. Ainda teve tempo de olhar aquele homem parado, em pé, do lado de fora do box, olhando-o fixamente. Atordoado e às margens de perder totalmente os sentidos, ainda acreditou ter ouvido um pedido de desculpas, sem que jamais viesse a confirmar a veracidade do que escutou depois de tamanha violência. Se é que escutou algo de fato. Ficou jogado no banheiro, desmaiado, por horas. Gabriel tinha trinta anos quando teve sua primeira experiência sexual com outro homem, penetrado à força por aquele que por anos, paradoxalmente, ele chamou de companheiro. Encolhido e inconsciente, a água quente caía sobre seu dorso, como quando sua mãe depenava os frangos mortos.
Enquanto aguardava a liberação de sua bagagem no Logan International Airport, Gabriel observava o movimento ao seu redor com a sensação daquele que acaba de nascer. Dois anos foi o tempo necessário para juntar algum dinheiro com plantões seguidos em três hospitais no Rio de Janeiro e começar a transformar em realidade o sonho que alimentou durante a faculdade, principalmente após a morte prematura de seus pais: morar nos Estados Unidos, longe de todo aquele passado que o assombrava. Inscreveu-se para cursos de especialização em várias universidades e foi aceito quase imediatamente — seu currículo era excepcional — por duas delas: uma em Detroit, no estado de Michigan; e outra, na University of Massachusetts Medical School, em Worcester, a aproximadamente sessenta e cinco quilômetros da capital, Boston. Seus antigos professores da Faculdade de Medicina foram unânimes em indicar a última como a melhor escolha e chancelaram sua decisão final.
Enquanto trabalhava nos hospitais, bancou o melhor curso de inglês do Rio de Janeiro e colocou o sítio da família à venda. Sob nenhuma hipótese pretendia manter ou voltar a morar naquelas terras. Apesar de boas recordações, Gabriel estava convencido de que havia muito a aprender, um mundo a ser conquistado e algum passado a ser esquecido. A venda da propriedade foi o processo mais demorado, já que, mesmo sendo herdeiro universal de seus pais, o imóvel teve que ser inventariado. Como o andamento da Justiça brasileira é lento e burocrático, sabia que tal processo só seria concluído em quatro ou cinco anos. No entanto, um proprietário de terras vizinhas aceitou selar a compra através de um contrato de compra e venda registrado em cartório, ficando Gabriel responsável pela transferência legal do imóvel rural tão logo a escritura das terras estivesse definitivamente em seu nome, ou seja, após a conclusão do inventário.
Com a propriedade vendida, dinheiro em mãos, inglês afiado, aprovação da inscrição na universidade e toda coragem e confiança, Gabriel finalmente desembarcava para um novo rumo em sua vida. Pagou e emitiu uma procuração para que um advogado ficasse responsável pela tramitação do processo de inventário, mas tinha ciência de que, após a conclusão, teria de voltar ao Brasil para passar a escritura definitiva das terras para o novo proprietário. Ainda assim, isso certamente não aconteceria tão cedo e a viagem para tal fim poderia ser rápida. Em tudo mais, queria apenas descobrir esse mundo que se materializava diante de seus olhos já no saguão do Logan Airport.
Já passava das quatro da tarde quando Gabriel finalmente chegou ao saguão de saída do terminal C do Logan International. Apesar do movimento intenso naquela tarde de sábado e daquelas insuportáveis chamadas para chegadas e partidas, era possível ouvir, nem tão longe, alguém tocando música clássica ao piano, dando boas-vindas aos viajantes, tentando afagar a ansiedade dos que ali estavam esperando pela chegada de alguém e até mesmo para tentar equilibrar o vaivém da multidão. Aproximou-se do local onde o pianista fazia sua solitária apresentação. Esboçou um leve sorriso de aconchego quando o artista começou a tocar o doce e suave “Canon em Ré Maior”, de Pachelbel.
Não era difícil para Gabriel passar completamente despercebido. Era um tipo bastante comum, apesar do seu um metro e oitenta e cinco, corpo atlético esculpido pela lida de uma vida no sítio, traços faciais de grande delicadeza, um cabelo curto cor de chocolate e com as pontas completamente desfiadas. Naquele momento, parado no meio do saguão, de calça jeans, camiseta, tênis e três grandes malas de viagem no carrinho de bagagem à sua frente, muito provavelmente estaria invisível em meio ao turbilhão de pessoas circulando. Não pretendia demorar muito tempo naquela contemplação musical, pois ainda tinha que chegar à cidade vizinha, Worcester, e o final da tarde já se aproximava. Era impossível, no entanto, não se render à singela interpretação do pianista anônimo para a mais famosa peça do compositor barroco alemão.
Mesmo concentrado na música, Gabriel conseguiu sentir a rápida aproximação de alguém pelo seu lado direito e percebeu que se tratava de um homem, aparentemente da sua idade, falando ao celular e completamente desatento ao caminho por estar com os olhos voltados para o monitor de indicação dos desembarques. Ainda foi possível ouvi-lo antes do choque:
— ... eu estou tentando avisar o papai, mas o celular dele está desligado. O voo do Ethan foi transferido para o terminal C e ele deve estar indo nos encontrar no terminal E... — foi o que Justin conseguiu dizer antes de colidir com o carrinho de bagagens de Gabriel, derrubando as malas e caindo sobre elas.
— Meu Deus! — assustou-se Gabriel, imediatamente estendendo a mão para tentar ajudar o
desastrado desconhecido.
— Deixe-me ajudá-lo. Você está bem? — Me perdoe. Meu Deus! — disse Justin, voltando a falar ao celular: — Mãe, eu já te ligo de volta... Não! Não! Está tudo bem. Eu já te retorno, mãe — desligou.
— Vamos! Eu te ajudo a levantar.
— Obrigado. Que bagunça eu fiz! — Não. Sem problemas — afirmou Gabriel, sem grande certeza do que estava falando e ajudando o desconhecido a se erguer.
Ao ficar de pé, o corpo de Justin posicionou-se a um palmo do dono das malas e seus olhos de um intenso azul encontraram diretamente o doce e assustado tom de mel do outro. Tinham exatamente a mesma altura, aparentemente a mesma idade, e na espantosa simetria corporal de ambos, era possível ver linhas invisíveis unindo-os, geometricamente calculadas. Por uma daquelas frações de minuto que parecem margear a eternidade do tempo, ficaram ali, olhos nos olhos, bocas entreabertas, gargantas secas e corações em disparada, tal qual cavalos selvagens. Ficaram surdos a todo movimento à volta. Mas não totalmente. Era possível ouvir a respiração ofegante um do outro e o pianista dedilhando Pachelbel ao fundo.
— Você está bem? — perguntou Gabriel, rompendo o silêncio num tom que parecia acompanhar o som do “Canon”.
— Estou sim. Foi só um susto... — afastou-se Justin, completando — ... deixe-me colocar suas malas no lugar.
— Não! Tudo bem... eu mesmo arrumo.
— Por favor, deixe-me ajudá-lo. — Ao pegar a segunda mala no chão, Justin percebeu uma etiqueta de identificação estampada com a bandeira do Brasil. — Você é brasileiro?
— Sim. Acabei de chegar.
— Bem-vindo a Massachusetts!
— Obrigado. Desculpe-me, mas eu preciso ir. Você tem certeza de que está bem?
— Eu estou ótimo. Não se preocupe. Perdoe-me pela bagunça.
— Tudo bem. Mas tenha cuidado.
— Pode apostar que eu vou ter.
Despediram-se formalmente, mas Justin ficou por um bom tempo admirando aquele homem seguindo em direção à saída, passando pela porta principal até perder-se entre as pessoas que estavam fora do aeroporto. Sentia um ímã puxando-o e exigindo uma atitude impulsiva de segui-lo, apresentar-se, dar seus contatos, oferecer ajuda ou qualquer coisa do gênero que pudesse abrir precedentes para outro encontro. Tinha acabado de olhar dentro dos olhos daquele estranho e teve a ligeira sensação de que ali estavam todas as respostas. E também fora fuzilado por eles, sentindo sua alma nua e frágil, pronta para ser capturada por aquele estrangeiro que talvez nunca mais voltasse a ver. Os olhos não mentem jamais.
Justin só saiu daquela espécie de transe quando seu telefone celular tocou. Voltou a ouvir todo o movimento dos transeuntes à sua volta e viu pelo identificador de chamadas que era sua mãe, certamente preocupada com aquela interrupção repentina.
— Alô, mãe!
— Justin, o que aconteceu? Eu ouvi um barulho alto e você desligou em seguida. Está tudo bem? — questionou ela.
— Está tudo bem. Eu estava olhando o monitor para confirmar a chegada do avião do Ethan quando tropecei no carrinho de um brasileiro e caí sobre suas malas — disse em um misto de diversão e incredulidade.
— Mas está tudo bem? Você se machucou?
— Não, mãe! Está tudo bem. Foi só um acidente.
— Tem certeza? Estou sentindo sua voz estranha...
— Fique tranquila, mãe. Eu estou bem fisicamente — enquanto essas palavras saíam de sua boca, Justin ainda estava com o coração disparado e com aquele olhar na memória.
— Você já encontrou seu pai? Seu irmão já desembarcou?
— Ainda não encontrei o papai e o Ethan já deve estar pelo saguão nos procurando também. Pelas informações do monitor, seu voo chegou há mais de quarenta minutos... — não conseguiu concluir o raciocínio quando seu celular começou a acusar a existência de uma chamada em espera.
— Mãe, o Ethan está me ligando. Vou desligar e falo com você assim que estivermos todos reunidos, o.k.?! — Desligou a ligação com a mãe e começou a conversa com o irmão:
— Oi, Ethan! Onde você está?
— Eu que pergunto... onde vocês estão? — questionou Ethan, sempre irritadiço e com voz acelerada.
— Eu estou praticamente em frente à saída do saguão principal do terminal C.
— Não saia daí, Justin. Eu vou te encontrar.
— O.k.! Vou estar aqui esperando.
Assim como Justin, Gabriel ficou com aquela sensação vazia de que algo especial havia acontecido naquele cruzar de olhos e que nada tinha sido feito, efetivamente, a respeito. Talvez por medo, por decoro ou até mesmo por uma lufada de lucidez em meio à situação inusitada. Quando se dirigiu à saída principal do terminal C, por duas vezes pensou em olhar para trás e conferir se aquele desastrado desconhecido ainda estava lá. Conteve-se. Deixou a última porta automática fechar atrás de si e seguiu para sua esquerda, onde avistou táxis estacionados. No caminho, foi tomado por uma sensação de impulsividade pueril. Parou por um instante e decidiu que deveria voltar lá e, se ainda encontrasse o rapaz, apresentar-se, pedir uma informação ou qualquer coisa para iniciar um diálogo.
Girou quase que sobre o próprio eixo e seguiu em direção às duas portas principais de acesso ao aeroporto. Tão logo elas se abriram, num misto de pânico e felicidade, viu que o desconhecido ainda estava lá, em pé, novamente falando ao celular e olhando ao redor como se procurasse alguém na multidão. Por ironia, só agora estava conseguindo vê-lo por completo, desde o tênis branco até os cabelos castanho-claros tão curtos quanto finos e lisos. O corpo escultural, mas sem exageros, era valorizado por roupas levemente justas, deixando alguns músculos visíveis. Perfeitamente adequado ao final de tarde do verão norte-americano, pensou.
Viu quando o desconhecido, sem ter notado seu regresso, deu um sorriso contido, emoldurado por uma boca volumosa, enquanto falava ao celular e continuava sua procura. A pele era alva, saudável e corada. Isso sem falar naqueles olhos de um azul intenso, que mais pareciam um par de safiras. Aquele homem desastrado, que despencou sobre suas malas e de quem esteve a um palmo de distância em uma troca tão extraordinária quanto inesquecível, era absolutamente perfeito.
As pernas de Gabriel tremiam como se estivessem prestes a faltar-lhe o sustento. Suas mãos minavam um suor frio. Apenas o ar que entrava por suas narinas parecia não ser suficiente. Seu coração estava descontrolado e sua cabeça, numa busca frenética por algum texto capaz de justificar aquele regresso e o início de alguma conversa. Ele tinha olhado no fundo daqueles olhos e talvez nem fosse necessário dizer nada. Bastava contemplá-los novamente e todas as palavras estariam ditas. Ou não. Talvez se estabelecesse uma situação constrangedora. Ele não sabia exatamente o que deveria fazer, mas tinha certeza de que algo precisava ser feito.
Quando finalmente rompeu o campo de força de dúvidas que o cercava e deu seu primeiro passo em direção ao homem de olhos azuis, percebeu que ele se movimentou para a direita, sinalizando a uma terceira pessoa que já vinha a passos largos em sua direção. Um homem também muito bonito, porém um pouco mais velho, que recebeu um longo e apertado abraço, muito além de qualquer afeto. Tratava-se de um abraço íntimo, onde os olhos se fecham e o nariz se aproxima perigosamente do pescoço. Logo depois, aquele segundo homem beijou carinhosamente o rosto do belo desconhecido. Provavelmente é o namorado ou companheiro, concluiu Gabriel por puro prognóstico.
Estático, não tinha saliva na boca e engoliu algo que lhe fez lembrar arame farpado, cortando o caminho por onde passava. Novamente fez um movimento quase sobre o próprio eixo e saiu pelas portas automáticas, em direção ao primeiro táxi que estivesse em sua frente. Não compreendia por que aqueles breves e sucessivos acontecimentos tinham ganhado um tom fechado de decepção e lamento. Estava realmente triste, mas decidiu que não poderia transformar seus primeiros momentos em Massachusetts num reflexo daquela cena abismal.
Entrou no primeiro táxi e pediu ao motorista para levá-lo à cidade vizinha, Worcester, onde iria morar. Apesar do trajeto relativamente longo e da possibilidade de utilizar os trens e ônibus de Boston, optou pelo táxi por questões razoáveis: ainda não conhecia nada daquele local, suas malas estavam pesadas e muito em breve a noite chegaria. Enquanto o táxi começava a andar, teve a breve sensação, por um vulto em seu olhar periférico, que alguém havia saído correndo do aeroporto. Não olhou. Não conferiu. Já estava passando da hora de despedir-se do Logan International e seguir sua vida.
Não demorou muito para que Ethan encontrasse Justin no saguão. Os irmãos não se viam havia mais de duas semanas, desde que Ethan foi à França para uma conferência internacional sobre automóveis. Deram-se um abraço longo e demorado, selado pelo comum beijo no rosto que Justin recebeu, marca registrada de seu irmão.
— Como você está, moleque? — perguntou Ethan.
— Eu estou bem. Fez boa viagem?
— Digamos que sim. Com essas poltronas de avião cada vez mais desconfortáveis e pequenas para nós, qualquer dia vamos viajar em pé — respondeu Ethan, assumindo sua habitual ranzinzice.
— Eu achei que não conseguiria chegar a tempo. Papai me deixou na entrada do terminal e foi estacionar o carro. Mas quando olhei o monitor, vi que seu desembarque tinha sido transferido para o terminal C. Vim correndo!
— Assim que o avião aterrissou, o piloto nos avisou da mudança. Disse que um vento forte do sul estava provocando um caos no Logan e impedindo vários pousos e decolagens.
— Um vento do sul?! — questionou Justin com um leve sorriso contido nos lábios.
— Sim. Por isso foram obrigados a reposicionar várias aeronaves em solo, o que nos trouxe para o terminal C. E você, já conseguiu avisar o papai?
— Ainda não. O celular dele está desligado. Vamos torcer pra ele... — Justin não conseguiu concluir a frase, pois foi surpreendido ao avistar a porta externa de saída do saguão se fechando atrás daquele que imaginou ser o brasileiro em quem havia tropeçado minutos antes. — Espere aqui, Ethan, eu preciso resolver uma coisa. É rápido!
— Aonde você vai, moleque?
— É rápido, eu prometo.
— Mas o que está acontecendo? Você viu o papai passando?
— Não, Ethan. Eu acho que vi uma pessoa conhecida.
— Você acha que viu uma pessoa conhecida e vai sair correndo atrás dela?
— Eu prometo que não demoro. Só preciso confirmar. É uma pessoa importante...
Justin foi correndo em direção à saída, desviando das pessoas com cuidado para não repetir o tombo anterior. Tinha certeza de que aquela breve visão não poderia ser um déjà vu. Fosse mesmo aquele homem com quem compartilhara aquela troca de olhar, respiração e energia, ele teria voltado, talvez incentivado por uma coragem que lhe faltou em ir atrás dele como imaginou inicialmente. Se não tivesse voltado por sua causa, descobriria. O que não podia era deixar a situação nesse fio de navalha.
Atravessou as portas automáticas e chegou à calçada bem no momento em que o táxi acelerava e seguia seu rumo em direção ao centro de Boston, perdendo-se em meio aos demais carros. Mas no momento em que o veículo passou ao seu lado, teve a certeza de que aquele era o estrangeiro por quem havia nutrido uma imediata atração. Viu seu perfil pelo vidro do táxi. É ele! Ele voltou ao saguão! E agora, o que fazer?
Das poucas certezas que Justin tinha na vida, uma delas era que o destino, na maioria das vezes, brinca com nossa capacidade de observação e com nosso potencial de reação, manipulando muitas variáveis para provocar uma única situação capaz de mudar muitas outras vidas. O pior que pode nos acontecer é não ter a coragem e a ousadia para aceitar o jogo do destino e confrontá-lo no campo de batalha. Justin pensou ter sido derrotado naquele momento.
Não demorou muito para Ethan encontrá-lo do lado de fora do Logan, e quase imediatamente seu pai, Edward, parou o carro bem em frente ao local onde estavam. Enquanto Justin colocava a bagagem do irmão no porta-malas, Ethan entrou no veículo e deu um abraço apertado no pai. Era longa a viagem de Boston até Holden, onde mora a família Thompson, nas colinas depois de Worcester. Justin falou muito pouco durante todo o trajeto. A noite caiu quando ainda estavam na estrada e os faróis dos carros em sentido oposto iluminavam a cena: o velho Edward dirigindo o carro e conversando com o filho Ethan, um assunto que parecia bastante animado, levando em conta as gargalhadas fáceis; no banco de trás, Justin permaneceu perdido no breu da noite, vislumbrando o nada. Em sua memória, só permanecia aquele olhar encantado, que parecia ter-lhe roubado a alma.
Muito bom. Gostei muito. Votado.