— Eles devem estar chegando — disse Catherine, dispondo delicadamente os oito pratos na grande mesa da sala de jantar. — John e Mildred também já devem estar a caminho. Eles nunca se atrasam.
— Não vejo a hora de encontrar meu marido. Estou morrendo de saudades! — revelou Helen em sua sutil introspecção, enquanto alinhava as taças de cristal, sempre usadas nas ocasiões especiais da família Thompson.
— Querida, você não sabe quanto eu fico feliz por ver você e o Ethan vivendo bons dias após toda aquela turbulência — e Catherine segurou, com carinho, sua nora pelos ombros. —
Helen, fique tranquila. Vocês vão conseguir ter um bebê. Eu posso imaginar quanto esse tratamento hormonal está mexendo com você e deixando as coisas ainda mais complicadas, mas tente relaxar...
— Eu sei, Cathy. Tenho tentado relaxar nos últimos meses, mas às vezes penso se não é hora de desistir. Nós já perdemos dois bebês e eu não sei se sou capaz de aguentar todo aquele sofrimento mais uma vez.
— Você precisa parar de se cobrar tanto. Nem sempre as coisas acontecem exatamente como sonhamos ou no momento em que queremos.
— Mas eu sinto que isso é importante para o Ethan. É importante pra mim também.
— É importante pra todos nós...
— É isso! É importante para todos. E sinto como se eu não fosse capaz de realizar esse
sonho. Como se eu não pudesse dar essa alegria a todos — uma lágrima contida saltou dos olhos de Helen.
— Helen, querida. É exatamente isso que estou dizendo. Você precisa relaxar. Não tem que ficar se cobrando dessa forma. Eu até acredito que o Ethan esteja fazendo cobranças indiretas
quanto a vocês terem um filho. Mas nenhum de nós está aqui para julgar o seu tempo ou a sua natureza. — Ao perceber que a nora desaguava um choro preso havia dias, Catherine abraçou-a
carinhosamente. — Não fique assim. Olhe para mim. Ninguém pode forçar a natureza. Você já está fazendo todos os tratamentos necessários e disponíveis. Agora é só esperar acontecer, sem pressão.
— Mas e se nunca acontecer, Cathy? — indagou Helen, entre soluços.
— Se nunca acontecer, é porque tinha que ser assim — disse Catherine, em seu melhor tom
consolador.
— Eu não gosto de usar essa palavra... nunca. Mas se você está sentindo que não consegue mais suportar o tratamento, se acredita realmente que não será capaz de engravidar dessa forma, você precisa aceitar isso, se respeitar. Precisa conversar francamente com o Ethan. Meu filho pode ser um grande cabeça-dura, mas você, melhor do que ninguém, sabe o potencial de sensibilidade que existe naquele coração. Abra o seu para ele. Fale. Eu sei que é
um assunto delicado, mas enfrentar sozinha seus próprios limites não parece ser uma decisão acertada. Vocês são um casal, Helen. E precisam agir como tal e parar de ficar se escondendo
atrás de uma fantasia que pode não se realizar da forma como vocês desejam.
— É disso que eu tenho medo. Eu não sei como o Ethan vai reagir...
— Você só vai descobrir quando falar com ele.
— E você, Cathy, como se sente quanto a isso? — indagou Helen diretamente, algo que não era típico de seu comportamento.
— Querida, eu não vou negar que estou louca para ver essa casa novamente povoada de crianças, correndo de um lado para o outro, fazendo bagunça, pendurando meias na lareira na noite de Natal, fazendo cara feia diante de um prato de ervilhas. — Catherine abriu seu largo e acolhedor sorriso, respondido com suavidade por Helen. — Às vezes eu entro no quarto do Justin e ainda sinto o cheiro do talco e das fraldas. Ainda acordo de madrugada imaginando ouvir seu choro faminto no antigo berço. Sinto saudades do tempo em que eu achava que não teria tempo para mais nada. E você não pode imaginar a grandiosidade de tudo isso. Então, quando eu vejo você e o Ethan sofrendo como estão por não conseguirem ter um bebê pelas vias naturais, fico com o coração partido. Mas eu também fico pensando: há alternativas.
Vocês vão ter tantas emoções e tantas responsabilidades para criar, educar e conviver com uma criança que, no fim das contas, ser ou não um filho biológico é o que menos importará.
— Você está falando em adoção? — questionou Helen. — Cathy, você realmente acha que devemos adotar uma criança? — havia um misto de espanto e alívio em sua pergunta.
— Não só em adoção, Helen. Vocês também podem procurar uma barriga de aluguel. Há tantas crianças precisando de pais no mundo. E, sinceramente, não conheço duas pessoas melhores para dar um lar, uma família, a uma criança do que você e o Ethan.
— Isso que eu estou ouvindo é sério?!
— E por que não seria? Além do mais, você está certa. Eu quero ser avó logo, enquanto posso curtir tudo isso! Não quero meus netinhos correndo em volta de uma velha caquética se
defendendo da queda com uma bengala! — As duas deram uma boa gargalhada. — É por isso que eu quis essa casa grande com esse jardim imenso... para poder correr por todos os lados
com meus netos!
— Alguém disse um dia que a avó é uma espécie de mãe com açúcar.
— Oh, meu Deus! Eu esqueci a calda de amoras para a sobremesa no fogo! Deve ter queimado... Como eu sou estúpida! — disse Catherine, completando enquanto corria para a cozinha:
— Helen, por favor, coloque os talheres na mesa enquanto eu resolvo isso aqui. Eles já devem estar chegando.
Helen sentiu o cheiro da calda de amoras queimada, que já deveria estar circulando pela sala de jantar havia tempos, mas que nem ela, nem sua sogra Catherine, tinham sentido, inebriadas que estavam por aquele assunto que quase arruinou seu casamento com Ethan.
Enquanto dispunha todos os talheres ao lado dos pratos à mesa, ficou um longo tempo
pensando no que tinham acabado de conversar. Despertou de seus pensamentos quando ouviu
a campainha tocar à porta da frente. A noite estava apenas começando.
A noite caiu enquanto ainda estavam na estrada. Justin, perdido em seus pensamentos, sequer viu passar Framingham. Só se deu conta do trajeto quando atravessaram Worcester, já
na rodovia 122A, subindo para Holden. Particularmente não gostava daquele trajeto. Preferia o caminho alternativo pela Reservoir Street, a estrada dos reservatórios. Mas seu pai tinha
escolhido o percurso mais rápido para quem vinha de Boston. Estavam a menos de dez quilômetros de casa quando o farol do carro avistou a pequena placa em forma de livro, onde
se lia: “Holden — Incorporada em 1741 — População: 16 608 habitantes” com o brasão da cidade ao centro.
Assim que se aproximaram do semáforo no cruzamento da Main Street com a Industrial Drive, Ethan fez um pedido:
— Pai, será que você pode parar ali na frente, na Edith’s Flowers? Quero levar umas flores para a Helen. Vai ser bem rápido.
— Tudo bem, Ethan. Acho que ela ainda deve estar com a loja aberta — assentiu Edward, introduzindo uma nova pergunta:
— E como estão as coisas entre vocês, meu filho?
— Acho que estamos bem. Quando Helen sofreu o primeiro aborto foi triste, mas nós superamos. Desta vez parece que está sendo mais difícil. Às vezes acho que ela não vai
conseguir superar e vai desistir de tentar novamente — revelou Ethan, cujo transtorno era visível.
— Ethan, você já considerou a possibilidade de que a Helen, muito além de estar sofrendo por perder um segundo bebê, pode estar cansada fisicamente de todos esses tratamentos? —
interveio Justin, em sua primeira interação desde que pegaram a estrada em Boston.
— Ela falou alguma coisa para você, Justin? — questionou Ethan.
— Não. Mas não precisa ser um expert para perceber que ela não está nada bem. Está se cobrando pelo fato de não ter conseguido manter as duas gestações e dar o filho que você tanto
quer.
— Não é só ele quem deseja esse filho — ponderou Edward. — Todos nós estamos ansiosos por uma criança, o início da nova geração dos Thompson. E todos nós sofremos
quando Helen perdeu os bebês.
— É exatamente isso, papai! — disse Justin, com certo tom áspero, quase uma reprimenda:
— Helen está abalada e se sentindo pressionada por toda a família.
— Mas ninguém a está pressionando — discordou Ethan. — Eu mesmo disse a ela para deixarmos os tratamentos de lado por um tempo. Mas ela insiste. Eu também quero muito ter um filho, mas já começo a considerar a possibilidade de que isso não venha a acontecer nunca. E você acha que eu também não sofro com isso?
— Esse é o ponto, Ethan! Você consegue sofrer abertamente e sempre deixou claro quanto quer ser pai... — Justin não conseguiu concluir, pois foi atravessado por Ethan.
— E o que há de errado em um homem da minha idade querer ser pai? Sim! Eu quero. E quero muito. Uma parte de mim morreu com aqueles abortos. Será que é um absurdo eu mostrar que estou sofrendo com tudo isso? — questionou Ethan, subindo o tom de voz.
— Mas será que você já se perguntou quanto a Helen está sofrendo? Ela está em cacos, Ethan. Mal consegue falar sobre o assunto. E a cada dia, sente como se você e todos nós estivéssemos com olhos de lince sobre ela, prontos para devorá-la — disse Justin, também
subindo o tom de voz. — Você deveria conversar mais com sua mulher. Ela está sofrendo, Ethan. E sofrendo muito...
— O que você tem conversado com a Helen?
— Só estou tentando ajudá-la, coisa que você não faz!
— Eu sabia! Tinha certeza de que havia dedo seu nessa história! Helen estava diferente quando nos falamos ao telefone durante minha viagem. Por que você tem sempre que se intrometer nos meus assuntos privados, Justin?
— Eu não estava me intrometendo. Helen me procurou. Precisava de ajuda. Precisava conversar. Apenas ouvi o que ela queria dizer.
— Por que você sempre faz isso, Justin? Por que está sempre se metendo na minha vida? Por que você precisa estar sempre se comportando como o irmão gay frustrado disposto a tirar
bons conselhos da cartola quando um de nós precisa? Por que, em vez de ficar entrando onde não é chamado, você não aproveita seus conselhos e os usa em sua própria vida? — atacou Ethan, já em tom de briga.
— É isso que você pensa de mim? Que eu sou o irmão gay frustrado incapaz de ser feliz?
— Há quanto tempo você não namora alguém? Dois anos? Três anos? Aliás, você já namorou alguém pra valer?!
— Ei! Rapazes, parem com isso! — apartou Edward, percebendo a exaltação de seus filhos enquanto estacionava o carro diante da loja da florista.
— A loja ainda está aberta, Ethan. Vá e compre as flores. Helen vai gostar do presente.
— Fique sabendo, Ethan, que eu não preciso arrumar um namorado para provar nada a
ninguém! — provocou Justin.
— Pois deveria. Talvez assim você se ocupasse mais com sua própria vida em vez de se intrometer na vida dos outros — respondeu Ethan, já descendo do carro.
— Vai logo, Ethan! — pediu Edward.
— Me apresente um cunhado, Justin! Daí, conversamos de igual pra igual — incitou ironicamente Ethan.
— Vá se ferrar! — concluiu Justin, já percebendo o irmão dando-lhe as costas e caminhando em direção à porta de vidro da Edith’s Flowers. Teve vontade de abrir a porta e sair atrás dele para não deixá-lo com aquele riso sarcástico, sempre que Ethan sentia ter
vencido um debate. Mas foi contido pelo pai, que se virou para o banco de trás do veículo, segurou-o pelo braço e emanou aquele olhar de inacreditável doçura depois de separar duas crianças brigando. Por um momento, sentiu-se com a idade da irmã, Nicole.
Nicole, ou simplesmente Nicky, era a caçula da família Thompson. “Ninguém me esperava, eu aconteci!” Era como a jovem brincava ao bem descrever o fato de ser temporã de Edwarde Catherine. Sua mãe já tinha quarenta e dois anos quando foi surpreendida por uma gravidez temerária e quase inexplicável, já que Ed realizara um procedimento cirúrgico de esterilização. “Eu queria tanto vir a este mundo que reverti uma vasectomia!” Concluía uma irônica Nicky, anunciando também seu temperamento forte e imperativo.
Ao contrário dos irmãos Ethan e Justin, muito parecidos com Ed, Nicole era fisicamente o retrato de Catherine quando jovem: pele de um alvor angelical; cabelos naturalmente loiros,
lisos como num comercial de xampu; uma silhueta bem definida, distribuída em pouco mais de um metro e setenta de altura; olhos enormes e de um azul tão profundo e estonteante quanto as
águas do Pacífico; e lábios rosados e carnudos, cujo desenho, emoldurado por belas e proeminentes maçãs, lhe concedia um rosto em permanente estado de felicidade. Ilusão. Pura ilusão de óptica. A natureza é sempre caprichosa. Nicky, apesar de ostentar o título de caçula-temporã, o que lhe resguardava alguns mimos compreensíveis, e de receber uma educação primorosa, foi uma criança bastante fechada e tornou-se uma jovem adepta à
observação e aos silêncios vertiginosos. Aos dezessete anos de idade, cursava o penúltimo ano na Wachusett Regional High School, em Holden. Apesar da sôfrega insistência de Ed e Cathy para que a filha tentasse ser admitida na Boston University, ficando assim perto de casa, Nicole não tinha a menor pretensão de permanecer ao alcance dos olhos de seus pais e de seus irmãos, cujo zelo extremado também lhe tolhia as necessárias aventuras próprias à sua idade. “Calada sim, morta nunca!”, pensava em seus
sonhos aventureiros. Seu desejo era atravessar o país e tentar ingressar em Stanford ou Berkeley, as renomadas bisseculares universidades da Califórnia, onde pretendia cursar Engenharia. Bonecas e vestidos nunca lhe fizeram a cabeça. Cresceu entre legos e castelos de areia. Construir era sua obsessão. Ainda assim, Nicky nunca foi uma boa construtora de amizades. Tinha visível dificuldade de criar pontes que a ligassem às outras pessoas. Convivia muito bem com os colegas de escola, mas raros foram aqueles que conseguiram laçar seu afeto. Seus grandes companheiros eram Hannah Sullivan, sua melhor amiga e com quem cresceu e passou boa parte da vida, vizinhas desde o nascimento na pequena Tanya Drive, onde moram; e Thomas Marshall, o filho mais velho de grandes amigos de sua família: o oficial Raymond Marshall, chefe do escritório do governo americano em Holden, responsável pelos registros e documentos públicos, e Angela,
uma europeia alva, quase albina, a truculenta professora de alemão da Wachusett. Thomas, desde a infância, nunca escondeu o fato de ser apaixonado por Nicole, relação que era francamente incentivada por ambas as famílias, exceto por Angela, que dizia não ter motivos para admirar a caçula dos Thompson.
“Por que será que ela nunca me deu uma chance?”, questionava-se muitas vezes Thomas em pensamento, sem encontrar qualquer resposta plausível. Tinham a mesma idade e ele era um
jovem inteligente, atlético e muito bonito, sempre cobiçado pela maioria das meninas da escola. Fiel às suas obstinações, raramente permitia-se qualquer relação com outra garota e,
quando o fazia, para saciar a efervescência de seus hormônios e calar as más-línguas ferozes, tentava manter os fatos e os atos bem longe do conhecimento de Nicole. Ela era o amor de sua vida e disso não tinha dúvidas.
Já era noite quando Nicky, Hannah e Thomas chegaram ao estacionamento da WRHS, ao final de mais um dia do programa de verão da escola. Suado e exausto das seguidas partidas
de basquete e exibindo todo o seu porte atlético por trajar apenas o short preto do time da WRHS, o rapaz tentou uma cartada:
— Vocês topam comer alguma coisa no Sweets N’ Java antes de ir pra casa? — indagou Thomas, secando o suor do rosto com a camisa nas mãos enquanto se aproximava da vaga onde estava seu carro.
— Pode ser. Eu estou faminta! — disse Hannah, animada com a ideia.
— Hoje eu não posso. Tenho que ir correndo pra casa. Ethan está chegando da França e minha mãe vai reunir a família para um jantar de boas-vindas. — Nicole não estava tão
disposta aos ritos familiares, mas, pelo menos, poderia escapar das investidas de Thomas, cada vez mais frequentes nos últimos meses.
— Mas é uma parada rápida... um suco apenas... — insistiu o rapaz. — Que tal então um sorvete no Friendly’s?
— Não dá, Thomas! Eu já estou atrasada.
— Tudo bem. Você é quem sabe — resignou-se, abrindo a porta do carro e se despedindo.
— Nos vemos amanhã!
— Tchau! — acenou Hannah, que, mesmo sabendo do interesse único do jovem por sua melhor amiga, fazia questão de exibir seus fartos seios para o deleite dos olhos de Thomas.
“Como a Nicky pode rejeitar esse menino? Ele é maravilhoso!”, era o que sempre pensava, em seus desejos mais ocultos.
As duas caminhavam em silêncio até o carro de Nicole, um Peugeot 308 CC conversível vermelho, a alguns metros de distância. De sobressalto, Nicky estacou. Não conseguia dar mais um único passo ao avistar, vindo em sua direção, um charmoso quarentão, extremamente sexy, calça jeans, camisa branca e uma barba levemente por fazer. Um tanto constrangido com o olhar flamejante daquela garota, o homem correspondeu com um sorriso de mesmo porte.
— O que foi, Nicky? Vamos — indagou Hannah, virando-se para a amiga e não percebendo aquele que vinha na direção oposta, nem a troca de olhares que acabara de acontecer.
— Vai ficar aí, parada? — Não compreendia a ausência de respostas, quando sentiu aquele homem passar bem ao seu lado, deixando no ar um rastro de perfume Polo Black.
Num movimento coordenado, quando ele se virou para conferir se a bela jovem ainda lhe lançava aquele perigoso e penetrante olhar, uma brisa quente agitou os finíssimos cabelos de Nicole, jogando mechas loiras sobre seu rosto delicado. Ele abriu novamente um vasto sorriso. No íntimo, sabia que mesmo aos quarenta e três anos de idade, era dono de uma beleza deslumbrante, e suas formas eram capazes de deixar multidões babando pelo caminho. Mas havia algo diferente, um encantamento perturbador no olhar daquela jovem. Ela, sentindo o rachar da secura em sua garganta, por aquele longo momento foi tomada pela ilusão de estar ouvindo uma música lenta.
— Ei, Nicky! — Hannah tentava lhe chamar a atenção, passando a mão bem em frente ao rosto de Nicole, na esperança de tirá-la daquele transe no qual jamais vira a amiga. — Nicky!
Acorda! Em que planeta você está?
— Hein?! O que você disse? — voltando a si, Nicole tentava descobrir o que Hannah lhe perguntara e ainda continuava atordoada com o impacto que aquele homem tinha provocado.
— Nicky, o que aconteceu com você? — Ao mesmo tempo que perguntava, Hannah pegou a amiga pela mão e forçou-a a continuar o caminho até o carro. — Você ficou estranha de
repente! Parecia ter saído do próprio corpo!
— E acho que saí mesmo!
— Tudo isso por causa daquele velho? Ah, Nicky!
— Que velho, Hannah? Ele não é velho!
— Como não?! É bonitão, gostoso, cheiroso, mas tem idade pra ser seu pai, querida! Então, nem venha inventar problemas, viu?!
— Você o conhece? Nunca o vi por aqui.
— Ele é o novo professor de história da Wachusett — revelou Hannah, ao chegar ao carro de Nicole enquanto caminhava para o lado do carona. — Eu fui outro dia à secretaria para
escolher minhas matérias, quando o encontrei sendo apresentado pelo superintendente do distrito. Parece que ele vai ministrar uma série de palestras sobre história no próximo semestre em todas as escolas da Regional.
— E você sabe o nome dele? — questionou Nicole, ávida por uma resposta positiva, enquanto abria a porta do carro e se acomodava ao volante.
— Bem, eu poderia nem ter prestado atenção... mas eles estavam falando tão alto que acabei escutando algumas coisas. — Hannah, uma curiosa de plantão, falava com ar de falso desdém. — Uma das coisas que ouvi foi o nome dele, quando o superintendente fazia as apresentações aos funcionários da secretaria. Foi tão desconcertante estar ali naquele momento...
— Fala logo, Hannah! Qual é o nome dele? — ordenou Nicole, ligando o motor e acionando a capota retrátil de seu Peugeot.
— Acho que é Christian. Professor Christian Taylor — e noticiou, em flagrante de sua falsa desatenção à referida conversa. — Ele é de Los Angeles. Mas agora está morando em Worcester.
— De Los Angeles? Califórnia?
— Não! De Los Angeles, na China! — brincou Hannah. — É claro que é da Califórnia! Só pelo bronzeado já dá pra perceber... E eu vivo me perguntando: o que pode levar uma pessoa a sair de Los Angeles e vir morar em Worcester? Ele só pode ter problemas... de repente aprontou alguma lá... ou está fugindo.
Enquanto Hannah seguia em seu interminável novelo de preconceituosas hipóteses sobre a vida daquele desconhecido, Nicole esboçou um leve sorriso e saiu com o carro. Para não ter
que ficar ouvindo aquele monte de bobagens de sua amiga nos dez minutos que separavam a Wachusett de suas casas, lembrou-se de ligar o rádio. Por uma dessas irrefutáveis coincidências da vida — ou seria o destino, pensou imediatamente — a música que tocava era “Dream”, da multi-instrumentista Priscilla Ahn. Quase não acreditou. Aumentou o volume. Ficou ainda mais impressionada com toda aquela aura que a dominou desde que avistou aquele homem fascinante. Fez questão de guiar o carro pelo caminho que a obrigaria a passar bem ao lado dele, que seguia em direção à escola.
No trajeto para deixar o estacionamento e chegar à sede da Wachusett, Christian Taylor
conteve, por diversas vezes, a tentação de olhar novamente para trás e admirar aquela linda estudante. Taras e fetiches à parte, algo naqueles olhos azuis tinha revirado suas certezas e seus critérios éticos de evitar qualquer relação extraclasse com suas alunas. Mas havia algo diferente naquela abordagem. Enquanto insistia em ponderar o que, naquele momento, era
imponderável, Christian começou a ouvir o barulho de um carro vindo em sua direção, acompanhado de um trecho de música: “I was a little girl alone in my little world who dreamed of a life home for me. I played pretend between the trees, and fed my houseguests bark and leaves, and laughed in my pretty bed of green. I had a dream that a could fly from the highest swing. I had a dream...”. Percebeu aquele Peugeot conversível vermelho reduzir a velocidade e passar, levando consigo aqueles cabelos loiros revirados pelo vento. Por alguns segundos, e ainda ouvindo a música, ele encontrou os olhos azuis de Nicole. “Long walks in
the dark through woods grow behind the park, I asked God who I’m supposed to be. The stars smiled down on me, God answered in silent reverie. I said a prayer and fell asleep. I had a
dream...” Através do retrovisor, ela lançava novamente aquele olhar de desejo perturbador, enquanto apreciava o som da gaita de Priscilla Ahn.
No extremo sudoeste de Holden, nos limites da área urbana com a Reserva Kendall, Tanya Drive é uma pequena rua sem saída com apenas oito residências de bom padrão. Um lugar tão bonito quanto tranquilo, cuja altura permite contemplar o longo vale dos reservatórios e ainda avistar Worcester, a leste, e Paxton, a oeste. Com um pouco de esforço, é possível ver, à grande distância, a pequena Spencer. Nos dias quentes de verão, a região é presenteada pela brisa úmida que sopra vale acima.
Nesse lugar quase paradisíaco, Edward e Catherine construíram seu lar, uma casa de tom ocre, de dois pavimentos em estilo americano, com telhados cinzentos e fartos detalhes em
branco nas muitas eiras e beiras. Esses prolongamentos frontais da residência eram revestidos com pedras de tons variados entre o amarelo-ouro e o marrom-escuro, e três portentosas bay windows vitorianas davam um toque especial ao estilo daquela bela fachada de vista ampla, ao centro da rotatória que marca o fim da Tanya Drive. Aconchegante, ampla, iluminada e arejada. A casa era o retrato fiel do casamento bem sucedido de Edward e Catherine. Namorados desde os vinte anos, só se casaram aos vinte e
três, quando Ed finalmente abriu seu próprio negócio: uma pequena loja de revenda de automóveis. Aguardaram uma mínima estabilidade para ter o primeiro filho. Cathy tinha vinte e cinco anos quando Ethan nasceu. Dois anos depois veio Justin. Por essa época, Ed ampliou seus negócios e mudou a sede de sua empresa para a região central de Worcester, dando-lhe o nome de Edward Thompson and Sons. Em uma década, os carros vendidos pelos ETS, como
eram chamados os funcionários e consultores, tornaram-se um sucesso em todo o sul da Nova Inglaterra, garantindo à família Thompson um elevado padrão de vida. Catherine dedicou-se em tempo integral às funções da casa e à esmerada educação dos
filhos. Enquanto Ed chegava a cumprir dezoito horas diárias de trabalho na construção de seu pequeno império automotivo, Cathy participava ativamente da vida social de Holden, colaborando com as atividades do Gale Memorial e da Gale Free Library, fundados em 1888.
Também se tornou membro da Holden Historical Society, uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1967, cuja missão é preservar e expor a história da cidade. Já Edward, quando tinha tempo, dedicava-se a cuidar de sua preciosa coleção de carros antigos e às partidas de golfe com os amigos no Holden Hills Country Club. A vida seguia seu curso tranquilo quando, depois dos quarenta anos, viram-se diante de uma surpreendente gravidez tardia de Catherine. Claro que não houve qualquer planejamento para a chegada daquela nova criança, e Ethan e Justin, já adolescentes, tinham dezessete e quinze anos, respectivamente. Nicole, o “restinho de feira” ou a “última centelha da fogueira”, como brincavam, veio ao mundo sob todos os cuidados possíveis e imagináveis, tornando-se o centro das atenções dessa família de republicanos do norte: uma espécie liberal-conservadora avançada.
Na contramão, Ed e Cathy eram obrigados a conviver com a irmã mais velha dele, a verborrágica Mildred, uma mulher ardilosa, que conseguia disfarçar sob a máscara de falso humor seu rosário de rancores, dores e frustrações. Um ser que não conseguiu resistir aos efeitos do tempo. Ao contrário de Edward, Mildred casou-se muito cedo, aos quinze anos de idade, com o empresário inglês John Collins, uma década mais velho e que chegara aos
Estados Unidos com o objetivo de expandir os negócios de exportação de sua família na Inglaterra. Foi um caso conveniente, em um ambiente pós-guerra, para aquela jovem bastante rechonchuda e inábil para quase tudo.
Mildred e John tiveram um único filho, William, que morreu trágica e prematuramente, aos dezesseis anos de idade, durante o grande incêndio que destruiu a Holden Junior High School, em 1980. Depois disso, nunca mais foram os mesmos. Depressivos e com as constantes crises econômicas que abalaram os Estados Unidos e a Europa no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, os Collins perderam quase todo o patrimônio e encerraram seus negócios. Para sustentar algum padrão de vida à sua exigente e temperamental esposa, mesmo depois dos setenta, John ainda trabalhava, com sobra de justas regalias, na empresa do cunhado.
Ainda assim, eram comuns os pedidos de ajuda de Mildred ao irmão Edward. Valia-se de todos os argumentos, em especial aqueles que apelam para os sentimentalismos rasos. Seus pedidos, sempre reservados aos pés do ouvido ou às salas fechadas, variavam desde auxílios básicos para alimentação e remédios, até a contratação de empregadas domésticas e compra de carros novos. Abusada, Mildred fazia questão de mostrar seu desprezo pela cunhada,
Catherine, a quem chamava de “golpista” e por quem nutria forte sentimento persecutório. Aos sobrinhos, legava o desdém, mas revelava a John não aceitar o fato de Ed e Cathy conviverem
pacificamente com as escolhas de Justin, a quem o próprio John também alcunhava em tom pejorativo, por puro preconceito, de “mulherzinha” e “bichinha arrogante”. Quando reunidos em família, tio John fazia valer o polimento da educação inglesa para
ocultar suas mazelas e suas críticas àquela família de “falsos republicanos”, que considerava moderna demais. Mas Mildred, uma incorrigível falastrona, constantemente tornava-se a
protagonista de discussões e crises, fosse à mesa de jantar, fosse à sala de estar. Com o passar dos anos, suas supostas brincadeiras começaram a se tornar mais problemáticas e perigosas, o que motivou seu marido a fazer-lhe um pedido assim que chegaram, no início daquela noite, à casa dos Thompson, na Tanya Drive, para o jantar de boas-vindas a Ethan:
— Mildred, por favor, não crie problemas nesta noite! — disse John, quase implorando. — Não estamos vivendo dias fáceis na empresa, Ed anda muito tenso com a crise financeira
mundial, e a perda do bebê do Ethan e da Helen ainda é muito recente. Meça suas palavras. Não provoque mais situações delicadas do que as que já temos...
— Eu não sei por que você está me dizendo isso. Eu sei muito bem tudo o que está acontecendo. Sempre sei de tudo — regozijou-se Mildred.
— Então nos poupe de suas indelicadezas hoje.
— John?! — disse, aumentando a voz em tom de advertência. — Eu não sou indelicada. O que eu não posso é deixar de falar a verdade que nenhum deles quer ouvir!
— Hoje não, Mildred! Hoje não! — suplicou John.
— Você é engraçado! Falando assim, até parece que eu sou uma idiota impertinente que não consegue compreender o que está acontecendo ao redor. Do jeito que você fala, eu fico parecendo uma daquelas vilãs sexagenárias dos filmes do Robert Altman.
— Não deixa de ser uma boa referência! — e John esboçou um discreto sorriso, ao que foi acertado no braço pela bolsa da esposa, indignada com a brincadeira com fundo de verdade.
— Aliás, querido, temos que redobrar os cuidados com o que falamos... — Mildred sacou da bolsa o batom e um pequeno espelho e, enquanto os colocava em uso, seguiu seu raciocínio, com sarcasmos e boa dose de maldade. — Temos que evitar assuntos mais
profundos com a Helen, pobrezinha. Já é o segundo filho que essa menina não consegue segurar! Acho que eles não vão conseguir ter filhos... Mas, do jeito que essa gente é, aposto que o Ethan não respeitou a gravidez da mulher e ficaram fornicando num momento em que não se deve fazer isso!
— Mildred...
— Isso é pra Catherine aprender! Eu garanto que ela já estava festejando o fato de que seria avó, coisa que eu nunca poderei ser.
— Mas por que esse assunto agora? Será que você não aprende? — a fala de John soava mais como uma súplica.
— Agora eu quero só ver... — espalmou as mãos aos céus. — Que fim terá essa família, meu Deus? Um casal jovem que não consegue colocar filhos no mundo, um filho marica e uma pequena vadia loira. Onde pensam que vão chegar assim?
Enquanto Mildred falava, já na varanda da entrada da casa dos Thompson, John tocou a campainha, ouvindo ao longe o pedido de Catherine para que Helen atendesse. Ao mesmo tempo que abria a porta em sua delicada beleza, Helen foi dominada por um forte abraço de Mildred, já transfigurada para sua versão zelosa e benevolente:
— Helen, querida! Como você está? — e Mildred levou uma das mãos ao rosto da esposa de seu sobrinho. — Eu estava morrendo de saudades de você, princesinha!
Ao entrar na Edith’s Flowers, Ethan percebeu que não havia qualquer funcionário em seu campo de visão. Certamente por estarem ocupados com os preparativos para o encerramento
do dia. Por algum tempo perdeu-se na gama de opções de arranjos florais sem saber exatamente qual deles levar para Helen. Apesar da real semelhança física, Ethan e Helen tinham personalidades absolutamente díspares. Durante todo o período de namoro e noivado, muitos chegaram a apostar que eles jamais se casariam. Talvez não por dúvidas quanto à existência de amor, mas sim pela absoluta discrepância entre suas personas.
Ele sempre margeando algo entre a sisudez e a ranzinzice, cuja seriedade exacerbada muitas vezes o fazia parecer um homem bem mais rude do que de fato era. Ela, por sua vez, não apenas nas expressões, gestos e tom de voz, mas em todo o conjunto, transpirava uma sensibilidade quase infantil. Enquanto ele marchava feito um soldado em formação militar, ela desfilava com leveza, como que conduzida por asas de Hermes. Nele, o cabelo extremamente curto contrasta com a barba aparada, já mesclada entre tons de louro e muitos fios brancos. Nela, as sobrancelhas milimetricamente delineadas parecem acompanhar o perfeito desenho
oblíquo dos cílios, emoldurados pelo cabelo comprido e repicado. Ele mastiga gengibres salgados, ela prefere os anacrônicos dropes de hortelã.
Enquanto aguardava algum funcionário para atendê-lo, Ethan percorreu a loja em busca de um arranjo para presentear sua esposa. Estava perdido dentre tantas opções e, por absoluta
falta de prática, hábito e, principalmente, de sensibilidade, não sabia quais eram as flores preferidas de sua mulher. A última e única vez que lhe dera flores ainda estavam namorando, e
a dúzia de rosas vermelhas, que tanto encantaram Helen, tinha sido escolhida e comprada por sua mãe, Catherine. “O que levar?”, questionava-se sem cessar. Apesar da insensibilidade crônica, Ethan tinha convicção de que seria difícil encontrar, dentre aquelas flores, alguma que fosse realmente
mais bela e encantadora que Helen. De relance, avistou o nome de um dos arranjos numa pequena chapa de metal aos pés do elegante vaso arredondado de cristal transparente onde estava disposto. Um incrível ramalhete capaz de prender o olhar com sua gama de tons e flores distintas: vinte e seis hastes mescladas entre rosas vermelhas, íris, ásteres roxos e lírios cor-de-rosa. Estava decidido: “Esse é o presente perfeito, até no nome!”, concluiu,
alcançando o vaso delicado com as mãos e levando-o até o balcão principal, onde percebeu que uma jovem funcionária chegava para atendê-lo. Deixou para trás a pequena chapa de metal
onde figurava o nome que lhe fez escolher o presente: Stunning Beauty*
*Beleza Deslumbrante.