Um conto novo, extenso mas real. Quem não gosta de ler, nem comece...
Era verão de 1988. Estávamos às vésperas de um torneio de natação, e toda a cidade estava organizando a recepção das outras 40 e tantas delegações que viriam competir aqui. Eu era pai de uma jovem nadadora, que havia iniciado nas competições fazia pouco tempo, mas pelo ânimo do pessoal do clube, acabei me envolvendo também naquele torneio. Chegava a quinta-feira e eu e os outros pais e mães saímos dos nossos trabalhos e fomos pro clube dar aquela geral. Uns estavam lavando as calçadas, outros amarravam bandeirolas entre as árvores, alguns estava dando faxina nos vestiários. Era um momento muito importante para o nosso clube e todos queriam que fosse impecável aquele fim de semana. A Lúcia, minha esposa, começou a limpar um vidro próximo da piscina, e de longe me avisou: “Armando, depois venha aqui. Parece que esse vidro tá trincado”.
Mas o trabalho era tanto que acabou passando despercebido o tal vidro. Lá por volta das dez e meia da noite, estava tudo muito limpo e bonito, e os casais começaram a ir embora. Na manhã seguinte, tínhamos que estar bem cedo no clube, porque as delegações de fora iam começar a chegar.
Nos meus quarenta anos de idade, nunca pensei que o jogo pudesse mudar de uma hora pra outra. Eu, macho convicto, casado com uma das mulheres mais bonitas que já conheci, corpo normal, pinto dentro da média, pai de dois filhos, com família parecida com qualquer família normal. Trabalhador de uma indústria, com uma vida estável e confortável... Uma ou duas viagens em família por ano, uma casa espaçosa e um monte de tradições familiares, como missa aos domingos, depois um churrasquinho com amigos. Sexo regularmente, e poucas vezes fora da linha. Era assim... muito de vez em quando ia com meus amigos a um puteiro, pegava umas putas, fodia, e voltava pra casa como se nada tivesse acontecido. Nada além disso, nem no trabalho, nem na rua, nem fora...
E tudo isso, porque era bem resolvido, satisfeito mesmo. Minha mulher cavalgava em mim do jeito que eu gostava, me chupava, me deixava chupar, me fazia gozar gostoso. Então, não tinha porque sair disso.
Mas a sexta-feira chegava e as coisas estavam prestes a mudar.
- Pai, estamos atrasados, o pessoal deve estar chegando. – me dizia Junior, meu filho mais velho. – E se o técnico ver a gente chegando atrasado, vai reclamar.
- Tá bom filho, vamos. Estamos indo. – respondi enquanto me vestia. E na correria, nem cueca encontrei rsrsrs.
No carro, eu e minha esposa íamos conversando, com os filhos no banco de trás. Ana Júlia estava ansiosa porque competiria, e Junior, safado, sabia que ia encontrar um monte de gatinhas.
E quando chegamos ao clube, realmente o trabalho tinha valido a pena, estava muito bonito. O treinador me pediu pra ficar orientando os carros no estacionamento, minha esposa foi ajudar no vestiário e meus filhos se dispersaram na multidão. A gente estava feliz... Quando os ônibus começaram a estacionar, vinha gente de toda parte, nadadores uniformizados, treinadores de outros estados. Era uma grande competição.
Depois de cumprida minha função, me dirigi para perto da arquibancada que estava lotada, e acompanhei uma das provas. Eram nadadores da idade do Junior, entre 18 e 19 anos. Todos ansiosos, e a juventude nessa época me deixava muito inspirado, porque eles demonstravam alegria e esbanjavam saúde.
Quando iniciou a tal prova, o quinto a nadar era Rafael. E ele estava aparentemente distraído, porque quando foi chamado junto com os adversários, saiu correndo. Eu olhava para a água, quando um forte ruído rompeu o silêncio. Olhei pra trás assustado, como todos que ali estavam, e vi uma pessoa caída em frente a janela do tal vidro trincado. Muitos cacos, sangue. De repente toda aquela euforia deu espaço para um momento de tensão. Eu e mais outros organizadores corremos pra perto da pessoa que estava muito ferida. Sem saber o que fazer, minha intenção foi tirar de perto daquele jovem todos os cacos, e no meio do sangue, ele gritava de dor. Chamamos uma ambulância e o colocamos na maca. O presidente do clube me pediu que o acompanhasse. No sistema de som, pediam aos familiares do nadador ferido que se dirigissem até a ambulância, mas de nada adiantou. Ninguém apareceu. Até que um pouco depois, o treinador, que se identificou como Naco, disse que ele estava sozinho com os alunos, que os pais do Rafael estavam viajando pra fora do Brasil, e que não sabia o que fazer.
Entre ficar com uns vinte adolescentes e acompanhar o rapaz cortado no hospital, fiquei com a segunda opção.
A ambulância chegou no pronto socorro, descemos e o menino foi encaminhado pra emergência. Ele estava envergonhado, machucado e principalmente com medo.
- Calma, Rafael. Vai ficar tudo bem. Não precisa ficar com medo. Eu tenho um filho da tua idade e vou cuidar de você... – disse segurando na mão do rapaz.
- Não avise os meus pais, não diga pra eles, eles vão ficar preocupado... – me dizia implorando.
- Não, pode ficar tranquilo. Até porque nem sei onde eles estão e onde estão. Mas preciso avisar alguém da sua família...
- Avisa meu irmão, Paulo, o telefone da casa dele está com o treinador...
Liguei para o telefone do clube, falei com o treinador, peguei o telefone e liguei pro tal Paulo.
- Alô, Paulo? Nós não nos conhecemos, meu nome é Armando. Estou na organização do torneio aqui em Goiânia, e não quero te deixar preocupado... Mas teu irmão sofreu um pequeno acidente.
- Quem tá falando? O que houve com ele agora? – disse a voz visivelmente grosseira do outro lado.
- Então, eu acabei de dizer que não nos conhecemos. Meu nome é Armando. Estou com seu irmão. Ele caiu sobre uma janela e se cortou. Mas está bem, estamos no... – ao que Paulo me interrompeu.
- ... nossa, estou no Rio de Janeiro, não tenho como ir até aí. E agora?
- Bom, agora vou cuidar do teu irmão até ele poder voltar embora...
- Mas não vou conseguir nem pagar a passagem, e meus pais estão viajando.
- Fique tranquilo quanto a isso. Só quis te avisar. Dou notícias em breve. – e desliguei.
No hospital os médicos iam de um lado para outro. Cinco horas haviam se passado e eu ainda estava na sala de espera. De repente a porta se abre e uma médica pergunta quem está acompanhando o jovem acidentado.
- Sou eu, doutora.
- Bem, o Rafael sofreu um acidente grave. Por pouco não cortou a aorta, e levou mais de cem pontos por todo o corpo. Ele vai precisar ficar aqui em observação, porque alguns cacos não conseguimos retirar ainda.
Eu estava saindo do hospital, quando me dei conta: aquele rapaz tinha a idade do meu filho e eu não gostaria que meu filho ficasse sozinho, machucado, em uma cidade que não conhecia ninguém. Ao mesmo tempo, pensava que isso não era responsabilidade minha. Liguei para o clube, pra tentar falar com o treinador de Rafael, mas lá não localizaram ele. Provavelmente já tinham ido para o alojamento.
Pedi pra enfermeira que me deixasse ver o rapaz, e quando entrei no quarto, ela foi logo dizendo:
- O senhor é o pai? É o pai né? É a cara dele. Ele está dormindo, mas venha aqui que vou te mostrar os ferimentos, olha...
E eu tentei dizer que não era, mas foi em vão. Ela levantou o lençol e me mostrou o estrago naquele corpo rosado e jovem. Tinha cortes em toda a barriga, nas pernas, na região da virilha. E o menino dormia tranquilo.
- O senhor vai ficar aqui? Qualquer coisa eu peço pra colocarem uma cama aqui ao lado, hoje estamos com pouco movimento e o senhor não vai precisar dormir nesse sofá que é muito...
- Senhora, eu não sou pai. Não consegui localizar nenhum familiar, ele está no campeonato de natação do clube...
- Xi, então é melhor o senhor ficar aqui, já que é a pessoa mais próxima dele. Pode ser que ele acorde assustado.
- Mas se eu ficar ele vai ficar assustado também, porque ele nem me conhec... – eu disse, mas fui interrompido pela hora em que ela saiu daquele quarto.
Lá mesmo eu fiquei. Sentei num sofá ao lado da cama, e como o cansaço estava grande, só acordei quando minha esposa entrou naquele quarto e já era noite.
- Armando, como está o rapaz?
- Oi Lúcia. Está bem, dormindo. Mas foi feio o acidente mesmo, se cortou todinho.
- Que dó. O treinador dele foi embora com os outros rapazes. Foram com o ônibus, mas ele vai pegar o carro e no mais tardar segunda está de volta buscar o menino. Ele se chama Rafael, os pais estão viajando. – disse minha esposa.
Segunda? Mas ainda era sábado! E eu já sabia toda essa história dos pais dele. Quem ficaria no hospital? Eu? Não era minha responsabilidade, não era minha culpa...
Antes que eu continuasse a pensar, Lúcia me interrompeu jogando uma tonelada de culpa.
- Pois eu tinha comentado que aquele vidro estava trincado... que pena né? – disse como se projetasse nas minhas costas a responsabilidade do acontecido.
Me despedi de minha mulher, que já tinha até levado uma muda de roupas, e estava decidida: eu passaria meu fim de semana lá.
- Como foi a Ana Júlia na competição? – perguntei.
- Foi bem, mas não se classificou. Está em casa. – respondeu-me Lúcia, com um beijo e virou o corredor pra ir embora.
Naquele quarto do hospital agora éramos só nós dois. Eu e um rapaz de 18 anos que nem me conhecia, inteiro costurado.
Continua