Em seis meses Renan e eu nos tornamos, verdadeiramente, amigos. Era engraçada a nossa convivência, apesar da diferença de idade [Renan tinha 21 anos e eu 30] percebia que aquele moleque era muito adulto e tinha uma cabeça bastante equilibrada e madura. Sabia que se contasse sobre a minha orientação sexual ele, bem provavelmente, não ficaria chocado e não seria preconceituoso comigo. No entanto, preferi manter a discrição e não contar; mesmo achando que de alguma forma ele já soubesse.
Era terça-feira e eu fui trabalhar pela manhã. Senti falta do Renan, ele deveria ter ido para escola, porém não apareceu e muito menos mandou notícias. Segui minha rotina normal e na hora do almoço resolvi ligar para ele.
O telefone tocou diversas vezes, porém ele não atendeu. A ligação foi para a caixa postal. Tentei mais uma vez e no segundo toque ele me atendeu.
- Alô.
- Renan, sou eu, Ricardo.
- Oi, Ricardo. Desculpe-me por não ter ido hoje ao estágio... – Sua voz estava chorosa.
- Você está chorando? Está tudo bem?
- Na verdade, não! Está tudo péssimo. – Seu choro ficou mais nítido o que meu deu um aperto no coração.
- Calma, Renan. Estou indo agora para sua casa!
- Não! – Ele meio que berrou no outro lado da linha. – Eu não estou em casa...
- Tudo bem! Fale-me onde você está que eu vou te ver. – Sinceramente, eu não sei o que aconteceu comigo. Não entendi porque fiquei tão preocupado quando percebi seu choro. Só sentia que ele estava passando por um momento difícil e que eu deveria ajudá-lo.
- Não precisa, Ricardo.
- Renan, fala logo onde você está, caramba. – Falei berrando. Seu choro ficou mais intenso. Ficamos alguns segundos em silêncio. – Desculpa! Não queria gritar com você. Só que estou preocupado. – Fiz mais uma pausa de alguns segundos. – Fala onde você está, por favor.
- Estou na faculdade... – Não o deixei completar a frase.
- Chego ai no máximo em meia hora... Estou saindo do colégio agora.
- Tudo bem! – Ele disse ainda com a voz embargada.
Desliguei o telefone e fui pegar meu carro. Só então me lembrei de que ainda daria dois tempos de aula na parte da tarde.
- Puta que pariu! Não acredito que me esqueci...
Peguei meu celular e liguei para a Cristina. Falei que havia comido alguma coisa no almoço que me fez passar mal; enjoo, vômito, dor na barriga. Como não sou muito de faltar e tão pouco inventar histórias mirabolantes, a diretora pareceu acreditar e me disse que seria melhor mesmo eu ir para casa descansar e ainda disse para que eu não me preocupasse, pois liberaria as turmas. Agradeci e assim que desliguei o celular, liguei o carro e fui buscar o Renan na faculdade.
Em menos de 50 minutos cheguei à sua universidade. Estacionei o carro e liguei para ele.
- Oi, Ricardo. – Sua voz ainda estava rouca. Parecia que havia chorado muito.
- Eu já cheguei. Onde você está exatamente?
- Estou na entrada do alojamento feminino.
- Ok... Estou indo te buscar.
Em poucos minutos o avistei em frente à entrada dos alojamentos femininos. Aproximei e parei com o carro bem próximo dele. Abri o vidro do carro e o olhei. Seus olhos estavam vermelhos e havia manchas roxas em algumas partes do seu rosto. Foi a primeira coisa que percebi quando o olhei. Além disso, havia uma tristeza em seu olhar. Aquele brilho tão característico de seus olhos parecia ter desaparecido.
Fiz sinal para que ele entrasse no carro e logo ele entrou. Não disse nada e ele também ficou em silêncio. Comecei a dirigir e coloquei o som em uma rádio qualquer para diminuir o silêncio que habitava naquele automóvel. Dirigi durante uma hora e ambos ficamos em silêncio. Renan muitas vezes fitava a paisagem que se movia pela janela do carro e parecia viajar em seus pensamentos.
- Renan, chegamos. – Balancei-o, pois havia pegado no sono alguns minutos antes.
- Onde estamos? - Ele pareceu assustado olhando para os lados para reconhecer o lugar.
- Estamos numa praia bem bonita. – Disse sorrindo. Toda vez que tinha problemas ia para essa praia. Era razoavelmente deserta e não muito distante da minha casa. Portanto, era aonde eu recuperava as energias e, muitas vezes, chorava por não ter ninguém que ouvisse minhas lamentações e angustias.
- Por que você me trouxe aqui? – Ele disse curioso.
- Por que eu sei que você não está bem e esse é um lugar que me traz tranquilidade quando estou passando por momentos difíceis. – Falei sorrindo e em seguida o dei um forte abraço. Renan encostou a cabeça no meu ombro e começou a chorar. Ficamos em silêncio, mais uma vez. Deixei que chorasse para que pudesse exorcizar qualquer dor física e emocional que estivesse sentindo. Não dissemos uma palavra, todavia sei que de alguma forma eu o estava confortando naquele momento difícil, seja qual fosse.
Percebi que a intensidade do seu choro havia diminuído e, então, resolvi o chamar para dar uma volta pela praia. Sentar na areia e conversar sobre o que havia acontecido. Meu ex-aluno concordou e, desse modo, saímos do carro e começamos a caminhar na areia da praia.
- Renan, não quero me meter na sua vida. Porém, estou preocupado com você. – Tentei ser direto. Precisava saber o que havia acontecido com ele. – O que aconteceu? Por que você não para de chorar e por que está cheio de manchas roxas? – Além do olho roxo, da boca machucada e de diversas outras escoriações pelo rosto, havia marcas pelo seu braço. Dessa forma, imaginei que tivesse levado uma surra. – Quem te bateu?
Como uma criança com medo e acuada em um beco escuro, Renan olhou para o outro lado, fitou o mar revolto e se sentou na areia fina e clara. Aproximei-me, sentei-me ao seu lado e o abracei novamente. Suas lágrimas escorreram pelo rosto. Sequei-as com meus dedos e fiz com que me olhasse. Nossos olhos se fixaram e eu o abracei mais uma vez.
- Eu estou com você! Não tenha medo.
Renan se soltou do abraçou e me encarou. Seus olhos estavam vermelhos e sem aquele brilho que tanto caracterizava meu ex-aluno. Olhou o mar por alguns segundos e voltou a me olhar. Estava angustiado, queria falar, no entanto tinha medo. Lágrimas insistentes teimavam em molhar sua face juvenil. Pareceu criar coragem, abaixou a cabeça e começou a falar.
- Não quero te envolver em meus problemas. - Novamente voltou a olhar as ondas que batiam com força em algumas pedras.
- Você é meu amigo, Renan. Só quero te ajudar. – Falei enquanto segurava com minha mão esquerda seu ombro direito. Respirei fundo e passei a olhar o mar. Fiquei em silêncio alguns segundos antes de recomeçar a falar. – Você não precisa me falar o que aconteceu. Só queria saber para que eu pudesse te ajudar, mas compreendo se você não quiser falar sobre esse assunto. – Coloquei sua cabeça em meu ombro e fiquei acariciando seus cabelos. Ficamos assim alguns minutos. Até que ele se soltou e levantou.
- É melhor eu falar logo mesmo o que aconteceu para que você também se afaste de mim. – Eu levantei e o olhei. Fiquei confuso. O que ele poderia fazer que me fizesse se afastar dele? Será que ele teria matado alguém? – Eu fui expulso de casa porque eu sou gay! Meus pais me bateram e simplesmente me colocaram para fora de casa. – Ele disse, praticamente, sem pausa. Enquanto isso, eu o olhava fixamente. Lembrei-me de quando minha mãe me expulsou de casa e tudo que havia passado devido essa atitude. O engraçado é que nunca havia percebi que o meu ex-aluno fosse gay. – Pronto, agora você também pode me excluir da sua vida assim como minha família e muitos dos meus amigos fizeram. – Ele disse voltando a chorar compulsivamente.
- Você é um moleque mesmo. Vem me dá um abraço, seu bobão. – Falei fazendo voz de criança e o puxando para um abraço. Abracei-o forte e dei um beijo em sua testa!
- Você não irá me mandar embora? Você não me baterá? Não dirá que sou uma vergonha para você? – Ele disse voltando a chorar. Não pude deixar de rir. Apesar da idade e de parecer ser tão maduro em diversas situações, naquele momento o Renan parecia ser uma criança indefesa, cheia de medos. E, claramente, precisando de carinho e atenção. – Do que você está rindo?
- De você! Não farei nada disso... Não há motivos para fazer qualquer mal contra você ou sentir vergonha. Pelo contrário, orgulho-me muito de ter sido o seu professor e mais ainda de ser seu supervisor no estágio. – Dei uma pausa na fala e fiquei o olhando. Senti uma pena por ele ter que passar por aquela situação. – Vem cá, sente-se um pouco e me conte o que aconteceu. – Sentamos, de novo, na areia e ele resolveu me contar o que havia ocorrido.
- Cheguei, ontem, em minha casa, minha mãe estava histérica. Ela começou a berrar e me puxou pelo braço até o meu quarto. Quanto ela abriu a porta eu quase cai para trás. Parecia que um furacão seguido de um terremoto e um tsunami havia o destruído. – Ele falava tentando parecer natural, entretanto era perceptível que estava segurando o choro. Eu apenas o ouvia. – Assim que entrei no quarto a perguntei o que havia acontecido. Nesse momento, ela me jogou em cima uma caixa. Gelei! Naquela caixa eu guardava presentes, fotos, cartas de amor e outras coisas que havia recebido dos meus ex-namorados, o Cláudio e o Felipe. “Mãe, você não tinha o direito de mexer nas minhas coisas”. Foi só isso que consegui falar antes de levar um forte tabefe no rosto e logo em seguida ela berrou: “Cala a boca, seu viado maldito, eu não sou sua mãe”. Não tive mais forças! Apenas comecei a chorar. Ela berrava e me batia, eu tentei segurá-la, mas ela estava alucinada. Jogava tudo que via em cima de mim. Meu pai chegou do trabalho e ouvindo os berros correu até o meu quarto. Minha mãe estava em cima de mim me batendo. Ele a retirou e a segurou, ela babava de ódio e se debatia querendo pular em cima de mim, aquela cena foi horrível, se ela estivesse com uma arma, certamente, me mataria. Eu apenas me acuei no canto do quarto e chorei. Meu pai perguntou o que estava acontecendo e minha mãe falou aos berros: “Ele é um viado maldito, Mateus. Esse garoto é um viado”. Meu pai bufou e a soltou vindo até mim. Minha mãe caiu no chão e ficou lá jogada berrando e falando que não merecia passar por tamanha humilhação. “Onde foi que eu errei, meu Deus! Por que o Senhor me deu um filho viado?” Quando meu pai se aproximou me segurou pelos ombros e com os olhos vermelhos de ódio berrou: “Isso é verdade, filho?”. Eu não consegui responder apenas chorava. Ele me segurou mais forte e me deu um tapa na cara que me deixou tonto. “Responde, caralho, seja homem!”. – Nesse momento, Renan não conseguiu segurar as lágrimas e começou a chorar compulsivamente. Eu fiz carinho na sua cabeça e pedi para que se acalmasse. Demorou alguns minutos até que conseguisse dar continuidade a fala. - Eu olhei para o meu pai e respondi que eu era homossexual. Ele me empurrou contra a cama com tanta força que achei que iria desmontá-la. Ele caminhou até a minha mãe e a puxou do chão, depois me olhou. “Pegue suas coisas e suma daqui! Você não é mais o meu filho. O Renan morreu hoje!”. Ainda tentei suplicar, “pai, por favor”. Ele não me respondeu. Minha mãe o abraçou e disse: “Faça o que o Mateus falou! Suma de nossa casa e de nossas vidas.” Eu não acreditei no que tinha acabado de ouvir. Peguei algumas poucas roupas, alguns livros importantes e sai do quarto. Meus pais estavam na sala! Minha mãe chorava abraçada a meu pai e esse agia como se nada tivesse acontecido. Antes de sair pensei em falar alguma coisa, mas desisti quanto meu pai me fuzilou com seus olhos de águia. Sai de casa sem rumo e fui para o quarto de alojamento de uma amiga. – Ele começou a chorar novamente! Eu o abracei e não pude segurar as minhas lágrimas. Eu já havia passado por uma situação parecida e sabia exatamente a dor que meu ex-aluno estava sentindo.
- Calma, Renan. Eu estou aqui com você! Não vou deixar mais nada de ruim acontecer.
- Obrigado, Ricardo! Muito obrigado mesmo. – Ele disse se soltando do abraço e tentando secar as lágrimas que insistiam em sair. Eu fiz o mesmo!
- O que você irá fazer agora? Você tem para onde ir além do quarto de alojamento da sua colega de faculdade? – Ele parou para pensar, abaixou a cabeça e assim continuou por alguns segundos.
- Eu não tenho família aqui! Todos moram em Pernambuco. Aqui só tinham meus pais mesmo. A Joice me deixou ficar alguns dias lá no quarto. As outras meninas do quarto concordaram. Eu vou precisar encontrar uma vaga no alojamento masculino. Vou falar com o Cláudio, o meu ex-namorado, e ver se consigo uma vaga no quarto dele. Será complicado porque o atual namorado dele mora lá. Ai, meu Deus, eu estou ferrado mesmo. Sem contar que nem emprego eu tenho... – Renan voltou a chorar compulsivamente e eu tentei consolá-lo.
O Sol começava a ser pôr, o que deixava o céu com um colorido peculiar. As ondas do mar batiam forte na areia e a maré já havia mudado. Um vento frio percorria meu corpo, assim como uma dor imensurável por ver Renan sofrer daquele jeito. Por que os pais não nos amam incondicionalmente? Sei que deve ser difícil descobrir a homossexualidade de um filho! Porém, compreendo que a forma com que alguns pais agem é algo que demostra que eles nunca amaram, verdadeiramente, seus filhos. Gostar de pessoas do mesmo sexo não pode justificar que nossos pais se transformem em seres que desconhecemos. Vergonhoso não é amar ou ir para cama com pessoas do mesmo sexo. Vergonhoso é deixar de amar nossos filhos por esse motivo. Vergonhoso é expulsar um filho de casa devido sua orientação sexual.
Deixamos a praia e entramos no carro. Depois do desabafo, Renan parecia melhor. Porém, o brilho de seus olhos não era mais o mesmo. Havia uma forte tristeza.
Amei o conto, esperando o próximo capítulo, me sente o Renan, só que, com outras situações, graças a Deus minha mãe é bem amorosa, do jeito dela, porém é!
Já quero a continuação