O Casarão - Parte 7

Até mesmo se perguntassem a Nina quem foi o responsável pelo convencimento de Ronald e Cícero, para que comprassem os pisos cerâmicos, ela diria que foi Igor. Mesmo que Pedro a tivesse instruído inconscientemente, a garota sabia que ele apenas havia repetido as palavras do companheiro, pois a sua timidez não o permitiria falar. Mas para Igor não interessava os elogios e graças que receberia por essa ação. Aliás, nada naquele hotel o interessava. Pedro tratara de eliminar qualquer sentimento de felicidade que pudesse existir em Igor sobre aquela sociedade.

Pedro o olhou com espanto enquanto saía do carro e parou ao seu lado.

- Ah, então Pedro foi quem derrubou o homem?
- O homem não. Os dois homens e uma menina muito linda!
- Que história é essa?
- O dono do restaurante, o Cícero, faz sociedade com o irmão...
- O Ronald? É, eu falei com o Ronald pelo telefone. Não sabia que eram dois donos!
- E a filha do Ronald... Não podemos esquecer dela, não é Pedro?

Pedro desconfiava da conversa de Igor e não gostava das palavras que ele proferia. Não gostava mais ainda do seu tom de voz festivo. Silveira olhou para seu filho, curioso pela história que viria a seguir.

- Ah é? Me conta, filho, o que tem a filha do Ronald?
- Nada...
- Como nada, Pedro? A menina se encantou por você!
- E daí?
- E daí que a culpa disso tudo é dela. Ronald comprou porque ela gamou em você, logo, o responsável pela venda é você!
- Olha só o garanhão...

Pedro olhava Igor com ira. Se fosse possível quantificar um sentimento, naquele instante o ódio seria em disparada o maior já sentido por ele. Pedro não entendia o motivo de Igor fazer isso, se eximir da responsabilidade da venda dos pisos. O que ele ganharia? Mas o que mais o preocupava era a dúvida se ele deveria desmenti-lo ou não. Porque nesse caso a pergunta se inverte: o que eu ganho com tudo isso?

Silveira andava preocupado com o seu estoque de pisos. Uma rotina maçante que trouxe muita infelicidade para a família e Pedro sabia disso. Então por que não trazer um pouco de alegria ao seu querido pai? Era isso o que martelava em sua cabeça. Não seria por maldade ou por ego, mas simplesmente pelos sorrisos que poderia despertar em Silveira. Entre a verdade e a mentira, Pedro parecia não optar por nenhuma. Mas geralmente as suas respostas eram mudas, portanto, a mentira já lançada continuou ecoando como verdadeira.

- Já jantaram?
- Não.
- Então entrem. Eu trouxe comida e a gente vai poder conversar melhor.

Silveira foi à frente e subiu a pequena escadaria da entrada. Foi tempo e espaço suficientes para que Pedro puxasse o braço de Igor com agressividade e, com apenas uma expressão de raiva, não precisou perguntar. Igor já sabia qual era a dúvida! Mas não respondeu e nem poderia. Seria ouvido.

Entraram no casarão e foram direto para a cozinha. Na mesa havia sacolas plásticas e, da geladeira, Silveira tirou uma garrafa de refrigerante. Pedro pegou um dos bancos e se sentou, enquanto Igor foi a pia e lavou as mãos.

- Mas me contem. Como foi a viagem de ida?

Um alfinete penetrou o peito de Pedro e seus pés começaram a suar. Não conseguiu, dessa vez, olhar para Igor e o repreender com seus olhos. Baixou a cabeça e olhou para suas mãos. Já Igor, com muita naturalidade, se enxugou em um pano de prato que havia em cima da mesa e se sentou.

- Foi tranquila. Até Recife fomos sem medo nenhum...
- É, sempre vamos pra lá de carro mesmo...
- Pois é. Depois a gente deu uma olhadinha no mapa... Mas olha, foi tranquilo.
- E onde dormiram?
- Em um posto de gasolina na entrada de João Pessoa. Foi bom que aproveitamos e tomamos banho lá mesmo.

Enquanto Igor continuava omitindo os acontecimentos da viagem, Silveira tirava embalagens de alumínio das sacolas.

- Gosta de lasanha?
- Gosto!
- Pedro, esse é o seu.

Não teve coragem de olhar para o pai. Pegou sua comida e a arrastou na mesa para perto de si. Como ele encararia o pai depois de ter feito sexo com outro homem? Ele nem mesmo conseguiria olhar para si mesmo, se conseguisse. Silveira não estranhou a apatia do filho, pois era comum essa reação quando ele estava cansado. Mas não era apenas o cansaço que o acometia. Aliás, esse fator nem mesmo o importava. Olhou para a lasanha e rogava para ela que Igor não contasse nada. Na verdade, Pedro tinha certeza que Igor não contaria, mas sua insegurança era como um apêndice: é um órgão desnecessário, mas que infelizmente nasce conosco e, para muitos, causam problemas e dor.

- Mas e o restaurante, foi difícil de achar?
- Foi complicadinho, não é Pedro? Mas eu liguei para lá e eles me explicaram que era perto da praia. Ai foi fácil depois.
- Mas me contem como foi lá com o Ronald.
- Na verdade falamos com o Cícero. Ele foi simpático, mas não falamos muito com ele.

Pedro levantou a cabeça, finalmente. Olhou para Igor e abandonou o garfo. Silveira não percebeu. Já Igor o olhou de volta. Aquela conversa entre os olhos era algo que só os dois saberiam traduzir. Pedro o acusava de mentiroso e Igor o desafiava a desmenti-lo. Mas como olhos não falam, nada dessa discussão pôde ser ouvida.

- Mas então como foi?
- Falamos com o Cícero, mas ele só ficou naquela de “só posso resolver isso com o meu irmão” e não deu resposta.
- E o Ronald?
- Chegou depois... Conversamos um pouco, mas ele também ficou na indecisão. Não dizia coisa com coisa. Falaram em porcelanato...
- Porcelanato? Merda!
- É, mas ai falamos que era mais caro, que a mão de obra também era mais cara.
- Ah, você conhece porcelanato?
- Conheço. Meu quarto tem porcelanato. Mas quem me auxiliou nesse negócio de preço e mão de obra foi o Pedro.
- É, sabemos bem como é esse tipo de piso. Mas e ai?
- Bom, ai... Ai chegou a Nina, filha do Ronald. Não tirou os olhos do Pedro desde que o viu. Foi fácil, fomos ao shopping depois com a desculpa de que precisávamos comprar umas coisas e eu saí de fininho pra não segurar vela. E de resto quem pode contar é o Pedro.

Foi tudo uma grande encenação onde o diretor, o produtor e o ator eram Igor; Silveira era a platéia animada e Pedro o crítico, que não sabia se dava nota dez pelo espetáculo ou zero pelo desgosto. Todo o trabalho de Igor foi resumido em um simples xaveco. E Pedro sabia que aquele beijo não significava nem um terço de tudo o que Igor fez. Não era justo que Pedro ficasse com os louros da vitória, mas em seu coração não se importava se Igor seria injustiçado ou não. Importava-se pelo fato de não saber quais os objetivos dele com tudo isso. Não há situação pior para uma pessoa insegura que não saber onde pisa.

- E então, Pedro?
- Nada...
- Como nada?
- Eu só dei um beijo na menina e só!
- Então foi um beijo muito bem dado. – disse Igor rindo.

Pedro não sabia se o odiava ou se o temia. Mas uma coisa ele tinha certeza: ele não conhecia Igor. Quanto mais Pedro se omitia, mais se via amarrado pela história que Igor inventava e não enxergava formas de se desprender. Ele queria entender o motivo de tanta mentira e se via como um personagem fictício na trama do garoto.

- Foi apenas um beijo. E só!
- Mas você deve ter explicado pra ela os motivos para o pai dela comprar do nosso piso.
- Disse! Disse como você...

Pedro diria “Disse como você mandou!”, mas Igor não tinha mandado nada. Não na teoria e não na história que ele contava para Silveira. Pedro conseguiu não só perceber, mas sentiu que não poderia mais voltar atrás. E por que mentir valia a pena?

- ...como você e eu falamos para Cícero.
- E então?
- Sim mas...
- Mas nada, Pedro. Você convenceu a menina e selou o papo com um beijo. Simples assim! – disse Igor.

Pedro ficou com um nó na garganta, queria gritar e dizer a verdade. Mais que isso, queria bater em Igor até que ele mesmo se desmentisse. Ou simplesmente bater em Igor só para descarregar sua raiva. Mas continuou amarrado naquela história. Sem nada para fazer, terminou a sua lasanha e se levantou do banco.

- Bom, eu vou dormir. Estou cansado!
- Já? Ta certo, então. Vá, amanhã a gente conversa.

E sumiu. Igor e Silveira continuaram conversando sobre a viagem e da alegria que foi essa conquista para o hotel. Pedro saiu em disparada e subiu as escadas, pegou sua toalha e foi ao banheiro. Enquanto a água gelada percorria o seu corpo, ele se apoiou na parede e, de olhos fechados, tentava retirar o alfinete que Igor havia lhe enfiado no peito. Quem era aquele garoto franzino e maquiavélico? De onde ele tirava tantas palavras mentirosas e envolventes? Pedro tinha medo de Igor e isso não era bom.

Para Pedro, sentir medo de alguém era se sentir ameaçado e ele nunca conseguiu se manter sóbrio diante de situações como essas. Agora Igor tinha duas armas contra ele. E Pedro, o que tinha? Tinha punhos e poderia socá-lo. Igor era um enorme mistério e, nesses casos, o melhor era se afastar. Mas como o faria se dormiam no mesmo quarto?

Saiu do banho, se enxugou e vestiu uma cueca. Deitou-se e começou a assistir televisão, mas nada o distraía. Pensou então no que aconteceu naquela van, nos beijos, nos arranhões, no suor de Igor e nos seus gemidos. Tentou sentir nojo daquela situação, afinal, não era um ato normal. Não era nem mesmo natural. Mas não conseguiu. Aliás, observou a cena em sua memória com muita frieza e cautela, mas não conseguiu enjoar de si mesmo. Porém, não conseguia relembrar com satisfação; ele mesmo se repreendia. Era impossível, por exemplo, desejar que aquilo se repetisse. E o mais estranho, é que Pedro não chegou em nenhum momento a se questionar sobre sua sexualidade. Era como se fosse um fato que simplesmente aconteceu. Por acidente, talvez!

Um barulho de carro se distanciando; em seguida Igor surge no quarto. Segue em busca de sua toalha na varanda e se tranca no banheiro. Pedro o seguia com os olhos na esperança de ver alguma manifestação do garoto. Nada! Irritou-se com aquela mudez. Ele queria se afastar de Igor, mas não conseguia. Pensava nele e pensava em acabar com a sua vida. Poderia fazer isso de diversas formas em sua cabeça, mas a preferida de todas era matá-lo com socos em seu rosto até que ele não pudesse mais respirar.

Igor terminou seu banho e já saiu do banheiro vestido com um short e uma camiseta. Estendeu a toalha molhada na varanda e puxou de uma de suas malas, embaixo da cama, um notebook e o plugou numa tomada por meio da fonte. Sentou com as pernas dobradas e, enquanto o computador se iniciava, começou a vestir meias. Nada parecia ter mudado. Aliás, Igor se sentia tão a vontade, aparentemente, como se estivesse em seu quarto.

Já Pedro atacava os botões do controle remoto, esperando por uma oportunidade de matar Igor com suas próprias mãos. Respirava fundo e de forma acelerada. Não poderia mais adiar a conversa e não soube se segurar. Levantou-se com rapidez e seguiu para a cama de Igor. Fechou o notebook com uma das mãos, assustando-o.

- O que você quer, Igor?
- Com o que?
- Com a mentira que você contou hoje. O que você quer de mim? Já vou avisando que eu não vou hesitar em quebrar a sua cara. É bom você me dizer agora!
- Não gostou? Me desminta!

Para Pedro, aquilo foi pior que uma morte por socos.

Desmentir não era tão fácil. Ele até poderia contar a verdade ao pai, mas até onde lhe fosse conveniente. Omitiria, obviamente, sobre o que aconteceu na van, quando iam para João Pessoa e se perderam em Pernambuco. Mas Igor desmentido deixaria que essa parte fosse excluída da história? Desmentir não era bom, mas traria consequências. Igor queria algo com tudo aquilo, mas não se sabe o que!

- Não me provoque, viadinho!
- Não estou provocando. Só estou lhe dando a opção de fazer o que quiser. Aliás, nem estou te dando nada. Faça o que achar melhor, você não precisa da minha permissão.
- Não me enrole, Igor. O que você quer com tudo isso, hein?
- Quero apenas aquilo que você sempre me deu.
- Nunca te dei nada!
- Exato!

Pedro parou um instante. Não poderia ser possível que com toda aquela encenação ele simplesmente não quisesse nada em troca. Igor era realmente uma pessoa perigosa.

- Do que você está falando?
- Não quero nada, Pedro. Nada além do que me é direito.
- Ah, eu sabia que você queria alguma coisa...
- Quero sossego. Você pode me dar isso?
- Hã? Mas eu nunca nem encostei em você, quanto mais tirei o seu sossego!
- Ótimo. Continue assim!

Não era possível que tudo estava resolvido e selado. Igor simplesmente esqueceria tudo e deixaria Pedro em paz, a medida em que ele também fizesse o mesmo. Então acabou. Tudo acabou e nada seria feito – ou refeito.

- Mas alguma coisa, Pedro?
- Eu vou ficar de olho em você.
- Acabou?

Silenciaram-se. Pedro deu um passo para trás e Igor o seguiu com os olhos. Outro passo para trás até que suas coxas encontraram o colchão de sua cama. Sentou-se. Continuou olhando para aquele garoto, contudo, e não conseguia não encará-lo. Em sua mente, Igor tinha uma beleza incrivelmente perigosa. Pela primeira vez pode notá-lo sobre a luz. Sua boca era pequena e vermelha demais para alguém que conseguia enganar e encantar a tantas pessoas; e mais, não poderia ele ter apenas dezoito anos, mesmo que seu corpo confirmasse sua idade. Igor se tornou uma armadilha, que aparentemente não machucaria se não fosse tocada, mas armadilhas não são criadas a toa. Existem para prender a caça e essa é sua única função.

Quando Igor achou que Pedro não o perturbaria mais, abriu seu notebook e começou a massagear um de seus pés, enquanto dedilhava o teclado. Pedro também percebeu que mais nada sairia dali e resolveu se deitar. A televisão voltou a ser tediosa, mas agora não havia surpresas. Apenas o sono que já o dominava. Desligou a TV e virou as costas para Igor. Mas dormir seria impossível com o barulho que os dedos do menino faziam. Pedro tentou manter a calma, pois ainda enxergava uma armadilha em Igor. Mais alguns minutos de ruídos e não aguentou: levantou-se e desligou a lâmpada do quarto. Igor o olhou voltar para cama e continuou, mesmo no escuro, a bater nas teclas, mas por poucos segundos. Riu um pouco e desceu da cama, caminhando em direção a porta do quarto. Saiu, enfim.

Pedro não percebia, mas se obrigava a pensar como um heterossexual homofóbico. Cobriu-se com o lençol e amassou uma de suas pontas até conseguir dormir. No dia seguinte, acordou e a primeira coisa que viu foi a cama ao lado vazia. Ainda estava com o lençol, mas sentiu uma vontade absurda em soltar suas pernas daquele casulo. Com o tronco já erguido, alisou suas coxas até sentir que o lençol não fazia mais parte de seu corpo. Levantou-se e pegou o relógio de pulso, “Seis e quinze!”.

Já vestido em um calção e uma camiseta pendurada nos ombros, desceu as escadas e se dirigiu a cozinha. Havia uma xícara de café na pia e um prato com migalhas de pão. Igor não estava lá. A cozinha nunca pareceu tão grande para Pedro. Olhou-a com atenção, girando todo o corpo. “Foda-se!”.

Quando os pedreiros chegaram para a sua rotina, Pedro ainda não tinha visto a Igor. Conversou com o pai sobre a obra, auxiliou a Breno com uma coisa ou outra, mas não perguntou por Igor. Simplesmente sumiu!

- Quando eu e o Igor vamos levar os pisos pra João Pessoa?
- Essa semana, ainda. Quando é melhor pra você? Pode ser hoje?
- Pode!
- Pronto, você leva hoje.
- Avise ao Igor que ele leve o colchão dele.
- Ah, o Igor não vai dessa vez.
- Não?
- Ele tem a semana dos calouros na faculdade.
- Mas as aulas não começam essa semana!

Pedro se encostou em uma parede e cruzou os braços enquanto Silveira chamava Breno.

- Breno, essa é a semana de nivelamento do Igor, não é?
- Isso.
- Mas, Breno, não é só na próxima semana não? – insistiu Pedro.
- Próxima semana são as aulas de fato. As suas não começam na próxima semana?
- É...é...
- Por que?
- Não, eu achei que ele fosse comigo pra João Pessoa. Só isso!
- Mas se vocês quiserem, ele pode faltar...
- Mas de jeito nenhum, Breno. O Grande não pode perder esses dias, são muito importantes.
- Bom, então vou me arrumar. Quanto mais cedo eu for, mais cedo eu volto!

Não havia muito o que arrumar, na verdade. Só tinha uma coisa que Pedro precisava levar na mala: a sua auto-confiança.

Era uma segunda-feira, então Pedro voltaria no máximo na terça, mas faria de tudo para retornar no mesmo dia. Pegou uma mochila, enfiou uma camisa e uma calça social, algumas cuecas, sabonete, toalha, perfume... Fechou o zíper e atirou a mochila na cama de Igor. Trocou o calção por outro mais confortável e desceu com a mochila. Já na cozinha, abriu uma embalagem de macarrão instantâneo e pôs para cozinhar. Alguns pedreiros entravam na cozinha e a sujavam de barro molhado, faziam barulho enquanto berravam uns para os outros “Mais pra direita, mais pra direita!”.

Pedro, encostado a pia, assistia a tudo de braços cruzados e não se incomodava com o barulho, mas pela primeira vez desejou que os operários sujassem menos a casa. Era algo com o qual ele nunca se importava desde que chegou ao casarão, mas sabia que, uma hora ou outra, ele teria que limpar. Mas não parou para pensar que os pedreiros faziam aquele trajeto todos os dias e a cozinha nunca passava uma noite suja. Quem limpava?

Comeu o macarrão rapidamente e jogou a panela, prato, garfo e copo na pia. Quem lavaria, se os únicos moradores da casa que se importam (ou deveriam se importar) com sua limpeza eram Igor e Pedro? Despediu-se do pai e partiu para João Pessoa. “Igor é mesmo muito espertinho... Safado, se livrou de viajar!”. E seria esse o pensamento durante muitos quilômetros. Pedro estava acostumado a ser sozinho, mas o único que expunha as suas habilidades a prova era ele mesmo. Aparentemente não era necessário, mas carecia quase sempre de alguém que o lembrasse que era forte.

A placa que o alertava, depois de horas de estrada, sobre a chegada a João Pessoa causou certo desconforto. A venda estava confirmada, mas e se eles mudassem de ideia? E se estranhassem a ausência de Igor? E se Nina tivesse perdido o encanto? Ou pior: e se fosse preciso ter que falar qualquer coisa?

Já a fala foi a ferramenta que Igor mais utilizou no seu primeiro dia na faculdade. Parecia estranho como todos os garotos se vestiam de forma parecida e de como ele se sentiu bem com isso. Era um pequeno auditório no subterrâneo da biblioteca central.

- Aqui é a palestra de Arquitetura?
- Calouro?
- Sim. Vocês também?
- Todos nós!

Havia uma preocupação em parecer bonitos, era algo que não agradava muito a Igor, mas ao menos pareciam que todos os três garotos eram gays.

- Você é o Igor?
- Sou.
- Rafa. Te encontrei no chat dos calourinhos.
- Ah, oi!
- Bruno e Guga. – disse apontando para os outros dois.

A van estacionou em frente ao restaurante e as mãos de Pedro ferviam de tanto serem pressionadas contra o volante. Sua insegurança lhe cobria de uma fisionomia agressiva e fechada. Desceu, finalmente, e entrou no restaurante. Havia poucos clientes, pois ainda não estava no horário comum ao jantar. Nina estava entretida com o computador do caixa quando Pedro se aproximou.

- Pedro? Não sabia que viria hoje.
- Meu pai que me enviou.
- Então quando você volta.
- Hoje, talvez amanhã.
- É, você disse que viria no fim de semana...
- É...
- Vou chamar o meu pai.

Pedro era a maior decepção de Nina, que não entendia o motivo dessa mudança. Aparentemente era o mesmo rapaz que a beijou no supermercado, mas nem mesmo um sorriso pode ser visto naquele rosto sisudo. Encostou-se no balcão e, sem motivo algum, se mostrou impaciente com a situação. Ronald apareceu logo em seguida, mudando a postura de Pedro, que ficou um pouco mais sorridente.

- Pedro.
- Ronald.
- Vamos ao seu carro, quero ver os pisos.

Nina voltou do escritório com o pai, mas foi o mesmo que estivesse ficado por lá. Pedro nem notou o seu retorno e saiu com o seu pai para a rua. Ronald tirou uma das peças da caixa e a analisou. Não havia nenhum defeito que ele pudesse encontrar, mas queria, a todo custo, mostrar que não estava assim tão disposto a gastar com aquele produto. A essa altura, Pedro já estava com tanto medo de Ronald mudar de ideia que simplesmente desejou que ele acabasse logo com aquela agonia, independente de sua resposta, para que pudesse finalmente voltar para casa.

Mas realmente não havia do que reclamar, o material era excelente e o preço lhe permitiria investir em tantas outras coisas que desejasse. Fechou negócio, então, fingindo estar apenas satisfeito, quando na verdade sabia que tinha feito uma ótima compra.

- Enquanto eu preparo o cheque, tem problema pra você deixar o carro aberto para que meus funcionários peguem as caixas?
- Não.
- Então vamos subir.

Adentraram o restaurante, mas dessa vez Pedro olhou para Nina, mas numa passagem muito rápida. A garota sorriu, mas ele não teve tempo para retribuir. Tanto Ronald como Pedro queriam acabar logo com aquilo. Em menos de cinco minutos o cheque estava assinado, a compra feita. Quando pegou aquele papel em suas mãos, Pedro pensou em Igor. Nada daquilo seria possível sem ele e sentiu como se estivesse roubando o seu lugar. Não era culpa o que ele sentia e nem se importava se era injusto ou não. Pedro ainda não tinha essa sensibilidade, mas pensava em si mesmo e em como não foi capaz de fazer aquilo sozinho. Uma tristeza se apossou de sua mente e desceu as escadas olhando aqueles números desenhados no cheque.

Ao chegar no caixa, viu mais uma vez o sorriso de Nina. Era um sorriso de despedida, mas Pedro decidiu agir pelo impulso, para quem sabe, assim, aliviar um pouco aquele sentimento.

- Oi, Nina.
- Já vai, não é?
- Não se você não quiser.
- Ué, como assim?
- Que horas você sai desse balcão?
- Umas dez horas...
- Então anota o meu número. Eu venho te buscar. Você pode passar a noite comigo hoje?
- Pedro... depende... que tipo de noite você está propondo?
- O que você quiser. Não conheço João Pessoa, me apresente a cidade, sei lá...

Se Nina conhecesse bem a Pedro, saberia que ela já o tinha feito se arrepender de tê-la convidado. Realmente não importava se eles iriam ao motel ou comer pipoca em uma pracinha, Pedro só queria um pouco de distração heterossexual e, como nunca foi do seu interesse, não queria ter que convencer alguém para acompanhá-lo.

- Bom, então a gente poderia tomar alguma coisa na praia, ir a um barzinho... Posso chamar uns amigos meus...
- Eu preferia que fôssemos apenas nós dois.
- Ah... Tudo bem.
- Então me liga.

Com alguns minutos rodando as ruas da cidade, Pedro já tinha se arrependido muito do convite. Preferia estar em casa dormindo, mas já era tarde. Voltou ao posto de gasolina, tomou banho, vestiu-se e dormiu no colchão, esperando pela ligação de Nina. Quando esta ligou, Pedro esfregou os olhos e só pensava na única coisa boa daquela viagem: o seu sono. Sentou-se atrás do volante e a buscou na praia. Andaram pela orla, sentaram em um bar e tomaram água de côco.

- Você está tão diferente de ontem pra hoje...
- Sou tímido, lembra?
- Mas você disse que não se sentia tímido comigo.
- Senti vontade de te conhecer melhor, eu só perdi um pouco da timidez, mas não deixei de ser tímido pra você.
- Entendi.
- Além do mais, queria ter vindo no fim de semana. – mentiu.
- E por que seu pai quis te mandar logo?
- Não sei... Acho que ele está chateado comigo.
- Mas por quê?
- Porque quem vendeu os pisos foi o Igor e não eu.
- Mas você vendeu junto com ele.
- Não, ele vendeu sozinho.
- Mas vocês não vieram juntos?
- Sim, e dai?
- Ah, sei lá... Mas faz diferença para o seu pai?
- Faz, muita!
- Mas não deveria apenas importar que foram vendidos?
- Não.
- Vocês não se dão bem?
- Claro que não. Eu o odeio mais que tudo!
- Nossa! Não imaginei que seu pai fosse tão ruim...
- Não, meu pai não. O Igor, eu odeio o Igor!

Pedro foi de tímido a raivoso em segundos. Para Nina parecia muito mais grave do que realmente era. Imaginou que houvesse brigas entre eles, uma disputa por território ou algo semelhante. Existia, de fato, mas apenas na cabeça de Pedro. Em Igor havia apenas o desejo de que Pedro se mantivesse longe.

O rapaz começou a berrar um pouco enquanto discutia.

- Mas vocês pareciam amigos...
- Amigos? Ele é apenas um bom ator. Só isso!
- Tudo bem, então a gente muda o assunto...
- Ele disse ao meu pai que fui eu quem vendi os pisos.
- Mas por que ele mentiu?
- Não sei. Mas não duvido que ele queira alguma coisa em troca.
- Mas você não disse que ele disse ao seu pai que você tinha vendido?
- É... Mas meu pai o enviou junto comigo para ele vender. Meu pai sabe que sou tímido e sabe que eu não venderia sozinho. Igor talvez quisesse agradar o meu pai, mas não duvido que ele tenha deixado transparecer que estava mentindo. Ou seja, de um jeito ou de outro, ele ganha os créditos pela venda.
- Mas você o conhece bem?
- Não preciso conhecer. Aliás, acho que ninguém nesse mundo o conhece. Nem mesmo os pais dele.
- Você está dizendo então que ele é falso?
- Falso apenas não. Ele é um viadinho idiota... Nada contra quem é gay... Mas ele é uma bichinha ridícula!

Enquanto Nina não conseguiu mudar o assunto da prosa, esse foi o tom de todo o encontro. Mais tarde caminharam pela orla e namoraram um pouco. Pedro conseguiu se acalmar e curtir, finalmente, a companhia de Nina. Sentiu-se homem de novo e feliz, talvez, por conseguir ser heterossexual. Mas era algo inconsciente – ele sabia quase sempre os motivos de suas tristezas, mas quase nunca conseguia entender as verdadeiras razões de suas alegrias. Por isso, não poderia se duvidar, Pedro era um rapaz triste e solitário.


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Comentários


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paulo e renato Comentou em 02/08/2014

Muito bom. Acompanhando.




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Ficha do conto

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Nome do conto:
O Casarão - Parte 7

Codigo do conto:
51117

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
31/07/2014

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