- É aqui.
- Moço, há outras pousadas aqui perto?
- Mas você não queria essa?
- E ainda quero, é uma pergunta extra.
- Tem uma daqui há duas ruas.
- Ok, obrigado.
Pagou-lhe e desceu do carro. O plano seria se hospedar na outra pousada, caso Humberto não o recebesse. A primeira coisa que fez diante do prédio foi olhar o seu nome e a identidade visual que utilizava. Olhou bem e entrou.
- Boa noite, bem vindo a Pousada Sonho Marítimo.
- Obrigado. O senhor Humberto se encontra?
- Se encontra sim, você deseja falar com ele?
- Diga que eu me chamo Igor, eu vim por causa do piso, ele vai saber do que se trata.
- Certo.
Enquanto a recepcionista subia uma escada de madeira atrás do balcão, Igor pôs a mochila em um dos estofados daquele salão e começou a estudar o chão. Era perfeito para o seu plano. Correu até a mochila, pegou papel e lápis e começou a desenhar alguns croquis. Dois minutos depois, a recepcionista retornou pedindo que Igor subisse. Felizmente Humberto o receberia.
- Olá, você é o Igor?
- Sou sim.
- Não me avisaram que você era uma criança. É praticamente o meu filho de doze anos.
Humberto era um senhor de cabelos brancos e de barba muito espessa, ambos tomados pelos fios embranquecidos. Era gordo, mas a barriga era estranhamente grande. Usava óculos de armação muito fina e um sorriso que encantaria qualquer criança durante o período natalino.
- Bem, se seu filho for assim tão espirituoso como o senhor, eu vou ter muito prazer em sê-lo.
- Sente-se... Silveira me disse que você só viria amanhã.
- É verdade, mas eu cheguei quase agora e pensei “não tenho nada para fazer”. Resolvi conferir se o senhor é como eu e só consegue trabalhar durante a noite.
- Sim, sou exatamente assim.
- Que bom.
- Então vamos conversar.
Não foi preciso convencê-lo a comprar os pisos, Humberto estava mesmo disposto a obtê-los. Seu único medo era quanto a qualidade, pois sobre a estética não tinha desejo de mudá-la. O tipo de revestimento cerâmico já utilizado no pequeno hotel era de aparência rústica, pois todo o conceito da ambientação era ruralista com um toque praiano. Igor então se sentiu ainda mais seguro para pôr o seu plano em prática.
- Podemos descer um instante até a recepção? Queria mostrar uma coisa ao senhor.
- Vamos, vamos sim.
Desceram as escadas e ficaram de pé no salão principal. Igor então começou a apontar para algumas das peças no chão e em seguida mostrava o catálogo com outras peças e cores.
- Então, o que exatamente você está sugerindo?
- Uma nova paginação. O senhor não precisa tirar esse clima rústico do piso, só vai fortificar ainda mais a sua marca.
- É uma ideia muito interessante desenhar a marca da pousada no piso. As formas são simples e seria só a necessidade de trocar algumas peças e não todas. Pelo menos as dos cantos não precisaria, não é?
- Isso.
- Mas a de alguns quartos eu teria que fazer a troca completa.
- Sem problemas, há material suficiente para isso.
- Mas como faríamos isso?
- Bem, eu fiz esse desenho rápido pra explicar melhor.
Humberto ficou encantado com a possibilidade de fortificar ainda mais a sua marca agora no espaço interno da pousada. Isso sem contar o fato de que o ambiente ganhava imponência com aquela arte. Topou sem muito esforço e ficou bastante satisfeito.
- Você não é só vendedor, você é arquiteto também, não é?
- Bem, na verdade eu termino a faculdade de Arquitetura esse ano. – mentiu.
- Ah, eu sabia. Então vou ter que te pagar uma comissão também por essa consultoria.
- Ao invés de me pagar, me hospede por hoje.
- Prefere a hospedagem que o dinheiro?
- Sim. Amanhã o filho do Silveira virá trazendo os pisos, então não tenho onde passar a noite.
- Muito bem, então.
Humberto deu a ordem para que a recepcionista o acomodasse e voltou para seu escritório. O menino, por sua vez, pediu à moça que ela não permitisse que nenhuma ligação fosse encaminhada para ele, mesmo que fosse urgente. Igor informou-lhe com tanta convicção, que a recepcionista percebeu que os motivos eram sérios – “Aliás, nem mesmo diga que estou aqui. Provavelmente meu pai ou meu tio ligarão e eu sinceramente não quero falar nada com eles, ouviu? Eu nem estou aqui!”. Igor seguiu para um dos quartos e foi a varanda respirar a brisa do mar e comemorar com uma lata de cerveja a sua vitória. Até aquele momento, ainda não havia telefonado para seu pai, seu tio ou seu inimigo. Desligou o telefone e continuaria assim. Pedro, que estava em estado de choque deitado em um colchão velho, na periferia de Aracaju, percebeu que já muito tempo havia se passado para que Igor não desse sinal de vida. Ligou então para seu pai.
- Oi Pedro, tudo certo por ai?
- Não. Cadê o igor?
- Como assim? Mas eu o enviei faz mais de sete horas!
- Pois ele ainda não me ligou.
- Não? E você já tentou ligar para ele?
- Claro. Diz que está desligado.
- Onde será que esse menino se meteu? Ah, não quero nem pensar em besteira.
- Ele veio para cá?
- Sim, sim, eu mesmo o pus no ônibus. Então alguma coisa aconteceu na ida ou na chegada. Você ainda está na rodoviária?
Pedro então percebeu que poderia ser ele o culpado por esse sumiço de Igor. Pois ficou tão preso aos seus medos que se esqueceu de ir buscá-lo.
- Estou, estou sim.
- Então procure saber daí o que aconteceu com o passageiro Igor, se aconteceu alguma coisa durante a ida e chegada do ônibus... Enfim, veja que informações você pode pegar e me ligue em seguida. Vou ligar para o Breno e ver o que podemos fazer por aqui.
Como se toda a revolta por ser gay e o sentimento de compaixão por Ulisses não fosse o bastante, agora se culpava pelo sumiço de Igor. Pedro entrou em desespero e partiu em busca de um posto de gasolina, para saber onde ficava a rodoviária. Estava ele um pouco longe, mas a cidade era pequena. Em questão de pouco menos de uma hora, com mais algumas paradas em postos de gasolina, conseguiu chegar à rodoviária. Perguntou sobre o ônibus que tinha vindo de Maceió e não lhe foi dito nada sobre problemas no percurso. Igor simplesmente desembarcou e sumiu. Pedro nunca mais seria o mesmo depois daquele dia.
Breno e Silveira estavam imersos em uma preocupação absoluta quanto ao paradeiro de Igor, mas nada se comparava a culpa que explodia no peito e nas pernas de Pedro. O rapaz fazia acampamento na rodoviária, pois não tinha ideia de onde procurá-lo. Começou então uma desenfreada busca por Igor e passou a perguntar a várias pessoas se elas tinham visto "...um garoto mais ou menos dessa altura, cabelos castanhos claros, meio ondulados, pele clara, magro... Não? Ele usa óculos, quer dizer, provavelmente usava óculos. Não? Um rosto quadrado, nariz afilado, boca pequena...". Até que recebeu uma ligação do pai.
- Pedro, veja se na pousada não o viram. Veja se ele não está lá.
- Certo, eu vou me achar na cidade e partir para lá.
Correu em direção a van e fez o mesmo trabalho de antes: parou em alguns postos de gasolina, perguntando pelo bairro e por estabelecimentos de referências. Sabia que era próximo da praia e seguiu sem paradas para lá. Nessa busca pela pousada, demorou mais ou menos trinta minutos após chegar à orla. Seu coração palpitava com força e anunciava uma tragédia. "Jovenzinho daquele jeito, bonito daquele jeito, aparentando ser bobinho... Alguém fez alguma coisa com Igor. Não, não é possível!". Ao ver o letreiro Sonho Marítimo, parou numa freada brusca e entrou na pousada em disparada. A recepcionista, a mesma com quem Igor havia falado, recebeu Pedro.
- Boa noite...
- Igor, o Igor está aqui?
- Quem?
- Ele vinha para cá. Quer dizer, viríamos juntos, mas ele sumiu.
- Calma, você procura por um hospede?
- Não, ele não é hospede. Ele vinha comigo, viríamos falar com o Humberto.
- Bem...
A recepcionista ficou bastante angustiada com Pedro, pois ela entendeu perfeitamente quem ele procurava. O rapaz estava desesperado, seu rosto estava vermelho e suado. Sua voz trêmula, mas muito decidida, intimidaram-na. Ela não quis mentir, mas recebeu ordens expressas de dizer que Igor não se encontrava nas dependências da pousada.
- Como o senhor se chama?
- Pedro!
- Então, senhor Pedro, eu vou dar uma conferida entre os hospedes se há algum Igor e se ele o conhece. Sente-se ali, no sofá, eu vou pedir que lhe tragam água e já apareço com uma resposta.
- Certo, mas eu não quero sentar, nem quero água, só quero saber do Igor!
- Eu vou verificar.
A recepcionista então saiu de trás do balcão e começaria a subir as escadas que ficavam ao fim do salão, mas foi interrompida por Pedro.
- Você vai para onde?
- Vou ver entre os hospedes...
- Não pode buscar no sistema? No computador?
- Posso, tem razão. - disse sem graça.
Então ela fingiu que buscava por Igor, enquanto Pedro berrou.
- É Igor. Igor Espina!
- Bem, tem um Igor aqui, mas não tem sobrenome.
- Deve ser ele!
- Calma, eu vou ligar.
Ela então telefonou para o quarto de Igor.
- Sim?
- Olá, senhor Igor, eu estou fazendo uma verificação. É que tem um senhor aqui chamado Pedro e...
- Pedro? Peça que ele suba!
- Certo. Ele está lá em cima e pediu...
- Lá em cima?
- Sim, quarto 112.
Pedro não esperou ser convidado e correu para a escada. Já no primeiro andar, procurou pelo quarto 112 e, ao achar, tentou abrir a porta pela maçaneta, mas estava trancada. Bateu com força, então, mas não foi preciso muito tempo implorando para que ele abrisse. Logo Igor a abriu e, sem dizer nenhuma palavra, voltou para cama e pôs o computador no colo. Pedro ficou ainda no corredor espantado com a calma do menino e entrou dando passos lentos. Fechou a porta com um forte sentimento de desconfiança e se voltou para ele.
- Igor, você estava aqui esse tempo todo?
- Hum... E onde mais você achava que eu estava? - disse sem tirar os olhos da tela.
- Igor, você sabia que estávamos todos aqui preocupados com você?
- Sabia.
- E não se importou?
- Não.
- Mas o que te deu?
- Ódio. Ódio de você. Fiz de propósito!
- E você acha isso engraçado? Eu fiquei como um louco, percorri essa cidade que nem conheço, parei em milhões de postos de gasolina, fui parar na rodoviária, perguntei a um monte de gente se eles tinham te visto... Você acha isso engraçado?
- Você fez isso tudo? É, é engraçado!
- Eu vou te matar, desgraçado!
- Pode matar. É um bem que você me faz, porque pior do que está não fica. Agora deixa fazer uma pergunta: onde o senhor estava que não me esperava na rodoviária?
- Eu?
- Sim, o senhor mesmo.
- Eu estava lá, mas acho que nos desencontramos...
- Sei...
Toda a preocupação de Pedro passou no momento em que percebeu que Igor não estava nem um pouco sensibilizado com sua agonia. Sua respiração foi se estabilizando e seu corpo ficou menos tenso. Mas sua raiva aumentou proporcionalmente. Mas não se alteraria agora. Igor parecia esconder muitas coisas.
- Eu vou ligar para o seu pai e avisar que você esteve aqui o tempo todo.
- Não.
- Como não?
- Se você ligar, eu desminto.
- Como é?
- Você vai ligar e vai dizer que eu estive aqui o tempo todo, mas que vim para cá porque te liguei e você, por um motivo que, se você quiser, fique livre para inventar algum, mas que por isso não me atendeu. Então, eu sem escolha alguma, vim para cá.
- Eu vou dizer a verdade, não vou mais mentir por você.
- Pedro, eu ainda não terminei. Você vai dizer que quando eu cheguei na pousada, te mandei uma mensagem de texto e você não viu.
- Já disse que não vou mentir!
Igor tirou os olhos do computador e o olhou nos olhos. Com um sorriso malicioso nos lábios e com uma tranquilidade assustadora, disse.
- Você vai dizer isso sim, Pedro. Vai porque eu estou mandando. E se você não fizer eu conto tudo!
- Tudo o que?
- Tudo, Pedro, inclusive a parte em que você perguntava se eu estava gostando e eu só conseguia responder com gemidos.
Pedro explodiu de fúria e atacou o computador de Igor, tomando-o de sua mão e jogando-o na cama. Igor não se assustou muito, simplesmente levantou um pouco os braços, mas depois voltou ao seu normal. Um normal assustadoramente calmo.
- Se você fizer isso, Igor...
- Você me mata, você me mata, você me mata...
- Não...
- Não zombe de mim, não zombe de mim, não zombe de mim... Ah, Pedro. Você fica tão mais másculo assim quando está com raivinha.
Não aguentando tanta zombaria, avançou em cima de Igor com uma agressividade excessiva. Pegou-o pelos dois braços e o puxou na intenção de sacudi-lo com força, mas Igor se antecipou e o golpeou na barriga com o joelho direito, fazendo com que Pedro se afastasse e se ocupasse com sua dor.
- Você nunca mais vai me tocar, sua bicha. Nunca mais, você está me ouvindo?
- Isso não vai ficar assim, Igor.
- Não vai mesmo, você vai saber agora o que é ser humilhado e você vai me obedecer, vai fazer tudo o que eu quiser, porque se você não fizer... Olhe pra mim, bichinha... Se você não fizer, você está ferrado. Agora você vai pegar esse celular, vai ligar para o meu ou o seu pai e vai contar a história que eu inventei. E é agora, Pedro, anda!
- Não!
- Então ta. Experimente!
Igor voltou a cama, sentou-se e cruzou as pernas e os braços, enquanto assistia a Pedro massageando sua barriga. O menino voltou a sorrir maliciosamente e a se divertir com a dor de seu estuprador. Pedro tentou por vezes se livrar das amarras de Igor, mas antes essas amarras eram postas por ele mesmo, mas agora Igor fazia questão em amarrá-lo com força, prendendo-o com pouca folga. Não restou muito o que fazer, então, ali diante de Igor, Pedro ligou para o seu pai e deu vida a mentira inventada.
- Não acredito, Pedro. Quanta irresponsabilidade sua. Você não tem vergonha não? Sinceramente, a gente aqui preocupado e a culpa era toda sua?
- Mas pai, foi sem querer...
- Assim como você deixou a porta do casarão aberta? Bem que me pareceu muito estranho mesmo o Igor sumir assim. Ele não é bobo como você.
- Pai...
- Passe para o Igor!
Pedro não conseguiria expressar de nenhuma forma, nem com palavras, nem com gestos, a raiva que sentia em seu coração, que estava totalmente tomado por esse sentimento.
- Ele quer falar com você!
Pedro estendeu a mão para entregar o celular e Igor o pegou com muita rapidez, levantando-se da cama.
- Oi tio, o que houve?
- Você está bem?
- Sim, estou ótimo. Estou hospedado na pousada. O senhor não vai acreditar: o Humberto vai comprar os pisos, não é uma notícia ótima? – disse animado.
- Sim, é sim. – com uma voz forçada.
- Bom, amanhã provavelmente nós vamos a casa dele, para conferir o piso de lá.
- Maravilha. Mas, Grande, você está bem mesmo, não é? Não te aconteceu nada?
- Não, imagina. Eu peguei um táxi e foi facílimo.
- Que bom. Então até amanhã.
- Até, tio. Boa noite.
Igor mudou de novo suas feições e devolveu o telefone para Pedro.
- Bom, agora você pode sair, pois eu quero dormir. Sai!
- Você me dá nojo.
- Acorde cedo. Amanhã nós vamos na casa do Humberto, ver a situação do piso da casa dele. E tome um banho, vista uma roupa bonitinha.
- Quem é você?
- Alguém que você nunca terá coragem de ser. Agora desça. Suma daqui, traste!
Pedro evitava as pessoas por uma série de motivos, mas nunca pensou que devesse mesmo fazer isso com o pretexto de que um dia poderia ser humilhado. Agora ele tinha um motivo forte para se afastar de todo mundo, pois já não sabia mais se poderia confiar neles. Faltavam-lhe palavras e outras reações para responder ao comportamento repentino de Igor. Sentiu-se tão agredido que não lhe restou outra escolha senão obedecê-lo. Saiu, então, do quarto em silêncio, desceu as escadas e entrou na van. Sentou-se atrás do volante e ficou um tempo com a cabeça vazia, pois não conseguia raciocinar. Em alguns minutos, seguiu para o colchão e dormiu. Foi rápido. Estava ele tão cansado que bastou fechar os olhos.
Igor por sua vez estava satisfeito pela sua atitude, mas com um ódio ainda não traduzido em seu peito. Nada daquilo seria necessário se Pedro fizesse o que lhe fora designado. Igor queria se ver livre desde o inicio daquele destino desenhado por seu pai, mas em pouco tempo percebeu que já era impossível e se sentiu preso. Resolveu então descontar. Mas no fundo não queria agredi-lo, só queria afastá-lo. Sempre, sempre afastá-lo. E se esforçaria para conseguir isso.