MEU HOMEM BOM 1/2

Meu homem é um homem bom com um amor bom.

Ele se chama João Felipe Belizzaro de Souza e se deita todas as noites ao meu lado com uma perna jogada sobre minha cintura. Ele diz que precisa de mim para dormir, que se acostumou a ter o seu corpo enroscado no meu, mas não é verdade. Muita coisa não é verdade entre um casal, é o que estou aprendendo.

Ultimamente tenho acordado de madrugada com um sentimento de urgência e culpa, como se eu tivesse me esquecido de fazer algo e agora talvez fosse tarde demais. Quando recobro a lucidez e minha respiração se acalma, levanto para tomar um copo d'água ou olhar o céu lá fora. João não percebe que eu não estou na cama. Às vezes penso que poderia tramar o que quer que fosse e ele nem mudaria de posição.

*

João entregava água na empresa em que trabalho. Foi assim que nos conhecemos. Eu tinha 18 anos e havia acabado de me mudar para Sorocaba, vindo de não muito longe, Tietê, uma cidade pequeníssima, entediante e sem estrutura para que eu pudesse ser tão gay quanto eu sonhava ser na vida adulta.

Eu trabalhava na recepção com Luana, nós dois éramos assistentes administrativo. Mas diferente dela, que fazia o que era de fato importante, eu ficava com as tarefas sórdidas, típicas de um novato, como pedir marmita para todo mundo, ir até o Correios, enfrentar filas em bancos, casas lotéricas etc., marcar veterinário para o cachorro... e ligar para João, quando os dois galões de água estivessem vazios.

Nas primeiras vezes, observei em silêncio João entrando e saindo. Ele é mais ou menos da minha altura e nessa época era tão magro quanto eu, embora fosse claramente mais forte. Tem uma tatuagem no pescoço, uma frase que diz "thinking is my fighting" que eu li quando fiquei ao seu lado, segurando o galão vazio enquanto ele usava os músculos com o cheio. Não era uma frase qualquer, eu pensava. Não era o afago na cabeça que as pessoas costumam tatuar ou escrever nas capas dos cadernos ou nas redes sociais ? não era cafona. Foi Virginia Woolf quem disse isso, segundo o Google. Virginia Woolf, uma escritora inglesa do século XX. Mais tatuagens: nos braços, nas mãos, pequenos símbolos nos dedos. Ilhas de figuras sobre o mar de pele morena. Frase, porém, só essa mesmo. João sorria bastante, a não ser quando fazia força e seu maxilar enrijecia, as sobrancelhas quase se unindo enquanto a mão espalmada encaixava com precisão a cabeça de plástico no suporte. Quando vinha à tarde, sua testa e nuca suavam, seu peito engrandecia na busca do ar e suas mãos descansavam na cintura de uma maneira descontraída; o corpo completamente alheio ao efeito que exercia sobre mim.

A maioria dos meus colegas me olhava diferente porque já tinha sacado que eu era veado. Não era tão afeminado ainda — eu me esforçava bastante — e nem fora do armário, mas também não era um jogador de futebol que falava de mulheres e carros, ria alto ou whatever. Eles queriam me desvendar, queriam que eu contasse sobre uma possível namorada, um romance etc. Nunca tinha tido nada. Não puderam evitar, eu acho. Tão fácil quando ligar um ponto no outro. E por que eu me importaria? Sorocaba era uma metrópole, as pessoas tinham a mente aberta na metrópole.

Num sábado de manhã, assim que João cruzou a porta após eu ter lhe entregado o dinheiro, Luana disse que podia ouvir meu coração apaixonado bater toda vez que ele chegava. Soa romântico, mas ela disse num tom de deboche, com um sorrisinho de lado. Uma bifurcação se apresentou no meu caminho: eu podia rejeitar aquele comentário e me fechar numa concha ou podia aliviar meus ombros cansados.

"Será que ele também ouve?", eu disse.

Nós dois rimos.

*

Na próxima vez em que veio, João me olhava de maneira fugidia, quase hesitante. Seu sorriso era menor e sua cabeça inclinava levemente para baixo.

"Ele ouviu!", eu disse, rindo, mas extremamente nervoso. "Ele sabe!"

Luana se divertia e dizia coisas como "e daí?" ou "ele está envergonhado, só isso" e ainda "não tem como você saber."

Mas eu sabia. Porque essa é uma coisa que todos nós sabemos. Nós, homens que se apaixonam por homens. Sabemos quando saímos da zona de masculinidade permitida e quando o homem à nossa frente também sai dela.

Um mês depois, quando aparentemente tanto eu quanto ele tínhamos superado nossa timidez, já nos olhavámos sem ressalvas, sorrindo no final de qualquer pergunta ou resposta.

"Onde tá a Luana?", ele perguntou, após olhar em volta e perceber que estávamos sozinhos.

"Tá na sala de reunião, quinta é dia de ela analisar as planilhas", entreguei-lhe o galão vazio e abri a gaveta para pegar o dinheiro.

Ele aproveitou o curto silêncio para dizer o que disse.

"Que barulho é esse?", tocou a orelha com o indicador, semicerrando os olhos. Tentei prestar atenção em qualquer som, mas nada fazia barulho. "É seu coração apaixonado?"

Encarei seu olhar me sentindo na beira de um precipício. Não fui capaz de decifrá-lo, mas desconfiei de que aquele sorriso não era uma mão estendida, não. Um passo e eu caio.

"É", eu disse, endireitando a coluna. Não caí.

Preparei-me para beijá-lo ou mordê-lo.

Deliciado foi como ele me pareceu, pois o sorriso vago e distante agora tomava a forma de um abraço e me incluía em sua graça. Sem dizer qualquer coisa, João pegou o dinheiro e foi embora.

*

Eu não coloco os fones de ouvido quando saio de casa, seja no ônibus ou na rua, porque eu começo a prestar atenção na música e perco um carro passando que pode me atropelar, perco o ponto onde eu devia descer, perco alguém andando próximo demais na intenção de me assaltar. Em casa, eu aumento o volume no máximo. Normalmente é um pop sem-vergonha, nada demais, algo para relaxar e me ajudar a passar o tempo sozinho numa quitinete em um bairro afastado. Em outros dias, ouço os nomes da MPB, do pop, do rock que têm o aval dos críticos. Vapor Barato, Gal Costa. Future Lovers, Madonna. Ivy, Frank Ocean. Gloria, Patti Smith. Sertanejo é tudo o que se ouve em Tietê, é a cultura da cidade, a cultura caipira. É o som da viola que toca no rádio de manhã. Desde os meus 14, no meu awakening envergonhado à beira da cama, eu passei a rejeitar toda a cultura que não me acolhia. Não ouvia mais o que meus pais ouviam, nem assistia o que assistiam. Busquei novas referências de acordo com o meu novo eu ou o eu que eu gostaria de ser a partir daquele momento. Depois de João, porém, o sertanejo voltou a percorrer meus ouvidos. O peito rasgado daqueles homens, apoiado numa mesa de bar, microfone pendendo da mão, choro guardado entre versos, cordas de viola vibrando e ressonando na rua ? era, tudo isso, o resumo do meu eu interior enquanto minhas mãos esfregavam a privada do banheiro, estendia a roupa no varal, fritava um ovo no óleo usado. Em dois meses eu estava disposto a entregar meu coração para alguém quebrá-lo. What's Love Got To Do With It, de Tina Turner foi, nesse momento, devidamente substituída por Evidências, de Chitãozinho e Xororó.

E quão quente meu sangue passou a ser! Me masturbava toda noite sussurrando "thinking is my fighting."

Às vezes, me masturbava assistindo pornô. Tive várias fases, em cada uma delas um ator preferido. Cliff Jensen, tipo garotão da escola que está a duas turmas acima da sua, malandrão, desengonçado, tranquilão, pronto pra que alguém caia de boca, pronto para que você faça o que quiser com ele. Austin Wilde, te abraça enquanto te come, sorri para você enquanto você sente o pau dele entrando, tocando o interior do seu corpo, bom pra casar, pra passar uma semana na praia, pra transar em lugares públicos e rir depois, como cúmplices. Rafael Carreras, quase um predador, pinga sangue de sua boca aberta, de sua língua quente passeando pelo seu corpo; com ele você simplesmente se entrega, você cruza as pernas sobre suas costas, ele passa os dedos pelo seu cabelo, puxa sua cabeça para trás e deseja seu pescoço estendido, liso, numa curva obscena à espera de uma mordida.

Tinha dias em que eu me masturbava duas vezes, logo que chegava em casa e antes de dormir. Tinha dias em que, além dessas duas, me masturbava no trabalho também. Me trancava no banheiro e me imaginava sentando no colo daquele entregador de água gostoso.

Nossas conversas ainda estavam longe disso. Elas conservavam uma desconfiança maliciosa sobre nossas intenções, mas iam até onde uma conversa convencional poderia ir. Eu disse que ele podia entregar a água sempre às quintas-feiras, seria mais fácil ter um dia fixo, perguntei se seria mais fácil para ele também. Sim, ele disse, prefiro assim também.

João é dois anos mais velho que eu, só isso. Lembro de ter ficado surpreso quando ele me contou, numa de nossas quintas. Não era, pois, tão experiente como todas aquelas tatuagens e o dinheiro gasto nelas e a dor gasta nelas faziam parecer. Ele queria cursar Letras e dar aulas para crianças, ele esperava que o mundo desse uma mudada até aí e aceitassem um professor tatuado, de alargadores, com um marido ? ele se via casado até o fim da faculdade. Claro que ele não falava de mim quando me contava isso, mas eu não conseguia deixar de imaginar nós dois, alianças nos dedos, acordando juntos e dizendo para alguém "meu marido gosta de..." ou "eu tenho que falar com meu marido antes..."

Chegava a doer ficar tão próximo dessa realidade e pensar que dificilmente ela poderia se concretizar. Eu não podia prever nenhuma das voltas que o mundo daria, afinal.

*

Transar com um homem, quando você é um homem, exige cuidados especiais. É quase como amar, que também exige cuidados especiais, mas só quase, porque desde que não estejam em público, vocês podem se amar do jeito que bem entenderem. Transar, não, transar requer uma checklist específica com suas devidas marcações, independentemente de onde estejam. Não posso dizer que estava pronto porque ninguém está pronto até que se faça ? até que se faça várias vezes ?, mas eu tinha lido o maior número de textos sobre o assunto internet afora à medida que o dia se insinuava inevitável.

(Havia um demônio arranhando debaixo da minha pele, seu uivo atravessava como uma agulha a extensão de meu crânio.)

As únicas pessoas com quem eu conversava eram Luana e o próprio João. Não perguntaria nada a ele, de jeito nenhum. Luana só ria de mim toda vez que eu tocava na questão, tão ignorante quanto eu.

"Você enfia o chuveirinho e deixa 10 segundos lá?"

"Sim. Depois você corre na privada e põe tudo pra fora."

"Que horror! Que nojo! E eu posso fazer também?"

"É pra quem tem cu, Luana. Mulher também tem, não tem?"

"Meu marido sempre me pediu, sabe? Ele deve ter alguém que faça isso pra ele porque um dia ele simplesmente desistiu e nunca mais voltou ao assunto."

"Pode ser."

"Eu não ligo. Não vou fazer. Muito burocrático", mas ela pareceu pensar a respeito. "Me conte depois, ok?!"

Eu devia ter comprado um vibrador. Pensava nisso quando passava em frente a uma farmácia. Mas e a vergonha? Eu morria de vergonha. Eu pedi para ele levar camisinha porque não tinha coragem de comprar. Era como se as pessoas fossem me pegar no pulo assim que eu encostasse a mão na embalagem. "Olha só quem vai transar hoje! O veadinho do 5ºB! Ele finalmente vai ter o cuzão comido, como sempre quis. Ei, mariquinha pão-doce! Ei, boiolinha! Não adianta chorar, vai apanhar até virar homem." Não. Ninguém diria isso, eu sei, mas eu não conseguia.

"Você tem outra vida agora. Você não tá mais lá", João dizia.

O medo não chega de um dia pro outro, porque iria embora de um dia pro outro? Me chicoteava mesmo. Eu devia ter comprado um vibrador. Um massageador, como dizia no site. Um dedo não é a mesma coisa, dois dedos não é a mesma coisa, três dedos não é a mesma coisa! Um pênis é bem mais grosso que três dedos, vai chegar num nível que os dedos não chegaram, como eu vou saber se estou limpo? É bem capaz que eu o suje e ele não queira mais falar comigo, que faça piadas e conte numa mesa de bar sobre a pior noite que teve com o veadinho do 5ºB enquanto flerta com um cara experiente, lindo, com um corpo lindo. Meu corpo é uma porcaria! Meus braços são finos demais, minhas pernas parecem duas varetas, minha bunda não é grande e dura, não sou bem dotado, não tenho peitos largos nem barriga definida, sou uma vergonha, só devia transar quando meu corpo fosse um corpo de verdade, não essa merda aqui!

Contudo, eu havia assumido um compromisso. A intimidade havia crescido entre nós — histórias compartilhadas, beijos trocados, mensagens de madrugada, provocações de todo tipo.

Marcamos de João ir em casa num sábado. Eu não me lembro mais de muitas das vezes em que transamos, eu quase não me lembro mais de muita coisa, mas eu me lembro desse sábado. Era outubro, portanto a noite estava fresca e a cidade toda tinha decidido aproveitá-la. O barulho na minha janela, que dava para a rua Ubirajara, era enorme. Eu vestia um samba-canção preto de cetim que contrastava com a cor da minha pele. Quando ele me mandou uma mensagem dizendo que estava ali na frente, eu tirei a camiseta que vestia e fui atendê-lo apenas com o samba-canção.

CONTINUA.


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Comentários


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engmen Comentou em 18/01/2025

Uma narrativa que se destaca pela amplitude e profundidade. Muito bom.




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Ficha do conto

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Nome do conto:
MEU HOMEM BOM 1/2

Codigo do conto:
227397

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
16/01/2025

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3

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