A livraria fervilhava com o burburinho típico das noites de lançamento. O homem de cerca de trinta e cinco anos, em calças e camisa sociais, conversava numa das extremidades do mezanino em forma de L, sentado a uma mesinha redonda cercada de convidados agrupados em rodas de bate-papo, entretidos com os comes e bebes ou de olho na cadeira em frente, um ou mais exemplares do livro na mão, à espera de uma oportunidade de trocar algumas palavras e pedir uma dedicatória. Eu já tinha o meu, comprado pelo seu primo, e vigiava de esguelha o senta-levanta, sem coragem de me aproximar. Só na quarta ou quinta brecha foi que arrumei a postura e me preparei psicologicamente para o confronto. Num canto, contista entusiasta; no outro, autor publicado. Embora ainda fosse praticamente sua estreia literária, um segundo livro de contos, e ele não fosse propriamente um escritor, mas um psicanalista, eu me via numa verdadeira guerra de nervos. "Boa tarde. Não, boa noite." Puxei a manga da camisa de malha preta para consultar o relógio de pulso, que apontava quinze para as seis. Como se isso tivesse importância. "Boa tarde." "Boa tarde." Abriu um grande sorriso enquanto eu lhe estendia o livro já na página de rosto. "Dedicado a quem?" "Nelson, por favor." De novo o sorriso cheio, sincero, acolhedor. Num segundo escreveu: "Para Nelson. Espero que goste da leitura. Marco". "Tenho certeza disso. A primeira foi muito gratificante." Muito gratificante? Puta que pariu... "Está relendo", seu primo me socorreu. "Adora Gozos Secretos." "Ahn... Se não se importa que eu pergunte..." quase gaguejei. "Onde você está nesse conto?" "Como assim?" Refletiu por um instante. Pensei em reformular a pergunta esdrúxula, mas ele já tinha a resposta: "Em todo lugar." "Mas qual dos personagens tem mais coisas suas?" "Não sei. Acho que o jeito mais seguro e fácil de criar personagens verossímeis é colocar em cada um deles um pouco das nossas próprias virtudes e defeitos. Meus diálogos são assim, meio esquizofrênicos." Sorriu. “Interessante. Nunca vi os meus por esse lado.” Retribuí o sorriso, sentindo as faces queimarem. Eu tinha corado? "Ah, um companheiro de ofício!" "É só um hobby. Não tenho pretensão de seguir a carreira literária, mas..." Na esperança de uma aproximação maior e talvez algumas aulas particulares com quem entendia do assunto, respirei fundo e repassei mentalmente o convite. Não esperava nenhum milagre, que talento não se empresta; alguns pareceres e dicas, apenas. Marcamos um encontro numa cafeteria para que ele desse uma olhada num dos meus contos, o que fez com concentração máxima e expressão absolutamente inescrutável. Terminada a leitura, levantou os olhos sobre os óculos de armação retangular preta que lhe davam um certo charme intelectual e perguntou casualmente, sem inflexão: "Por que você pontua os diálogos com aspas?" "Prefiro assim. Por que, existe uma regra?" "Na verdade existe..." disse com voz arrastada, distraído pela aliança na minha mão esquerda. "Mas isso não quer dizer que regras não possam ser quebradas." Fixando os olhos nos meus por um momento, deu uma piscadela lenta, lânguida, quase sensual. O resto do encontro foi acima das minhas expectativas. Conversamos sobre tudo, principalmente literatura, e principalmente contos. E então vieram os eróticos. Na verdade, 'erótico' é eufemismo. Os contos eram pornografia das mais explícitas, e todos sobre mulheres infiéis. Não que Marco tivesse algo contra; embora nunca houvesse escrito nada do gênero, afirmava ler de tudo, dos clássicos às bulas de remédio. Acontece que o primeiro conto pornográfico que lhe mostrei era justamente um exemplo típico do que ele mesmo apelidara de 'cross-dressing literário', com eu-lírico feminino unidimensional, título hiper-descritivo e linguagem saturada de adjetivos e advérbios de juízo de valor, julgando mais que jornalista e projetando safadeza em tudo, das abelhas no parque à chuva de verão. Isso ele me disse sem malícia, mas também sem dourar a pílula, como quem constata um fato. Era o começo de uma noite de terça-feira e estávamos sozinhos no seu consultório no Jardim Botânico, uma sala aconchegante imersa numa iluminação suave que me parecia o oposto do seu comportamento comigo, incisivo e direto. "Por que todas as suas personagens femininas são vulgares e adúlteras?" perguntou sem rodeios. "Todo homem foi, é ou vai ser corno." Ele pensou por um segundo. "Ser corno é um estado de espírito. Tem menos a ver com o que a esposa faz do que com o que o marido gostaria que ela fizesse... Você fantasia sobre isso?" "Lógico que não. Pensei que tivesse deixado clara minha intenção de criticar." "O tom crítico eu percebi. O que quero saber é por que você lê e escreve contos pornográficos sobre mulheres infiéis, se odeia pornografia e infidelidade feminina." "Pra ser um censor eficiente, tenho que pesquisar. E sobre a infidelidade, só estou..." "Mostrando a vida como ela é?" "Isso, e também…" "Tentando entender a psicologia feminina..." murmurou com as reticências próprias dos psicanalistas e um sorriso pretensioso. Eu tinha que sair dali. Alegando estar atrasado para um compromisso, levantei-me, despedi-me e fiz menção de deixar a sala, mas no último segundo minha mão escorregou da maçaneta e meus pés deram meia-volta. "É sério, eu..." "Acredito em você." Repetiu a piscadela, parecendo acompanhar meus gestos sem o menor sinal de surpresa, como se eu fosse um dos seus personagens. Mudei de assunto: "Mas o que você achou da prosa?" "Boa. Só que a cena de sexo não me convenceu." "Porque você não se interessa por contos de infidelidade." "Nada disso. Não é o que você descreve, é como descreve." Risonho, aproximou-se da estante e dramaticamente puxou pelo topo da lombada um livro de bolso de capa marrom, como se acionasse uma passagem secreta de filme noir. "O erotismo pode estar em qualquer lugar." Subtraiu-o da coleção e folheou algumas páginas marcadas com pequenas dobras no canto superior até achar a que tinha em mente. Olhando-me por cima dos óculos com um quase sorriso, cedeu uma introdução: "Essa passagem é sobre dois alunos de um internato estudando literatura juntos. Posso?" Dei de ombros e caí de volta no divã. Marco pigarreou e começou, voz grave e entonação de narrador de audiobook: "Sanches inventou uma análise dos Lusíadas, livro de exame, cuja dificuldade não cessava de encarecer. "Guiou-me ao canto nono, como a uma rua suspeita. Eu gozava criminosamente o sobressalto dos inesperados. Mentor levou-me por diante das estrofes, rasgando, na face nobre do poema, perspectivas de bordel a fumegar alfazema. Bárbaro! Havia um trajo de modéstia sobre a verdade do vocábulo; ele rasgava as túnicas de alto a baixo, grosseiramente. Fazia do meneio grácil de cada verso uma brutalidade ofensiva. Eu acompanhava-o sem remorso; reputava-me vagamente vítima, e me dava à crueldade, submisso, adormecido na vantagem da passividade. A análise aguilhoava as rimas; as rimas passavam, deixando a lembrança de um requebro imprudente. E o ar severo do Sanches imperturbável." Fechou o livro e virou a capa para mim. O Ateneu, de Raul Pompéia. "Linhas com trajos de modéstia podem ser mais excitantes que linhas nuas, sabia?" Se não sabia, aquela torrente de palavras sugestivas acabara de me ensinar. E que pretexto inocente, o estudo de um clássico! Ah, eu entendia! Na verdade, o estranho era ainda não ter pedido o livro emprestado para... pesquisa de estilo e tal. "Está mesmo na minha hora. Valeu pela ajuda." Minha mão estava estendida, mas seu sorriso me dizia que ainda não tínhamos terminado. Tomei a recusa por grosseria e saí de súbito, como quem foge. Enfim livre, recostei-me na parede espelhada do fundo do elevador e fechei os olhos. Ficar sozinho com ele era uma provação. A primeira coisa que fiz em casa foi entrar no chuveiro. Durante um minuto ou menos, fantasiei que Marco me rasgava as roupas como Sanches fizera aos versos, e depois de tudo caí de joelhos sob a água quente, vencido como o narrador do livro, querendo poder lavar acima de tudo a alma.
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