Armário de Corno 2/4



Estava difícil separar o escritor do psicanalista, mas Marco tinha dois livros publicados e eu não ia perder a chance de trocar ideias sobre literatura só porque o cara se achava o dono da verdade. Eu disse isso a mim mesmo.
O próximo encontro foi na casa dele. Abriu a porta cantarolando, bem-humorado demais para uma noite de segunda-feira e terrivelmente atraente em jeans justos e camisa social verde-oliva, da cor dos olhos. Meu foco parou nos pêlos peitorais revelados pelos dois primeiros botões da camisa e ele retribuiu o elogio com uma passada de olhos pelo volume nos meus jeans claros. Cumprimentei-o com um frouxo aperto de mão e entrei na sala angulosa de paredes amarelo-canário, sofá branco, móveis de imbuia e telas abstratas sem moldura. Por todos os lados se viam livros das mais variadas épocas, origens e estilos, como On the Road, Eu e Outros Poemas e ambos os volumes de uma edição comentada do Fausto, o primeiro na prateleira inferior da estante e o segundo na mesa de centro.
"Larguei esse a vinte páginas do fim." Deu de ombros.
"Não achou bem escrito?" ironizei.
"Não, é muito bem escrito. Por isso mesmo não consegui terminar. É revoltante como a hipocrisia pode ser vestida com tanta arte. Fica à vontade que vou fazer um café."
Quando voltou com duas xícaras de cerâmica numa bandeja redonda de madeira clara, eu já tirara o casaco e olhava o livro de arte sacra sobre a mesa de centro, concentrado na Anunciação de Fra Angelico. Meu tema preferido, embora nunca houvesse descoberto o motivo.
"Ah, a Anunciação. A semente sem pecado", matou a charada sem saber.
Fechei o livro como se fosse um site pornográfico que minha esposa tivesse me flagrado olhando e quase derramei o café ao levar a xícara à boca, sempre estudado pelos olhos rápidos e incisivos do Marco. Com um suspiro, abri a mochila e submeti ao mestre os frutos da minha mais recente incursão no cross-dressing literário: a mulher até então fiel — que na época eu nunca admitiria, mas era minha esposa Sam dos pés à cabeça — drogava o marido com soníferos, se espremia num microvestido vermelho e sumia na noite, decidida a trepar com uma fila de homens de todas as aparências e idades. O início de uma saga rodrigueana para corno enrustido nenhum botar defeito. Admito que poderia criar personagens femininas menos caricatas, com uma proporção equilibrada de virtudes e defeitos, como qualquer ser humano, mas minha futilidade não me permitia enxergar além do invólucro. Eu via telas em branco e ali jogava minhas próprias cores com o furor de um expressionista enlouquecido.
Depois de ler tudo com atenção, Marco opinou no seu tom calmo e modulado: "Acho que suas mulheres deviam gozar mais".
"Minhas mulheres gozam!" falei alto demais e sem um pingo de convicção na voz. Percebendo o quão culpado soara, outra vez mudei de assunto: "E se fosse consentido? Se ele a deixasse sair com outros?"
"Uma atitude desinteressada vindo de um homem? O que se esconde por trás disso?" Levantou a sobrancelha e achei que quisesse ouvir da minha boca que sempre tive vontade de espiar minha esposa trepando com outro. Mordi o lábio inferior. "Acho que depois ele vai descontar todas as inseguranças nela. Pra se afirmar, vai tentar humilhá-la, como se isso o fizesse parecer mais homem e não o contrário. Porque é assim que agem aqueles que usam a esposa como intermediária pro que não têm coragem de fazer. Agora você conhece o truque dele. Ele a manda em seu lugar. Castiga-a pelos próprios pecados. Acha que está redimido. Não é isso que você vê nela, um intermediário e um bode expiatório? Agora me diz, quantos machos de pau duro você quer em volta da sua esposa?"
"Eu? Eu não quero nada! Se alguém quer isso, deve ser a Sam."
"E se quisesse? Só quisesse? Por que a sexualidade feminina tem que ser tratada como uma coisa agressiva, nojenta, revoltante, quase criminosa? Você gostou de ser julgado assim naquela passagem do Ateneu?"
"Do que você está falando? Eu não sou gay!"
"Minha parte preferida é quando ele exclama 'Bárbaro!' como uma donzela ofendida. Vai dizer que não se identificou?"
"Com o quê? A afetação? A hipocrisia? É isso que você está me acusando de ser, um afetado e um hipócrita?"
Os olhos por trás das lentes de grau se estreitaram numa expressão de malícia tão irritante que por um momento quase desisti de tudo. Em vez de oficina literária, aqueles encontros estavam mais para terapia intensiva, e com um psicanalista que despe toda a verdade quando o paciente menos espera. Aquele era mesmo meu Sanches, rasgando túnicas tão caras à consciência do pobre aluno, desvelando desejos guardados para serem confessados à beira da morte num asfalto sujo de sangue de um acidente fatal, se muito.
Com a mágoa e irritação típicas dos que escutam uma verdade inconveniente, vesti de volta o casaco e saltei do sofá, só para ser parado a um passo da porta pela sua voz sempre serena: "Você está mais pelado do que pensa. Não sabe como suas críticas te entregam".
"Quem está projetando é você. Sou muito bem casado. Tenho uma mulher dócil e fiel", falei como quem diz 'tenho uma cachorrinha que traz meus chinelos sempre que chego em casa'.
"E você está à altura do amor que ela te dá?"
"Sim, eu também a amo... Já disse que não sou viado!"
“Claro que não. Porque não tem nada pior que ser gay, não é? Ser gay é péééssimo”, baliu o 'ééé' com um sorriso debochado. “Aí você aponta o dedinho mágico que transfere seus defeitos pros outros. Vive suas fantasias na pele dos seus personagens e depois castiga cada um por fazer o que você não tem coragem. Se desculpa com você mesmo dizendo que é só uma crítica, desliga o computador e volta pra sua vidinha, como se eles não continuassem trancados na sua cabeça. Não sei se já percebeu, Nelson, mas você também está na maior parte do que escreve.”
"Chega. Já aturei lição de moral demais aqui. O que te faz achar que gosto de ser tratado assim?"
"Não gosta? Não mesmo?"
Mordi os lábios, desviando o olhar numa fuga automática da qual não levei três segundos para me arrepender. "Mesmo que eu seja o masoquista que você diz, quem pensa que é pra se aproveitar disso?"
"Alguém que andou por onde você está passando. E não estou me aproveitando. Estou tentando te mostrar o caminho."
Momentaneamente baixei a cabeça para seus argumentos, embora de algum canto irracional da minha mente uma voz me mandasse reprimir todos aqueles impulsos. Aquela voz que diz a mesma coisa a cerca de metade do mundo, e à outra metade que o certo é vadiar, trair, mentir e ainda sair contando vantagem. Aquela voz que está em todas as novelas, jornais e conversas de bar, e que acaba vencendo pelo cansaço.

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Ficha do conto

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Nome do conto:
Armário de Corno 2/4

Codigo do conto:
88673

Categoria:
Traição/Corno

Data da Publicação:
04/09/2016

Quant.de Votos:
3

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