Fazia calor em Teresina, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugurava o século e o milênio.
Nessa época, Maninho morava nos fundos do aeroporto de Teresina. O terminal aeroportuário ficava pouco mais de 500 metros e ele não conseguia tirar os olhos doa aviões que surgiam por trás das árvores. Ao decolarem. Os carros, a rua, a passarela, o muro cinzento, a Vila do João, o barraco do mourisco e todas as pessoas e animais e coisas já não existiam como tais, mas tinham virado pontos, pequenos pontos de partida e destino para as retas, curvas e elipses que se interceptavam. Amar essas ruas, com seus sobrados e calçamento de pedra, suas igrejas trabalhadas em detalhes de cantaria é o modo viril e, ao mesmo tempo, doce que sua memória encontrava formas reverenciá-la, de fazê-la quase vivo. Via todos os carros que por ali passavam e quantas vezes cada carro já havia passado embaixo daquela mesma passarela, e quantos carros já haviam cruzado mais de uma vez com todos os ônibus ou com cada outro carro dos que estavam ali, em outros lugares, em outras situações. Via as pessoas dentro dos ônibus, das vans e dos carros. Via que muitas, inúmeras delas, já haviam passado umas pelas outras, em outros lugares, em outras situações, até mesmo trocado olhares ou palavras. Algumas se conheciam ou se conheceram um dia, outras conheciam pessoas em comum, outras tinham a mesma profissão ou o mesmo time de futebol, e outras ainda haviam namorado a mesma pessoa. Aquele rapagão, alto, sarado de academia tinha orgulho de seus cabelos semi-longos. Passava o dia sentado naquela cadeira de plástico na calçada dando nó em vento e vendo aviões subindo, subindo... Descendo, descendo...
O desejo invade o seu sono. Sente as suas mãos mexerem nas suas pernas, a afastarem-nas, sem saber como, sentia uma enorme sensação de calor, que invadia seu sexo. Achava até que estava a sentir o seu hálito quente a aproximar-se do meio das suas pernas. Não. Não se enganou... Sentiu a sua boca. Que sonho este tão real! A sua língua dura percorre sua vagina de cima abaixo e quando pára no seu clitóris, para aí agitar-se...
No outro lado da cidade, a médica Karen sonhava com seu amado Mano Zord.
“Hummm... Que prazer tão grande me dá, e agora estou a senti-lo dentro da minha vagina... Agito-me no meu sono, no meu sonho, diria que o estou a viver. Diria que o tesão que estou a sentir é real, tão real, como eu estar a dormir agora e a ter todas estas sensações...” Ai”... Voltaste ao clitóris...estas de novo a agitar-se lá...e agora não é só com a lingua... É a boca toda... estou sentir-me abocanhada... Estás a usar os dentes, a apertar de leve no meu grelo... É bom, é muito bom e o meu tesão aumenta. Sinto-me a arder de paixão, quero acordar para satisfazer esta vontade, quero usar os meus dedos porque não te quero acordar, mas não posso. Esta incrível sensação de bem estar, faz-me continuar no meu sonho,onde tu entras... Onde entra a tua boca, as tuas mãos, cujos dedos trabalham freneticamente dentro de mim... Acho que vou desfalecer de tanto prazer... Quero acordar. Quero. Acho que te vou acordar para satisfazeres esta ânsia que me assaltou no sono... Mas não consigo. Estou presa num mar de emoções, quero acordar mas não quero parar de sonhar este sonho tão real...”
Em frente da Lan-house de seu irmão, sempre ansioso por uma nova aventura. Seus ouvidos captaram o ruído de um carro. Nesta ocasião, o ex-modelo e manequim fora famosos outrora nas passarelas dos principais acontecimentos do circuito. Porém nesse momento estacionara um veículo Gol a poucos metros dele. Era Karen. "Caralho!", disse Maninho, e repetiu: "caralho!" "Caralho!", disse o Maninho, uma terceira vez, por falta de melhor palavra para nomear o espanto.
Médica de origem alemã que sofria de uma paixão compulsiva por ele. Vivia se sacrificando por ele em trocas dos delírios que ele provocava nela. Nunca mais havia esquecido aquele divino rosto lhe sorrindo; nunca mais havia sentido aquelas mãos mágicas no seu corpo. A cada dia o desejava ainda mais, dum desejo contínuo e tirânico. “Ah! positivamente como homem não havia outro...” Ela, ao vê-lo sentiu suas pernas fraquejarem. Olhou para aquele homem que nunca deixara de amar e achou que ia desabar de emoção. Seus olhos se encheram de lágrimas. Os seus olhos mesmo lacrimejantes devoram-no. A ilusão de um relacionamento amoroso era imposta por ela. Os dois continuavam mantendo uma relação colorida e esporádica. A ilusão de confiança era tudo. Ele quando a viu, estampou aquele sorriso familiar. Revelando ter alguma idéia em mente ela falou:
- Olá malandro! Disse-lhe dando um beijo na face. Como você está?
Estava bronzeada, com um tom de pele extremamente sexy , com um vestido muito sedutor que realçava as suas formas. A sua linguagem corporal denunciava uma certa carência, hesitante contagiando-se de imediato, todo este momento era mágico, impregnado de sensualidade, arriscava garantidamente que ambos não imaginariam estar numa situação dessas.
- Não sou homem de me curvar à adversidade, estou na casa da mamãe porque na realidade todo homem tem desejo inconsciente de voltar para o útero materno. O problema é que nenhuma mulher deixa.
- Está bom, mas deixe de ser criança e encare os fatos.
- Tive de escolher entre a arrogância honesta e a humildade hipócrita. Fiquei com a arrogância.
Estava sendo controvertido, falastrão, cima de tudo imprevisível.
- Estou zerado, sem nenhum dinheiro, falou ele.
Ela sempre cedia aos caprichos de Maninho levada por uma invasão brutal de desejos.
- Grande novidade... Tenho 200 reais na bolsa, mas eu acho que é pouco.
Ele soltou um suspiro de satisfação.
- É tudo nesse momento. Vou passear contigo, eu fico feliz, tu ficas feliz, depois voltamos para o ponto de inicio, que achas?
- Razoável, disse a loira olhando para o relógio.
Então ela vasculhou a bolsa e deu à ele o dinheiro. Sorridentes, todos os dois entraram no veículo e partiram, porém ele ordenou:
- Primeiro, vamos passar na casa da mamãe para eu me trocar. É rápi-do, 15 minutos apenas.
- Concordo, disse ela em frente da residência.
Surpreendentemente, ele virou-se para ela e beijou-a na boca. Sem pudor nenhum, enquanto a beijava ele começou a acariciá-la, passando a mão pelo corpo dela, agarrando os seios, beijando o pescoço. Levou uma das mãos entre as pernas dela. Ela começou a gemer de prazer, e aí, nesse exato momento abriu os olhos e se deu conta que estavam em via pública. Olhando para ela, quieto, parado a esperar. Mas esperar o que? Saiu rapidamente do carro entrando na casa. Ela o observava, os ombros largos, as costas fortes, o vento nos cabelos. Teve vontade de gritar “volte logo”. Mas as palavras ter-se se perdido ao vento. Era uma tarde de outubro, quando as folhas haviam começado a ficar amarelas e queimadas. Maninho odiava a palavra “não”. Na verdade, ela o deixava de mau humor. Ser contrariado lhe parecia uma grande injustiça. Seu mau humor transformava em veneno. Karen não era nenhuma estrela, nem rica ou brilhante; mas era uma mulher especial. Mano Zord escolheu-a numa multidão de boêmios de sábado à noite, havia quatro anos.
- Onde diabos se meteu? Disse a si mesma preocupada.
No coração uma mágoa que só fazia doer. Não sabia o que fazer com ela. E como apertava... E como doía... Ficava ela ali no canto esquerdo bem quieto. Dava os ares de sua graça nas horas mais impensáveis. E como manchava... E como mexia. Seu coração pulava no peito como bola desgovernada que desce a ladeira sem olhar para os lados. Queria esquecê-la. Queria traí-la. Trancá-la lá fora sem pena da chuva. Deixando-a molhar como pano de porta, que sem borda aos poucos se encharca. Ele mesmo dissera outra vez, que se ela não estivesse satisfeita que fosse se queixar ao bispo. E ela foi. Contou tudo o que havia se passado entre eles: a acusação de ser ela a culpada dos pesadelos dele, os encontros só em dias sorteados no calendário, e não deixou de mencionar que ele não a queria com as unhas dos pés pintadas de vermelho, como ela sempre usara até conhecê-lo. Quando ela terminou, o bispo apenas disse, com a voz baixa e calma de quem passou a vida a ouvir queixas: "Volte hoje à noite, às dez. E venha com as unhas dos pés pintadas de vermelho."
O playboy mau caráter trocou-se mais rápido que pode, depois saiu pelos fundos da residência saltando o muro com leveza de um felino. Atravessou um terreno baldio que dava acesso à outra rua. Assim que alcançou a calçada, olhou para ambos os lados para ver se alguém o observava, e com os ouvidos atentos seguiu seu caminho. Agora entrava na Av. Miguel Rosa... Enfim, desaparecera.
Levada de um impulso de indignação que, sugeria planos de vinganças ferozes. Já na sua casa, na solidão de seu quarto, veio-lhe um sentimento de impotência. Que ela poderia fazer por fim?
A notícia espalhou-se rapidamente. Como ele vivia no meio de pessoas, e pessoas vivem cheias de dúvidas, logo começaram a pedir sua opinião para os mais diversos assuntos, os triviais e os de grande importância, e ele, certo de que podia viver muito bem de suas certezas, virou uma “Alma Sebosa”.
Um fato sutil e maligno que ele sabia como ninguém espreitá-lo por trás de sua consciência. Maninho parou rapidamente numa padaria para comprar cigarros. Quando finalmente entrou numa cada de jogos clandestinos (Bingo) que funcionava a todo vapor no centro velho da cidade. Avançou pelo corredor entre maquinas de caça-níquel consciente que cada um de seus passos estava sendo filmado. Manteve a cabeça ereta, o teto envidraçado abrigava jogo de luzes e câmeras. Obcecado para ganhar no jogo, sentou-se numa mesa redonda com mais duas pessoas. No microfone era anunciado o prêmio de um carro 0 km. Uma salva de palma se ouvira no recinto. Numa outra mesa em frente, uma loira vestida de preto olhava-o atentamente. Ela não sorriu, mas havia uma curva sugestiva nos seus lábios que demonstrava interesse em algo além do jogo, Mano Zord olhava para o telão conferindo os números de sua cartela. Todavia sempre acabava olhando para aquela desconhecida. Os cabelos loiros caíam sobre os ombros ao estilo Gisele Bündchen, tinha um pescoço longo, rosto bem definido, dentes brancos e lábios grossos. O que não atraia eram seus olhos grandes que pareciam não piscar. Pele branca e ossatura delicada, olhos claros. Uns trinta anos de idade, talvez uns 60 quilos bem distribuídos. Aquela bela jogadora usava um vestido absurdamente curto que produzia um efeito devastador. Pois Maninho não conseguia desviar seus olhos daquelas pernas longas e elegante. Concentrou-se para não atrapalhar seu jogo. Enfim, naquele momento anunciavam os ganhadores do referido carro. Então desocupou uma cadeira do seu lado com a saída do jogador, foi aí que a loira misteriosa viera sentar-se ao seu lado, segurando uma caneta Bic e a cartela do jogo. Era evidente! Não era de se admirar que a silhueta parecera estranha, ao mesmo tempo familiar. A mulher ainda olhava insistentemente para ele.
Aonde sentira aquela fragrância antes?... Numa Seria numa casa de chá chinesa? Seria algum tipo de incenso? Sândalo talvez. Sorriu ao playboy com olhar obstinado dando a impressão que ela o conhecia a tempos... Seus joelhos quase se tocaram. As pernas delas eram longas e finas.
- Oi, tudo bem? A voz era baixa, educada, musical e sensual.
- Maninho... Gosta de jogar? Perguntou ele.
- Gosta de jogar?
- Não... Eu trabalho aqui.
- Prostituta? Indagou-o sem titubear.
A mulher sorriu.
- Quase, disse ela. Meu papel é distrair os jogadores, tirando sua atenção para a manipulação de resultados. Deixe de ser otário e vamos sair. Aqui você não ganha nada, só deixa o dinheiro.
Mano Zord olhou espantado para a mulher. Seu riso era autêntico e o que acabara de ouvir, com certeza não era o tipo de resposta que ele esperava de uma mulher que dava a impressão de estar atraída por ele. Na verdade, os dois estavam profundamente interessados um pelo outro. As idéias fixas congestionavam seu cérebro.
- É mesmo? Sabe tudo de jogo Neném...
Naquele momento ela sabia da reação que iria provocar em seus pa-trões, porém estava obstinada em conquistar aquele gato Angorá. Encantou-se com jeito maroto de Maninho, figura antiética, cafajeste nato. Sua espontaneidade era no estilo Gigolô Americano. O aventureiro Mano Zord caíra como luva nas pretensões dela. De aspecto saudável o prazer era o território de Maninho. Ele fazia o tipo sexualmente desejável. Saltaram do táxi e caminharam de mãos dadas para a porta de um xale.
- Aqui? Disse ele.
- Sim, é onde eu moro.
Quando a porta se abriu e deparou-se numa sala particular. No chão um tapete oriental com um desenho complicado. Nas paredes havia fotografias de paisagem impressionante. A cozinha ocupava a metade da parte da frente. O local era estranho bonito e confortável, parecia absolutamente privativo e afastado do centro da cidade. O lugar rescendia a um perfume doce, porém inebriante. A mobília era pouca, clássica, pesada e de outrora. Madeira, couro, cetim, tecidos leves e sutilmente brilhantes. No chão de madeira corrida e rangente, um tapete persa, roto, bem desgastado pois sentiu que não oferecia resistência sob seus pés.
- Belo lugar para se isolar da plebe rude, disse Maninho.
- É o meu cafôfo, disse ela.
O rosto dele estava próximo do dela. Será que ele podia ver o desejo que continha nos seus olhos? As mãos dele estavam sob o vestido dela começando uma caricia íntima. Ela se entregava por inteira. Nunca havia sentido aquilo tão repentino antes com ninguém. Sem a deixar respirar, encostou-a à parede do quarto dobrando-a um pouco para a frente, tendo molhado o seu olho mágico e sentido o seu sexo todo úmido, passando os seus dedos suavemente. Era como aqueles cometas que são vistos uma única vez na vida. Então foram para o quarto. Subiu em cima dele, e foi encaixando aquela grutinha no seu pênis. Mordeu seu lábio forte e teve aquela visão dos seus sonhos: ela cavalgando em mim com aqueles melões balançando. Ela pulava, e gemia alto. Apertou seus seios, se contorcendo ao mesmo tempo em que gemia. Ela, vendo que ele ia gozar, começou a pular mais rápido e forte. Não agüentou e gozei dentro dela. Ela ainda deu uma reboladinha e se deitou por cima dele, beijando-o. Na hora da rala e rola seus olhos tinham se fixarado num cordão de ouro no pescoço dela. Ele não perdeu tempo. Assim que terminou a relação, ela perguntou:
- Ué! Isso é o melhor que você pode fazer?
A pergunta ficou sem resposta. A essa altura ele já tinha quebrado o engate da jóia e a enrolado na mão. Ao sair do banheiro foi que a mulher sentiu falta do cordão.
- Perdi minha gargantilha.
- É... Não a vi, disse ele com brilho de ouro nos olhos.
O rapaz veste a cueca e as calças. Ele termina de se vestir, da um t-chau, assim como quem se despede de alguém em uma entrevista de emprego.
- Você já vai? Assim? - Tenho que ir. Você sabe.
- vou sentir tanta saudade.
- Não devia.
Logo em seguida sorriu numa imitação quase perfeita de um sorriso perverso. Beijou-a levemente na face despedindo-se dela provavelmente para sempre e afastou-se com elegância. Abriu a porta de saída e começou a andar rapidamente sem rumo.
Mais tarde descendo do táxi às três da manhã, ele passeou pela Praça do Liceu escolhendo um banco estratégico, olhou a sua volta, depois de sentar acendeu um baseado do tamanho de um charuto cubano. O cheiro de bosta de vaca queimada empesteou o local. Tirou o Chip do aparelho celular que tinha subtraído da loira distraída e jogou-o na lixeira pública. Não era a toa que seus amigos de infância o haviam apelidado de “Alma Sebosa”. Assim que chegou a casa abriu cuidadosamente a porta para não acordar a sua mãe. Achou envelope colocado por debaixo da porta que dizia o seguinte:
“Eu existo em algum lugar de seu passado. Você arruinou a minha vida. Você sabe o quanto; ou por que, ou mesmo quantas vezes. Infeliz-mente foi o que aconteceu. Trouxe desastre e tristeza para cada segundo de minha existência. Arruinou minha vida. E agora, tenciono arruinar a sua. A princípio pensei que deveria simplesmente matá-lo, para acertar as contas contigo. É um alvo pateticamente fácil. Depois pensei... Vivendo nesse ritmo que você leva, é só uma questão de tempo. Decidi que você mesmo é que vai se suicidar. Terá tantos inimigos que não valerá mais a pena viver. Maninho, mate-se! Pulando da ponte sobre o rio Parnaíba ou estoure seus miolos com uma espingarda velha de caça. Jogue-se na frente de um ônibus coletivo em disparada na Av. Frei Serafim. O método escolhido será de sua competência. Porém será a única saída provável para tantos problemas causados”.
Ass: Karen
Mano Zord abriu um sorriso como se tivesse lido uma sátira, depois amassou tudo jogando na lixeira do banheiro. No quarto, pegou o controle remoto na mesinha de cabeceira sentando-se na cama diante da TV. O rosto de Ricardo Guzman, mafioso colombiano ocupava toda a tela. As autoridades afirmavam aos repórteres como sendo ele o chefe do Cartel de Cali. O maior exportador de cocaína para os Estado Unidos. Ele era apontado com responsável por 80% do tráfico de droga em Nova Iorque, com um faturamento de um bilhão de dólares ao ano.
- Cacildis! Eu precisava ter conhecido esse tal Guzman. Tem muita grana nessa jogada. Estou nessa merda de vida porque só conheci pessoas erradas. Não acerto uma. Sou realmente um desastre.
Em parte Karen não deixava de ter razão. Soltou um longo suspiro, depois desligou a TV. Estava por demais inquietos para dormir. Por um momento, com o ar aprisionado na garganta, quase acreditou que conseguiria o impossível. Desejava voltar a trás, porém agora investido de sabedoria resultante da experiência e do arrependimento, achou que poderia ajeitar as coisas. Sentiu um calafrio de ansiedade. Depois apanhou o telefone e ligou para o número que ele conhecia de cor. Depois de alguns toques, uma voz sonolenta respondeu:
- Quem é?
- Maninho, meu anjo! Foi mal... Pisei na bola com você e quero pedir desculpa pelo meu erro. Perdoe-me por mais essa, vai?
- Quero que você morra! É só falar no seu nome que a cachorrada late, o alarme dispara e a polícia aparece... Some da minha vida, seu fracassado. Dizendo isso desligou o aparelho.
Naquele momento ele teve a sensação de se transformado em um monstro.
Sua reação não foi de surpresa, nem de prazer. Estava como sempre insensível. Porém tinha consciência que fora ruim o dano que causara na vida da médica. Este tipo de presepada se tornara um hábito, assumindo uma forma de ritual. Evidentemente que todos os seus conhecidos o condenavam por esse comportamento. Perdera as contas quantas vezes ele dera prejuízos a Karen.
A escuridão tinha explodido. O vento ventava varrendo tudo pela frente e o céu chorava de tristeza numa fina chuva. Maninho no quarto. O tempo voava e as horas passavam. Enquanto tentava desesperadamente por quase duas horas seguidas dormir nesta madrugada, irritava-se deveras com os pensamentos que sempre resolvem aparecer justamente na hora em que tentava dormir, milhares de coisas rondam a sua cabeça enquanto ele tentava esquecer de tudo e concentrar-se nos seus objetivos soporíferos, em vão. As primeiras insônias das quais recordo foram causadas por aquela mancada com a médica.
A aurora ainda não tinha chegado, o verão estava quase no fim e ele sentindo solidão. Tentava ler uma revista perto da janela aberta. Através da qual a quente brisa noturna trazia o zunzum distante e indefinido do tráfego da cidade. Então Mano Zord tentou ler um texto em francês: “Une exaltation de ce grand amour embaumé et qui, passant à travers tout, parfumait de tendresse l´atmosphère imaculation qu´elle voulait vivre”. Largou a revista sentindo pena de si mesmo. Nasce o dia:
- Filho, acorda que o café está pronto!
- Já vou mãe, estou indo...
Os olhos fundos, ainda com sono, boca amarga, corpo doendo, ainda cansado. Assim acordou Maninho naquela manhã de dezembro. Ergueu o corpo e sentou-se na cama, fechou os olhos. Apertou com força as mãos num triste sorriso e sussurrou para que o vento ouvisse:
- Bom Dia, Mary!
Saiu do quarto passando pela sala, depois para a cozinha. O banheiro ficava nos fundos da casa. Entrou e abriu a torneira, juntou as mãos em concha apanhando a água fria. Era como se o líquido gelado lavasse seus pensamentos. Lavasse as lembranças da última noite. Escovou os dentes e saiu do banheiro. Na cozinha a mãe despejava o café na garrafa térmica. Em cima da pequena mesa um cesto com cinco pães.
- Seu pão, do jeito que você gosta. Entregou o pão ao filho.
- Obrigado mãe.
- Você tem que estudar Maninho. Muda de vida, meu filho!
- Agora não, mãe! Tenho uns projetos...
- Então precisa arrumar emprego, meu filho.
- Poxa mãe! Quer mesmo estragar meu dia.
Levantou-se da mesa com o pão numa mão e a xícara de café na outra saindo pela porta da cozinha até os fundos da casa. Uma mangueira majestosa balançava seus galhos. Enquanto bebia empurrava pedaço de pão se lembrando da única coisa que fazia
No dia seguinte, trancou-se no porão da residência para fumar maconha e ouvir RAP. Obsessivo por álcool e drogas se equilibrando no seu dia a dia. Algumas vezes fora internado em clinica de recuperação.
Naquele momento Mano Zord era uma praga que misturavam desem-prego e delinqüência, alcoolismo, droga, frustração enraizada no convívio social. Era um fenômeno muito comum na alta sociedade piauiense.
Na noite seguinte, Maninho tinha ido comprar maconha na vila Maria, quando voltava, no planalto Uruguai havia muito bombeiros e polícia. Houvera um incêndio. Ele empalideceu e arregalou os olhos mandando o motorista do táxi parar. Pagou-o e o dispensou se aproximando daquele sinistro. Era exatamente o Chalé da loira do Bingo que ele havia encontrado na noite anterior.
O cheiro ácido de fumaça estava no ar, trânsito bloqueado. Uma olhada foi o bastante para reconhecer em detalhes o local. Mangueiras longas e grossas atravessavam a rua, e havia água por todo lado.
Vozes soavam no ar noturno, as palavras indistinguíveis, e policiais uniformizados conversavam com um bombeiro. Ele ouvira deles que a bela loira havia botado fogo no chalé antes de se suicidar com um tiro na cabeça.
Maninho estava chocado.
Aquilo cheirava assassinato do crime organizado.
Sua família alugara um apartamento na zona sul da cidade para Maninho se manter afastado da família. Ninguém mais agüentava as presepadas que ele aprontava.
O táxi afastara-se do centro da cidade, cruzara a ponte João XXIII. Ele estava agora já tinha sido circulado durante algum tempo agora iria mudar de endereço. Logo, porém chegaram ao local parando o táxi. Era um edifício velho e mal conservado, com sacadas de madeira com um telhado coberto de telhas vermelhas. Era um edifício do tipo residencial, construído na década anterior em estilo grandioso, mas nunca sofrera uma reforma sequer há décadas. Ele foi se declinando pouco a pouco até se transformar no lugar mais barato de se morar de Teresina. Passaram pela enorme porta de entrada sem dizer nada temendo a expectativa encontrou atrás de um velho balcão um velho estava comendo presunto com ovos, enquanto Maninho o observava curioso. O homem devia ter uns sessenta anos, era robusto, embora não bem proporcionado, tinha um cabelo cortado rente por trás das orelhas de ébano, era redonda como uma bala de canhão, ligada ao corpo por um pescoço grosso e ombros fortes. A pele do pescoço, semelhante a um pergaminho amarelo, era pelancuda e cheia de arranhões e manchas azuladas. Usava um terno escuro e surrado, apertado quase arrebentado nas costuras, antigo e grotesco, que lhe dava a aparência de um velho marinheiro no seu dia de folga. Maninho permaneceu ali em pé, olhando para aquele estranho, ele levantou a ca-beça, com os cabelos cortados rente, franziu a testa e, ainda mastigando com seus dentes fortes e descoloridos, encarou-o com olhos rígidos e hostis. Durante um momento ninguém falou com ninguém. Assim que terminou de mastigar, o homem olhou para Maninho e disse:
- Bom Dia, em que eu posso ser útil?
- Bom Dia senhor. Eu sou o novo morador do apartamento 312.
- Mas ele está vazio. Não tem nenhuma mobília nele.
- Eu sei. Estou providenciando a mudança.
Houve uma pausa. Ele pegou o chapéu que estava no chão aos seus pés.
- Muito bem. Não havendo mobília até o momento, o que o senhor de-seja?
- Subir até lá dar uma vistoriada.
- Está bem, eu o acompanho como de praxe nesse edifício.
Ambos subiram até o apartamento, mas foi o porteiro que abriu a porta do imóvel revelando uma surpresa indefinível:
- Mas ele está todo mobiliado? Quando chegou essa mudança que eu não vi?
- Milagre, milagre senhor.
- Não entendi. Explique-se melhor! Quis saber o porteiro.
- Ontem não foi o seu dia de folga?
- Foi.
- Ontem a tarde foi feito a mudança.
- Tudo bem! Esse edifício já conheceu dias melhores. Hoje ele é habi-tado por prostitutas, cafetões e marginais de toda ordem. Vai ter que se acostumar com o vai e vem dessa gente.
Seus comentários, que lhe soaram impróprios, foram se transformando em silêncio. A voz era dura e rouca, como um instrumento pouco usado, mas pior do que a aspereza era a completa amargura, o rancor sombrio e violento que havia nele. Maninho resolveu quebrar o gelo:
- Você tem cigarro ai?
- Não. Não fumo. Cigarro dá câncer, não sabia? Não devia fumar.
- Que pena! Ele sacudiu a cabeça.
O velho olhou-o com atenção, franzindo as sobrancelhas, como se estivesse procurando descobrir se ele estava mesmo querendo fumar. Logo depois, com relutância, tirou do bolso um maço de cigarros, em que Maninho reconheceu a marca.
- Eis o cigarro. Não tem jeito mesmo, a gente se vicia nessa merda e nunca mais sai. Não é mesmo?
- É isso mesmo.
Maninho tirou um cigarro do maço e abaixou-se para acendê-lo, como se tivesse fazendo uma coisa proibida. Tragou rapidamente.
- Obrigado pelo cigarro. Que horas são?
- Onze e quarenta e cinco minutos.
Continua...