De volta à Itália !
Dessa vez, uma viagem planejada com mais 3 velhos amigos, colegas desde os bons tempos da faculdade.
Estávamos já há quatro dias em Veneza, tempo suficiente para revisitá-la e nos aprofundarmos pelos cantos menos buscados pelas hordas de turistas.
Á tarde, andando sem rumo pré-determinado pelo Cannaregio, um delicioso bairro que as levas de excursões japonesas desconhecem, fomos nos encantando com a sucessão de piazzetas que surgiam de repente, entre as cales estreitas. Espaços abertos algo surpreendentes, no meio daquela malha intrincada.
Anoitecia, queríamos retornar, mas andávamos em círculos. Brincando com os amigos, como se estivéssemos em algum velho filme de mistério da Rank, eu forcei um sotaque oxfordiano :
- "Lost in Venice !..."
A minha frente, alguém se volta e me diz :
- "I'm too! Follow me..."
Uns 35 anos, cabelos castanho-escuros, olhos azuis, bonita, provavelmente americana.
Ela fez sinais, indicando que tinha descoberto o caminho para a ponte de Rialto, quando ao olhar de novo percebeu que éramos não um, mas quatro. A descoberta a fez mudar de atitude e aumentou o passo, desaparecendo entre as pessoas que caminhavam naquele crepúsculo.
Foi assunto para algumas brincadeiras com os amigos e tudo se resumiria a este fugaz encontro.
O dia seguinte era nosso último na cidade, partiríamos bem cedo para Firenze na manhã seguinte. Como sempre, na última tarde nos separamos, para que cada um fizesse suas compras pessoais, ou qualquer coisa que lhe interessasse.
Muito pouco consumista, decidi me embrenhar mais à fundo no Cannaregio, ver com calma detalhes das praças, cales, edificações.
E o que me mais me encanta nas viagens: sendo uma área com menos afluxo de turistas, eu poderia me misturar com a população local, sentir como pensam e vivem.
Numa daquelas piazze encontrei uma feira livre. Não se compara com o fausto das nossas, mas é encantadora a forma requintada como expõem a mercadoria.
Começou a chover, busquei abrigo numa livraria, uma outra boa opção para passar algum tempo.
Estava lá, folheando alguns livros quando alguém me fala :
- " Have you found your way yesterday?"
Exatamente... era ela. Americana, de Boston, soube depois.
Surpreendeu-se ao me saber brasileiro. Notei que olhou em volta; disse-lhe que estava só naquela tarde, ela sorriu...
Conversamos mais um pouco, ela buscava por algumas gravuras, acabei por ajudá-la a comprar o que queria.
Os donos da pequena livraria, um casal muito simpático, certamente eram fluentes em inglês. Mas bons latinos, se deram conta de que algo poderia estar começando, e limitando-se a falar italiano comigo, abriram-me espaço no palco...
Compras feitas, uma sugestão para um espresso é aceita. Muita conversa na mesa da cafeteria, de início amenidades, as 3 culturas se encontrando... mas, pouco a pouco, a conversa toma um novo rumo.
E alguma coisa, não dita em palavras, claramente começou a ser sinalizada nos olhares...
- "Let's take a walk around , shall we ? "
Aceito o seu convite, mas caminhamos muito pouco tempo, pois uma nova chuva, agora bem mais forte, desaba repentinamente.
Correndo, vamos buscar abrigo em uma viela, protegida sob um pórtico. Um dos milhares de sottoporteghi venezianos, que certamente deve registrar secretamente centenas de encontros de amantes furtivos...
E, se assim foi, a mágica de momentos de sedução certamente lá ficou impregnada. A sós, na penumbra, sorrimos, nos encaramos e vejo um brilho tentador em seu olhar.
Sinto-me um tanto perdido, palavras faltam, e não é questão do idioma... Resolvo atacar, é preciso... Digo a ela que parto na manhã seguinte, e certamente nunca mais nos veríamos.
Estávamos os dois juntos naquela semi-obscuridade , no meio de uma cidade temperada pelo romance...
-"We have met twice... Certainly we'll have not a third chance..." digo a ela.
Nunca me considerei um conquistador, e tomei essa atitude quase na falta de outra. Foi como que sentisse tocado por algo transcendental, que me dizia com insistência que aquele momento não poderia ser perdido...
Olho-a nos seus olhos azuis, que quase me hipnotizam... Ela não responde, não em palavras...
Recosta-se nas pedras do pórtico medieval, deita para trás a cabeça, fecha os olhos.
Respondeu, de forma eloqüente...
Aproximo meu rosto do seu, sinto sua respiração forte, nossos lábios se tocam levemente primeiro, depois sofregamente as bocas se abrem, as mãos percorrem os corpos...
O tempo que se passou neste beijo não me é claro. Tenho quase certeza de que quando começou ainda havia a luz diurna, em meio a chuva do fim de tarde na praça. Mas quando abrimos os olhos, é noite fechada.
E certamente, velhas bruxas venezianas armaram mais um de seus sortilégios: uma luz azulada pisca, iluminando nossos rostos, e a menos de 20 metros de onde estávamos, acendeu-se o luminoso neon do Piccolo Albergo.
Ela toma minhas mãos, leva-as aos seus seios, olha a porta do pequeno hotel e diz :
-" I'm also leaving...I'm taking a train back to Milano tonight , and tomorrow a plane to Boston . We only have few hours, if you want me, I want you. It must be now..."
O conscierge do albergo nos deu formulários a preencher , pisca o olho e diz :
-" Soltanto una formalità..."
Ela assina Ms. Jones, e por coerência, assino Sr. Silva...
Foram apenas poucas horas... Mas foram vividas sabiamente, afinal, as bruxas não nos dariam outra chance...
Se foi um encontro único, foi inesquecível, e descrevê-lo seria inútil. Apenas diria que sentirei sempre a maciez da sua pele, seu sabor...e lembrar, reviver tudo, trará luz, calor, uma sensação de felicidade.
Quando saímos do albergo, caminhamos, quase flutuando, de mãos dadas pelas vielas agora quase desertas, rumo a estação de trens.
Ela havia previamente deixado sua bagagem lá. Aguardamos seu trem, que saía às 11:45, com direito à café e carinhos.
Embarquei com ela, pois estava hospedado em Mestre, a primeira parada daí 10 minutos.
Em minha estação, nos despedimos com um beijo longo, mas sem palavras quase, apenas a celebração do encontro.
Pois, como viajantes dessa estirpe, fomos tomados pela instâneidade, onde muitas palavras, valem menos que um gesto, um toque, um carinho, o desejo expresso nos olhares, e, mais que tudo, o apelo dos corpos.
Lembranças para marcar para sempre, de momentos que exigiam o amor feito de entrega total, intensa e absoluta.
E assim tinha sido...
Trocamos cartões, aqueles clássicos:
- " Don't hesitate to call me when you come to Boston..."
- " The same, when you come to Brazil..."
Mas só uma formalidade... Nossas viagens se tocaram e seguiram juntas por algumas horas. Depois, tinham de seguir seus destinos...
Saindo do trem rumo ao hotel, logo em frente, mal me dei conta que cantarolava Paulo Vanzolini :
"... Gente da nossa estampa,
não promete juras nem faz...
Quando parte não demonstra,
sua guerra, sua paz...
Quando o galo me chamou,
parti sem olhar pra traz.
Por que, morena, eu sabia,
se olhasse não conseguia,
sair dali nunca mais... "
No caminho, os poucos carregadores que haviam por lá àquela hora, me cumprimentavam sorrindo.
No bar do hotel, meus amigos me aguardavam. Era uma praxe nesta viagem terminar a noite no bar do hotel, para longas e saborosas sessões de conversa jogada fora.
De início eram espressi, mas depois fazendo as contas, descobrimos que somavam o valor de uma garrafa de vinho, e como cosí è più divertente... adotamos.
Já tinham pedido, e quando chego perguntam por onde andei.
-" Meu, você está com uma cara de quem viu o passarinho verde..." um deles diz.
Gian Paolo, o garçon, que já era nosso amigo, me serve un bicchiere.
Certamente não entendeu a frase em português. Mas deve ter captado o sentido. Curva-se, apoia a mão em meu ombro, me olha sorrindo e diz aos outros:
-" Ma no! Questa faccia... sollo si trova in chi a fatto l'amore !"
Pegou mais uma taça, serviu-se do vinho e brindou comigo:
-" Non è vero, Signore?"
LOBO
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