- O que você quer dizer com isso? Está tentando me comprar?
- Não, não… longe de mim, não quero complicar mais as coisas.
- Eu não aceito suborno, senhor. Eu sei o que você quer. Eu não ligo para o seu dinheiro. Sei que você é rico, mas isso não vai acontecer. Sua filha dirigiu bêbada e sem habilitação, e matou uma mulher grávida, na calçada! Porra! Você entende o que é isso!?
- Ok.
Marvin desliga e telefone e senta novamente em sua poltrona preta, ao crepitar da lareira. Ele não queria fazer isso. Não gostava de incomodar. Todavia, não podia imaginar Milka numa situação dessas. Era sua filha. Ela não tinha um bom comportamento, mas com certeza ia amadurecer um dia. "Ela ainda tem vinte e cinco anos, é praticamente uma criança".
Por outro lado, aos setenta anos, Marvin estava mentalmente esgotado. Era difícil admitir, mas a filha havia sugado todas as energias do casal, que desde muito cedo se empenhou em fazer tudo pela menina, cuja personalidade só se mostrava mais difícil a cada ano.
Qualquer pessoa de fora, entretanto, percebia claramente que era justamente o contrário. Marvin e Érica foram péssimos pais, justamente porque queriam ser ótimos. Milka era aquele tipo de garota estragada pelo excesso de regalias, que com apenas quatorze anos tinha ganhado o primeiro iate. Um iate que não utilizou mais do que duas vezes, e a contragosto. Era o tipo de moça que nunca havia lavado um prato, porque sua casa tinha uma dúzia de empregadas, as quais ela adorava tratar como lixo. Além disso, a moça tratava os pais com o maior desprezo, como é característico dos filhos rebeldes que crescem com pais frouxos.
Marvin liga, dessa vez pelo celular:
- Governador? Meu caro amigo!
- Sr. Marvin, que honra receber uma ligação sua, pensei que nunca teria esse prazer!
- Eu liguei para elogiar seu primeiro semestre, você tem se saído bem.
- Ah, mas sem sua ajuda isso seria impossível. Olha, muito obrigado mesmo, sou eternamente grato. O Sr. sabe que não havia fundos para minha campanha.
- Isso não é nada, querido. Foi um prazer ajudar.
- Mas em que posso ajudá-lo, senhor?
Naquele mesmo dia, um carro preto aguardava do lado de fora de determinada delegacia. Acompanhada de um guarda, que levava um guarda-chuvas sobre a cabeça da moça, Milka vinha andando com o maior desdém. O guarda chega até o carro e o vidro preto desce lentamente.
- Obrigado, senhor - Marvin estende a mão para fora e dá uma generosa gorjeta ao guarda.
- Não há de quê, senhor - o guarda diz, percebendo que a gorjeta era maior que seu salário
O guarda abre a porta do veículo para Milka e o carro se vai. Poucos quilômetros à frente, o silêncio é quebrado:
- Filha…
- Ah, não! Por favor, eu não quero sermão agora, ok?
Ele tenta de novo, agora com a voz mais contida, paciente e paterna que pôde encontrar:
- Calma, filha, o pai só tá tentando conversar e…
- NÃO QUERO! AI, QUE SACO! ME DEIXA, AFF! - e mete o fone no ouvido, fazendo o pai calar a boca.
Episódios assim tinham sido cada vez mais frequentes. Marvin e dona Érica não tinham mais forças para isso. Mas, apesar desses eventos serem tão ruins, o pior mesmo era a convivência. Milka estava cada vez mais insuportável, ainda que o casal não gostasse de pensar assim em relação à filha. Terapias, presentes caros, mudanças de casa, e principalmente dar tudo o que ela pedia, faziam parte das milhares de tentativas, todas fracassadas, de tentar fazer com que ela fosse mais amável, estudasse alguma coisa e parasse de se meter em problemas. Os amigos estragavam a filha, eles pensavam. Mas a bem da verdade, todos os amigos dela, por pior que fossem, tinham pelo menos concluído a faculdade. Alguns eram até responsáveis, apesar de serem playboys mimados.
Quando o carro chega em casa, Milka vai direto para o quarto, ignorando totalmente a mãe, que mais tarde insistiu na porta:
Toc Toc
- Filha, a mãe pode falar um pouco com você?
- EU NÃO ESTOU A FIM DO SEU PAPO DE VELHA NÃO, JÁ FALEI PRA ME DEIXAR! VOCÊ É BURRA OU O QUÊ? QUE ÓDIO DESSA CASA!
Mas com os amigos Milka era bem diferente:
No Whatsapp:
"E aí, loira, o que aconteceu dessa vez? Kkkk"
"Ah, maior rolê, acabei atropelando uma mulher."
"Caralho! Mas e aí?"
"Ah, é só isso. Que se foda, não vou ficar pensando nessa merda, sabe?"
"Isso mesmo, nem perde tempo. Ah, você vai pra Ibiza com a gente, né?"
"Lógico! rs."
Não muito tempo depois, mais uma desgraça acomete aquele lar. Como se não bastasse a desarmonia causada pela personalidade da filha, ela precisava trazer mais. Pela primeira vez, Marvin falou mais firme em uma discussão:
- Filha, esse cara é um… traficante! Ele é um ladrão! Eu não consigo entender, por que você ficaria com um cara assim? - indignado, frustrado e irritado
- Ladrão você também é! Você explora quantos trabalhadores? Você é um explorador! É isso que você é! Não tem diferença nenhuma!
- …. O quê? Eu pago salários aos meus funcionários! Eu sou uma pessoa honesta!
- Tão honesto que suborna o governador, né? Ah, quer saber, vá se foder! Você não tem nada a ver com minha vida! NADA! VOCÊ ESTÁ ENTENDO? É POR ISSO QUE EU NÃO GOSTO DE GENTE VELHA! VOCÊS NÃO ENTENDEM NADA! POR QUE VOCÊS NÃO MORREM, HEIN? AÍ EU TERIA PAZ!
A mãe, chorando aos prantos, tenta amenizar:
- Filha, mas nós sempre t…
- SEMPRE ME DERAM TUDO, NÉ? VOCÊS SEMPRE FALAM ISSO, FICAM JOGANDO NA CARA! EU NÃO QUERO NADA DE VOCÊS, EU NÃO PRECISO DE VOCÊS! ME DEIXEM! EU NAMORO UM TRAFICANTE? FODA-SE! FO…DA…SE! ENTENDERAM OU QUEREM QUE EU REPITA???
Naquele dia, Marvin entendeu que não havia nada mais para ser feito. Sua filha não tinha mais jeito e levaria os pais à morte, se preciso fosse. O desgosto era a tônica daquele lar. E os voos para o RJ já eram constantes por parte de Milka, para ver o traficante.
Poucas semanas mais tarde, houve um encontro de bilionários em Mônaco. Dessa vez, Érica preferiu não ir, porque estava muito deprimida. Marvin, por sua vez, não tinha escolha, pois seria um dos homenageados da ocasião. Após a festividade tipicamente bilionária, Marvin visita o iate de um antigo amigo da época da universidade. Era o CEO de uma grande empresa Holandesa. E nessa ocasião, ele desabafa mais do que era prudente fazê-lo, mas ele precisava disso:
- E… eu não sei mais o que fazer. Eu estou deprimido há mais de dez anos. Minha esposa também. Eu não sei onde erramos.
Gilbert apenas escutava. E, ao término, diz:
- Marvin, tome isso.
Um cartão. Havia um número escrito nele.
- O que é isso?
Ele respira fundo antes de dizer:
- Cara, é incrível, mas eu passei o mesmíssimo problema que você. Você conhece meu filho, certo?
- Sim, mas dizem que ele é um prodígio, um rapaz super sério e…
- É o que ele tem sido. Desde que ele recebeu esse tratamento.
- Tratamento? Com algum psicólogo?
- Não, cara, definitivamente, não.
- Me explica
- Meu filho só me trazia dor de cabeça. Hoje eu percebo que… eu estraguei ele, sabe? Eu achava que era um bom pai, porque dava toda a liberdade e apoio quando ele era um mal filho. Eu achava que um bom pai era isso, aturar tudo. Ele se tornou um filho muito mal. Tentamos de tudo, terapias e coisas assim. Isso nunca dava em nada
- É exatamente assim. Com a Milka é a mesma coisa. Ela ficou dois anos na Inglaterra uma vez. Subornei o reitor de Oxford para que ela entrasse na universidade… apartamento de luxo para ela morar… mesada altíssima. Quando eu fui saber, cara… ele tinha frequentado apenas três semanas.
Gilbert abaixa a cabeça. Sabia o que aquele homem estava passando. Depois, ele retoma o que falava sobre seu filho:
- Bom, eu sabia que nesse ritmo meu filho ia morrer. Ia perder meu filho para as drogas, ou coisas assim. Ele estava se destruindo. Ele roubava, acredita? Assaltava com amigos. Meu filho precisa disso? É talvez um dos herdeiros mais rico da Holanda…
- Eu sei. Não é só por nós. É que eles estão se destruindo, realmente. A Milka… vai se destruir. Já bateu o carro três vezes.
- …Eu liguei para esse número e tudo mudou. Mas vou te dizer a verdade, é uma abordagem muito atípica. Eu prefiro não entrar em detalhes.
Então Marvin guardou o cartão. E quando voltou ao Brasil, conversou seriamente com a esposa, que, tomada de uma coragem fundamentada em desespero, apoiou o marido. A ligação foi feita:
- Alô? - uma voz distorcida e robótica
- Oi. Me passaram esse número e…
- Quem passou?
- Gilbert Van Thomas, é um amigo meu
- Ok. Quem é o paciente?
- Sobre isso precisamos conversar. Primeiro eu quero saber que tipo de mét…
- Senhor, escute bem. Eu vou dizer sem rodeios, porque tenho uma fila de espera e não me importo se você vai querer ou não. Meu método consiste em "quebrar" sua filha ou filho. Entenda "quebrar" como você quiser, porque eu realmente pretendo fazer isso nos mais variados sentidos do termo.
O casal treme. Quem seria aquele louco? Aquilo era ridículo
- O quê? Está falando de bater na minha filha?
- Não, a menos que ela mereça. Mas de qualquer forma, eu não disse bater. Eu disse quebrar. Moer. Esmagar. Acho que isso está mais para uma verdadeira surra ou um espancamento, não acha?
- Você é louco…
- Bom, tudo bem. Quando a sua filhinha estiver dentro de um caixão, você se lembrará que poderia ter feito algo para evitar e não fez. E o motivo será esse: você não fez por ela o que deveria, mas apenas o que sua frouxidão pediu. A vida toda.
- Essa conversa termina aqui, senhor! - e Marvin bate o telefone, enojado.
O casal se olha e despreza aquela ligação. Como existiam loucos nesse mundo!
O mês seguinte foi um dos mais pesados para o casal. Milka anunciou que estava noiva do traficante. E como não bastasse, exigia que o pai alugasse uma ilha particular para o casamento, que não demoraria muito para acontecer.
Assim terminaria a saga da família. Uma família bilionária. Milka, única herdeira de um império comercial, acabaria com tudo em pouco tempo. O grande beneficiado seria um traficantezinho qualquer. O desgosto era tudo o que havia, tanto em Érica quanto em Marvin.
Marvin vai para seu escritório, abre a escrivaninha e pega seu revólver. Põe o cano no queixo e…
Se lembra daquela ligação que fizera há cerca de um mês. Por que não? Diante do quadro que se colocava, o que podia ser pior? Ele estava com a porra de uma arma apontada para si, pronto para estourar os miolos, e não tinha coragem de fazer o que deveria ser feito em relação a Milka? O que sua postura frouxa tinha feito pela filha, afinal de contas? O que sua fraqueza produziu naquela garota?
Ele solta a maldita arma, pega novamente o telefone e liga:
- Alô? - voz distorcida de robô
- Você me garante que ela vai voltar sã e salva? E que vai ser uma boa filha?
- Eu nunca falhei, senhor. Nunca.
- É uma lavagem cerebral? Não quero que minha filha seja um robô
- Não é nada disso. Sua filha apenas vai aprender a valorizar o que tem. Ela mudará, mas continuará a mesma. E no fim, senhor, ela vai te agradecer. Você acredita? Você acredita que, no fundo, a sua filha grita por socorro?
- …O que devo fazer? E qual é o preço?
Uma semana depois, aeroporto do RJ:
Milka vinha com um vestido tubinho branco, bem colado ao corpo; o corpo impecável que chamava a atenção de todos. Óculos escuros, bolsa rosa e salto preto. Nem olhava para os lados. Sabia, entretanto, que era desejada.
Um carro preto a esperava. O motorista era alto, vestido de terno e gravata bem alinhados. Ele imediatamente abre a porta de trás para ela.
- Boa tarde, senhora
Ela entra sem responder, fazendo cara de poucos amigos. Se tinha uma coisa que Milka detestava era um empregado tentando ser notado. Bastava fazer seu trabalho de merda, não precisava mendigar atenção dos patrões, ela pensava.
O carro começa seu caminho. Alguns minutos se passam:
- O ar está bom aí atrás, senhorita? Se você quiser eu posso aum…
- Você pode dirigir e calar a boca? - ela o corta, demonstrando que não falava com empregados
O homem imediatamente se contrai, sem graça. Ele apenas continua seu trajeto. Milka continuava sem tirar os olhos do celular, conversando pelo WhatsApp.
Mais de vinte minutos se passam e Milka estranha aquele lugar:
- Você está seguindo o GPS??? Porra, você é retardado? Não é esse caminho!
- Senhorita, aquele caminho não é bom, a polícia está no pé do morro e vai dar tiroteio, não dá pra entrar lá agora…
- Ah, tá, tá! Dirige aí, vai… Que saco!
Mais dez minutos se passam e o chão começa a trepidar
- Onde estamos? Por que você está indo pela estrada de terra? Caralho, viu! A gente tenta ter paciência, mas vocês são uns inúteis!
O carro para.
O homem mete a mão para o banco de trás, pegando diretamente no pescoço de Milka, como se pega num saco de lixo
- ESCUTA AQUI, SUA PUTA! - a voz era tão alta, e havia tanto ódio, os olhos tão vermelhos, que Milka fica paralisada. Com exceção do tremor, não havia mais nenhum movimento. Até o coração parecia ter parado. Milka não conhecia esse tom. Porque nunca ninguém jamais usou contra ela.
O homem continuava:
- SUA BISCATE DO CARALHO! QUEM VOCÊ PENSA QUE É? - a força desproporcional apertando seu pescoço
- Me desculpa, me desculpa - ela tentava dizer, apavorada
- ...A vida que você conhecia acabou, Milka - o sorriso macabro se abria
O coração dela gela. Como aquele homem sabia seu nome? Milka percebia que estava fazendo xixi nas calças de tanto medo.
Aê ! Esse conto é muito, muito bom. Simplesmente sensacional
Eita porra.
Sem palavras
Larissa, seus contos são excelentes! Não pare de escrever