Violação

O plano para aquela noite de domingo era abrir uma garrafa de vodka, achar um filme de ação na TV e beber até cair no sono. 'Era', pretérito imperfeito, porque pouco depois da hora do jantar algo mudou não só minha noite como minha vida. Navegando pela internet, descobri o conto erótico mais violento em que já tivera o prazer de pôr os olhos, prato feito para um pervertido como eu, leitor assíduo de histórias sórdidas. A vontade de estuprar alguém não era nova, mas depois daquilo não tive dúvida. Dessa vez eu ia sair à caça da minha primeira vítima.
Desliguei o notebook, me enfiei nas roupas da véspera e dei uma conferida no espelho. O homem de camisa preta, jeans desbotados e tênis brancos me devolvia o sorriso confiante, apesar da estatura abaixo da média e do físico pouco desenvolvido. Com exceção talvez da tatuagem tribal no pescoço, nada digno de nota; só mais um rosto entre tantos, um vulto na multidão. Eu poderia ser seu vizinho. Eu poderia ser o cara que segurou a porta do elevador para a sua irmã, mãe ou filha hoje de manhã.
O bairro onde nasci, fui criado e ainda moro é considerado de classe média, mas o mesmo não pode ser dito do entorno, cheio de ladeiras, ruelas e becos que eu já conhecia bem o suficiente para ter uma ideia exata do lugar mais propício para o ataque. Estava vazio, como de costume àquela hora. À medida que eu avançava, reconhecia em cada detalhe velhos amigos: no começo da rua, uma faixa estendida no segundo andar de um sobrado dizia ESSA CASA JÁ FOI ASSALTADA DUAS VEZES ESSE ANO; no meio, uma pichação na porta de uma loja falida dizia TRAVESTI NÃO É BAGUNÇA; e no fim, num beco ao pé de uma ladeira, havia um cubículo improvisado com tapumes onde alguém escrevera a frase DAR NÃO DÓI, O QUE DÓI É RESISTIR e desenhara um rosto com cílios longos e boca de cartoon, como se dissesse 'estupre aqui'. Aquilo já devia ter pelo menos uns dois dias, mas toda vez me fazia rir.
Parei na esquina, encostei numa parede e fiquei observando o pouco movimento. A primeira gostosa que apareceu tinha cerca de vinte anos. Morena vaidosa, cabelos lisos presos num rabo de cavalo, maquiada e bem vestida. Saia tão estreita nos joelhos que reduzia pela metade a largura dos passos, saltos altos que impossibilitariam uma corrida de mais de quinze metros, blusa de um tecido tão delicado que parecia feito para ser rasgado e todo o seu dinheiro e objetos de valor praticamente embalados para presente num belo invólucro a tiracolo, ao alcance de um puxão. Vítima duas vezes, minha e de uma indústria tão perversa quanto eu. Enquanto meus olhos estudavam cada traço e movimento da garota, ela ia passando sem me notar. O acaso ou talvez a sensação de ser observada fez com que no último segundo me descobrisse ali, mas só para esnobar meu sorriso falso. Puta. Desviou o olhar com indiferença e eu, se ainda não tinha certeza da escolha, naquela hora decidi que seria minha de qualquer jeito.
Saí atrás dela num trote acelerado e sem pensar duas vezes agarrei-a pelo rabo de cavalo. Ela tentou gritar, mas tapei sua boca e a arrastei esperneando e chutando por sobre o tapume, que estalou, se deslocou, cedeu e caiu. Não importava. Pelo menos estava de saia. Apalpei entre suas coxas, arranquei todos os panos do caminho, achei a entrada e comecei a meter firme, com raiva, enquanto ela se debatia e guinchava. Só por medo de sermos ouvidos mantive a mão bem apertada contra sua boca, porque se pudesse a deixaria gritar toda a sua dor e revolta. Os gritos seriam o toque final de realidade, o lembrete constante de que eu estava mesmo ali, entrando sem permissão nem reservas, vencedor daquele jogo doentio que se resumia em perseguir e montar, subjugar e invadir, humilhar e abandonar. Metia como se pudesse descontar todos os tocos que já tomei na vida, querendo pisar no seu orgulho como achava que ela pisara no meu. A raiva era tanta que eu volta e meia errava o buraco e entrava torto, envergado. Era o de menos; mesmo que doesse em mim também, não seria nada em comparação ao que ela estava passando. No meu pensamento ainda ressoavam aqueles gritinhos, agudos como a dor que lhe atravessava a alma, embora o choro baixinho e a umidade das lágrimas entre meus dedos já bastassem para me deixar à beira do clímax. Meu coração batia tão forte e rápido que parecia prestes a parar. Tirei a mão por um segundo e o êxtase veio com os ecos do grito no beco escuro. Que delícia me aproveitar de alguém mais fraco para satisfazer meus impulsos sádicos...
Com um riso satisfeito, saí de dentro da garota e a deixei escorregar para o chão como quem larga um saco num depósito de lixo. Quando me aprumei, me sentia com dois metros de altura, plenamente saciado do gozo bruto e da sede de vingança. A sensação de poder era tão grande que só me dei ao trabalho de levantar as calças junto com a cueca e subir o zíper até a metade, mal me importando de sair naquele estado. A garota agora estava acuada contra uma parede e sua bolsa jazia no chão, mais perto de mim que dela. Puxei o acessório inútil, achei sua carteira entre objetos igualmente inúteis, coloquei cinco reais dentro e dei com ela aberta no seu rostinho choroso.
"Isso é pela trepada, vadia."
Ela continuava a abraçar os joelhos, soluçar e tremer, sofrimento que fiz questão de admirar com a satisfação de um dever cumprido. Do que não é capaz um homem rejeitado? Num gesto teatral, girei nos calcanhares no que esperava ser o passo final do meu ato, capricho tão cruel e debochado quanto tudo até ali, mas segundos depois uma mão me agarrou pela gola da camisa e me puxou de volta com força. Um hálito quente roçou minha orelha e uma voz grave falou quase dentro do meu ouvido: "Ainda não, vagabundo".
Tentei me desvencilhar, mas o cara era mais forte que eu. Me segurando pela nuca com uma mão tão grande que quase se fechava no meu pomo de adão, forçou minha cabeça para baixo até esfregar minha cara no asfalto. Cheiro de mijo, esgoto, putrefação, talvez um rato morto não muito longe dali. Me debati e gritei como podia contra o chão fétido.
"Liga o rádio", a voz grave se projetou para o lado, onde devia haver um carro estacionado, e uma música alegre começou pela metade.
Ainda encoleirado pela sua mão firme, senti meu zíper se abrir de novo e minhas calças e cueca descerem pelos joelhos num puxão violento. Quando ouvi o ruído metálico de um cinto sendo desafivelado, um calafrio de terror percorreu minha espinha de alto a baixo. Se a mão era daquele tamanho, eu podia imaginar o resto.
"Dar não dói, o que dói é resistir", ele leu em tom de desprezo. "Que engraçado... Foi você que escreveu isso? Então ri agora, palhaço!"
Mirou e tentou acertar o buraco, mas eu dava mais pinote que touro de rodeio; duas ou três tentativas que apenas adiaram a confirmação das minhas suspeitas, dor tamanha que me vi a ponto de desmaiar. As primeiras investidas sacudiram meu corpo todo, fazendo aquela parte agora flácida e inútil ora quicar de uma coxa para a outra, ora girar feito hélice.
"Ai-i-i! Pa-a-a-ra-a-a! Pa-a-a-ra-a-a!" Minha voz saía toda tremida dos trancos.
"Desculpa, o que você disse?"
O intruso estacou dentro de mim, mas a dor não deu a menor trégua.
"Paraparaporfavor!"
"Ah, quer que pare?"
Três estocadas fundas e pausadas, entrando tudo que podia, e de novo o ritmo enérgico, incansável.
"Che-e-e-ga! Me-e-e so-o-ol-ta-a-a!"
"Hahaha!"
O cara se divertia enquanto eu me debatia e gritava e rezava para Deus e todos os santos em que nunca acreditei, suando litros por cada poro do corpo. Que covardia se aproveitar de alguém mais fraco para satisfazer seus impulsos sádicos...
"PA-A-A-A-A-RA-A-A-A-A! DEUS!"
Ele não parava. Sua mão direita continuava no meu pescoço, seu riso rouco no meu ouvido e suas palavras irônicas na minha consciência, se é que tenho uma. Quanto à dor onde eu estava sendo invadido, essa ainda continuaria comigo por alguns dias. Minhas forças me abandonaram pouco a pouco, até meus joelhos amolecerem e eu desabar de vez. Já não passava de um corpo inanimado largado no asfalto imundo.
O rádio agora estava desligado. Tudo aquilo devia ter durado pouco mais de quatro minutos, mas para mim parecia mais de quatro horas.
"Isso é pela trepada, vadio", minha frase de pouco antes voltou para mim com a mesma entonação debochada, e uma cédula gasta e com cheiro de dinheiro velho caiu sobre meu rosto.
O riso se afastava pelo beco. Respirei fundo, tentando recuperar as forças, mas dois segundos depois um chute acertou minha cara em cheio. O som do meu nariz quebrando reverberou dentro do meu crânio, molhado e repulsivo feito o som de uma barata sendo esmagada por uma sola de sapato, e uma dor lenta se insinuou, diluída em meio a tantas outras. O cheiro de sangue era tão forte e nauseante que me deu ânsia de vômito. Olhando em volta, atordoado, vi através de um pesado véu de lágrimas a imagem duplicada de uma pessoa parada ao lado de um carro, as duas camadas lentamente se afastando e depois convergindo para formar a figura da garota que eu estuprara, blusa rasgada, pés descalços e sujos de lama, rosto transfigurado numa expressão de ódio justificado, olhos fixos na minha fisionomia e tatuagem do meu pescoço como se fizessem um retrato de memória. Só a lei do cão? Quem me dera. Aquilo provavelmente não passava de uma pequena amostra do que eu colheria na cadeia se me enquadrassem, o que era certo acontecer muito em breve, ainda mais com a plateia que meus gritos tinham atraído para lá e agora assistia a tudo indiferente à minha sorte.
A última coisa que ouvi foram duas portas de carro batendo e pneus cantando. O resto foi silêncio. Até hoje não faço ideia de onde aquele cara apareceu, nem para onde foi; simplesmente sumiu, deixando um imenso vazio dentro de mim e só a nota de cinco reais de lembrança.

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Ficha do conto

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Nome do conto:
Violação

Codigo do conto:
87269

Categoria:
Heterosexual

Data da Publicação:
03/08/2016

Quant.de Votos:
2

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