A lembrança voltou com força total. De repente eu era de novo um moleque de pé no meio da sala vazia, no rosto um sorriso amargo, nas mãos um cartão postal enviado da Disney pelos meus próprios pais. Desde sempre eles tiravam férias fora de temporada só para não ter o filho atrasando a programação ou empatando a foda, e sempre com a ordem expressa de não serem incomodados por telefonema nenhum a menos que alguém estivesse morrendo, mesmo hospedados na cidade vizinha. E agora estava acontecendo de novo, a quatro dias do meu aniversário de dezoito anos. Depois que o táxi sumiu rumo ao aeroporto, troquei de roupa e desci a rua a pé, conformado em esfriar a cabeça com no mínimo duas horas de piscina. Nem imaginava que, naquele domingo tranquilo e ensolarado de outubro, o tempo ia fechar no clube. Até por volta das onze, nada atípico tinha acontecido. Pelo contrário, eu não poderia estar mais entediado. Àquela hora os dois já deviam estar na sala de embarque, prestes a pegar um avião da Alitalia para se divertirem dia e noite em quatro países da Europa, enquanto eu mofava num clube que frequentava todo fim de semana, cercado de velhos, casais e crianças, jogando... biriba. Pelo menos meu parceiro, o Pablo, era gente boa. Já nossos adversários eram pai e filho, este um garoto de cerca de vinte anos, esguio e bonito, e aquele na porta dos cinquenta, já sem metade da cabeleira mas ainda em boa forma física. Tinham nos visto embaralhar as cartas e perguntado se não queríamos jogar de dupla, sem saber que logo estariam perdendo de lavada. "Contra sorte, só porrada", Olavo, o pai, brincou quando meu parceiro pegou o morto. "Não é estranho? Quanto menos coringa desperdiço, mais sorte tenho." Pablo devolveu o sorriso. "Isso e uma ajudinha do gari ali, marcando quem está pro morto." Olhei para Lucas, o filho. "Ei! Pode jogo falado?" "Só falei do que já aconteceu. Parece até o namorado da Bia jogando", comentei com meu parceiro. "O Edu? Nossa, esse é muito pior", Pablo respondeu distraído, começando a baixar as cartas do morto. "Todo cheio de frescura, mais gay que eu..." Ops, informação demais. Lucas me olhou enviesado, sobrancelha erguida como se eu fosse suspeito de algum crime, e perguntou em tom acusador: "Você também?" "Aham", evitei estender a conversa, mas ele insistiu: "Vocês estão... juntos?" "Não. A gente é só amigo." "Ex-namorados", Pablo corrigiu. Um silêncio pesado se formou na mesa — os dois visivelmente incomodados, se remexendo nas cadeiras e fingindo prestar atenção no jogo, que seguia apesar de tudo —, até que o pai não aguentou e pensou alto: "Esse mundo está perdido mesmo". Foi o prenúncio da tempestade. Os dois eram homofóbicos e eu conhecia Pablo o suficiente para saber que a tolerância dele com esse tipo de gente é baixa. "Nisso concordo com você", ele começou em tom modulado. "Na Antiguidade as pessoas viam as relações homossexuais com naturalidade, agora ficam aí criando caso." "Não tem e nunca vai ter nada de natural", o pai disse. "Se ser gay fosse o certo, o primeiro casal teria sido Adão e Ivo." E sussurrando para o filho em tom de fofoca: "Sabe, na Bíblia diz que os sodomitas queriam fazer sexo até com os anjos hospedados na casa de Ló". "A Bíblia é cheia de simbolismo", Pablo redarguiu sem levantar os olhos das cartas. "Não é pra levar tudo ao pé da letra. Além de ter sido escrita por homens." "Guiados por Deus", o filho emendou. "Isso não pode ser provado", eu disse. "A fé é a capacidade de acreditar no que não pode ser provado. Vocês falam como se não acreditassem em nada." "Devem ser ateus." O pai cravou um olhar de censura em mim e Pablo, que agora encarou bem os dois. "De jeito nenhum. Em Deus eu acredito. Nessa religião de vocês é que não." "Claro que você não vai dizer que acredita na Bíblia." Olavo largou as cartas na mesa como se de repente tivesse tomado nojo delas. "Isso seria assumir que é tudo verdade, que o 'homossexualismo' é coisa do demo. E só pode ser mesmo, porque não faz sentido Deus ter posto os gays no mundo. Diz aí, pra que vocês servem?" "A gente existe pra dar um sossega na reprodução desenfreada. A Igreja tanto sabe disso que logo inventou essas mentiras, porque o interesse deles era nascer muito mais gente pra doar o dízimo que pra repartir. Por isso padre não pode casar. Ou vai dizer que acha só coincidência as religiões mais materialistas e sanguinárias serem também as mais homofóbicas? O que eles querem é engrossar os rebanhos, os exércitos deles." Na mesma hora os rostos do pai e do filho se iluminaram, como se de repente tudo se encaixasse, tudo fizesse sentido. Ou talvez aquelas palavras não tivessem feito mais que refrescar a memória da alma deles. Enquanto os dois nos olhavam boquiabertos, Pablo deu uma espiada nas mesas próximas, cujos sócios tinham parado tudo para acompanhar o bate-boca. À nossa esquerda, um grupinho nos observava em silêncio, todos os três garotos e duas garotas imóveis e compenetrados como numa plateia de teatro. À direita, um casal cochichava entre si, olhos indo do Pablo para Lucas e do Lucas para mim. Foi quando o velho, provavelmente irritado por ter sido confrontado em público, resolveu apelar: "Além de viado, é burro". "Quando os insultos começam, é porque os argumentos acabaram", Pablo respondeu impassível. "Não sou viado, nem boiola, nem maricas. Sou gay. E você é que deve ter se sentido um ignorante agora, aí repetindo asneiras inventadas só pra enrolar os outros." "Antes ignorante que gay." "Se você acha..." Pablo abriu um sorriso sarcástico. "Vamos chamar o deputado", o filho disse. "Esse sujeito é um nazista", foi minha vez de retrucar. "Antes nazista que gay." Me olhou de cima a baixo numa encarada confusa, que parecia uma mistura de raiva, medo, curiosidade, sei lá. "Antes nazista que gay", Pablo remedou, voz soando irritada pela primeira vez. "É cada coisa que eu ouço. Então apoiar uma ideologia que torturou e matou mais de seis milhões é melhor que amar alguém do mesmo sexo? Pregar uma religião que torturou e matou mais gente ainda, proíbe a camisinha, abomina qualquer prática sexual que não garanta a multiplicação de dizimistas e acoberta a pedofilia é melhor que amar alguém do mesmo sexo?" "Não tem nada pior que dar a bunda. Se eu tivesse um filho assim, matava", Olavo disse, tão transtornado de repulsa que nem viu Lucas se encolher todo na cadeira. "Esse é o tipo de gente que cita a Bíblia", eu disse em voz baixa, mais como uma constatação que uma resposta, mas alto o suficiente para ser ouvido pelas mesas próximas. "Amor cristão a toda prova.” Era a voz de uma das garotas à esquerda. "Pra mim é quase compaixão mesmo." Lucas me deu outro daqueles olhares intensos e confusos. "É pena. Eu tenho pena de vocês." "Pena?" Pablo bufou, vermelho de raiva. Eu quase podia ver seu sangue espanhol começar a ferver sob aquela montanha de músculos. "Vocês estão tentando nos agredir desde que descobriram nossa orientação sexual. Isso não é pena, é raiva. Típico de enrustidos. Por que não vão dar logo e nos deixam em paz?" "Eu vou dar é porrada na sua cara, seu desgraçado!” o pai gritou. Agarrou Pablo pela gola da camisa e se jogou todo estabanado de ódio na mesa redonda de resina branca, que virou levando os dois para o chão. O filho seguiu o exemplo saindo na porrada comigo também, e o pau comeu até três seguranças chegarem para nos separar e por pouco não nos mandarem para a delegacia. Uma puta confusão, daquelas que a gente nem sabe descrever com certeza — se mais bateu ou apanhou, quem entrou, quem interveio, nada. Mas havia outras testemunhas, cerca de uma dúzia de sócios, que afinal não iam lá para nada além de passar tempo e jogar conversa fora, e que durante as próximas semanas tratariam de espalhar a história com riqueza de detalhes, reais ou inventados. Era melhor ficar longe do clube por um tempo. Sem mais, nos enfiamos num táxi e fomos cuidar dos ferimentos na minha casa, onde não apareceria ninguém para nos incomodar. Era uma das minhas raras oportunidades de levar amigos, dada a velha ojeriza dos meus pais a visitas. Só quando eu procurava bactericida e band-aid no kit de primeiros socorros do banheiro dos meus pais foi que Pablo quebrou o silêncio: "Te meti numa confusão, hein?" "Confesso que não foi bem assim que imaginei meu domingo. Logo na semana do meu aniversário de dezoito anos, meus pais viajam pra Europa na maior cara de pau. E eu, em vez de viagem pro exterior também ou carro, acabo ganhando um olho roxo." Examinei o princípio de hematoma mais de perto no espelho. "Mas você fez um estrago bom nele... Também, a gente ia fazer o quê? Deixar eles falarem merda? Você sabe que os bullies nunca param." "Olha, acho que tudo pode ser discutido, só depende do jeito. Quando o assunto é religião, é melhor ir devagar." O conselho foi um pouco para mim mesmo, que também não sou o cara mais paciente do mundo. "Se a pessoa se ofender, no mínimo vai ficar surda pra qualquer outro argumento seu, por mais lógico que ele seja." Pablo deu um longo suspiro. "Esse é o problema dos debates. As minorias sempre têm que mostrar moderação, estatísticas, títulos e todo tipo de credencial antes até de pensar em se defender dos conservadores, que são quase todos arrogantes daquele jeito. Você viu que eles já começaram agredindo." "E aí você mandou eles irem dar a bunda." Sorri e ele riu. "Não gosto de viver repetindo que homofobia e machismo são coisa de enrustido, mas fazer o quê? Uma porrada de estudos já comprovou, é só pesquisar em qualquer lugar. E dessa vez estava mais que na cara." Devo ter virado uma expressão surpresa para seu reflexo no espelho, porque ele sorriu e balançou a cabeça, como quem é obrigado a explicar o óbvio. "O Lucas, né? Vai dizer que você não viu as olhadas que ele te deu? E as primeiras perguntas que ele te fez? Você também é gay? Vocês estão juntos?" "Tem certeza?" "Acho que só quem não viu foi o pai dele. Porque não quis. Ou então já viu há muito tempo, e o drama foi em parte por causa disso mesmo." Abriu a torneira da pia esquerda e começou a lavar as mãos para fazer os curativos. Meio aéreo, abri um band-aid e fiquei esperando ele desinfetar o ferimento na testa, o que fez com cuidado enquanto eu mergulhava num mar de conjecturas. Então não era só eu que achava ter visto alguma coisa. Mas e se fosse viagem de ex-namorado? Pablo não era assim, do tipo possessivo, e fazia tempo que tínhamos terminado, mas aquela pressa dele em revelar nossa relação... Ou então podia ter sido só para deixar claro para os dois que não devemos nada a ninguém para ter que viver nos desculpando e escondendo. É, devia ser isso. "Não vai fazer nada na quinta mesmo?" "Hum?" "Seu aniversário." Deu um sorriso de 'Alô, Terra chamando!' "Não sei bem o que comemorar", murmurei desanimado, jogando o band-aid e a toalha. "No mínimo mais um ano de vida." Fez o curativo e examinou a mão direita, cujo nó da base do dedo médio tinha um corte raso que torci para ter sido aberto no supercílio do velho encrenqueiro. Mas é claro que Pablo tinha mais se defendido que atacado, até porque poderia ter partido o cara em dois. "Pra mim, quanto mais velho, mais pessimista, dissimulado, preguiçoso, medroso, cabeça-dura e cheio de manias. Se for pra ficar assim..." "Vivendo e desaprendendo. Mas, agora que você é maior de idade, vai poder fazer um monte de coisa." Piscou o olho com um sorriso que só consegui retribuir pela metade. Por mais razão que ele tivesse, por hora minha cabeça estava dentro de casa, no que estava para acontecer duas semanas depois.
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