De volta à fazenda, Esperanza foi perguntar a Yolanda sobre as investigações.
“Padre Lorenzo fez duas visitas”, a serviçal disse sem olhá-la, fazendo chá para os dois visitantes. “Um tanto apressadas, eu diria.”
“Então é mesmo possessão?” Esperanza estranhou. Até onde pesquisara, investigações do tipo costumavam levar meses.
“O padre diz que sim.” Yolanda ergueu o olhar para as feições contraídas da jovem. “Que houve?”
“Não sei ao certo. Juarez me contou algo vulgar sobre Leonardo Da Vinci... E por mais estranho que possa parecer, era verdade.”
Yolanda meneou a cabeça. “O demônio é mentiroso, com certeza, mas mistura mentiras a verdades para nos confundir.”
“Em que a senhora acredita?” Esperanza perguntou com delicadeza.
“Acredito que tudo seja possível. No caso dele, já não quero mais pensar. Estou cansada disto, deste lugar, desta sujeira. Não tivesse uma irmã doente para ajudar...” Yolanda deixou um olhar ansioso escapar pela janela, mas depois pareceu se enternecer pela visitante. "E a senhorita, em que acredita?"
"Acredito que o homem seja de bem."
"Tens mesmo a ingenuidade de um anjo...”
Quando a jovem voltou ao quarto, Juarez estava de novo seminu, estirado sobre os lençóis brancos feito sacrifício numa toalha de altar. Oferenda, feiticeiro, demônio? Não conseguiu perguntar como se descobrira, e nem queria saber. Fato era que de mãos atadas não teria chance de atacá-la, não por meios naturais. A língua, porém, continuava solta: “Pensei que houvesses fugido de medo. Então não acreditas nesses boatos infames, acreditas, meu anjo?”
“Acho que não... Não, não acredito.” Esperanza balançou a cabeça para os lados como se sacudisse as dúvidas de sua mente atormentada e arrastou a cadeira para o canto do quarto. Abria o caderno quando Yolanda entrou com a bandeja de chá, colocou o conjunto sobre a cômoda e de novo cobriu Juarez.
“Este devasso está incomodando a senhorita?”
“Como ousas insultar teu patrão?” ele rosnou baixo.
“Não és meu patrão. O filho do casal para quem aceitei trabalhar não se insinuaria para uma desconhecida.”
“De que falas, serviçal ignorante? Não insinuei coisa alguma!” vociferou, mas Yolanda já ventava porta afora. “Puritana maldita! Aposto que só trepa com o marido com as luzes apagadas e através de um buraco no lençol!” gritou para a porta. E, num murmúrio para Esperanza: “Vês o tratamento que recebo dessa vaca? Nem para me oferecer um chá”, seguiu em tom baixo, lamurioso, embora os olhos da jovem se mantivessem pregados no bloco de desenho. “Se bem que, segundo dizem, o chá reduz em 2/3 a potência sexual do homem, pois queima os dedos e a língua. Então com isto não precisas te preocupar... Já desgracei muita mulher por estas bandas, de Elche a Valencia, mas se me deres a chance te provarei que vale a pena.” Lambeu os lábios.
Tentando ignorá-lo, Esperanza ergueu o lápis em riste na reta da cama, técnica de medição de proporções em desenho, mas o que viu foi Juarez esticar o pescoço e agitar lascivamente a língua comprida no vão do V formado pelos dedos indicador e médio, num adendo para lá de gráfico. A jovem desviou o olhar e ouviu em resposta uma chuva de impropérios. Mesquinho e vingativo, o homem retaliava as negativas com grosserias e insultos.
“Padre Lorenzo”, Yolanda anunciou de trás da porta, para alívio de Esperanza.
Juarez já retomara sua máscara de inocência quando a porta se abriu para um homem aparentemente atarantado, sem saber a quem prestar contas do ritual. Foi Esperanza, agradecida por sua presença, quem o recebeu e ajudou com os preparativos. Enquanto o padre tirava de sua bolsa marrom a tiracolo um crucifixo de madeira de cerca de um palmo de altura e a jovem desocupava a cômoda para que ele ali alinhasse as armas de que dispunha contra o Mal, Juarez recomeçou: “Tola. Acreditas mesmo que este é um homem de Deus? Vi como o varapau olhou para ti, Esperanza! E gostaste, não é, vagabunda?”
Como quem não ouve, Lorenzo trocou a paisagem a óleo sobre a cabeceira pelo crucifixo, pegou o frasco de água benta, fez o sinal da cruz e recitou ao demônio: “Exorcizamos te, omnis immunde spiritus, omnis satanic potestas, omnis infernalis adversarii, omnis legio, omnis congregatio et secta diabolica, in nomine et virtute Domini nostri Jesu Christi”. [Nós vos exorcizamos, cada espírito impuro, cada poder satânico, cada ataque do adversário infernal, cada legião, cada grupo e seita diabólicos, em nome e sob o poder de nosso Senhor Jesus Cristo.] Fez o sinal da cruz e abriu o frasco.
Com igual indiferença, o demônio se pôs a discursar em inflexão de orador: “A fraqueza moral vem com a fraqueza física. Deus fez os fracos assim para que sejam dominados pela força. Não veem que a única vítima disto tudo sou eu, aprisionado em minha própria casa, impedido de cumprir meus desígnios? O Bem está comigo, não com este farsante. Deus me...” O discurso foi interrompido por pingos de água benta, que ao menor contato com a carne de Juarez se evolaram ruidosamente em vapor sulfuroso. Unhas arranharam o pé da porta e sussurros indistintos cresceram por todos os lados, feito coro emerso das profundezas da terra. Com um silvo, o demônio franziu a testa borbulhante e lutou para libertar os pulsos. “Mortais tolos! Achais que o prendeis aqui por quanto tempo?” Tanto Esperanza como Lorenzo deram um passo atrás. Na altura da virilha de Juarez, uma área do lençol começava a subir lentamente, como se levitasse. “Desenha isto, artista!” Com elasticidade inumana, ele dobrou a coluna e agitou a língua comprida a milímetros do falo. “Embora eu preferisse tua boquinha delicada em lugar da minha. Vem mamar, vem, bezerrinha. Mama que te darei todo o meu leite. Aposto que este lobo em pele de cordeiro gostará de te ver engolir tudinho. Deve estar de pau duro debaixo da batina só de ouvir. Não estou certo, padreco?” Uma lufada de ar quente entrou pela janela, fazendo o crucifixo se soltar do prego, quicar na cabeceira da cama e cair para o chão em posição invertida. “Ordeno que o solteis, ou vos arrependereis de vossa teimosia! Soltai este homem neste exato momento!”
Neste exato momento os dois homens trocaram olhares significativos. Lorenzo se reaproximou, molhou as mãos com saliva e tocou as orelhas de Juarez, dizendo: “Ephpheta, quod est, Adaperire”. [Abre-te!] Tocou as narinas, dizendo: “Tu autem effugare, diabole”. [Fora, diabo!] Isto pareceu atordoar Juarez. Como se em choque, se encolheu na cama até fechar os olhos e gradualmente relaxar os membros. Lorenzo perguntou: “Abrenuntias satanae?” [Renuncias a Satã?]
“Abrenuntio.” [Renuncio.]
O padre mergulhou o polegar no Óleo dos Catecúmenos e ungiu Juarez no peito e ombros em forma de cruz, dizendo: “Ego to linio oleo salutis in Christo Jesu Domino nostro, ut habeas vitam aeternam”. [Unjo-te com o óleo da salvação em Jesus Cristo, nosso Senhor, para que tenhas vida eterna.] “Credis in Deum Patrem omnipotentem?” [Acreditas em Deus todo-poderoso?]
“Credo.” [Acredito.]
“Vis baptizari?” [Queres ser batizado?]
“Volo.” [Quero.]
Lorenzo limpou com algodão o polegar e os lugares ungidos e derramou água de batismo sobre Juarez em forma de cruz três vezes, dizendo: “Ego te baptizo in nomine Patris (derramou a água) et Filii (derramou a água) et Spiritus (derramou a água) Sancti. Pax tibi”. [Batizo-te em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Que a paz esteja contigo.] Pôs na cabeça de Juarez um pedaço de linho branco, dizendo: “Accipe vestem candidam, quam perferas immaculatam ante tribunal Domini nostri Jesus Christi, ut habeas vitam aeterna”. [Recebe esta vestimenta branca, que deves manter imaculada diante do julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, para que tenhas vida eterna.]
Uma última frase em latim selou o silêncio. Com alívio, como quem se prepara para um almejado descanso, Juarez deixou a cabeça afundar no travesseiro e fechou os olhos. Apesar das lufadas tempestuosas que varriam o cômodo pelas duas janelas situadas em paredes adjacentes, o ar saturado cheirava a leite azedo, lenha queimada e enxofre. De todo o ritual, Esperanza capturara três esboços a serem acabados com o tempo e calma adequados, pois naquele momento suas mãos tremiam tanto que seriam incapazes de traçar uma reta.
“Shhh. Está tudo bem, está tudo bem agora”, Lorenzo tentou acalmá-la. “Não há mal que vença a fé.”
Era fato. Estava realizado, provado, registrado. O triunfo das leis de Deus sobre as dos homens.
Depois de agradecer pela boa vontade e serviço prestado, Lorenzo pediu que Esperanza se fosse, pois ele próprio trataria de libertar Juarez. A jovem deixou o quarto reconfortada, embora ainda abalada demais para pisar na rua sem a companhia do padre. Narrava a Yolanda os passos finais do ritual quando a serviçal a interrompeu:
“Mas Juarez nunca aprendeu latim, para responder ao padre nesse idioma depois do exorcismo. Sequer frequentou dois anos de escola sem arranjar uma expulsão.”
A revelação trouxe de volta uma visão a Esperanza; a última imagem vista antes de sair do quarto, à qual ela talvez não tivesse dado a atenção devida.
Os olhos. Aqueles olhos cinza capazes de refletir chama de vela alguma.