Quando meus pais chegaram, não paravam de fazer perguntas cujas respostas não queriam ouvir. Ou ficavam me acusando de ter começado tudo ou me olhando com ar desconfiado. Quem quer que tivesse fofocado sobre a briga, com certeza tinha contado também o motivo, e até onde eu sabia isso ainda era novidade para os dois. O resultado foi uma série de proibições absurdas, inclusive a de fechar a porta do quarto, o que não chegava a ser uma surpresa, já que ninguém na família parecia saber o que é individualidade a não ser quando ela serve a propósitos egoístas como fugir para a Disney largando o filho pré-adolescente sozinho em casa por duas semanas. Toda essa hostilidade, somada ao alcoolismo do meu pai e às escandalosas brigas de casal a qualquer hora do dia ou da noite, só fez me empurrar ainda mais para fora de casa, parte do tempo de volta para o clube, onde às vezes eu tinha o azar de encontrar o carinha homofóbico. Quando isso acontecia, geralmente ambos na companhia de amigos, trocávamos olhares tortos, mas não passava disso. De qualquer jeito, cada um costumava andar para um lado do clube, até porque não tínhamos nada em comum, fosse em matéria de esportes, hobbies ou estilo de vida. Enquanto eu trabalhava para bancar meu lazer e ocupar a cabeça até o início do primeiro período da faculdade, o cara era conhecido por levar uma vida de playboy: da academia para o clube e do clube para a balada, além de ter a maior fama de galinha. Foi assim por mais ou menos um mês, até um dia em que ele apareceu com um amigo e eu estava sozinho. Dessa vez passou mais de uma hora onde Pablo e eu ficávamos, a área que compreende um bar e uma sala de jogos, sempre vigiado pelo meu olhar desconfiado por cima do livro que eu andava lendo ou da seção de esportes do jornal. Por ali tinha também um daqueles quadros magnéticos com ímãs de letras, que eles usaram para me deixar um recado quando fui ao banheiro: na volta, encontrei a palavra VIADO escrita no quadro e as outras letras escondidas para impedir uma resposta. Troquei o A e o I de lugar, coloquei o D no meio e deixei lá para ele. VADIO. Sem esperar a reação do cara, como eu também não sabia se ele tinha visto a minha, saí para a academia e passei as próximas duas semanas bem longe do clube, cansado daquela brincadeira. Mas o acaso também queria brincar comigo. Entrando no vestiário numa manhã de domingo, eis que encontro Lucas de novo. Sozinho. No vestiário vazio. Só de sunga preta, meio de perfil, metade da cara atrás da porta do armário, uma toalha branca jogada sobre o ombro de lá. Era a primeira vez que eu o via sem camisa. Sem exagero, que físico de deus grego! Eu tinha um corpo legal, resultado de dois ou três treinos semanais, mas o dele levava a competição para outro patamar. Era a própria definição da perfeição, liso fora alguns pêlos no peito e abaixo do umbigo, levemente bronzeado, nem magro nem musculoso demais, com abdômen de tanquinho, bunda redonda e um volume considerável. Eu não costumava fantasiar com héteros, autênticos ou de fachada, mas aquele corpo e a carga sexual por trás daqueles olhos confusos estavam me deixando aceso e muito curioso sobre a tão protelada perda do cabaço. Enquanto eu viajava naquele corpo, começando a delirar uma cena de filme — o cara aparecendo sem avisar na minha casa numa noite chuvosa, bocas se encontrando, línguas se enroscando num beijo urgente, mãos arrancando as roupas um do outro a caminho da cama —, ele fechou a porta com um baque alto e se virou na minha direção. Foi só dar um passo e parou, surpreso por me achar ali, mas logo depois recuperou a arrogância de sempre: "E aí, ainda não desistiu de ser viado?" Eu não sabia se o largava falando sozinho ou se caía na pilha de novo. Mais um barraco daqueles e acabaríamos os dois expulsos do clube. Ah, foda-se! "Eu sou gay. E quem disse que é uma escolha?" "São seus atos que te definem." "Pra mim o que define a orientação sexual são os desejos. O resto é máscara. E aí você se ofende quando alguém se permite o que você não se permite." "As pessoas se ofendem porque vocês se permitem o que não devem. Não têm limites. São promíscuos demais." "Nem todos." "A maioria é." "Como a maioria dos homens héteros. Desde quando vocês têm moral pra apontar o dedo pra alguém? Principalmente você." A resposta pareceu deixá-lo perdido. "É por isso que você pega todas, Lucas? Porque acha que seus atos te definem? O que está tentando provar?" levantei a voz e seus olhos fugiram para a parede atrás de mim. Dois segundos de triunfo antes do som do gongo, ou melhor, da chegada de dois caras que entravam para tomar uma ducha. Pensei em aproveitar a deixa para ir cuidar da minha vida, mas nem eu nem ele se mexeu. Como num duelo, ficamos parados um de frente para o outro, cada um estudando o oponente. Meu olhar passou de relance pelo seu corpo, correu o vestiário ainda vazio com exceção dos dois na ducha e voltou para seu rosto. Não demorou muito e os caras saíram direto. Assim que largaram a porta rangendo nas dobradiças, Lucas declarou em tom inexpressivo: "Seu discurso não me convence". Toda aquela espera para ouvir isso. Eu devia estar maluco mesmo, era pura perda de tempo. "Desde que fique na sua, pode acreditar no que quiser. Isso não é problema meu, do mesmo jeito que minha orientação não é problema seu." Virei as costas, pronto para sair também, mas então sua mão pousou no meu ombro. Caralho, ia começar tudo de novo! "Espera aí, cara", sussurrou atrás de mim. Quando me virei, sua expressão parecia desarmada. "Por que você gosta de homem?" "Pelo mesmo motivo que os héteros gostam de mulher. Se fosse uma escolha, por que você acha que alguém ia querer sentir atração pelo mesmo sexo numa sociedade atrasada e preconceituosa como a nossa? Pra ter que passar a vida toda se defendendo dos ataques de gente como você?" A última frase saiu mais ríspida que eu pretendia. Olhei para o chão, mas ele já tinha acusado o golpe. "Como se vocês também não fossem preconceituosos." Arqueou as sobrancelhas. "Muitos gays discriminam até bissexuais, afeminados e lésbicas. Não faz o menor sentido. Arco-íris da diversidade..." Pois é. O ciclo do abuso continua; nos sentimos melhor quando fazemos outros de vítima. A resposta me deixou sem reação, talvez até no lucro por ele não ter mencionado também o machismo, o racismo e o elitismo. Até eu perceber uma coisa: "Como você sabe como 'muitos gays' pensam?" Avancei dois ou três passos enquanto ele recuava, acuado. Não foi para mudar de assunto nem nada, mas aquele tinha sido um argumento bem informado, né? "Andou 'pesquisando' na Internet? Ou quem sabe... in loco?" Literalmente contra a parede, ele desviou o olhar e escapou para o lado, amarrando a toalha na cintura. "É que eu vou numa balada que fica do lado de uma balada gay e às vezes ouço eles conversando." "Hum. Só isso?" O silêncio foi longo o suficiente para ele se perguntar umas cinco vezes se devia ou não falar. Enfim, pigarreou e disse: "Eu sou hétero, mas de vez em quando gosto de bater uma no cinema pornô... E lá também vão uns gays". Fixou em mim aqueles olhos grandes que na luz fria do vestiário pareciam de um verde bem sujo, contrastando levemente com os cabelos castanho-claros. "Vendo que tipo de pornô?" "De buceta, lógico!" "OK..." falei na entonação mais reticente possível. "Porque você só gosta de buceta..." "Onde quer chegar?" Olhei em volta só para conferir se não tinha mesmo ninguém no vestiário. Estávamos mais para o fundo, perto dos chuveiros e longe da porta barulhenta. "Vamos fazer um teste?" "Que tipo de teste?" "Relaxa. Se você não gostar, não gostou." Fui me aproximando enquanto ele recuava na medida dos meus passos, até o vestiário acabar e suas costas nuas se chocarem contra a parede. Parei à distância de um beijo, mãos espalmadas nos azulejos de cada lado da cabeça da presa, que observava meus movimentos com olhos arregalados. "Está maluco?" Foi quase um sussurro. "Se é mesmo hétero, por que a insegurança? Medo de descobrir alguma coisa?" falei à mesma distância, olhar travado no dele. "Claro que não. Sei quem sou." "Então acho que não vai sentir nada se eu fizer isso, né?" 'Isso' era uma manobra impulsiva e um tanto arriscada: devagar, para não acuá-lo demais, estiquei o pescoço e rocei a boca do seu ombro até atrás da orelha, deixando ali o calor da minha respiração e recebendo em troca o cheiro da sua pele. Limpo e agradável, mas ao mesmo tempo pessoal, sem nenhum traço do perfume artificial e estéril dos produtos higiênicos. Só o cheiro e o calor do seu corpo, sem disfarces. Dessa vez sem tocar a pele arrepiada, fui descendo até o umbigo, interrompi a descida e percorri o caminho de volta até a orelha, sempre preparado para uma possível agressão. Em vez disso, Lucas se limitou a deitar o rosto meio de lado. Além do calor, tinha agora o som da minha respiração no seu ouvido. Isso pareceu quebrar de vez sua resistência e ele deixou escapar um suspiro entrecortado. Virei suavemente seu rosto de volta. Esperava uma resposta, mas ali só havia outro ponto de interrogação. Ele não se lembrava mais da pergunta. "E aí? Não sentiu nada?" "Não. Não mesmo", negou descaradamente o que o corpo já gritava, como se eu não pudesse ver o volume bem marcado na toalha. "É? E se eu fizer isso?" Encaixei a mão na sua cintura e rocei o polegar para cima e para baixo no seu abdômen contraído. "Eu já disse..." Ele não terminou a frase; eu estava descendo aos beijos pela barriga de tanquinho, vendo de esguelha seus olhos começarem a se revirar. Na altura da borda da toalha, ele deu um salto e saiu marchando. Foi parar no outro lado do vestiário, mão apoiada no alto da parede, cabeça baixa, respiração pesada. "Que foi?" perguntei a meia distância. "Eu já disse, porra! Não me toca!" "Só me dá um motivo." Longa pausa. Quem quebrou o silêncio não foi nenhum dos dois, mas um grupinho que entrava batendo papo. Na hora nem deu para ver quantos eram. Com o susto, cada um de nós correu para um lado, ele para o chuveiro e eu para perto dos armários. Abri a porta do meu nicho, felizmente situado na parte inferior, e fingi procurar qualquer coisa ali até estar em condição de sair. Depois disso, foi a vez do Lucas ficar sumido do clube por três semanas.
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