Era manhã de terça-feira e eu tomava café da manhã em meio à costumeira bagunça matinal da minha casa. Eu devia estar deixando transparecer o bobo apaixonado que eu era, porque minha mãe logo percebeu e entendeu tudo. Ou quase tudo:
_Qual o nome dela?
_Hã? Que?_ falei voltando à realidade. Não entendi de primeira o rumo daquela conversa.
_Qual o nome dela?
_Dela quem?
_Ora, da garota por quem você está caidinho!
_E-eu?_ comecei a gaguejar _Você-cê tá imaginando coisas.
_Pode falar, eu sou sua mãe!
Minha mãe era sufocante. Apesar de sempre ter trabalhado fora, sempre se dedicou muito a mim e a meus irmãos, sacrificando suas horas de descanso para ficar com a gente. Quando você é criança isso é ótimo, mas quando nos tornamos adolescentes, passamos a repudiar esse tipo de carinho e preocupação materna excessiva. E quando nós quatro viramos adolescentes, o nível de carência da minha mãe aumentou muito em vez de diminuir. Mamãe passou de carinhosa e preocupada para sufocante e intrometida. Por eu ser o único a ter herdado a personalidade calma do meu pai, bem como seu horror a conflitos, eu sofria pouco com essa sua mudança de personalidade. Com meus irmãos, cada dia era uma briga diferente. Pelo jeito, aquela seria a minha vez.
_Não tem garota nenhuma, mãe.
_E esse olhar perdido aí? Você acha que eu sou boba? Vai contando, quero saber tudo.
_Não tem nada o que contar, mãe._ falei me desviando e pegando minha mochila.
_É a Alice? Pode falar, é a Alice, não é? Eu sabia!_ falava toda eufórica.
_Alice? Você pirou? Ela tá com o Pedro.
_Ele tirou ela de você?
_Que?_eu nem raciocinava direito mais, e já estava perdendo a paciência. _Ninguém tirou ninguém de ninguém. Aliás, não existe ninguém, ok?
_Lógico que existe! Tá escrito na sua cara? Por que você não me conta? Eu sou sua mãe, quero participar da sua vida.
_Existe um limite até onde eu quero que você participe da minha vida!_ falei me segurando o máximo para não gritar.
Apesar do meu tom raivoso, eu não estava com raiva dela. Eu estava nervoso porque ela chegou perto de ponto muito sensível para mim. Ela não podia descobrir nada, o melhor seria nem mesmo desconfiar de nada. Eu não gostava de ser encurralado daquela maneira. Vejam até aonde o medo de ser descoberto me levou: era a primeira vez que eu levantava a voz contra a minha mãe, ao menos conscientemente (quando a gente é criança não conta). Ela parou de falar na hora e ficou me encarando sem ação. Tiago, meu irmão mais velho, foi o primeiro a chegar à sala onde estávamos e ironizou a situação:
_Uau, dona Teresa, você conseguiu tirar até mesmo o Bernardo do sério? Fez o Bernardo certinho gritar? Parabéns, hein!
Eu fiquei envergonhado e abaixei a cabeça. Não queria pedir desculpa porque não me arrependi do que disse ou do tom que usei. Me virei para sair de casa, mas não sem antes escutar minha irmã gritar de algum lugar da casa:
_Bem-vindo ao clube, Bernardo!
Naquele estado de espírito que eu estava, eu tinha ignorado o quão difícil seria esconder minha relação com Rafael das pessoas que me cercam. Por mais que só nos encontrássemos escondidos, as pessoas eventualmente perceberiam que alguma coisa estava acontecendo. Eu teria que ser extra cuidadoso com aquilo tudo.
Eu ainda estava perdido em pensamentos quando cheguei na universidade e me deparei com uma cena inusitada. Pedro estacionou seu carro em frente ao prédio. Até aí tudo normal, ele ia de carro todo dia. O que me chamou a atenção foi quando ele deu a volta correndo no carro e abriu a porta do passageiro como um verdadeiro cavalheiro. E de lá, adivinhem, saiu Alice. Eu não aguentei e comecei a rir da cena. Pedro de cavalheiro e Alice de dama foi a melhor das comédias para mim. Acho que ri tão alto que os dois me notaram ali. Era difícil ver o que era predominante em suas expressões: raiva pelo deboche ou vergonha pelo flagra. Rapidamente os dois voltaram aos seus papéis de costume. Pedro relaxou o corpo e fechou a porta o carro, enquanto Alice caminhou para dentro do prédio sem nos esperar.
_Pelo jeito, as coisas estão indo bem, hein?_falei
Ele ficou sem jeito e coçou a cabeça, mas não conseguiu conter um sorriso de felicidade. Aliás, o mesmo sorriso que eu estampava mais cedo e me causou problemas em casa.
_É... Estão melhores, mas não tá tudo perfeito ainda.
_Por que?
_Ela é jogo duro, Bernardo!_ ele falou em tom de desabafo enquanto entrávamos no nosso prédio _Ela continua se fazendo de difícil.
_Mas vocês se beijaram no sábado e vieram juntos hoje.
_Pois é! Ficamos a noite toda, mas no domingo ela não atendeu nenhuma das minhas ligações. Só consegui falar com ela ontem na aula, e ela fica fazendo jogo duro, sabe, mantendo uma certa distância de mim. Tive que quase implorar para ela aceitar minha carona hoje. E isso é terrível, cara, parece que to mendigando a atenção dela.
Fiquei com dó de Pedro. Ele realmente gostava de Alice, não era simplesmente uma diversão boba ou uma distração para ele. Ele amava minha amiga, e não conseguia entender porque ela não dava uma chance a ele. Ela não precisava se apaixonar perdidamente à primeira vista por ele, mas poderia dar uma abertura para ele conquistá-la. Certo, ela o via como um babaca, mas se ela lhe desse uma oportunidade, ele mostraria que isso é só um disfarce, uma casca. Só o fato dele estar “mendigando” a atenção dela, como ele disse, já tornava Pedro um personagem tridimensional, com sentimentos muito mais profundos e complexos do que os preconceitos bobos que Alice não conseguia deixar de ver.
Eu duvido muito que Alice tenha caído no nosso planinho bobo, que tenha realmente acreditado na redenção de Pedro. Eu sempre soube que uma coisa assim não funcionaria com ela, o objetivo sempre foi outro. Com Pedro dando um passo para trás no seu preconceito, Alice tinha abaixado a guarda por alguns instantes e Pedro não perdeu essa oportunidade. Minha esperança é que essa pequena janela aberta por ela fizesse ela ver algo a mais em Pedro que a levasse a lhe dar uma chance, mas pelo jeito isso não aconteceu. Alice voltou a se fechar para Pedro, voltamos à estaca zero. Só que eu não podia dizer isso a Pedro, ia acabar com suas esperanças.
_Bom, eu vou conversar com ela. Ainda não tive chance desde sábado. Vou investigar o que está acontecendo._ falei.
_Muito obrigado, cara, você é um amigão!_ respondeu me abraçando de lado.
_Que isso, você faria o mesmo por mim._ rebati, sem muita certeza.
_Mas me conta, o que aconteceu pra você sumir pelo resto da noite.
_Ah..._ pensei numa desculpa rápido _A bebida não me fez bem, comecei a passar mal e achei melhor ir embora para não pagar um mico como da última vez.
_Ahh, tá. O Rafael depois procurou a gente e falou que estava indo embora, que você já tinha ido também.
_Ahh...
_E aquele lugar, velho? A Alice é louca.
_Ela só queria te testar, e pelo visto você passou no teste.
_Sim, mas foi difícil, viu. Foi duro ver aquelas nojeiras todas sem reação, e...
_Eu tenho que ir no banheiro, te encontro na sala, Pedro._ cortei ele. Não tava com saco para ouvir seu discurso homofóbico hoje.
Dei um tempinho parado num corredor e depois fui para a sala. Meu lugar já estava separado entre Rafael, Alice e Pedro, que conversavam amigavelmente. Quando entrei Rafa sorriu para mim e foi impossível não sorrir de volta. Ele não estava usando nada diferente, mas parecia ainda mais lindo do que era. Dava vontade agarrar suas bochechas e lhe prender num beijo ali mesmo, na frente de todos. Fui para meu lugar e sentei.
_Oi._ falou Rafa.
_Oi.
_Gostou daquele filme que eu te falei para alugar? Aquele do romance proibido entre dois jovens?_ perguntou com um sorriso sacana no rosto.
Era um jogo perigoso aquele que ele estava jogando, mas achei divertido e entrei nele.
_Gostei sim. Apesar de nunca ter gostado dessas histórias muito açucaradas, gostei do filme.
_Quando eu assisti, mal consegui dormir à noite porque o filme ficava se repetindo na minha cabeça.
_Aconteceu comigo também, cheguei a sonhar com o filme.
_Sério?
_Sério mesmo.
_E qual é o nome do filme mesmo?_ perguntou Alice nos interrompendo de propósito, ela tinha entendido tudo.
_Uai, você tá me enxergando aqui? Achei que eu estava invisível, porque você não respondeu quando eu te dei “oi” quinze minutos atrás lá na entrada._ respondi sarcástico.
_Idiota.
_Mal-educada.
_Precisamos conversar, você sabe, né?_ ela falou.
_Sei, e pode apostar que vamos conversar.
O resto da aula continuou sem nenhuma outra conversa muito produtiva.
Me chamou a atenção o fato de Eric ter faltado aula. Ele se abalou muito com o que tinha visto no dia anterior e foi impossível não voltar a me sentir culpado. Eu tinha que fazer alguma coisa. Mas eu estava sozinho nessa, Rafael não moveria uma palha para ajudar Eric. Talvez, fosse melhor ele nem mesmo saber que eu ia ajudar Eric...
No intervalo, eu e Alice estávamos a sós sentados numa mesa mais afastada na lanchonete. Empolgado, contei a ela tudo o que tinha acontecido comigo e Rafael desde aquele dia na boate.
_Meu Deus, me afasto de você por dois dias e já está namorando!
_Namorando não! Estamos apenas nos conhecendo...
_Aham, sei muito bem que parte do corpo um do outro vocês estão querendo conhecer.
_Que horror, Alice!_ respondi rindo me fazendo de ofendido _Nem é assim, estamos indo com calma. Quero fazer as coisas certas desta vez, para não pirar de novo. Por enquanto eu me contento com beijos.
_Nossa, você está de quatro por ele, não está?
_Eu... Eu não sei o nome disso, mas é maior do que o que eu sentir por Eric, bem maior.
_E você vai mesmo procurar o Eric?
_Eu tenho que fazer isso, a culpa está me consumindo.
_Eu te falei que esse plano de vocês não ia dar certo, não falei?
_Sério que você vai bancar o tipo “eu não te avisei?” agora?
_Mas eu realmente te avisei, né? E o que você pretende fazer para ajudar Eric?
_Ainda eu não sei. Vou conversar com ele. Sei que ele fica sozinho a tarde toda em casa, então vou lá para termos uma conversa.
_Seu namorado sabe que você está pretendendo ir se encontrar sozinho com seu ex?
_Rafael não é meu namorado e muito menos Eric é meu ex-namorado.
_Mas ainda assim ele vai ficar puto da vida quando souber.
_Ele não vai saber...
_Ahh, Bernardo..._ ela falou rindo _Você está caindo em outra situação “eu não te avisei?”, sabia?
_Deixa que de mim eu cuido, Alice. Vamos falar de pessoas que não sabem o que estão fazendo.
_Quem, por exemplo?
_Você, que está sendo fria com Pedro.
Ela bufou alto, revirou os olhos e se levantou da mesa, mas eu fui mais rápido e a puxei para sentar de volta.
_Eu fiz o que você queria, uai, dei uma chance pro troglodita, não tá feliz?_ falou já perdendo o tom de brincadeira na voz que vinha usando até ali.
_Eu vi vocês se beijando Alice, você tava super na dele. Nem vem me falar que não gostou, porque seu corpo dizia outra coisa.
Ela ficou inquieta na mesa, como ficava toda vez que não conseguia me responder satisfatoriamente.
_Ai, Bernardo, não me enche. Não quero ficar com ele e pronto. Você achou o que, que ia me empurrar para ele, eu ia beijá-lo e me apaixonar perdidamente por ele? Que no dia seguinte já estaríamos escolhendo os nomes dos nossos três filhos? Ah, para com isso, né?
_Qual é o problema de dar uma chance a ele? Ele já provou que pode ser uma pessoa melhor. Aliás, ele se tornou uma pessoa melhor por você. Ele está triste, sabia? Ele realmente gosta muito de você e você o trata como lixo.
_E o que você quer que eu faça? Fique com ele por pena? É isso?
Respirei fundo e prendi suas mãos entre as minhas, numa das raras vezes em que deixamos nossa animosidade de fora e fomos realmente carinhosos um com o outro.
_Eu sou seu amigo. Você está sempre querendo me ajudar e eu quero retribuir. O que está acontecendo? Eu vi você se entregando a ele de uma forma diferente, da mesma forma que me entrego ao Rafa quando o beijo. Isso não é uma coisa qualquer, não acontece todo dia com todo mundo. É uma coisa especial e você se recusa a se entregar, por que?
_Eu tenho medo, Bernardo!_ falou tirando a máscara de menina forte que sempre usava e se mostrando vulnerável.
_Medo de que?
_Ora, Bernardo, você acha mesmo que eu caí nessa que ele está se tornando uma pessoa melhor? Você subestima tanto assim a minha inteligência? Ele estava fingindo para me conquistar. Não me importo se as intenções dele comigo eram as melhores possíveis, eu ainda não gosto da pessoa que ele é. E eu não posso correr o risco de me apaixonar por uma pessoa como ele. Eu não quero me apaixonar por ele.
Ela se levantou e foi embora, sem nem me dar chance para lhe responder. Muita água ia ter que passar embaixo daquela ponte ainda para que Pedro e Alice se acertassem.
Era sexta-feira e eu e Rafael almoçávamos juntos num restaurante próximo à universidade. Para quem nos olhasse de fora, provavelmente parecíamos apenas dois amigos conversando animadamente. Mas não, eu estava cada vez mais apaixonado por ele. Aquela tinha sido uma semana maravilhosa e estávamos cada vez mais próximos, apesar de não termos passados de beijos ainda. Estávamos indo com calma, e estava gostando assim. Mas uma coisa ainda estava me incomodando muito: Eric. Ele ainda não tinha aparecido, tinha faltado uma semana de aula. Tentei tocar no assunto com Rafael, mas ele não foi muito receptivo:
_Deixa esse cara pra lá, Bernardo! A gente não deve nada pra ele, nem mesmo pena. Foda-se se ele quer tomar pau por frequência, não é problema nosso.
_Claro que é, Rafa. Nós fizemos isso. Um erro não justifica o outro.
_Pode até ser, mas isso não significa que devemos passar a nos preocupar e zelar pelo bem estar dele. Você esqueceu como ele tentou te atingir naquele dia no banheiro? Você realmente acha que uma pessoa assim merece nossa preocupação?
_Ele estava magoado e ferido, não dá pra levar aquilo em consideração.
_Por que você defende tanto ele?_ perguntou começando a perder a calma da sua voz.
_Por você o odeia tanto? Ok, ele errou com a gente, mas achei que já tivéssemos seguido em frente com isso.
_E seguimos! Eric não é mais nada para mim._ vi seus olhos brilharem estranhamente _É alguma coisa para você?
Rafael estava com ciúme de Eric. Eu não tirava a razão dele, eu batia muito na tecla e, para todos os efeitos, Eric era meu ex. Ninguém se sentiria confortável nessa situação, mas eu também não conseguia me sentir confortável deixando as coisas como estavam. Eu não ia deixar as coisas como estavam, só precisava fazer Rafael entender isso.
_Ele é uma pedra no meu sapato. Eu posso continuar seguindo em frente deixando as coisas como estão, mas seria doloroso e desconfortável, algo estaria sempre errado. Você não tem porquê ter ciúme dele. Não tem a mínima chance de voltar acontecer algo entre nós dois._ respondi olhando dentro dos seus olhos.
Ele sorriu satisfeito com a resposta e roçou a perna carinhosamente na minha embaixo da mesa, já que não podíamos trocar carícias em público. O assunto morreu ali, mas não saiu da minha cabeça. Rafael me deixou em casa e prometeu me ligar mais tarde para combinarmos de sairmos juntos. Ele até queria que passássemos a tarde juntos, fossemos ao shopping, talvez pegar um cinema, mas menti que tinha consulta no dentista. Eu tinha outros planos para a minha tarde.
[...]
Lá estava eu, em frente ao prédio de Eric batendo campainha. Eu sabia que durante a tarde ele ficava sozinho em casa, então pensei ser essa uma boa hora para conversar com ele. Logicamente, Rafael nem sonhava com o que eu estava fazendo no momento, mas eu pretendia contar. Algum dia...
O porteiro me anunciou no interfone e pude notar que a resposta demorou um pouco. O portão se abriu e eu subi para o apartamento de Eric. Bati na porta. Os passos do lado dentro eram calmos, como se não tivessem a mínima pressa em me atender. Eric abriu a porta e nos encaramos. Ele estava uma bagunça. Só de cueca, suado, o cabelo todo atrapalhado e a cara amassada. Me perguntei se ele estava dormindo e eu o acordei.
_O que você quer?_ perguntou seco sem me convidar para entrar.
_Conversar com você. Podemos?
Ele me olhava muito intensamente, enquanto eu admirava aquela tristeza misteriosa contida em seus olhos. Ele hesitou por um momento antes de me dar passagem para entrar. Sentei num sofá na sua sala de estar e esperei que ele se sentasse também para conversarmos, mas ele preferiu permanecer de pé. Eu não estava nem um pouco confortável em ficar sozinho com ele de cueca, era quase uma traição a Rafael.
_Te acordei?
_Não._ respondeu seco sem tirar os olhos de mim.
Ouvi um barulho vindo de dentro da casa. Me perguntei se havia mais alguém ali além de nós dois, e fui logo respondido. Um rapaz moreno, alto, forte, muito bonito, aparentando alguns vinte e tantos anos apareceu acabando de vestir a camiseta. Fiquei ainda mais desconfortável ao perceber que escolhi uma péssima hora para visitá-lo. Mais desconfortável ainda foi o que veio em seguida.
_Já estou indo._ anunciou o rapaz com uma voz de trovão.
Eric se dirigiu a uma mesinha de centro, pegou sua carteira, tirou de lá algumas notas de cinquenta reais e entregou ao rapaz, que as contou e depois colocou no bolso.
_Quando precisar é só chamar.
_Pode deixar.
E o cara passou pela porta. Meus olhos estavam parados, tentando digerir o que tinha acabado de ver. Contratar garotos de programa, mais uma pra lista de excentricidades de Eric.
_Então, qual o assunto?_ falou ignorando minha surpresa.
_É... Eu..._ demorou um tempo até eu reaprender a falar _Por que você não foi à aula essa semana?
_Por que quer saber, sentiu a minha falta?_ perguntou ironicamente.
_Eu fiquei preocupado, você sumiu depois daquele incidente no banheiro.
_Incidente? É assim que vocês chamam aquilo?
Não gostei do tom que ele usou para se referir à minha relação com Rafael, mas relevei, não tinha ido lá para brigar.
_Sim, foi um incidente. Não era para você ter visto aquilo.
_Não importa, um dia eu ficaria sabendo, não?
_Sim, mas poderíamos ter preparado o terreno antes.
Ele me olhou intrigado.
_Por que você se preocupa comigo?_ percebi que ele estava deixando de lado o tom agressivo.
_Porque, apesar de tudo, eu ainda acho que você é uma boa pessoa. Você errou, mas eu também errei com você. Você estava certo quando falou que eu nunca tentei fazer com que nós déssemos certo.
_Eu me apaixonei por você...
Seus olhos estavam cheios de lágrimas e meu peito doeu com aquilo. Eu não conseguia ver aquilo sem fazer nada. Qualquer pessoa racional não teria feito isso, mas eu sentei ao seu lado e o abracei. Ele pousou a cabeça no meu ombro e ficou chorando.
_Me desculpe, Eric, eu não devia ter te enganado com fiz. Minha cabeça ainda está muito confusa com essa coisa toda de ser gay. Eu não estava pronto para me relacionar mais seriamente com outro cara.
_E o Rafael?_ respondeu sem levantar a cabeça.
_Com ele foi diferente... Não teve como segurar nada, foi uma coisa muito forte. E ele tomou as rédeas, me deixou sem escapatória, quando vi já estávamos namorando.
Ele deu uma fungada alta.
_Você o ama?_perguntou.
_Amo._ respondi sem coragem de negar.
Ele se levantou com o rosto já vermelho de choro.
_Eu te amo mais que ele, me dê uma chance!
_Não é assim que funciona, Eric.
Ele avançou para cima de mim para roubar um beijo, mas fui mais rápido e me afastei.
_Não foi para isso que vim aqui.
_E foi para o que, então?!_ falou gritando comigo _Para esfregar na minha cara que vocês dois estão muito mais felizes sem mim?
_Não, claro que não. Vim aqui para que todos nós pudéssemos seguir em frente sem mágoas.
_Eu não vou limpar a sua consciência, Bernardo.
_Então, você nunca terá a sua limpa também.
Não queria partir para aquele discurso agressivo, mas já tinha perdido o controle daquela conversa há muito tempo.
_Pode ficar tranquilo, com minha consciência me preocupo eu.
_Pra quê que vim aqui?!_ explodi _Eu devia ter escutado Alice e Rafael. Me preocupar com você é uma tremenda perda de tempo.
_Você veio aqui por se preocupar comigo ou simplesmente para tirar esse peso das suas costas?!
_Um pouco dos dois, sabe, porque nem todo mundo é capaz de seguir em frente depois de machucar alguém.
_Como Rafael faz?
Eu me detive e o silêncio foi como uma vitória para Eric, que abriu um sorriso ao perceber isso. Eu não tinha como contra-argumentar. Eu estava apaixonado por Rafael, mas não podia ignorar o fato de que algumas de suas atitudes me assustavam.
_Tá vendo?_ Eric voltou a acalmar a voz e se aproximar de mim _Como você pode ter certeza que quer ficar uma pessoa como ele? Com todos os meus defeitos, eu ainda devo ser uma pessoa melhor que ele.
_Não é uma questão de quem é melhor ou pior._ falei decidido a terminar aquele papo de uma vez por todas _A questão é que eu me apaixonei por ele e não por você.
E saí andando em direção a saída sem esperar por uma resposta. Ter ido ver Eric foi um erro. Ele não queria seguir em frente, ele gostava de viver abraçado ao que poderia ter sido. Ele simplesmente não queria ser ajudado, então eu deveria lavar as minhas mãos. Chegava a dar raiva em pensar que ao ter ido lá, eu poderia ter machucado Rafael em troco de nada.
_Bernardo! Espera!
Me detive na porta e pensei por alguns segundos antes de me virar de novo para dentro do apartamento para ouvir o que ele ainda tinha por dizer.
_Me desculpe._ ele falava com os olhos cheios de lágrimas _Eu não tenho o direito de criticar você ou ele. É só raiva, sabe? Eu perdi vocês de uma só vez. Eu perdi meu chão. Olha para esse apartamento! Está vazio! Cadê meus pais? Eu não sei! Por aí sem nem se importar em como eu estou. Eu acabei de chegar aqui, não conheço ninguém nessa maldita cidade. As pessoas da faculdade não querem ser meus amigos por terem medo de, sei lá, que os contagie com uma doença terrível. Eu estou sozinho, Bernardo.
Eric chorava e eu estava prestes a começar também. Eu sentia um aperto muito forte no coração ao ouvir aquilo.
_Você e Rafael eram tudo o que eu tinha, e de repente eu não tinha mais. Eu sei que errei ao enganar vocês dois, mas foi um erro inocente, como uma criança que passa mal ao comer muito doce. Vocês dois surgiram com todo o sexo, os carinhos, as companhias para a tarde e eu me afoguei nelas. Eu não conseguia me livrar de nenhum de vocês. Me desculpe.
Ele se deixou cair sentado no sofá com as mãos na cabeça e ainda chorava.
_Eu sei que Rafael não vai me perdoar. Mas você pode. Você é uma boa pessoa, eu sei.
Eu me segurava para não chorar também.
_Eu já te perdoei, Eric. Nós dois erramos muito. Só que não tem mais como termos mais nada, muita água passou por baixo dessa ponte. Agora existe o Rafael.
_Nós podemos ser amigos!
_Eu não sei...
_Rafael não precisa saber! Digo, não precisa saber agora, a gente deixa ele superar um pouco isso tudo e aí eu volto a me aproximar dele. Só não me abandone, Bernardo.
_Não é o Rafael, Eric. Aliás, é, mas não só ele. Você me assusta Eric. Num momento você está me falando palavras doces e no outros está me atacando. Eu não sei se consigo ser amigo de alguém tão volátil, que você não sabe se é confiável, se no segundo seguinte vai estar contra você.
_Foi tudo num momento de raiva! Eu não sou assim, eu juro! É o desespero pela situação.
_Eric...
_Por favor, Bernardo, não me deixe sozinho._ falou segurando minhas mãos.
Eu ia me arrepender daquilo, eu sabia, mas não podia ir embora e deixá-lo naquele estado miserável. Não era do meu caráter virar a cara para alguém tão necessitado.
_Ok, Eric._ falei enquanto ele me abraçava.
_Obrigado!
_Mas Rafael não pode saber por enquanto. Me dá um tempo para contá-lo. Até lá, continue mantendo uma distância segura de nós dois.
_Tá..._ ele falou se recompondo.
Eu com certeza viria a me arrepender daquilo. Como eu faria Rafael aceitar minha amizade com Eric? Estávamos juntos há uma semana e eu já estava mentindo para ele.
_Agora eu tenho que ir, Eric. Te vejo na aula segunda-feira, ok?
_Ok._ respondeu me abraçando novamente _Muito obrigado.
Quando eu já estava cruzando a porta, Eric me chamou mais uma vez.
_Sim?
_Me liga de vez em quando, Bernardo? Só para saber se eu estou bem...
_Eu ligo, pode deixar._ respondi com dificuldade.
Só quando fechei a porta atrás de mim, eu me permiti deixar que as lágrimas caíssem.
_Pra onde você está me levando? Deixou de ser romântico a dois quilômetros atrás.
_Para de reclamar, Bernardo. Juro que vai valer a pena.
Rafael tinha conseguido me arrancar da cama cedo no domingo com a promessa de um programa muito romântico. Mas fez segredo, só falou para eu colocar uma roupa leve e tênis. Juro que tentei conter minha cara de decepção quando percebi que ele tinha me levado para fazer trilha no parque do Rola Moça, ao sul de Belo Horizonte.
Eu não era uma pessoa muito afeita a esportes, nunca fui, só mesmo natação. Abdicar da minha cama num domingo de manhã pra subir e descer montanhas de mato fechado não era o que eu chamaria de programa romântico. Até tentava disfarçar para não estragar o prazer de Rafael, que parecia gostar muito daquele tipo de coisa, mas chegou um ponto que o cansaço falou mais alto.
_Rafael... Sério..._ eu me segurava ofegante numa árvore _Acho muito legal sua intenção, mas eu não to curtindo não.
_Você é um sedentário mesmo._ falou se virando para mim rindo _Mas aguenta uma caminhadinha.
_Caminhadinha? Estamos caminhando há quase uma hora!
_Pois é, e ainda tem a volta.
_Puta que pariu!_ falei ao lembrar daquele detalhe.
Ele riu parecendo se divertir muito com aquela situação.
_Vem._ falou me dando o braço e me puxando _Estamos quase chegando a onde eu queria.
Andamos mais uns dez minutos, ao que parecia ser o ponto mais alto do lugar. Um pouco mais a frente havia uma clareira. Rafael olhou pra mim com seu lindo e travesso sorriso me oferecendo a mão. Sorri de volta sem jeito, fascinado com sua beleza, seu jeito, seu carinho. Lhe dei a mão e fomos caminhando de mãos dadas até a clareira.
_Olha._ ele falou apontando pra frente.
Era de tirar o fôlego. Parecíamos estar no alto do parque. De lá se via um sem fim de montanhas cercando a parte mais sul de Belo Horizonte. Era um lugar que trazia tanta calma. Nada poderia nos atingir enquanto estivéssemos ali. Rafael chegou por trás e me abraçou, pousando seu queixo no meu ombro. Ambos estávamos suados e ofegantes, mas não importava. Eu simplesmente desliguei todas as minhas defesas, tirei tudo da cabeça, relaxei os músculos e deixei que o ar saísse lentamente. Nada mais importava, só eu e Rafael.
_Valeu a pena?_ perguntou.
_Sim... Obrigado por me trazer aqui.
_Obrigado por estar aqui comigo.
Nos viramos de frente um para o outros e nos beijamos. Foi um beijo bem calmo e suave, como se para que cada milésimo segundo fosse sentido e aproveitado completamente. Não havia nenhum outro lugar do mundo onde eu gostaria de estar. O abraço de Rafael era tudo o que precisava.
_Então, vamos almoçar?_ perguntou depois de um longo beijo.
_Almoçar aonde? Estamos no meio do nada.
_Não exatamente._ ele fez uma cara de travesso _Tem um restaurante há dez minutos daqui. Depois a gente pega uma carona até onde está o meu carro.
_Senhor Rafael, quer dizer que você poderia ter deixado o carro há dez minutos daqui e evitar essa caminhada?!
_Sim, mas qual seria graça?_ respondeu rindo.
Lhe respondi com um soco no braço. Ele reagiu rindo mais alto ainda e me roubando um beijo.
Era tão bom o clima romântico que estávamos que eu não conseguia contar-lhe nada sobre Eric. Viraria uma briga com certeza. Eu tinha consciência que não podia esconder aquilo dele e que quanto mais eu adiava, maior ia ficando aquela bola de neve. Mas eu disse para mim mesmo, “hoje não, amanhã eu conto”. Só que nessa brincadeira, já tinha se passado uma semana, Eric já havia voltado às aulas e sempre me chamava no MSN para conversar. Eu não tinha coragem de contar sobre isso nem para Alice. Eu me envergonhava porque não deixava de estar traindo a confiança de Rafael ao lhe esconder algo desse tipo. Mas naquele domingo, eu não pensava em nada disso, eu estava muito bem.
Eu estava tão feliz, tão em paz e apaixonado por Rafael, que eu nem me importava com o que as pessoas pensariam de ver dois caras almoçando sozinhos em um restaurante tão caro. Possivelmente, não pensariam nada, não veriam nada demais, mas minha paranoia estava sempre lá. Só que naquele dia ela tinha dado uma folga. Nada poderia nos atrapalhar. Era o que eu achava.
_Então, eu queria marcar um programa para nós dois na sexta, o que você acha?_ ele falou.
Ainda estávamos almoçando. Eu vi que ele estava falando com um ar mais tímido, diferente do jeito brincalhão costumeiro e presente momentos antes, mas não percebi de imediato o rumo da conversa.
_Claro! O que você quer fazer?
_Sei lá, alguma coisa mais... Íntima. Quero dizer, só nós dois, e tal..._ ele estava nervoso.
_Sair pra jantar? Eu não sei, Rafa, você sabe o que eu penso de dois caras jantando sozinho.
_Tá, eu sei, mas não tava falando disso.
_Então? Você planejou alguma coisa?
Ele estava vermelho, o que era muito incomum para ele.
_É que... Olha vou falar de uma vez: meus pais vão viajar e eu quero que você venha dormir comigo lá em casa.
Ele olhava pra mesa, não para mim, ainda envergonhado. Eu me assustei e pousei no prato a colher que eu ia levar a boca. Achei muito fofo sua timidez com o assunto, mas realmente me assustei com sua proposta. Lógico que eu já tinha pensado no assunto, eu desejava Rafael de um jeito que eu não havia desejado ninguém. Eu era atraído pela beleza do seu rosto, do seu corpo, do seu jeito de ser. Ele me seduzia apenas sendo ele mesmo. Se ainda nada havia acontecido foi por falta de oportunidade e pela correria que nós vivíamos com a proximidade do final do período.
_Eu aceito._ falei também envergonhado e enchendo a boca de comida para disfarçar.
Ele levantou a cabeça já com um sorriso enorme. Como não podíamos demonstrar carinho assim em público, ele roçou sua perna na minha por debaixo da mesa. Estávamos tão perdidos nos olhos um do outro, que nem notamos a aproximação de Pedro.
_Uai, o que vocês estão fazendo aqui?_ falou colocando a mão em nossos ombros.
Ao mesmo tempo que ouvi sua voz, senti um arrepio gelado descendo pelas minhas costas. Imediatamente afastei minha perna da de Rafael. Vi o seu sorriso se perder no seu rosto, e desconfio que fosse mais pela minha reação do que pela presença de Pedro em si.
_Nós... Nós...
Eu tentava falar alguma coisa, mas não saía. Um desespero silencioso foi tomando conta de mim e a paranoia voltou a me atacar. Eu senti que estava realmente perdido, que era agora que eu veria toda a imagem que eu lutei em construir derreter.
_Nós viemos fazer trilha e paramos aqui para almoçar._ falou Rafael em meu socorro.
_Trilha? O Bernardo? Mentira!
_Sério, consegui convencer ele, sou muito bom em convencer as pessoas.
E, ainda bem, também era muito bom em contornar situações como aquela. Eu estava semi-paralizado, só sorria para os dois. Não conseguia pensar em nada. Só ao me dar conta que Rafael conseguiria nos livrar daquela situação, comecei a relaxar e interagir.
_Mas já sabe que não vai conseguir me trazer de novo._ falei rindo nervoso.
_Uma pena, achei que ele tivesse gostado do passeio._ respondeu Rafael com uma tristeza na voz que só eu percebi.
_Sim, gostei, mas acharia melhor se tivéssemos vindo de carro.
Eu sabia que estava magoando Rafael daquele jeito, mas eu não conseguia me controlar. Meu senso de autoproteção era tão forte que era capaz de me levar àquilo, magoar as pessoas que eu amo. Eu estava sendo egoísta, e tinha consciência disso, mas era mais forte que eu.
Pedro ria sem nem imaginar o que estava acontecendo ali.
_E a Alice, não quis vir?_ perguntou tentando, sem sucesso, introduzir Alice na conversa de uma forma natural.
_Não, ela gosta menos do que eu desse tipo de programa.
_Seria legal se ela tivesse vindo, né.
_Ah, cara, já te falei. Dá um tempo a ela. Não vai conseguir nada forçando.
_É, fazer o que?
Nitidamente, o assunto mexia com ele e o deixava para baixo, mas eu não tinha o que fazer. Já tinha me envolvido até demais naquela história.
_Vocês vão ficar muito tempo por aqui ainda?
_Não, já estávamos indo pedir a conta. Viemos só almoçar mesmo._ falei antes de Rafael com medo de prolongar demais aquela situação.
_Ah, beleza. Tô ali com minha família. A gente se vê amanhã. Falou aí.
_Tchau._ respondemos juntos a Pedro.
Um silêncio constrangedor pairava sobre a mesa. Rafael estava visivelmente magoado com meu comportamento e eu estava envergonhado, apesar de não arrependido. Era uma situação que continuava a se repetir na minha vida. Ainda sem falar nada, ele fez sinal para que o garçom trouxesse a conta.
_Me desculpa, Rafa, mas eu...
_Não podia se arriscar, eu sei, você já disse. Mas isso cansa, Bernardo.
_Eu sei, me desculpa.
Era tudo o que eu podia fazer, me desculpar.
Na saída do restaurante, pedimos uma carona até onde estava o carro e seguimos num incômodo silêncio no caminho para casa. Ele estava calado, mas não parecia estar com raiva, mas magoado, o que era muito pior. Preferiria que ele gritasse de uma vez tudo o que tinha para gritar comigo do que me deixar daquele jeito remoendo tudo.
_Rafa, eu já pedi desculpa.
_E eu já te desculpei.
_Mas não está falando comigo.
_Lógico. Te desculpar não significa que esqueci. Eu planejo um passeio romântico para nós dois e olha como termina? Você com essa mania de se esconder do mundo e me esconder do mundo... Sabe, eu fico ansioso procurando por programas em lugares mais afastados, ou onde só tenha nós dois, por causa disso, mas é cansativo.
_Me desc...
_Já falei que desculpei!
_Se fosse outra pessoa, eu não agiria daquela maneira, mas era o Pedro e você sabe como ele é.
_Sei. E me surpreende você também saber e continuar preocupado com a opinião dele.
_Alice já reclamou disso comigo e eu reconheço que pode parecer loucura, mas eu vejo nele uma pessoa boa.
_Uma pessoa que te viraria às costas caso soubesse que você gosta de pessoas do mesmo sexo não pode ser considerada uma boa pessoa.
Ele estava bem nervoso e desabafando comigo. Parece que ele já tinha aquilo entalado dentro dele há muito tempo.
_Você não gosta do Pedro?_ perguntei tentando entender a discussão que estávamos tendo.
_Não! E você não devia gostar também!
_Por que?
_Porque isso é uma burrice. Sem contar que é ofensivo, não só a você, mas a mim ou a qualquer outro gay. Você está abaixando a cabeça para o que gente como ele pensa, gente que nos impede de ser quem nós somos, de demonstrar o que sentimos.
E voltávamos à discussão da qual nem tínhamos saído.
_E é errado eu tentar me preservar desse mundo louco que vivemos? Não é tudo cor de rosa, Rafael. O Pedro pode só virar a cara para mim, mas e o resto do mundo? Quantas pessoas não são agredidas e mortas todos os dias assim? Eu tenho medo!
_Certo, mas você não vê que você alimenta esse sistema se escondendo e fingindo ser o que não é. Você tem que se mostrar, falar “olha, to aqui, não vou a lugar nenhum e não tenho medo”.
_Pode ser, mas eu não sou forte o suficiente. Eu não nasci para ser Joana D’Arc.
Ele riu uma risada sem graça antes de continuar.
_O que você tem medo é de que as pessoas não gostem de você. E posso te falar? Não vale a pena.
Eu não tinha resposta para aquilo. Eu realmente tinha medo das pessoas não gostarem de mim. Mas isso é uma coisa muito maior do que se pode supor. Não se pode simplesmente viver ignorando a opinião alheia, eu, pelo menos, não conseguiria. Eu era assim e esse medo era minha prisão.
Ninguém falou mais nada no caminho. Do mesmo jeito que aquele assunto ficava rondando minha cabeça, aconteceu também com Rafael, eu imagino. Quando chegamos na porta do meu prédio, ele acariciou de leve minha mão, bem mais manso, e me avisou que mais tarde me ligaria, o que de fato fez:
_Me desculpe, eu me excedi hoje. Acabei ficando nervoso com a situação e descontando em você._ falou com uma voz doce.
_A culpa é minha. Eu sei que eu dificulto tudo com meus medos, mas eu vou tentar melhorar. Você vai ter que ter paciência comigo.
_Eu vou. Toda a paciência do mundo com você._ sua voz denunciava um sorriso.
_Boa noite.
_Boa noite, Bernardo.
E era por ele que eu devia lutar, porque agora era bem claro para mim: eu teria que escolher entre Rafael e a prisão que construí para mim.