_O que você está fazendo?_ perguntei protegendo os olhos da luz.
_Já curtiu sua fossa, hora de subir o poço._ respondeu Alice enquanto abria as cortinas do meu quarto.
_Me deixa, Alice!
_Não. O senhor não vai ficar perdendo aula por causa de um coração partido.
_Eu não quero voltar pra aula. Eu não quero vê-lo todo dia sem tocá-lo, sem beijá-lo, sem...
_Chega!_ falou puxando minha coberta para fora da cama _Ninguém aguenta gente chorona. Vamos pra aula!
_Mas eu...
_Ele foi ontem, ok? Estava na cara que tinha passado o fim de semana mal, mas mesmo assim ele seguiu em frente. Você tem que fazer o mesmo, porque não vai consegui-lo de volta desse jeito.
Ela estava certa, eu tinha que seguir em frente, pois esse era o único caminho disponível. Mas eu ainda estava muito destruído pela forma como tudo ocorreu. Não foi um desgaste gradual da relação, pelo menos não para mim. De tarde estávamos fazendo amor e de noite estávamos dizendo adeus. Foi tudo muito brusco.
Ao ver que eu não estava levantando, Alice bufou:
_Olha, não fico muito feliz em usar essa carta, mas vamos lá. Está na cara que Rafael passou por alguma coisa terrível no fim de semana. As olheiras dele contam uma história. E vocês viviam juntos. Se você continuar faltando aula, as pessoas podem começar a ligar as coisas...
Abri os olhos assustado. Ela tinha razão. As pessoas poderiam desconfiar. Estava tudo muito na cara. Me levantei num sobressalto e corri para o banheiro.
_Isso ter funcionado é tão errado!_ ouvi ela falando enquanto eu corria.
Depois que saí do chuveiro, me olhei no espelho e me deparei com uma imagem de mim melhor do que eu pensava que estaria. Sim, eu tinha olheiras, mas era uma coisa mais leve. A verdade é que desde a noite da festa, eu não tinha chorado muito. Eu simplesmente ficava deitado lamentando tudo o que ocorreu e me amaldiçoando por ser como era. Eu bolei um milhão de planos para reatar com Rafael, como fazer ciúme, ou me fingir de depressivo, mas não estava realmente a fim de levar nenhum deles até o fim. A única coisa que eu podia fazer para ter Rafael de volta, assumindo nossa relação, eu não conseguia fazer.
O amor é um sentimento muito romanceado, com o perdão da redundância. Nos livros e nos filmes as pessoas podem respirar e comer amor, não precisam de nada além disso para viver. Neles, tudo vale por amor e é lindo quando se enfrenta o mundo pela pessoa amado. E se as pessoas de virarem às costas, não tem problema, porque só o amor te basta. Mas não é assim na vida real. Ninguém é uma ilha, já dizia o poeta. O ambiente, a sociedade, as pessoas que nos cercam são variáveis fundamentais para a nossa felicidade, tanto quanto o amor. Digo isso porque pode ser fácil pensar:
“Ora, você o ama? Você sente falta dele? Então corra atrás e enfrente o mundo por ele!”
Não é assim que o mundo real funciona. Não é assim que o amor funciona. Eu não poderia viver do amor de Rafael. Ele sozinho não seria capaz de suprir todas as minhas necessidades. Por mais que ao estar com ele eu pensasse ser capaz de enfrentar qualquer coisa, eu tinha consciência que era a irracionalidade do amor falando. Por isso, eu não lutei por Rafael. Talvez eu devesse. Ele me amava, com um pouco de insistência ele acabaria reatando comigo. Mas sem resolver nossas questões, hoje vejo que cairíamos no mesmo erro, só que nos ferindo mais profundamente a cada vez.
Vejam isso como um paradoxo criado pelos meus próprios medos. Eu queria Rafael de volta, mas para isso eu teria que me acertar comigo e com minha própria sexualidade, e eu não queria fazer isso. Eu estava preso numa armadilha que eu mesmo construí.
[...]
Enquanto eu caminhava com Alice rumo ao prédio da nossa faculdade em silêncio, eu pensava em como seria encontrar com Rafael. Aliás, como seria encontrar com ele todo dia pelos próximos quatro anos? Não tive muito o que pensar, pois o destino acabou por nos fazer chegar no mesmo horário. Ele estava visivelmente abatido. Andava com a cabeça baixa e as mãos nos bolsos. Quando levantou a cabeça e me viu, ele sorriu, mas não era o mesmo sorriso que eu tanto amava. Era um sorriso frágil e triste, quase que burocrático, apenas para não incomodar o outro com sua dor. Foi como se uma mão invisível apertasse meu coração. Eu era o causador daquela dor.
_Te vejo lá dentro._ falou Alice correndo pra sala antes que eu pudesse responder.
Rafael veio andando até mim e eu esperei por ele. A cada passo seu, aquele momento ia ficando mais estranho para nós dois. Nenhum de nós sabia como agir.
_Oi._ falou.
_Oi. Como vai?_ começamos a caminhar juntos em direção a sala.
_Bem._ respondeu mentindo mal _E você?
_Bem também.
Ficamos em silêncio por alguns segundos antes dele falar.
_Nós dois somos péssimos mentirosos.
_Sim..._ respondi acompanhando seu riso.
Por uma breve fração de segundos, me lembrei dos amigos que fomos nos primeiros momentos da nossa aproximação. Mas não tinha mais como voltar àquele ponto, tínhamos muita bagagem.
_Eu não sei bem como lidar com isso._ confessou depois de mais um momento de silêncio constrangedor.
_Eu também não. É estranho. Não sei como fazer isso todo dia.
_Pois é. Mas nós fizemos a coisa certa, eu acho._ falou voltando a abaixar a cabeça.
_Seus argumentos foram muito bons..._ respondi sinceramente.
_Me desculpe se te ofendi de alguma forma.
_Você disse aquilo que estava pra me dizer a muito tempo. Seria ofensivo se fosse mentira, mas não é. Eu preciso mesmo de um tempo para mim mesmo.
_Eu espero que você consiga se tornar a pessoa que eu vejo em você.
_Obrigado. Eu desejo que você encontre uma pessoa que lhe dê tudo o que você deseja.
_Eu espero que essa pessoa seja o Bernardo do futuro.
Nós rimos juntos e senti meu coração se aquecer com seu riso sincero. Mas o momento seguinte era torturante, pois ele falava de um futuro incerto.
_A gente não pode continuar fazendo isso._ falei.
_Eu sei._ respondeu voltando a apresentar um semblante triste _E como vamos fazer?
_A gente não precisa fingir que nada aconteceu e se separar. Também acho que a gente já passou do ponto de continuar sendo amigos.
_E o que você propõe.
_Que nós continuemos a ser bons colegas de classe. Não precisa se mudar para o outro lado da sala. Só vamos evitar falar de nós dois. Pelo menos, não agora.
_Eu concordo, é o melhor mesmo.
Chegamos à nossa sala e nos sentamos nossos lugares habituais, com ele na cadeira à frente da minha. A aula ainda não tinha começado, mas nós ficamos em silêncio, respondendo apenas aos cumprimentos de bom dia dos outros. Alice, ao nosso lado, pareceu entender e também não falou nada. Passei a aula toda olhando para a sua nuca e respirando seu perfume, enquanto me perguntava como faríamos aquilo funcionar.
[...]
Na hora do intervalo, Pedro veio me cumprimentar. Desde que Alice tinha falado para ele com todas as letras que não rolaria nada entre eles, ele tinha se mudado para o outro lado da sala, mas ainda me tratava normalmente. Assim, não era de se admirar com o convite que ele veio me fazer:
_Então, o que você vai fazer sexta?
_Dormir, mas já vi que você tem ideia melhor._ falei.
_Vai ter uma festa naquela boate perto de casa. E você pode dormir lá em casa depois. Vai ser demais!
_Ah, Pedro, não sei. Não estou muito bem esses dias.
_Por que?
_Passei o fim de semana doente.
_Mas já está bom, porque veio na aula. Então, fechou?
Suspirei antes de aceitar seu convite. Eu estava no clima para neon, fumaça de gelo seco, música eletrônica e me fingir de hétero? Não, mas eu queria fugir um pouco da realidade, dos meus problemas.
Terminar com Rafael, me levava de volta ao meu plano original de levar a vida mais heterossexual possível. Eu achava que podia sufocar meus desejos sexuais com sexo com mulheres, afinal, depois do gozo, todos os gatos são pardos, não? Eu precisava de uma mulher. Não que eu achasse que iria encontrar uma namorada naquela boate, mas eu precisava começar de algum lugar. E Pedro me ajudaria, mesmo não estando ciente de toda a profundidade do problema. Era um plano idiota, vocês podem pensar. Mas, bem, eu estava um tanto quanto perdido na época, não estava no melhor momento para tomar decisões corretas para a minha vida.
[...]
E lá estávamos nós. Dois perfeitos idiotas heterossexuais de camisa polo e uma longneck na mão, como dois caçadores a espera da presa.
_O que a gente tá esperando?_ perguntei.
_As meninas certas.
_Como assim?
_Tem que ser uma dupla de amigas, fica mais fácil pra nós dois. Não podem ser feias, mas também não podem ser duas beldades, pois a chance de nos rejeitarem é bem maior. E se estiverem um pouco bêbadas, melhor ainda.
Nessas horas eu via em Pedro o idiota que Alice via. Mas eu sabia que a estratégia dele funcionava com muita frequência, então embarquei nessa.
_Como aquelas duas.
Ele me apontou duas meninas com o queixo. Não eram feias, de jeito nenhum, mas não eram de parar o trânsito. Corpo legal, morenas, cabelos castanhos escorridos e um drinque colorido na mão.
_Vamos lá.
O segui. Eu falei “oi” e o Pedro se encarregou do resto. Ele falava por nós dois, e em minutos já tinha envolvido as duas na sua lábia fantástica. Pouco tempo depois ele levou a mais bonita das meninas para um canto da boate.
_Desculpe, pelo meu amigo, ele meio que fala demais._ comentei e ela riu.
Confesso que tive uma poderosa ajuda do álcool para não travar.
_Não tem problema. Só que eu estava curiosa pra saber como era a sua voz.
_Bom, agora já sabe.
Não era natural. Não era eu ali. Eu estava fingindo ser alguém que eu não era. Eu tinha consciência disso e não me arrependia. Eu fiz uma escolha, e eu ia levá-la até o fim.
Em algum ponto da noite eu comecei a beijar aquela menina, não lembro bem de como chegamos àquele ponto. Mas era estranho. Sim, eu já tinha beijado meninas, mas depois dos beijos masculinos, aquilo parecia incompleto. Não havia fogo. Eu não conseguia sentir por ele o que, sexualmente, sentia por Eric ou Rafael, e isso se traduzia num beijo burocrático. Estava tudo certo com a mecânica, língua e saliva na medida certa, mas faltava paixão. Faltava desejo e tesão naquele beijo. Em nenhum momento da noite eu quis beijar aquela garota, foi uma mera formalidade para mim.
Fiz questão de esquecer o nome dela e fingir que anotei seu telefone, completando o total idiota que eu fui naquela noite. Eu sabia que estava sendo um babaca, mas não tive a menor vontade de ter alguma coisa além com aquela garota. Na minha cabeça, eu teria que encontrar uma menina que me incendiasse para poder levar a vida heterossexual que eu almejava, desconsiderando o fato que essa menina provavelmente não existia.
_Vamos?_ perguntou Pedro lá pelas tantas da madrugada.
_Vamos.
O pior de toda aquela situação era que eu não estava saciado. Aquela menina não foi nada para mim, eu teria tido muito mais prazer usando minha imaginação ao me masturbar. E eu precisava extravasar aquele desejo todo.
_Sabe, Pedro, não tô muito legal ainda. Essa gripe não quer me largar. Eu prefiro pegar um táxi para ir pra casa.
_Mas você não ia dormir lá em casa?
_Deixa pra outro dia.
_Ok, você quem sabe.
_Falou.
_Falou, cara.
E entrei no primeiro táxi que vi. Sem pensar muito nas consequências do meu ato, procurei o nome dele no meu celular e liguei.
_Bernardo?_ atendeu com voz de sono.
_Oi, Eric.
_O que foi? Aconteceu alguma coisa?
_Não, é que... Bom, eu estou na rua e pensei se podia passar aí na sua casa.
_São quase quatro horas da manhã.
_Eu sei.
Eu posso jurar que ouvi ele sorrir no outro lado da linha.
_Claro.
E lá ia eu, usar Eric mais uma vez para saciar os desejos que eu tanto teimava em querer sufocar.