Não me entendam mal, não fomos abandonados de jeito nenhum. Ainda éramos alimentados, banhados e vigiados da mesma forma. Mas havia dois bebês dentro de casa que necessitavam de toda atenção possível. Logo, não havia ninguém para brincar ou gastar um tempo a mais mimando eu ou meu irmão mais velho. Isso só veio a ser corrigido alguns bons meses depois, quando os gêmeos já estavam para completar um ano de vida e saudáveis. Até lá, era só eu e Tiago. Como irmão mais velho, ele tinha VIII e eu tinha II, ele se sentiu na obrigação de cuidar de mim. Cuidar no sentido mais figurado da coisa. Era ele que brincava comigo e me distraía. Como um clube só nosso. As pessoas se encantavam com a nossa ligação, em como era raro um caso de irmãos que não sentiam ciúme um do outro. Tiago era como meu herói
Mas isso foi se perdendo aos poucos. Tiago entrou na adolescência muito rápido e eu, com seis anos a menos, não pude acompanhá-lo. Aos XIV anos de idade, Tiago já tinha permissão pra sair com os amigos dele para festinhas. Aos quinze ele já tinha apresentado a primeira namorada. E que adolescente quer a companhia de uma criança? Lembro vagamente de sofrer quando ele batia a porta do seu quarto na minha cara quando eu queria jogar videogame. Só não virou uma crise maior porque eu encontrei no meu irmão dois anos mais novo, Caio, a companhia que Tiago não podia ser mais. Mas daqui a pouco eu falo sobre Caio
Enfim, eu e Tiago perdemos a ligação que tínhamos quando éramos crianças. Eu não pude alcançá-lo nem mesmo quando já era adolescente. Nós desenvolvemos perfis muito diferentes, ele mais extrovertido e cheio de amigos e eu introvertido trancado no meu quarto. Sem contar que, quando se é adolescente, uma diferença de idade de seis anos é muita coisa. Mas houve alguma reaproximação. Já mais velhos, conseguimos entender o mundo um do outro, mesmo que eu mantivesse segredo absoluto sobre as coisas que se passavam comigo e que ele nunca tivesse manifestado algum desejo de compartilhar seus feitos comigo. Nos fizemos companhia em muita festa de família chata ao longo dos últimos anos.
E agora estávamos ali, nos olhando olhos nos olhos, enquanto sua pergunta pairava no ar. Sua expressão era indecifrável, não tinha como saber o que viria daquela conversa. Contudo, passado tudo o que eu já tinha passado, mentir para Tiago nunca foi uma opção.
_O que significa que ter um cara com você na sua foto de perfil?_ ele tornou a repetir depois de um tempo em silêncio.
Suspirei fundo, me levantei e fechei a porta do quarto que ele tinha deixado aberta. Eu teria escolhido uma forma melhor de iniciar aquela conversa, teria preparado ela melhor na minha cabeça. Mas eu estava ciente dos riscos quando coloquei aquela foto no meu perfil do Orkut. Hora de arcar com as consequências.
_Não existem tantos significados possíveis._ respondi e voltei a me sentar na cadeira _Você sabe o que significa.
_Eu quero ouvir de você._ ele respondeu sério.
Eu nenhum momento eu abaixei a cabeça ou desviei o olhar. Afinal, não tinha nada do que me envergonhar. Respondi o encarando:
_Aquele era meu namorado.
Passamos algum tempo em silêncio. Ele digeria a informação e eu estava lhe dando tempo para isso. Já fazia algum tempo que a foto estava no ar, então ele deve ter passado meses refletindo sobre a questão. Ainda sim, ouvir com todas as palavras é sempre impactante.
_Ricardo, aliás._ completei depois que o silêncio começou a me irritar.
Ele abaixou a cabeça e esfregou os olhos com força.
_Isso está na minha cabeça há meses..._ ele falou, enfim.
Eu não sabia como responder isso, então deixei que ele continuasse.
_Você é...
_Gay._ completei ao ver que ele estava com dificuldade em formar a frase.
Eu estava sério e centrado, eu estava muito orgulhoso de mim mesmo pela forma como eu estava lidando com a situação. Mas isso só externamente. Por dentro, eu estava com medo. Eu sei que já fiz aquele discurso do “eu não tenho mais medo da reação dos outros”, mas era o meu irmão, poxa! Não era qualquer um na rua cuja opinião não influenciaria em nada a minha vida. De certa forma, ele ainda era meu herói. Ele tinha um milhão de amigos, tinha milhares de namoradas, era inteligente, muito mais bonito do que eu, expansivo, carismático, destinado a ser muito bem sucedido dando continuidade ao escritório de advocacia do meu pai. Ele era meu modelo! Ele era a pessoa que eu sempre tentei ser, em vão. É lógico que a opinião dele valia muito.
_Você tem certeza?_ ele perguntou me olhando com um olhar confuso.
Eu ri da pergunta. Em partes, ri de relaxamento. Se ele não teve uma reação explosiva ali, não teria mais.
Sim, tenho certeza.
_Mas, desde quando?
_Desde quando eu tenho certeza?
_Desde quando você sabe que é... é... Você sabe.
_Gay.
_É._ ele respondeu claramente constrangido.
_Não sei..._ respondi sinceramente _Acho que nasci assim, mas só fui perceber naquela fase onde tudo começa a ficar mais sexual, sabe?
_Mas você nunca tentou não ser gay?
_Eu passei anos da minha vida tentando não ser, Tiago. Não deu certo.
_Mas você já transou com uma garota, eu posso te apresentar alguém e...
_Já transei com garotas, obrigado pela oferta. Estou muito certo do que eu sou.
Ele ficou em silêncio novamente. Aquilo tudo era torturante para mim, mas eu tinha que lhe dar espaço. Eu não podia empurrar nada nele com o risco do tiro sair pela culatra.
_Eu digo isso porque eu meio que fiz das minhas loucuras por aí...
_Você o que?
O mundo parou de rodar por um segundo. Ele estava me dizendo aquilo mesmo que eu estava entendendo?
_Ah, Bernardo._ ele falou claramente desconfortável _Todo mundo tem uma época que experimenta as coisas.
_Tiago, você está me dizendo que é...
_Não, não!_ ele respondeu rapidamente _Aconteceu algumas vezes, mas não teve importância. Era só curiosidade. Não fico suspirando por nenhum cara por aí.
Eu ainda estava processando a informação. Tiago já tinha transado com caras? Por essa eu não esperava.
_Olha, Bernardo._ ele falou com cuidado na voz _Eu não sou preconceituoso, de modo nenhum.
Minha experiência dizia que quem começava com uma frase daquela, normalmente era preconceituoso sim, mas deixei que ele falasse sem interrompê-lo.
_Acho normal transar com caras. E daí? O que tem a ver? Não acho que ninguém vá pro inferno por isso.
_Mas..._ falei antecipando sua próxima frase.
_Mas namorar um cara? Andar de mãos dadas? Formar família? Acho estranho isso.
Eu dei um longo suspiro.
Não o entendam mal, Tiago não era homofóbico. Nenhum homofóbico admitiria que transou com outro cara alguma vez na vida, quanto mais “algumas”. Era fruto da nossa criação. Era a mesma visão de Laura e da minha mãe, guardadas as devidas proporções. O que contavam eram as aparências. Você podia fazer tudo no sigilo. No instante que você se assumisse, você envergonharia a todos se tornando o viadinho do Zorra Total.
_É estranho porque você não convive com casais gays, Tiago. Nem dentro do nosso círculo, nem fora dele. Quantos caras você já viu andando de mãos dadas pela rua aqui no Brasil? Soa estranho porque é incomum. Infelizmente, hoje, ser gay é estar confinado a um gueto.
Ele ficou sem jeito com a minha resposta e voltou a abaixar a cabeça encarando o chão.
_Olha, Tiago, não tô pedindo nada de você. Você não precisa sair por aí balançando uma bandeira arco-íris em apoio a mim. Só, sei lá, mantenha a mente aberta. Sei que é muita coisa pra digerir.
_Não, cara._ ele falou _Eu venho pensando há meses sobre isso, desde que vi aquela foto. Você entendeu errado. Eu não tenho vergonha de você. Não tô preocupado com o que vão falar de mim se eu tiver um irmão gay. O problema não é esse.
_Então?
_Você não percebe o mundo que está entrando?! É uma vida muito difícil, Bernardo! As pessoas nunca vão te aceitar como um igual, você sempre vai ser a aberração.
A reação dele me surpreendeu. Nunca imaginei que ele tivesse uma mente aberta assim. Ele não tinha preconceito. Ele tinha medo.
_Mas eu não posso ser um refém dessas pessoas, Tiago. Eu já tentei, não vale a pena.
_Bernardo!_ ele perdeu a calma _Você não tá entendendo! Pessoas morrem por causa disso! É uma pena que vivamos num lugar assim, mas é perigoso assumir que é gay.
_Eu sei..._ falei com meus olhos se enchendo de lágrimas.
Fazia algum tempo que eu não pensava naquele dia em que o pai de Tom me bateu. Foi o pior dia da minha vida, pior mesmo do que aquele dia no lago. Foi o dia que todos os meus medos se materializaram em formas de socos e chutes.
Tiago é um cara inteligente, não demorou até que ele lesse as entrelinhas.
_O que fizeram com você?_ ele perguntou com um tom de raiva na voz.
_Lembra quando vocês voltaram do enterro do vovô ano passado e eu disse que tinha sido assaltado?
_Bernardo...
Ele parou por um segundo para buscar a memória. Lembro do horror dele ao me ver todo machucado quando voltou de viagem, cheio de hematomas e cortes.
_Quem fez isso?!_ agora a raiva era o tom predominante na sua voz.
_O pai de um cara...
_Me diz que você revidou! Me diz!
Algumas lágrimas caíram quando eu sacudi a cabeça negativamente.
_Me diz onde esse cara mora!_ ele falou num urro.
_Tarde demais, papai já fez o serviço.
Ele me olhou confuso.
_Como assim? Papai sabe?
_Ele descobriu na ocasião e teve a mesma reação que você. Só que ele chegou às vias de fato e bateu no cara.
_O papai?
_Sim... E ainda me ajudou a esconder tudo de vocês.
_Mas por quê?!
_Porque se que contasse que tinha apanhado, eu teria que contar o motivo...
_Mas Bernardo...
Tiago conhecia a nossa família tão bem quanto eu, então foi fácil para ele ligar os pontos. Tudo pareceu bem claro para ele de repente.
_A mamãe sabe?
Eu ri sem graça.
_Claro que não. Se soubesse, já tinha feito um escândalo e não estaria nem olhando na minha cara._ ele foi protestar, mas eu o impedi _Você sabe que é verdade.
Ele ficou pensativo por um tempo. Eu resolvi abrir o jogo com ele. Era melhor que ele soubesse de tudo.
_Eu vou contar para ela. O prazo que papai me deu está acabando.
_Vai ser barra...
_Eu sei.
Ele se levantou de repente, se ajoelhou na minha frente e segurou nos meus ombros.
_Vê? É por isso que é melhor ter ficado no armário. Essas coisas ruins vão continuar acontecendo, Bernardo. Você não enxerga isso?
Eu balancei a cabeça, me levantei e peguei uma camisa para enxugar meus olhos.
_Você não está entendendo, Tiago. Ficar no armário não é mais uma opção. Você não tem ideia de como é lá dentro. Você não sabe o quanto é solitário lá dentro, o quanto é doloroso.
Eu não sei se devia lhe contar o que estava prestes a lhe contar, mas eu decidi assumir o risco. Ele precisava entender.
_É uma coisa tão avassaladora, que te leva a ter os piores pensamentos possíveis. Eu quase me matei, Tiago. E se eu não fosse tão burro a ponto de não saber como, eu teria conseguido.
O rosto dele perdeu a cor. Ele parecia um fantasma. Rapidamente, seus olhos se encheram de lágrimas. E no gesto mais inesperado de todos, ele correu até mim e me abraçou. Eu não lembro de nunca termos nos abraçado. Eu aceitei. Ele achou que estava me consolando de alguma forma, mas a verdade é que eu que estava o consolando naquele momento.
_Já passou, Tiago. Eu não sou mais assim.
_Me desculpa._ ele falou entre lágrimas _Eu... Eu... Me desculpa.
_Você não tem pelo que se desculpar.
Ele se culpava por não ter estado lá. É um sentimento normal pra todos que estejam perto de alguém que se matou ou passou perto disso. É um sentimento de que poderiam ter feito alguma coisa para evitar tudo aquilo, mesmo que isso nem sempre seja verdade. Foi o que aconteceu com Alice e Pedro. Numa realidade alternativa, se Tiago fosse um pouco mais introvertido, não tivesse caído na adolescência tão cedo, nós teríamos permanecido muito unidos. Talvez ele se tornasse o meu melhor amigo e ouvisse sobre os meus medos. Talvez, ainda muito cedo, ele teria me ajudado a contar para os nossos pais e enfrentaríamos tudo lado a lado. Talvez... Mas isso é só uma realidade alternativa, não há como voltar atrás. Não há como por culpa em ninguém. Aconteceu assim. Tiago não teve nenhum culpa por se afastar de mim. Nunca, nem mesmo quando criança, eu o culpei.
_Eu vou te ajudar._ ele falou.
Ele soltou o abraço e me encarou de frente, com o rosto molhado de lágrimas.
_Com...?_ perguntei sem entender.
_A mamãe.
_Não tem como ninguém me ajudar nisso, Tiago.
_Tem sim. Você sozinho vai ser presa fácil para ela. Nós vamos ficar ao seu lado.
_Nós quem?
_Eu, Caio e Laura.
_Não, Tiago...
Eu ia dizer que não queria envolver ninguém na briga. Eu tinha uma visão que isso levaria à destruição da minha família.
_Eles são mais novos, mas vão entender. Você tem que contar a história toda a eles._ ele falou sem se preocupar com meu protesto _Você tem que se assumir para eles.
_Bom, Laura já sabe.
_O que? Você contou para ela e não para mim?_ ele perguntou com um tom de ofendido na voz.
_Eu não contei, ela descobriu. Ela me pegou na cama com Rafael...
_Com Rafael?!_ ele perguntou surpreso.
Eu percebi que foi informação demais.
_Tem muita coisa pra você saber, Tiago, mas vamos com calma. Eu vou te contando as coisas aos poucos.
Ele demorou um tempo até recuperar seu discurso.
_Certo... Mas falo sério, você tem que falar com o Caio.
_Tiago...
_É sério. Se nós quatro estivermos unidos e o papai também, mamãe não vai ter forças para lutar.
_Você fala como se fosse uma guerra.
Ele não respondeu, mas nos seus olhos eu li “mas vai ser uma guerra”. Suspirei fundo pensando nas minhas alternativas.
_Certo, eu falo com Caio._ falei me dando por vencido.
_Quanto antes melhor.
_Vou tentar amanhã ou depois.
_E me deixei informado. Não esquece que eu tô aqui.
_Ok._ falei em tom de desleixo.
Ele não gostou, me segurou pelo ombro e falou firme comigo:
_Eu falo sério. Você pode achar que Pedro e Alice são seus amigos, mas eles não vão estar sempre lá. Por melhor intencionados que eles sejam, eles sempre vão ter as suas próprias vidas para cuidar e a possibilidade de se afastarem. Nós não. Nós temos seu sangue. Nós somos as únicas três pessoas no mundo que têm o mesmo sangue que você. Do berço ao túmulo, um sempre terá o outro. Isso pode não ter ficado claro enquanto éramos adolescentes, mas estamos crescidos agora. Escute um conselho do seu irmão mais velho que já teve inúmeros amigos: amigos vêm e vão, quem vai estar sempre lá por você é a sua família.
As palavras dele mexeram comigo. Aquilo se confirmou como uma profecia. Pedro e Alice nunca me traíram. Sempre seriam meus queridos amigos. Mas num futuro não tão distante, eles começarão a tocar suas próprias vidas, cada um de nós terá sua própria família para cuidar, os encontros ficarão cada vez mais raros. É triste, mas é a vida. Por melhores amigos que Pedro e Alice fossem para mim, no fim seriam os meus irmãos que estariam lá por mim. O sangue é um laço muito poderoso. Essa passagem é importante porque eu às vezes sinto como se estivesse negligenciado meus irmãos nessa história, lhes dando menos importância do que realmente têm. Hoje eu não tenho dúvida: quando eu fizer sessenta anos, os meus melhores amigos serão Tiago, Caio e Laura. E eu posso afirmar com alguma certeza que essa amizade começou a ser construída naquela conversa com Tiago.
Dito isso, não interpretem a reação de Tiago como inesperada ou repentina. Ele teve muito tempo para refletir sobre aquilo durante meses. E ele nunca foi um cara realmente preconceituoso, apenas precisava abrir melhor os olhos. E isso não aconteceu com aquela conversa. Foi só o começo. Ele não estava pronto pra me ver de mãos dadas com um cara. Isso exige tempo e eu lhe daria esse tempo.
E para que a estratégia de Tiago desse certo, eu teria que conversar com a outra metade daquele quarteto: Caio e Laura. Laura podia até já estar ciente da minha preferência sexual, mas ela ainda precisava de um choque de realidade. Se eu a queria ao meu lado no momento que eu enfrentasse a minha mãe, nós precisaríamos ter uma conversa muito séria antes. E quanto a Caio, eu não sabia bem o que esperar dele. Sempre foi um mistério para mim, apesar de ser o meu irmão mais próximo. Ele seria o último a saber e teria a pior das reações...
Aos poucos eu fui me convencendo que o plano de Tiago era bom. Se toda a família estivesse do meu lado, minha mãe teria menos força pra ir contra a minha sexualidade quando eu me assumisse. Era o que eu achava, pelo menos. Laura, Tiago e meu pai já sabiam. Faltava mais um para completar o time: Caio. Ironicamente, é o irmão com quem eu tenho a melhor relação.
Caio é dois anos mais novo que eu e gêmeo de Laura. Fisicamente, ele é muito parecido comigo. A despeito de Laura ter nascido loira, ele tinha cabelos castanhos. Pele pálida, olhos fundos, alto, magro. Introvertido, quase totalmente recluso, está constantemente com cara de poucos amigos. Os cabelos caíam até seus ombros, o que combinava com suas roupas pretas e largas, sempre com a estampa de alguma banda da qual eu nunca tinha ouvido falar. Era baixista numa banda de garagem que fazia muito mais barulho anárquico do que música propriamente dita. Ele era estranho? Era, eu achava. Mas de uma coisa eu suspeitava: quando tivesse lá pelos seus vinte e tantos anos, ele faria muito sucesso com o sexo oposto. Ele seria o típico cara misterioso que fascina as meninas.
Assim que acordei e me alimentei na manhã seguinte à minha conversa com Tiago, fui bater à porta de Caio. Ouvi um grunhido em resposta que eu imaginei como um “sim”. Como de costume, o quarto estava quente, abafado e escuro. Não era de se estranhar que era o ambiente da casa que minha mãe menos gostava. Meu irmão, ainda deitado embaixo das cobertas, só se deu ao trabalho de abrir um olho pra ter certeza que era eu que tinha entrado, e depois voltou a fechar. Ele achou que eu estava ali só pra pegar alguma coisa emprestada, certamente. Mas não, independente do seu mau humor matinal, teríamos uma conversa muito séria. Abri as cortinas e a janela do quarto, deixando a luz e o vento frio da manhã de inverno entrar.
_Mas que porra!_ ele reclamou cobrindo a cabeça.
Sem saber muito bem por onde começar, me sentei numa cadeira e esperei que ele me desse atenção.
_O que você quer?_ ele perguntou desconfiado.
_Conversar.
A resposta o deixou ainda mais desconfiado, mas pelo menos eu conquistei sua atenção.
Como eu, Caio era bem tímido e introvertido. O que nos diferenciava é que ele lidava com isso com muita agressividade. Ele era muito arredio com todo mundo, e era de longe o filho que mais brigava com meu pai e minha mãe. Ele tinha uma raiva represada na garganta que eu nunca tive. Tinha sempre uma resposta na ponta da língua ou um comentário maldoso sobre o quanto ele odiava fazer parte daquela família, daquela escola, daquele país, etc.
_Se foi a mamãe que pediu pra você vir me falar sobre vestibular, esquece! Já falei que não vou pra faculdade!
_Você é um burro por pensar assim. Mas tudo bem, a burrice lhe é assegurada por lei. Mas não foi isso que eu vim te falar, nem foi ninguém que me mandou. Sou eu que quero conversar com você.
_Sobre...?
_Sei lá..._ falei sem jeito _Sobre nós dois.
Eu nem sabia direito como começar uma conversa sobre aquilo com ele. Bom, continuando a história da minha infância, depois que Tiago cresceu demais para poder brincar comigo, foi Caio que assumiu seu lugar. Na época que isso aconteceu, eu já tinha por volta de VIII anos, e Caio tinha V, ou seja, a diferença não era tão grande assim. Por causa disso, um nunca assumiu uma relação de proteção com o outro, como ocorreu com Tiago. Éramos iguais. Não sentíamos esses dois anos que nos separavam. O fato de nossas personalidades serem (até certo ponto) parecidas ajudava bastante nessa proximidade. Sabíamos, por exemplo, quando o outro não estava a fim de conversar com um simples olhar, o que sempre evitou muito bem as brigas. Nós dois só viríamos a nos distanciar quando entrei na faculdade, porque foi a partir daquele ponto que nossas personalidades passaram a se diferenciar com mais força.
Se vocês eram tão próximos, por que você nunca contou a ele que era gay?” vocês dizem.
Não é tão fácil assim. Mesmo para Alice, eu só contei depois dela me pressionar muito. Eu e Caio nunca conversamos nada sobre nossas vidas sexuais. Desconfio até que ele era virgem. Por mais próximos que fossemos, eu não sabia bem como seria sua reação. Ali, prestes a contar tudo a ele, eu ainda não sabia bem como seria sua reação.
_Que papo é esse?_ ele perguntou já desperto.
_Faz tempo que a gente não conversa._ comecei inseguro _Alguma coisa acontecendo com você?
_Não.
Curto e grosso, como de costume. Mas não havia mais como recuar. Seria pior se ele descobrisse junto com a minha mãe. Seriam dois incêndios para apagar de uma só vez.
_Tem razão, esse papo tá estranho._ eu falei me cansando dos meus próprios rodeios _Eu tenho uma coisa pra te contar.
Sem reação. Ele continuou me encarando com uma expressão que vacilava entre confusão e desdém.
_E eu não sei bem como vai reagir a isso..._ completei, mas novamente não houve reação sua.
Respirei fundo antes da próxima e derradeira frase. Pensando bem naquele momento, era a primeira vez que eu diria aquilo para valer. Eric nunca perguntou, já foi beijando. Alice só precisava de uma confirmação, e, mesmo assim, depois de muita pressão. Posso falar o mesmo do meu pai. Eu estava bêbado e deprimido quando contei a Ricardo. Rafael e Laura descobriram sem que eu tivesse o menor controle sobre isso. Tiago já sabia pela foto antes de vir me procurar. Para Pedro eu contei num momento de raiva, com a única intenção de atingi-lo. Tio Aurélio eu já sabia que era gay, então não valia. Era primeira vez que eu realmente diria para alguém que eu era gay.
_Eu sou gay.
Pronto, estava dito. Não havia mais como voltar atrás. Ali, sentado na cadeira, eu encarei Caio sentado na própria cama. Suspense e tensão pairavam no ar.
_Você o que?!
_Eu sou gay.
_Você é viado?!
Sua expressão era uma mistura de confusão, nojo e raiva. Ali, abandonei todas as minhas esperanças daquela ser uma conversa fácil.
_Caio...
_Você é viado!_ ele falou em tom acusatório _É claro que você é! O seu jeitinho todo certinho é isso!
_Para com isso, Caio._ pedi.
_Isso é nojento.
Doeu mais do que eu imaginava ouvir isso de um dos meus irmãos. Doeu muito. Mas eu respirei fundo. Eu não podia perder a calma.
_Não, não é nojento. É normal.
_Normal o caramba! Você é viado!
_Só porque você não vê dois caras se beijando na rua todo dia, não quer dizer que não é normal. Significa só que seu mundo é muito pequeno.
O contra-ataque saiu sem querer. Ele se enfureceu.
_Já falou o que você queria? Pois bem, pode sair do meu quarto, agora!
Não ia adiantar nada discutir nada com ele naquele estado. Então, apenas me levantei e sair. Era melhor dar um tempo para ele analisar a nova informação.
_Seu viado desgraçado._ ele falou sussurrando pelas minhas costas.
Meu sangue ferveu. Se fosse antes, eu teria engolido a ofensa e chorado sozinho no meu quarto depois. Afinal, eu aceitei até aquela surra calado, não? Mas agora ele ia engolir suas palavras. Eu já tinha aberto a porta, mas voltei a fechá-la e trancá-la. Me virei de volta para ele.
_O que foi? Já te mandei sair._ ele falou.
Permaneci calmo tentando encontrar a última gota de paciência em mim para não explodir com ele.
_Trancou a porta por quê? Vai me estuprar por acaso?_ ele tirou a coberta do colo e mostrou que estava só de cueca _Afinal, é disso que você gosta, né?
Lógico que ele não pensava que eu ia abusar dele, nem nada, ele queria apenas me provocar. E conseguiu. Eu nem via o que está fazendo, eu só senti o impulso de partir para cima dele. Em uma fração de segundos, eu já estava em cima de Caio, o imobilizando. Minha mão esquerda apertava seu pescoço e a direita estava parada no ar em posição de ataque pronta para virar um soco endereçado ao seu rosto.
Caio me olhava muito assustado. Ele nunca esperaria aquela reação de mim. Aliás, nem eu mesmo esperaria aquela reação minha. Mas eu era outro. Eu não mais do tipo de pessoas que aguentaria um insulto daqueles calado. Ainda mais do meu irmão. Independente de ser mais velho que ele, ele me devia respeito pelo simples fato de sermos irmãos.
_Eu juro, Caio, eu juro que você só não vai levar esse soco porque eu vou ter trabalho me explicando depois._ falei entre os dentes com raiva _Porque Deus é testemunha que vontade e motivos não me faltam.
Ele continuou me olhando assustado. Eu abaixei o soco, mas continuei segurando ele pelo pescoço.
_Gostando ou não de com quem eu me deito, você vai me respeitar. Tiago, Laura e papai sabem e estão bem com isso. Eu vou contar para a mamãe, mas pensei em ter a consideração de vir aqui te contar antes, para você não ser o último a saber. Eu achei que eu devia esse respeito a você. Mas esquece. Se quiser, pode esquecer o que eu disse, não vai fazer diferença pra mim. Pode até fingir que eu não existo, você decide.
Só aí saí de cima dele. Não era inteiramente verdade. Eu não queria que ele me ignorasse ou me odiasse. Eu queria que me amasse. Mas Caio não era como as outras pessoas, ou pelo menos ele não queria se ver agindo como as outras pessoas. Eu não ia cair no joguinho de me humilhar para ele suplicando por aceitação. Eu ia me afastar dele e isso ia doer nele. Só assim ele me daria valor. Sim, era tudo um jogo, mas era minha melhor chance.
_Sabe, Caio._ continuei já de pé _Você é patético. Desculpe se eu não te disse isso antes, eu deveria ter aberto seus olhos para isso. Você passa tempo demais odiando os outros, odiando a vida, odiando a opinião alheia. Esse ódio todo está te fechando numa concha de burrice. Você parou de olhar pro mundo, agora você odeia tudo automaticamente. Você gasta tempo e energia demais tentando provar pra todo mundo que você não precisa provar nada para ninguém. Não é cansativo?
Eu aproveitei o momento e resolvi soltar tudo de uma vez. Eu precisava fazer com que doesse fundo nele. Seus olhos represavam lágrimas, que ele insistia em segurar para se fazer de forte.
_Não pense que eu não sei que isso é uma máscara. Isso é só medo de encarar o mundo. E está tudo bem, por que é normal ter medo do mundo. Foi o que sempre pensei quando lidava com você. Mas isso chegou a um ponto crítico. Você usa essa máscara há tanto tempo que já está internalizando ela. Você está realmente criando uma onda crescente de ódio dentro de si mesmo. E posso te falar? Isso está te fazendo uma pessoa insuportável. Tiago e Laura não têm paciência com você. Mamãe e papai já desistiram de tentar te entender. Eu sou o único que sobrou. Mas agora acabou. Eu vou ser sempre o seu irmão, mas eu não sou mais seu amigo. É seu direito não gostar de mim, do que eu sou. Mas isso tem consequências: não precisa me ligar quando estiver bêbado demais pra conseguir chegar em casa sozinho, não precisa mais me pedir dinheiro emprestado pra nada, e não me venha mais pedir pra intervir junto ao papai e à mamãe pra diminuírem seus castigos. A-ca-bou.
Ele agora estava realmente chorando, mas me fiz de forte. Eu não ia deixar que ele visse compaixão nos meus olhos. Eu não podia deixar ele montar em mim. Dei as costas a abrir a porta, mas ele falou:
_Você era meu herói, cara. Nunca foi Tiago ou papai. Sempre foi você. Mas no momento que você se prestou a entrar no meu quarto pra me falar tudo isso, você deixou de ser.
Não era fácil escutar aquilo, mas engoli em seco. Sem me virar para ele e seguindo meu caminho para fora do seu quarto, respondi:
_Que coincidência, Caio. Até meia hora atrás, eu realmente gostava muito de você.
[...]
E os dias se passaram assim, comigo e Caio nos evitando pelos cantos da casa. Eu realmente queria que ele caísse em si rapidamente, mas o menino era bastante cabeça dura. Contudo, eu achava que ele precisava de tempo para digerir tudo o que falei e ficar realmente em paz com aquilo tudo. Tiago não tinha a mesma opinião que eu. Ele queria forçar Caio a colaborar. Sem que eu pudesse realmente opinar, Tiago ganhou a discussão.
Era sábado à noite, fazia uma semana que eu tinha voltado ao Brasil e tanta coisa já tinha acontecido. Procurando descanso, recusei todos os convites para sair. Até o mesmo o dos meus pais, que foram viajar por três dias com um casal de velhos amigos. Caio estava enfurnado no seu quarto enquanto Laura e Tiago se arrumavam pra sair. Um sábado comum. Era o que eu achava. Aquele sábado se tornou especial a partir do momento que escutei gritos de protesto de Caio vindos de algum lugar do apartamento. Antes que eu pudesse levantar para saber do que se tratava, a porta do meu quarto se abriu com força e meu irmão mais novo passou voando e caindo no chão. Olhei assustado enquanto Tiago entrava atrás dele. Aparentemente ele veio empurrando Caio durante todo caminho. Logo atrás dos dois, veio Laura com uma expressão de aflição no rosto. Nós quatro nos encaramos em silêncio por um segundo.
_Acabou a palhaçada._ falou Tiago _Vocês vão aprender o que é uma família, nem que seja à base de porrada!
E lá estávamos nós quatro, sozinhos em casa e prestes a ter uma conversa definitiva sobre nossa família. Eu só tinha uma certeza: o que quer que acontecesse ali, seria extremo. Ou a gente se entenderia de vez, ou passaríamos um bom tempo sem nem mesmo nos olharmos.
Antes de narrar os fatos daquela histórica noite, alguma coisas precisam ser pontuadas. Eu já contei como evoluiu e como era a minha relação com cada um dos meus irmãos, mas não falei sobre como era a relação deles um com o outro. O que guiava sua relação eram as personalidades de cada um.
Como já disse, Tiago sempre foi do tipo expansivo, extrovertido, alegre, meio explosivo às vezes. Laura também era assim, só que nunca explodia. Ela ficou só com a “parte boa”, ela nunca chegava ao ponto de brigar com alguém. Se era contrariada (o que era muito difícil de acontecer), ou ela ignorava ou insistia até dobrar a outra parte. Sendo assim, os dois se davam muito bem. Não que eles fossem de trocar confidências, mas eles eram bem próximos. Tiago gostava de exibir Laura como a sua princesinha e Laura gostava de exibir Tiago para suas amigas, que caíam apaixonadas por ele. Tiago tirou sua carteira de motorista com 18 anos, então ele passou muitos anos servindo de motorista particular da minha irmã. Assim, eles passavam muito tempo juntos, conversavam sobre seus gostos e visões muito parecidos, e se entendiam.
Com Caio, era o contrário. Depois que ele entrou na adolescência e abraçou essa personalidade de “ódio a tudo e todos”, eu fui o único que continuou a ter paciência com ele. Caio, o estranho que senta no canto da sala, sempre foi uma figura que Laura e Tiago, os mais populares da escola, mantinham distância. Dentro de casa, inclusive. Laura e Tiago não entendiam Caio, nem tentavam. Caio desprezava o estilo de vida, a personalidade e os gostos de Tiago e Laura.
Eu fazia o meio de campo. Nunca passei nem perto de ser tão socialmente bem sucedido com Laura e Tiago, mas eles nunca me viram como estranho. Eu era quieto, na minha, comum. Não incomodava como Caio. Por outro lado, não compartilhava o mesmo estilo de vida, personalidade ou gostos que eles, então não era desprezado por Caio. E, fugindo da solidão dentro da própria casa, ele se abraçou a mim. Era como se existissem dois times bem definidos: Caio e Laura & Tiago. Apesar das diferenças, os dois times nunca entraram em guerra. Até aquela noite.
_Deixa ele, Tiago._ pedi tentando botar panos quentes.
Eu me sentia culpado. Caio poderia muito bem facilitar as coisas, claro, mas fui eu que trouxe a “questão” em primeiro lugar. Se não fosse por mim, eles não estariam brigando agora.
_Não!_ respondeu meu irmão mais velho _Esse moleque vai ter que crescer, nem que seja na marra.
_Vai se fuder!_ respondeu Caio.
Corri para segurar Tiago, que partiu pra cima do nosso irmão menor. Os ânimos estavam bem quentes ali. Laura se sentou na minha cama e assistia tudo em silêncio. Mas ela não estava em paz ou desdenhosa com a situação. Seu rosto exprimia aflição com a cena dos seus irmãos brigando.
_Não adianta, Tiago, ele não quer fazer parte disso. Deixa pra lá. Você só está alimentando o discurso de ódio dele._ falei.
_Olha, o Bernardinho._ disse Caio com um sorriso desdenhoso _Depois que se assumiu viadinho, tomou gosto por soltar frases vazias por aí.
_Nada do que eu te disse foi vazio, e você sabe. Se fosse tão vazio, não teriam doído em você como eu sei que doeu._ respondi.
Tiago se soltou de mim e apontou o dedo pra Caio dizendo:
_Chega de bancar o filho da puta. O que você faz fora dessa casa, como você trata seus amigos, não me importa. Mas o que faz aqui dentro importa. Já cansei de você destilando essas suas asneiras por aí, de ficar provocando o papai e a mamãe, de ficar jogando indireta pra mim e pra Laura. Contra mim, eu até deixo passar, não me importo com sua opinião sobre o que eu faço. Mas eu não vou deixar você ofender o Bernardo. Ele sempre esteve do seu lado, sempre te defendeu, sempre me pediu pra ter paciência com você. Nunca o ouvi sequer reclamando de você, e olha que você merece!
Eu acho que devia me sentir bem com meu irmão em defendendo daquele jeito. Mas ele estava me defendendo do meu outro irmão, então tudo o que conseguia sentir era culpa pelas coisas terem chegado até àquele ponto.
_Digo e repito: vai se fuder você e ele!_ respondeu Caio.
Era aquilo. Não adiantava forçar Caio a nada. Ele estava muito agarrado ao ódio que ele sentia do mundo a sua volta. Acho até que Caio nunca foi homofóbico, nem por um segundo. Eu sempre fui o “bom camarada”, aquele que só diz sim, que vive para agradar os outros, que está sempre disposto a ajudar. Ninguém consegue odiar alguém assim, nem Caio. Mas aí eu me assumi gay para ele, e automaticamente eu me submeti a uma categoria daquele sistema que ele tanto odiava. Ele não me odiava por ser gay, ele me odiava por agora fazer parte de uma coisa da qual ele tinha ódio. Porém, entender isso não significava deixar ele falar o que quisesse sobre mim.
_Já que você está sendo tão sincero, nos mandado nos fuder, deixa eu retribuir o favor. Vou ser sincero._ falei para Caio _Eu não te odeio. Eu tenho pena de você, e isso é pior. Você acha que essa postura sua de ódio automático do mundo faz as pessoas te verem como, sei lá, alguém muito superior? As pessoas te veem como um coitado. Quem é realmente superior têm muitos questionamentos, não ódio. E esse seu ódio é ridículo. Se ele ao menos fosse honesto! Ele é só sua desculpa por não conseguir se encaixar. As meninas mais bonitas não olham pra mim? Maldito sistema que valoriza os meninos musculosos! As minhas notas não são boas? Maldito sistema que não sabe avaliar com precisão a inteligência dos alunos! As pessoas me olham com estranheza? Maldito sistema que valoriza o normal!
Ele me olhava com raiva, mas não liguei. Eu ainda era seu irmão, e era meu dever lhe abrir os olhos.
_Um último conselho? Você não se encaixa? Ok, acontece com a grande maioria, por mais contraditório que isso possa parecer. Quer superar isso? Abandone a filosofia do “ódio” e adote a filosofia do “foda-se”, isso, sim, te faria alguém realmente superior.
Pronto, soltei as últimas palavras que estavam presas na minha garganta. Se teriam efeito ou não, só o tempo diria, mas pelo menos eu tinha dito, cumpri meu dever com ele.
_Tô pouco me fudendo para o que você acha de mim._ ele falou entre os dentes _Por mim, você pode pegar esse seu conselho e enfiar no cu. Afinal, é lá onde você se diverte, né?
_Eu vou te fazer engolir isso!
Desta vez, não deu pra segurar, foi muito rápido. Quando dei por mim, Tiago já estava em cima de Caio lhe dando socos. Meu irmão mais novo tentava revidar, mas ele era bem mais fraco e lento que Tiago. Me joguei em cima dos dois tentando separar, mas tudo o que consegui foi levar um soco também. Se não fosse tão patético, seria cômico.
_CHEGA!_ gritou Laura.
Por reação, nós três paramos onde estávamos e olhamos para ela. Nunca tínhamos ouvido Laura gritar, ao menos não um grito que merecesse atenção. Ela estava muito vermelha e com lágrimas nos olhos. Era o limite dela. Ela se levantou rapidamente da cama e veio até nós três, que ainda estávamos parados no chão um em cima do outro. Com uma força e rapidez impressionantes, ela deu três tapas: um na cara de cada um de nós. Eu, Caio e Tiago nos olhamos assustados, sem reação. Não sei bem o que foi, talvez a marca idêntica dos dedos de Laura nos rostos dos meus irmãos, ou talvez o próprio ridículo da situação, só sei que me deu uma vontade incontrolável de rir. Eu ri. Gargalhei. Eu deitei no chão e segurava minha barriga, que doía de tanto rir. A que ponto chegamos! Perto de mim, Tiago não aguentou e começou a rir também. Caio tentava, em vão, segurar seu riso. Só Laura continuava séria, tão séria quanto quando gritou.
Vocês são idiotas! Olhem bem pra vocês!
Estávamos mesmo ridículos. Caídos nos chão, sem fôlego, e com os rostos marcados de golpes.
_Vocês não podem concordar em discordar? Caio é um idiota? É, mas é direito dele ser idiota. Ele que se foda com esse ódio todo que ele teima em sentir. Tá fazendo mais mal é pra ele mesmo.
_Laurinha,_ falou Tiago calmamente _ele tem que entender que ele faz parte de uma família e...
_Foda-se! Ele não tem que entender nada! Se ele não quiser fazer parte da porra dessa família, que não faça! Ninguém se importa!
Eu nunca tinha ouvido Laura gritar ou falar um palavrão. Caio e Tiago também não, a julgar pela cara de espanto deles. Ficamos em silêncio por um tempo.
_É tudo culpa minha._ falei _Eu não devia ter envolvido vocês nisso. Me desculpem.
_Você não tem culpa de nada._ respondeu Tiago.
_Eu falei que esse plano seu não ia dar certo.
Caio e Laura nos olharam confusos quando falei aquilo. Suspirei.
_Eu vou contar para a mamãe que sou gay. Ela não vai lidar bem com isso. Tiago achou que seria bom ter vocês ao meu lado, que seria mais difícil dela criar defesa se todos estivessem contra ela.
Caio e Laura abaixaram a cabeça. Eles pensavam. Sobre aquilo, sobre tudo, sobre a nossa família.
_Está decidido, eu vou contar para ela._ falei _Eu agradeço o apoio, mas a batalha é só minha. Só peço que se preparem. Essa casa vai vir abaixo. Papai sabe de tudo e me apoia. Mamãe não vai encarar bem o fato dele saber a mais de um ano e não ter contado pra ela. Eu não sei o que vai vir daí.
Aquilo estava preso na minha garganta há algum tempo, e com quem mais do que com meus irmãos eu podia compartilhar aquilo? Eu tinha muito medo que eu viesse a ser o ponto de ruptura do casamento dos meus pais.
_Você querendo ou não, eu vou estar ao seu lado._ falou Tiago _Eu não vou te deixar passar por isso sozinho.
_Obrigado._ agradeci sem ânimo para recusar qualquer coisa no momento.
Nós quatro permanecemos em silêncio. Nem mesmo Caio falava ou agia. Imagino o que se passava por sua cabeça no momento.
_Você realmente acha que isso pode abalar o casamento deles?_ perguntou Laura.
_Não sei... Talvez._ respondi sem certeza.
Deitei no chão e encarei o teto. Eu me lembrei que havia uma parte da história da nossa família que eles não conheciam, e era preciso que conhecessem para terem uma ideia do que estava por vir. Sem parar para perguntar se queriam ouvir, eu lhes contei toda a história do tio Aurélio. Ao terminar, tudo o que ouvi em resposta foi silêncio. Era muita informação de uma só vez.
_Não vai acontecer a mesma coisa com você._ falou Tiago, enfim.
_Eu sei, mas isso tudo dá uma ideia da reação da mamãe. É só pra vocês entenderem o que nos espera em breve. Papai já me deu sinais que não vai deixá-la vir pra cima de mim. Lógico que vai haver briga.
_Você vai jogar uma bomba no colo deles._ falou Tiago, sendo um pouco acusatório sem querer.
_E eu vou jogar outra..._ falou Laura distraída.
Nós três olhamos para ela atentos. Do que ela estava falando?
_Eu acho que estou grávida.
O único som que se ouviu no quarto depois disso era do trânsito lá fora.
Eu sempre pensei em Laura como uma pessoa rasa, um personagem raso. É preconceituoso, eu sei, mas é dessas impressões difíceis de se abandonar uma vez que se tem. Tudo mudou quando ela disse aquela frase. O sentimento que eu vi em seus olhos naquela hora não tinha nada de raso. Era uma mistura de medo, tristeza, arrependimento e, por que não, alguma alegria. Laura explodiu a própria bolha. A bolha que nunca me deixou vê-la como ela era de verdade. A bolha que nunca me deixou ver que havia uma dor secreta no modo como ela agia. Laura era muito mais que um simples projeto de dondoca. Que pena ter sido necessário que a bolha dela explodisse para que eu pudesse ser capaz de ver isso. Afinal, eu passei tanto tempo preso à minha dor, que me tornei incapaz de reconhecer a dor nos outros? E se for assim, como eu poderia culpar Caio ou Tiago por precisarem de situações limites para entenderem o que se passava comigo?
De repente, as coisas tomaram outra dimensão. Eu era gay, e daí? Laura estava grávida.
Tiago se levantou calmamente, caminhou até nossa irmã caçula e a abraçou. Ela reencostou sua cabeça em seu ombro e permitiu que alguma lágrimas silenciosas caíssem. Não fiz nada. Primeiramente, porque ainda estava em choque, e depois, Tiago era seu irmão preferido, era necessário que fosse ele a lhe consolar. Caio olhava pro céu negro lá fora. Não sei o que se passava na sua cabeça, mas devia ser tão pesado quanto o mundo. De todos nós, era ele que carregava o maior peso ali. De repente, ali, tinha se formado uma corrente muito forte entre nós quatro, mas ele era o elo fraco. Ele que criou aquela situação, e ele precisava sair dela sozinho, ou nunca conseguiria sair.
_Amanhã, nós vamos ao médico ver isso._ falou Tiago alisando os cabelos de Laura _Nós quatro.
Ele frisou o “quatro”, mas não olhou para Caio, que também não olhou para ele. Meu irmão mais velho saiu do quarto ainda segurando Laura pelos ombros. Eu e Caio ficamos sozinhos por mais alguns minutos, mas ninguém falou nada. Nenhum de nós dois queria falar nada. Quando ele saiu, foi direto para seu quarto e não bateu a porta como costumava a fazer, o que eu interpretei como um bom sinal.
Eu permaneci deitado no chão encarando o teto por mais um bom tempo, talvez por toda a madrugada, não sei. Eu refletia sobre tudo o que estava acontecendo. Vinham tempos difíceis para aquela casa, mas eu estava confiante. Eu não estava sozinho. Meio que sem querer, o plano de Tiago deu certo: nós quatro agora éramos um elo muito forte, um elo que compartilhava dores, segredos e sangue.
Era domingo de manhã quando eu e meus irmãos entramos no carro de Tiago. Ele levava Laura na frente com ele, enquanto eu e Caio nos acomodamos no banco de trás. Ninguém falava nada. Tomamos café da manhã em silêncio, cada um no seu canto, nos arrumamos em silêncio, e descemos para a garagem do prédio em silêncio. Nem um “bom dia”. Acho que quando se vive há tanto tempo com alguém, às vezes não é necessário conversar.
Fazia frio naquela manhã de inverno, e isso só servia para nos deixar ainda mais encolhidos cada um no seu casaco. Chegamos ao hospital e caminhamos em silêncio até a sala de emergência. Tiago tomou a dianteira e foi quem ele que explicou o caso de Laura para a atendente. Não ouvi a conversa, não sei o que ele disse. Eu achava que talvez não conseguíssemos atendimento pelo fato de Laura ainda ser menor de idade na época e estar desacompanhada dos nossos pais. Não sei se foi permitido, ou simplesmente Tiago conseguiu burlar as regras. Ele e Laura se sentaram comigo e Caio num banco da recepção. Mais uma vez, ninguém disse nada depois dele avisar que em breve nossa irmã caçula seria atendida.
Nos minutos que ficamos esperando ali, eu me pus pensando sobre toda aquela situação. A quanto tempo Laura sabia? De quanto tempo ela estava grávida? E quem era o pai? Eu me sentia péssimo, mas não apenas por não ter essas respostas, e sim por ter faltado com Laura. Certo, não éramos as pessoas mais próximas do mundo, não tínhamos o costume de compartilhar nossas vidas um com o outro, mas, poxa, eu era seu irmão. Certo, eu estava do outro lado do oceano até poucos dias atrás, mas eu já estava de volta a algum tempo e mesmo lá nós conversávamos pela internet. O problema não foi ter meios para me contar, foi ela ter confiança, e isso me fazia mal. Eu bem sabia o quanto era pesado carregar o fardo de um segredo.
O hospital estava vazio naquele dia, então o médico não pareceu se importar quando Tiago pediu que nós três acompanhássemos Laura no exame. Ele nem mesmo perguntou se eu, Caio ou Laura queríamos isso. Meu irmão mais velho simplesmente decidiu que estaríamos juntos naquele momento.
Laura estava visivelmente envergonhada quando o médico pediu que ela levantasse a blusa, expondo o seu ventre na nossa frente.
_Quem de vocês é o suposto pai?_ perguntou o médico querendo fazer graça enquanto preparava o ultrassom.
_Nenhum. Nós somos os irmãos dela._ respondeu Tiago sério.
_Ah, sim._ respondeu o médico sem graça _Essa situação poderia ter sido evitada, mocinha. Há uma variedade imensa de métodos anticontraceptivos e...
_Eu sei._ cortou Laura _Foi um descuido. Eu sei muito bem que isso poderia ter sido evitado.
_Bem...
O médico voltou a se concentrar no exame ao ver que não conseguiria um papo mais informal ali.
_Este é seu primeiro exame?_ ele perguntou.
_Sim, mas eu fiz o teste de farmácia muitas vezes já._ a expressão de Laura se abateu _E deu positivo em todas elas.
_Entendo. Vamos lá.
Ele aplicou o gel sobre a sua barriga e começou a caminhar lentamente pelo seu ventre com o aparelho de ultrassom.
_Talvez você já possa até mesmo escutar o coração do feto..._ falou o médico e foi perdendo a voz aos poucos.
Ele, que tinha a expressão mais tranquila, franziu a testa preocupado e olhando a tela do exame. Todos nós percebemos de imediato que havia algo de errado acontecendo.
_O que foi, doutor?_ perguntou Tiago preocupado.
_Só um minuto._ respondeu continuando a mover o aparelho pelo ventre de Laura.
Minha irmã estava muito branca e eu me compadeci dela. O médico parou o aparelho num ponto e continuou a olhar para a tela preocupado. Eu olhei para tela também e vi o que ele olhava. Uma formação muito pequena estava localizada ali e, por já ter visto imagens semelhantes na escola, eu percebi que era o feto. Meu futuro sobrinho. Eu quase fiquei feliz com a imagem. Mas a expressão do médico não me deixava relaxar. Acompanhando a sua mão, eu percebi que o aparelho não estava apontado para o centro do ventre de Laura, onde deveria estar seu útero. Então eu compreendi...
_O que foi, doutor? Tem alguma coisa de errado?_ perguntou Tiago exasperado.
O médico desligou a tela e neste momento os olhos de Laura se encheram de lágrimas, assim como os meus. Caio e Tiago me olharam. Eles não perceberam de imediato o que estava errado.
_Você é muito nova, Laura._ falou o médico com uma voz calma _Quer que eu chame um psicólogo para acompanhar essa conversa?
_Não._ ela falou firme, apesar do choro _O que está acontecendo?
O médico deu um longo suspiro.
_Em cerca de um 1% das gestações, ocorre o que chamamos de gravidez ectópica. O óvulo fertilizado deveria ter descido das trompas e se instalado no útero, mas isso não aconteceu. O óvulo está se desenvolvendo na sua trompa Laura.
_O que isso significa?_ perguntou Tiago.
O médico estava claramente incomodado com aquela conversa, certamente por todos nós aparentarmos sermos muito novos.
_Acho melhor esperar seus pais, meus caros.
_Não!_ falou Tiago bravo com toda aquela enrolação. _O que está acontecendo com ela?!
Vendo o médico titubear, eu não aguentei em falei.
_Significa que a gravidez não tem como continuar._ falei com a voz grossa devido ao meu choro silencioso _Não há como mover o feto, e se ele continuar crescendo ali, onde não há espaço, ela vai romper a trompa dela e causar uma hemorragia interna. Ela...
Todos eles me olhavam com muita atenção. Eu não queria olhar para Laura quando dissesse aquelas palavras, mas eu não consegui. Ela confiava em mim. Era eu quem lhe daria a notícia.
_Ela precisa abortar.
O silêncio se instalou na sala. Os olhos de Laura se vidraram em mim. Naquele momento, ela em nada parecia a princesa que eu sempre vi. Era uma menina tomando o seu primeiro grande golpe da vida.
_Como?_ perguntou um chocado Tiago mais para ele mesmo do que para o médico.
_Pode ter inúmeros motivos. Possivelmente é devido a pouca idade dela e o uso de pílulas anticoncepcionais durante muito tempo.
Nenhum de nós respondeu e ele ficou sem jeito de continuar o assunto.
_Para evitar complicações, é preciso que o procedimento seja feito o mais rápido possível. É melhor ligar para os seus pais...
_Nós somos órfãos._ falou Tiago rapidamente _Eu sou o responsável legal por ela.
_Ah..._ falou o médico constrangido.
Nós trocamos olhares silenciosos. Era claro o que Tiago estava fazendo: nossos pais nunca saberiam daquilo.
E como seria feito esse... procedimento?_ ele perguntou.
_Como a gravidez ainda está muito no início, não será preciso nada muito invasivo. Vamos lhe dar uma droga abortiva e ele deverá fazer efeito em alguns dias. O feto será expelido na menstruação, ela não vai perceber.
_Entendo...
_Você pode nos deixar sozinhos por alguns minutos, doutor?_ pedi.
_Claro, vocês precisam conversar, desculpem se eu fui pouco sensível. Me chamem quando tomarem uma decisão.
_Obrigado._ respondi.
Ele saiu e deixou nós quatro na sala. Laura abaixou a blusa e ficou com a mão direita sobre o ventre. Ela encarava o teto enquanto lágrimas silenciosas desciam pela sua bochecha. Era uma das imagens mais tristes que cheguei a ver na vida.
_Você tem que fazer, Laura._ falou Tiago pegando na mão dela _Você ouviu, corre risco de vida.
_Mas..._ falei me aproximando da cama _Nenhum de nós aqui consegue imaginar nem por alto a turbilhão de sentimentos pelo qual você está passando. Por isso, vou te perguntar: você quer esperar a mamãe chegar?
_Bernardo!_ falou Tiago brigando comigo _O que você acha que a mamãe vai achar se souber disso?
_Eu sei muito bem o inferno que vai ser, mas a decisão não é minha ou sua. A pessoa certa para estar ao lado dela neste momento é a mamãe, e se ela quiser esperar por ela, nós vamos esperar.
Tiago me olhou sem reação. Ele sabia que eu estava certo e eu sabia que ele tinha a melhor das intenções, mas a decisão era de Laura. Nos viramos para ela esperando uma resposta. Ela continuou encarando o teto quando respondeu:
_Não vamos esperar ela. Vamos fazer agora. Eu quero ficar livre disso o quanto antes.
Eu não gostei das suas palavras. Independente de estar me contrariando, eu não gostei de como ela se referiu ao feto. Fosse como fosse, ainda seria seu filho e aquilo ainda era um aborto.
_Você ouviu._ me falou Tiago quando percebeu que eu ia protestar.
_Eu vou chamar o médico._ falou Caio (pela primeira vez no dia) e saiu do quarto.
Eu desisti de protestar. Não cabia uma briga naquele momento. Tudo o que eu podia fazer era esperar que estivéssemos fazendo a coisa certa. O médico já voltou com o medicamento, nos alertou sobre os possíveis efeitos colaterais e nos mandou pra casa, recomendando voltar caso alguma coisa fugisse do normal.
Já no carro, numa viagem de volta pra casa totalmente em silêncio, vimos Laura se contorcer de dor. Tiago parou o carro assustado para lhe prestar socorro. Mas não havia o que fazer, era uma dor psicológica.
_O que foi Laura?_ ele perguntou preocupado.
_Eu desejei que ele morresse!_ ela falou já entregue a lágrimas descontroladas.
Tiago a abraçou. Pra mim foi impossível segurar as lágrimas. Até mesmo Caio, que gostava sempre de se mostrar inatingível, estava visivelmente abalado com aquilo tudo.
_É um segredo nosso, não vamos contar pra ninguém._ falou Tiago quando entramos em casa.
_Mas a mamãe..._ falou Laura ainda chorando _Ela vai descobrir...
_Não, não vai. Nós não vamos contar._ ele sentenciou.
_Mas são nossos pais! Eu não posso guardar segredo deles!_ ela falou exasperada.
_Pode sim!
Tiago suspirou fundo e fechou os olhos.
_Uma vez, quando eu tinha dezoito anos, eu atropelei uma senhora.
Nós olhamos assustados para ele. Aquilo era informação nova.
_Não foi nada grave, eu prestei socorro e não houve ocorrência. Mas eu estava bêbado._ ela falou triste _Eu não podia chamar papai e mamãe. Mais do que o medo da bronca, eu estava com vergonha. Sabe o que eu fiz? Consertei o que fiz sozinho e tirei aquilo como uma lição preciosa. Nunca mais bebi e dirigi.
Nos olhamos sem reação àquilo. Inesperadamente, a palavra seguinte veio de Caio.
_Ano passado, eu experimentei cocaína.
Foi a vez dele receber nossos olhares assustados. Que tipo de vida levávamos escondidos um do outro?
_Foi a pior sensação da minha vida. Não me causou euforia ou satisfação. Talvez a dose fosse muito pouca. Talvez a sensação de estar decepcionando todo mundo fosse tão maior que sufocou tudo. Mas a lição ficou: eu nunca mais cheguei perto.
Eu olhava para eles tentando entender a razão daquilo tudo. Não acho que encher a cabeça de Laura com todas aquelas informações fosse a coisa mais saudável a se fazer. Mas agora já estava feito. E eu não poderia ficar para trás, afinal, agora havia uma rede de segredos que nos unia.
_O que eles querem dizer com isso, Laura, é que todos nós passamos por baques na vida. E nem sempre é preciso contar isso para os nossos pais. O importante é crescer a partir disso._ falei e respirei fundo antes de continuar _Ano passado, eu tentei suicídio. E foi só ao chegar ao fundo poço, que consegui ter forçar para me levantar.
Laura e Caio me olhavam atônitos. Tiago abaixou a cabeça. Ele já sabia da história, mas aquilo ainda mexia com ele. Caio, principalmente, me olhava com uma gama de sentimentos no olhar. Susto, dor, arrependimento, tristeza, dúvida, raiva... Deus sabe o que estava passando na sua cabeça agora. Mas foi bom que ele soubesse daquilo, pois foi a partir dali que ele passou a me olhar com outros olhos.
_Laura,_ falei chegando perto dela _se você quiser contar para eles, nós vamos te apoiar. É seu direito não querer guardar um segredo deste tamanho. Mas meu conselho é: não conte.
Ela balançou a cabeça afirmativamente. Ninguém falou mais nada naquela tarde de domingo. Cada um foi pro seu quarto lidar com seus próprios pensamentos. Foi um dia estranho. Eu acordei com a possibilidade de ter um sobrinho e iria dormir com a imagem de Laura sangrando seu filho para fora do corpo. Eu queria ir ao quarto da minha irmã e lhe dizer alguma palavra de conforto, mas eu não conseguia. Eu não sabia o que dizer ou como agir.
[...]
_Boa noite, meus amores! Como passaram o fim de semana sem supervisão?!_ falou mamãe quando ela chegou de viagem com papai naquela noite.
Se ela soubesse...
_Bem..._ respondemos cada um de nós a medida que ela ia perguntando.
Ela estava estranhamente animada naquele dia.
_Sabe o que nossos amigos nos contaram?_ ela continuou sem esperar resposta _Que eles jantam com seus filhos à mesa todos os dias. Todos os dias! Não é maravilhoso? E eu fiquei pensando “por que a gente não faz a mesma coisa?”
Por que o jantar transcorreria num silêncio mortal” pensei, mas não falei.
_E sabe o que eu fazer agora?_ ela perguntou e novamente emendou uma resposta sem esperar por nós _Um jantar digníssimo para nós seis. E vamos comer todos juntos na mesa.
_Não, mãe, hoje a gente está desanimado._ falou Tiago.
Definitivamente, minha mãe tinha escolhido o pior dia possível para ter aquela ideia.
_Hoje!_ ela frisou indo para cozinha.
_Deixa para outro dia, mãe._ intervi.
_Parem de discutir._ falou meu pai _Ela vai fazer o jantar e vamos todos comer juntos. Pronto.
E não teve como discutir, não com o meu pai. Às nove da noite, estávamos os seis sentados à mesa comendo lombo com alguma coisa e encenando a família feliz e perfeita que só a minha mãe via. Se ela quisesse ver mesmo o que estava acontecendo, ela veria nos nossos olhos como estávamos psicologicamente destruídos. Meu pai percebeu.
_O que vocês fizeram no fim de semana?_ ele perguntou desconfiado.
_Nada._ respondeu Tiago rapidamente _Ficamos por aqui mesmo.
_Que lindo, meus quatro filhinhos se entendendo e passando um tempo juntos._ falou minha mãe rindo.
Se ela soubesse...
E ela começou a tagarelar sobre o maravilhoso fim de semana que tinha passado com os amigos e sobre a vida deles. Ninguém respondia com mais do que duas ou três sílabas. Não sei em que ponto da noite Laura começou a chorar, levando Caio, Tiago e eu ao desespero silencioso. Talvez quando minha mãe comentou que o primeiro neto da sua amiga acabara de nascer.
_O que foi, Laura?_ perguntaram meus pais preocupados.
Ela só chorava. Eles olharam para nós confusos, mas estávamos perdidos ali, o que eles possivelmente interpretaram com confusão e ignorância também.
_O que foi, minha filha?_ perguntou minha mãe levantando da cadeira e acariciando seu ombro.
_A gente descobriu uma coisa hoje..._ ela falou entrecortada pelo choro.
Meu pai nos olhos desconfiados. O que fazer agora?
_O que foi?
_Não reajam mal a isso, por favor._ interviu Tiago.
Meu pai olhou nos olhos de cada um de nós tentando entender o que se passava. A boca de Laura se abriu, ela estava prestes a contar. Ela tremia e chorava muito. Ali, eu entendi que ela não queria contar, não estava pronta para isso, ela só não sabia como esconder. Eu fiz o que deveria ter feito, não me arrependo. Mas, confesso, agi por puro impulso, algo que raramente faço. Eu falhei com Laura uma vez, não o faria de novo. Ela precisava de mim e eu a ajudaria. Por um amigo, eu não sei se me jogaria no fogo daquele jeito. Mas ela não era minha amiga, era minha irmã, meu sangue, meu passado e meu futuro. E ela era tão nova, tão linda, tão inocente ainda. Ela não merecia passar por aquilo. Eu era seu irmão mais velho e era meu dever protegê-la de tudo. Até dos nossos pais.
_O que você descobriu, Laura?_ perguntou minha mãe começando a ficar desesperada.
_Ela descobriu que eu sou gay._ respondi.
Por puro reflexo, minha mãe se virou para mim e me encarou. Engraçado, naqueles poucos segundos, eu não vi confusão nos seus olhos. Aquilo não foi uma surpresa para ela. Ela sabia. Ela sempre soube. O que eu vi em seus olhos foi cólera.