- Ele foi para a casa dos avós, no nordeste.
- Por quê?
- Porque ele disse que aqui ele não conseguiria estudar para o vestibular. Ele insistiu muito para ir. O pai dele e eu não tivemos escolha.
- Mas então ele volta...
- Volta.
Fiquei um pouco aliviado. Depois de um momento de silêncio:
- A senhora sabe porque brigamos? - perguntei timidamente.
- Ele disse que você beijou outra pessoa. Mas ele disse também que você não teve culpa. Quando ele explicou, ele disse que você não o traiu assim... como eu posso dizer?... na intenção de trair. E foi um beijo só e você mesmo que impediu e blá, blá, blá. Aí eu e o pai dele ficamos sem entender: "se o Marlon não teve culpava por nada, então porque ele terminou?".
- O Caio é complicado. - disse me conformado.
- O Caio é quem complica. Ele põe em jogo coisas que não cabem na situação. Ele faz um apanhado de todas indisposições que ele teve no namoro de vocês e despeja de uma vez só. Ele é craque em fazer a pessoa se sentir culpada pelos erros passados, depois ele mesmo se confunde... olha, sei não - disse ela impaciente - eu só espero que, quando ele voltar, vocês resolvam logo isso.
- A senhora faria campanha por mim?
- Marlon, você é de casa. Você é praticamente um filho. Pode ter certeza de que se o Caio não voltar com você, vou fazer da vida do próximo namorado dele um inferno. - brincou ela.
Eu ri um pouco.
- Isso mesmo, meu amor, fique tranquilo. Eu tenho esperanças que tudo isso não tenha passado de um estresse. Na época do vestibular de Marketing, ele ficou insuportável do mesmo jeito. É que, pelo fato de ele ser gay, ele tentava se realizar nos estudos e anulava as coisas que ele sentia. Hoje ele não anula mais, só que não conseguiu se livrar dessa obsessão pela perfeição.
Ficamos um tempo calados.
- Quer um sorvete?
- Não...
- Mas vai tomar, eu estou mandando, sou sua mãe! - resmungou.
- Quem dera a minha mãe fosse a senhora... - entristeci.
- O que houve?
- É que... eu estou me acertando com a minha família, mas a única que não quer que eu me aproxime é a minha mãe. Ela disse que “pessoas como eu” não deveriam nem nascer.
- Já passou da hora da sua mãe acordar, me desculpe!
- É verdade, não precisa pedir desculpas.
Fui obrigado a tomar umas bolas de sorvete. Depois que fui embora, me lembrei que não tinha ido ao trabalho.
Peguei um táxi e fui imediatamente para lá. Eu argumentei que estava doente, mas novatos não têm vez. Eu não consegui mentir muito bem, mas eu estava com uma aparência de cansado. O meu chefe pediu que eu explicasse melhor. Então eu disse “a verdade”: que a minha mãe não aceitava a minha sexualidade e disse que eu deveria ter nascido morto. Isso acabou comigo, tive febre, mas foi por um curto período. Meu chefe se sensibilizou com a história e me perdoou.
Eu conseguia concluir o meu trabalho, mas trabalhar já não era a mesma coisa. Eu ficava pensando o tempo todo que eu deveria ter sido mais firme com o Caio, que eu desisti fácil demais. Temia ter posto tudo a perder. O Tom chegou da sua viagem familiar, primeiro que a Cláudia, então, fui ter com ele:
- Oi Marlon - disse ele me abraçando.
- Oi.
- Por que você não me atendia?
- Não queria falar com ninguém... o Caio que te contou?
- Ele me ligou. Disse chorando que vocês tinham terminado.
- E o que você acha disso tudo.
- Se ele ligou chorando e foi para longe, para tentar se concentrar nos estudos, é porque ele te ama muito.
- Mas você acha que ele vai me querer de volta?
- Claro.
- Não estou confiante.
- O Caio tem uma porrada de defeitos e nós dois sabemos quais são. Mas o mesmo defeito dele é a qualidade: ele se envolve demais. Cara, vocês casaram. Nem vou dizer “praticamente”. Vocês casaram. Ele não iria esquecer o marido assim.
- Estou com tanta saudade dele...
- Vamos para o meu quarto. Eu quero saber tu-do!
Contei tudo ao Tom e ele me ouvia com atenção. Fiquei até à noite na casa dele. Jantei lá e tudo mais.
Passamos a conversar muito pelo MSN. Depois a Claudinha chegou e foi aquela mesma ladainha.
Com exceção de todas as pessoas do mundo, ouvir o Tom e Claudinha dizerem que o Caio voltaria para mim, me confortava. Eles conheciam muito bem o Caio e o nosso relacionamento para julgar isso.
Uma vez, Tom e eu estávamos no MSN, mas ele demorava a responder as minhas perguntas.
- Ô chato-loiro está fazendo o quê?
- Estou lendo.
- Lendo? você?
- Vai tomar no cu! Uhuahsu...
- kkkkkkkkk
- Estou lendo contos eróticos.
- Sabia, só podia ser...
- Mas não é tão erótico assim, é até romântico.
- Seu nível de romance é muito promíscuo.
- É sério, poxa!
- kkkkkkkkkk
- Toma, lê aí.
Então ele me passa um link de uma comunidade no Orkut, “Contos Eróticos (Gay)”, no tópico intitulado “O Médico”.
- O que é isso?
- É o conto que eu estou lendo.
- Parece mais um livro virtual... Alguém já disse a esses caras que eles escrevem demais? Contos são três páginas no máximo.
- Marlon, vai te catar.
- kkkkkkkkkk.
Não li. Fechei a comunidade e ignorei.
Eu queria falar com o Caio, manter algum contato. Escrevi vários e-mails, mas não enviei nenhum. Coisas da modernidade. Antigamente se escreviam cartas e às vezes nunca se enviava. Eu mesmo já fiz isso. Mas hoje, basta selecionar tudo e deletar.
Tive medo de enviar e atrapalhar os estudos dele. Passou-me pela cabeça que ele pudesse ficar chateado. E, assim como todas as pessoas próximas dele sabem, eu sei o quanto ele é militarista em relação aos estudos.
Percebi, contudo, que nunca nos “encontrávamos” pelo acaso no MSN. Pensei que ele tivesse me bloqueado ou excluído. Dias depois, eu estava numa conversa com o Tom.
- Tom, nunca mais eu vi o Caio On...
- Nem eu, ele não está entrando mais.
- Eu estou pensando que ele me bloqueou.
- Não, acho que não.
O Tom demorava às vezes para responder.
- Você tem falado com ele esses dias?
- Eu mandei um e-mail, perguntei como ele estava, e dei umas broncas.
- E o que ele disse?
- Ele respondeu muito pouco. Só disse que estava mais calmo porque estava conseguindo estudar melhor do que quando ele fazia o cursinho e sobre a bronca ele não falou nada.
- Só isso?
- Eu mandei um e-mail enorme, ele respondeu em 3 linhas, mas não se preocupe não; ele está incomunicável com todo mundo mesmo.
- Estou com saudades, Tom!
Chamei a atenção dele.
- Ô menino, está fazendo o quê?
- Lendo.
- Aff, aquela porcaria de novo?
- Porcaria é você e você ainda vive.
- kkkkkkkkkkk.
Estava sem saco para tudo na vida, os amigos estavam distantes. Na verdade eu é que estava distante em espírito. Não me restava muita coisa para fazer.
- Olha, me passa esse link de novo!
E eu comecei a ler os famosos Contos Eróticos Gays do Orkut. Emocionei-me bastante com alguns contos. Era diferente ler um livro e ler os contos. Talvez porque os leitores se comunicassem, mas, ao mesmo tempo, fossem anônimos. O escritor tem um relacionamento muito direto com quem lê, na verdade é extremamente direto.
Enquanto que em um livro o escritor passa por dificuldades para concluir a sua obra, mas o leitor só tem o trabalho de comparar tudo pronto “para consumir” e aproveitar. Nessa comunidade o escritor pode relatar em tempo real que está com dor de dentes, que está indisposto, que algum familiar morreu... não sei qual é a receita desse sucesso, mas para mim é incrível tudo isso.
Melhor ainda é encontrar tanta gente na mesma situação de submissão em relação aos padrões sociais e os chamados “bons costumes”. Sentir que a obra do autor realmente influencia o leitor. Fiquei admirado. Enquanto eu lia algumas postagens, percebi a capacidade de comoção que aquele meio tinha.
- Tom?
- Que foi?
- Gostei da comunidade.
- Não, ela não presta.
- kkkkkkkkk chato.
- Eu também viciei.
- Eita, mas também não chega a tanto.
- Mas vicia.
- Só você, né? Eu nunca vou viciar nisso!
Eu estava morrendo de saudades do Caio. Dormir sem ele era uma tortura. Não só porque eu o amava e sentia a sua falta, mas também porque era um hábito. Eu dormi com ele durante muito tempo. Dividimos a mesma cama. Era estranho me cobrir com o lençol e não sentir os pés gelados de outra pessoa. Eu estava acostumado em, assim que me deitasse, procurar os pés do Caio com os meus para aquecer. Fazíamos conchinha e dormíamos.
Agora, o que me fazia perder o sono, no bom sentido, eram os contos da comunidade. Eles me acalmavam um pouco e me davam esperanças. Eu costumava varar a noite com o Tom, lendo. Era engraçado, parecíamos comadres.
Às vezes líamos um trecho de um conto que acompanhávamos com afinco e, por MSN, nos expressávamos “Você leu o que fulano escreveu sobre cicrano?”, “Li. Nossa, estou chocado!”. Tornou-se o meu passatempo.
Mas não tinha jeito. Tirava o meu sono, mas não tirava o Caio da minha cabeça. Uma vez fui consultar o site da faculdade onde o Caio faria o vestibular. Vi que em menos de uma semana seria a prova, ou seja, em menos de uma semana o Caio voltaria.
Não nos comunicamos nenhuma vez desde que ele se foi. Meus dedos se coçavam de vontade de enviar um e-mail. Não sei como resisti.
Durante essa última semana, fiz uma conferência por MSN com a Cláudia e o Tom:
- Gente, o Caio tem falado com vocês?
- Muito pouco. - disse o Tom.
- Procuro não falar com ele, pois sei o quanto ele é chato com estudo e tals.
- É... eu estou louco de saudades... ele nem me mandou e-mail nem nada... ele em atualizou foto no Orkut.
- É, só vamos vê-lo quando ele chegar mesmo, mas mesmo assim eu vou esperar que ele nos procure. - disse a Claudinha.
- O quê vocês acham que eu devo fazer?
- Marlon, na boa? - perguntou a Claudinha.
- Sim, fale.
- Fica na sua!
- Ué, não faço nada?
- É, Marlon, fica na sua! - reforçou o Tom.
- Ele não sabe que você está morrendo de saudades? Não sabe que você o ama? Não sabe que você está morando com o seu irmão? Não sabe seu telefone, e-mail, Orkut, MSN?
- Falou e disse, Claudinha!
- Mas e se ele não me procurar?
- É porque ele não está afim e pronto.
- Oh!
- Eu adoro o Caio, tenho muito carinho por ele e nem estou fazendo dessa conversa um ataque contra ele, mas estou dizendo a verdade... Se ele não te procurar mais, eu não vou deixar de ser amiga dele, porque ele é um bom amigo e eu o gosto muito, mas também não deixarei de ser sua amiga.
- Mas nós ajudaríamos vocês a se reconciliarem se ambos quisessem, né Claudinha?
- É, Tom!
- E como eu fico até lá?
- Eu não queria dizer essa palavra, mas como eu sei que é o que você vai fazer mesmo... fique esperando na sua. Na verdade eu mandaria você seguir sua vida e vê se o Caio se aproxima, mas não ficar esperando por ele, entende?
- Sim.
- Marlon, seja forte!
- Mas e no dia do vestibular? Será q eu não posso nem desejar boa sorte?
- SÓ SE ELE TE PROCURAR!
Fiz, com muito aperto no peito, o que os meus amigos me aconselharam.
Foi a semana mais longa, sem dúvida. Eu sempre perguntava ao Tom e à Cláudia se o Caio já tinha chegado à cidade.
Ambos fizeram um pacto entre si de não me contar nada sobre o Caio. Enlouqueci com isso. Ele fez a prova num domingo à tarde. Depois da prova, ele promoveu um almoço na casa dele para os familiares e amigos, incluindo Tom e Cláudia.
Eu não fui convidado.
Soube do almoço pelo Tom e pela Claudinha, que me disseram que foi o próprio Caio que disse que não se importava se eles me contassem, porque ele queria ser verdadeiro comigo. Ele disse que não se sentiria à vontade com a minha presença e que por isso não me chamou.
Bem, por sorte era domingo e eu não trabalhava nesse dia. Fiz desse dia um palco das minhas choradeiras. Tive ódio. Não fiz mais nada no domingo.
Na segunda eu estava com olheiras e as levei para o trabalho. No computador da empresa, abri a minha caixa de e-mails.
Lá estava um e-mail do Caio. Ele havia enviado no sábado, um dia antes da prova e do almoço.
“Olá querido Marlon!
Essa temporada na casa dos meus avós foi muito boa para mim. Eu consegui por a minha cabeça em ordem e estudar de verdade. Minha mãe me contou que você foi procurá-la e ela te disse que viajei. Eu te enviaria um e-mail contando, mas já que ela tinha contado antes, preferi não enviar nada. Eu sei o quanto eu devo estar parecendo maldito para você, mas espero que me perdoe.
Espero que perdoe a ausência e a falta de comunicação. Sei que não vivemos no mesmo ritmo. Sei que o silêncio me ajudou e sabia que ele me ajudaria quando decidi me calar, mas sei também que o oposto te aconteceu. Sei que o meu silêncio te fez sofrer. Eu sinto muito por isso.
Hoje eu sei que não há culpados, mas, se houver alguém para culpar, culpo a mim. Talvez tentar fazer você descobrir por conta própria não tenha sido a melhor escolha e de fato não foi mesmo. Eu fui cabeça dura, quis enxergar uma coisa e não consegui pensar em mais nada. Fiquei louco quando descobri que alguém estava afim de te tirar de mim. Fiquei mais louco ainda quando percebi que essa pessoa era tão próxima e que vocês estavam ficando amigos. Fiz isso por ciúmes, fiz por besteira, fiz por imaturidade.
Sim, imaturidade. Não sei se sou eu que não sou maduro, ou se percebo que todas as pessoas no mundo nunca chegarão à maturidade de verdade, pois, as pessoas de verdade, sempre terão ódio, ciúmes, inveja, tristeza... mesmo que por alguns segundos. São sentimentos ruins como esses que nos fazem perder o controle até mesmo daquilo que mantemos com zelo e amamos com todo o coração.
Mais do que amar você, eu amava o que tínhamos e éramos juntos. Tenho certeza absoluta que você pensa a mesma coisa e seria capaz de dar a minha vida em nome dessa ideia. Sim, ainda te amo muito. Te amo muito.
Suponho que você saiba que nesse domingo, amanhã, será a minha prova. Deseje-me sorte!
Farei um almoço aqui em casa depois da prova. Convidei a todos que amo, inclusive a Claudinha e o Tom. Desculpe não te convidar. Ainda não sei o que será de mim quando te vir. Não sei qual será a minha reação. Talvez eu te magoe com algo que eu faça ou sinta. Talvez eu me magoe por perceber algo que eu tema.
Não sei qual será o nosso futuro. Eu espero que seja lindo, só não sei se ainda estaremos juntos. Mas pode ter certeza que esquecer você só será possível se uma amnésia muito forte me abater.
Beijos de quem te ama muito e de quem sempre vai te amar, de uma forma ou de outra.
Caio”
Eram palavras que anunciavam os dias seguintes: eu e o Caio não seríamos mais felizes juntos. Nunca mais. Fechei o e-mail e tentei trabalhar como se nada tivesse acontecido. Às vezes eu me sentia um idiota por ter deixado ele partir, outras vezes eu queria matá-lo. Havia vezes em que eu simplesmente nunca queria ter conhecido o Caio.
Mas nada se comparava à minha ira em relação ao Arthur. Coitado dele e de mim se eu o encontrasse na rua: ele seria morto e eu preso.
Esse e-mail me deu mais forças para continuar incomunicável. Eu sabia que ele sabia como me encontrar, mas meu coração às vezes me fazia questionamentos: “E se ele esqueceu meu número? Ou o meu e-mail? Esqueceu como se pega um ônibus...”.
Aquele e-mail era a prova concreta de que ele saberia me encontrar se quisesse.
Continuei “na minha”. Foram semanas assim.
As aulas começaram e o Caio não foi. Mesmo que o que ele quisesse fosse a Gastronomia, ele iria para as aulas normalmente e só trancaria Marketing se fosse aprovado no vestibular. Mas ele não foi!
Eu não tinha ânimo para nada. Meu irmão passou a viajar cada vez menos, mas eu passava o dia trancado no quarto. O meu irmão também, só que acompanhado da Gabriela. Isso me incomodava bastante, pois achava que estava atrapalhando.
Alguém surgiu para me salvar.
- Alô?
- Marlon, é Luciano!
- Oi, Lu, tudo bem?
- Tudo. Escuta, eu quero conversar com você, te fazer uma proposta.
- Que proposta?
- Quando a gente pode se ver?
- Depois da aula. Você aproveita e vê o Tom.
- Beleza, então. Mais tarde eu estou lá.
Nada me surpreendia ou me deixava ansioso. Nem liguei para que o Luciano falava. Quando a aula chegou ao fim, ele apareceu:
- Oi, Marlon!
- Oi. - disse eu apertando a sua mão.
- Então, vamos sentar?
Sentamos numa mesa ao lado da mesa do pessoal da minha turma.
- Eu estou morando sozinho, eu não sei se você sabe. Faz pouco tempo, duas semanas.
- O Tom me falou algo sobre isso.
- Pois é. Estou procurando um colega para dividir o apartamento. Topas?
- Poxa, eu? - perguntei surpreso.
- Sim. Só confio em você e, por sorte, você também está trabalhando.
- Por que você não convida o Tom?
- Por dois motivos: os pais dele não deixariam e eu também não quero. Não me sinto pronto para isso.
- Sei...
- E então?
- Eu não sei, Lu. Seria muito legal, mas eu não sei... Estou muito bem com o meu irmão.
- Mas pelo o que eu soube, você reclama quando a noiva do seu irmão vai lá.
- É... sabe como é, né?
- Lá não teria isso. O Tom dormiria lá algumas vezes, é claro. Mas eu tenho certeza que você não se incomodaria.
- É verdade.
- E então?
- Bem, eu quero saber quanto custa.
- O apartamento é meu, não é alugado. Eu só quero ajuda para pagar as contas e para manter a ordem. E também porque eu não vou mentir que me sinto só lá, mas não queria o Tom, ainda, queria um amigo, sabe?
- Entendo.
- E aí?
Eu respondi que iria conversar com o meu irmão e que, depois de pensar, eu daria a resposta. Parecia uma oferta boa. O Luciano é um grande amigo, uma pessoa bastante confiável e séria. Talvez essa fosse a chance de me livrar de um problema. Quem sabe até o fato de eu ter que me virar mais ainda para viver não me fosse bom?
Contei para o meu irmão. Ele resistiu à ideia no início. Disse que a intenção dele era reunir a família de novo, mas eu lhe disse:
- Muito pelo contrário, Ewerton. É o fato de eu estar consultando a sua opinião sobre isso que me faz perceber que você é importante para mim. O que me faz querer ir é porque te amo muito e não quero atrapalhar a sua vida. Ainda somos uma família. Sim, você ainda é o meu heroi de cueca por cima da calça e tudo mais!
Ficamos feito bobos enquanto ele me ajudava a fazer as malas e eu me mudei para o meu novo lar. E parecia que o novo lar já me dava sorte. Assim que cheguei com as malas, o telefone da casa do Luciano toca.
- Marlon? - ele me chamou com certo cuidado.
- O que foi? Está tão sério!
- É o Caio!
Custei a acreditar. O Luciano me estendia o braço, oferecendo o telefone.
Somente quando peguei o telefone da mão dele que acreditei, mas, de súbito, pensei “Se ele está me procurando de forma tão direta, então ele vai finalizar tudo!”.
- Alô? - iniciei sem acreditar muito.
- Marlon? - respondeu ele com voz assustada.
- Oi.
- Oi, tudo bem?
- Tudo e você? – perguntei.
- Bem também.
- Que bom! - exclamei mecanicamente.
- Err... escuta... domingo agora sai o resultado do vestibular.
- Eu sei.
- Ah, certo... é que eu não estou no clima de uma grande festa, até porque eu fico muito tenso nesses momentos. Pensei em convidar umas pessoas e escutar a transmissão pela rádio aqui em casa mesmo.
- É impressão minha, ou você está me convidando?
- Estou te convidando!
- Mas... e o que você disse pelo e-mail? Disse que tinha medo do que sentiria quando me visse. Não tem mais medo? Você já sabe o que vai sentir quando me vir?
- Não sei o que vou sentir, só sei que não tenho mais medo. A gente vai ter que se ver um dia. Achei que seria a melhor opção nos vermos aqui em casa, no dia do resultado do vestibular.
- Quem sabe quando ouvirmos o seu nome na lista dos aprovados, nós não decidamos o nosso futuro, não é? - provoquei.
- Ah! - ele riu para descontrair - nem sabemos se passei.
- Sabemos sim. Na verdade, eu sei. Mas você faz questão de ser cético até o último momento.
- Sim, é verdade. - disse de forma amistosa.
- Quem mais vai?
- O pessoal de sempre: Tom, Cláudia, Lu... aliás, convide-o, já que agora vocês moram juntos.
- Tudo bem.
- Aliás... - ele parou, parecia pensar nas próximas palavras.
- “Aliás...”? - instiguei a continuação.
- Não, nada.
- Diz, Caio. - implorei.
- Não, é melhor conversarmos pessoalmente. Se eu for atender a todas as minhas curiosidades, gastarei uma nota na conta de telefone.
- Ah, hahahahaha, certo. Bem, pelo menos o motivo para você não querer falar é técnico.
- Sim, é sim. Bem, então... tchau, né?
- Tchau. Te amo!
Eu não esperava que fosse dizer “Te amo!”, mas acho que o Caio esperava menos ainda. Ele emudeceu no outro lado da linha.
- Caio?
- Oi, oi. Bem, então até domingo né?
- É... - disse decepcionado.
- Tchau.
O fato de o Caio ligar tinha sido uma surpresa, mas, a partir do momento que peguei o telefone, calculei as minhas palavras. Exceto a minha declaração de amor.
Porém, mesmo não planejada, foi a fala que mais me deu expectativas.
Expectativas frustradas. Ele não me respondeu. Mas eu estava feliz, de certo modo. No fim, foi ele quem me procurou. Ele não me procurava somente por procurar. Ele me convidava para estar com ele.
Desliguei o telefone. O Luciano estava na outra extremidade da sala, observando a nossa conversa com ansiedade.
- E aí? - perguntou ele.
- Ele nos convidou para o domingo. É dia do resultado do vestibular. Ele vai fazer uma reunião na casa dele.
- Então ele finalmente te procurou. Que bacana! - disse o Luciano entusiasmado.
- É. - respondi ainda sem saber o que sentia.
- Bom, então só nos resta terminar de arrumar as suas coisas, né?
Nós fomos tirando algumas coisas das malas. As roupas nós deixamos, afinal, eu não tinha ainda um guarda-roupas. Só retirei as roupas sujas e coloquei na lavanderia. Fui me instalando. Depois, naquele mesmo dia à noite, o meu irmão aparece com a cama que estava no apartamento dele. Viu que eu não tinha onde guardar as minhas roupas, então me disse que me daria um. Não estava em tempo de recusar por educação. Qualquer ajuda era muito bem vinda.
Foi um dos momentos mais difíceis, pois pude perceber que as coisas materiais não são importantes, mas acabam sendo por darmos valores a elas.
Valores que elas não merecem. O que é uma cama e um guarda-roupas?
Absolutamente nada além de madeira esculpida. E pior ainda, pois é a matança de árvores. Mas eu me sentia sem lenço e sem documento só de reparar que eu não tinha nada além de roupas e uma mala.
Acho que no fim foi tudo bem vindo. Me fez notar que existem muito mais coisas pelas quais eu devesse chorar. O Caio era tudo, mas depois se tornou uma parcela do tudo. Eu sobreviveria sem ele, só não seria feliz.
Em outros tempos nem mesmo a sobrevivência eu enxergaria. Mas, por outro lado, viver e ser infeliz pareciam ser pior que a própria morte. Ainda havia uma coisa a ser revista. Se eu tinha motivos para chorar, também tinha motivos para me sentir afortunado. Não me faltaram nunca coisas essenciais: amigos, amor, companheirismo, um teto...
Depois do telefonema, Caio e eu não nos comunicamos mais. Também, não tinha muito o que contar. Só mesmo o cara a cara era necessário.
No dia do resultado, pedi ao Luciano para que fosse na frente. Eu só queria estar lá para ouvir o resultado e, dependendo do que viesse depois, eu voltaria para casa.
Outra coisa que percebi: se não fosse para estar ao lado do Caio como meu namorado, em outra situação seria insuportável.
Era insuportável pensar nele, ver fotos, lembrar de momentos, escutar nossas músicas, chorar... Apesar de que, chorar tornou-se menos constante. Parecia que as lágrimas haviam secado.
Luciano foi na frente e eu fiquei em casa respirando fundo e dizendo para mim mesmo “Calma, você já esteve lá antes, você sabe o quanto você vale e você conhece o Caio. Não há nenhuma novidade para se preocupar!”.
E fui pensando nisso no caminho como se fosse um nome estranho de remédio e eu estivesse indo à farmácia. Bem, já que as metáforas não param de surgir, devo dizer que de fato eu buscava uma cura, só não saberia se a farmácia tinha o medicamento certo no estoque.
Quando cheguei, o porteiro me deixou entrar sem consultar o interfone. Quantas vezes não passei por ele e lhe ofereci saudações? Subi as escadas e bati na porta. Antes mesmo dela se abrir, eu ouvia o barulho de muitas vozes. Parecia uma festa. O Tom abriu a porta.
- MARLONZINHO-ZINHO-ZINHO! - gritou ele.
Não era culpa do Tom, mas não gostei dele ter me chamado pelo apelido. Foi por causa dele que tudo começou. Fiz uma cara estranha quando ele me anunciou.
- O que foi? - perguntou ingenuamente.
- Nada não, é só que você gritou muito alto. - disfarcei.
- Como se você não soubesse que eu sou uma pessoa efusiva.
Havia poucas pessoas, mas o bastante para fazer muito barulho. Tentei não ficar ansioso para ver o Caio e acho que consegui camuflar muito bem. A mãe dele veio me cumprimentar;
- Oi, meu filho, tudo bem?
- Oi, mãe.
- Hahahahaha, disponha.
Estavam todos no chão comendo porcarias e gritando para valer. O rádio estava ligado no mais alto som. O Caio estava junto de todos ao chão.
Quando ele me viu, sorriu. Eu não sorri, mas ele já estava se levantando para me receber. Ele ficou de pé, deu a volta no sofá e me abraçou.
- Que bom que você veio! - sussurrou no meu ouvido.
- Você convidou não foi?
Depois do abraço:
- Você parece diferente mesmo!
- Pareço? - perguntei surpreso.
- Sim. Eu não quis acreditar, mas me disseram que você estava um pouco mudado.
- Mudado para melhor?
- Disseram que você estava mais homem.
- E estou?
- Está sim.
- E isso é bom?
- Acredito que sim. Todo menino sonha em ser homem um dia.
- Seria uma ofensa dizer que você está exatamente igual ao último dia em que nos vimos?
- Depende. Se na sua cabeça a última visão que você teve de mim for boa...
Fiquei calado.
- Você demorou...
- Estava arrumando as minhas coisas ainda.
- Quer conversar agora ou deixamos para depois do resultado?
- Você quem sabe...
- Você também sabe.
- Eu quase nunca sei de nada. Quem costuma saber tudo é você.
Não tinha intenção de ser frio, mas acabei sendo. Acho que ele se magoou com o que eu disse.
- Bem, eu não quis dizer em tom pejorativo. Você entendeu o que eu quis dizer.
- Entendi.
Não falamos mais. Sentei-me junto dos outros e todos fingimos que tudo era como antes.
Não tardou e o locutor anunciava os aprovados em Gastronomia. Todos ficaram calados. O pai do Caio aumentou o som do rádio e começou a gritar o nome completo do Caio por duas vezes.
Todos olhávamos para o rádio como se fosse uma televisão. Os nomes já estavam em B e o Caio me olhou. Eu não olhava para ele, mas percebi que ele me olhava e me virei para ele também. Ele sorriu e eu retribui, mas me voltei para o rádio primeiro.
Bem, não deu outra. O único aprovado com a letra C era um tal de Caio.
Um cara por quem eu estava apaixonado. Todos começaram a pular em cima do Caio, que já estava sentando no chão. Todos fizeram uma pilha em cima dele para comemorar.
A minha reação foi me levantar e sentar no sofá. Eu sabia que o Caio passaria. Não era surpresa para ninguém, mas sempre existe aquele medo. Eu não tinha esse medo. Tinha tanta certeza da aprovação que apostaria tudo o que eu tinha.
Depois de toda a folia dos amigos, os pais do Caio o abraçaram. Eu continuei sentado no sofá. Ele veio em minha direção e disse:
- E aí, rapaz? Não vai me dar os parabéns? - abriu os braços.
- Claro! - levantei-me.
Abraçamo-nos. Ele me apertou e juntou nossos rostos. Fiquei surpreso com a força do abraço. Eu não queria me emocionar, por isso tentava esboçar o mínimo possível de emoções.
- Eu já sabia. Não tem nem graça comemorar. - sussurrei.
- Nem por mim? - me perguntou ele quando saímos do abraço.
Acho que tinha sido frio de novo, mas, mais uma vez, foi sem querer. Eu quis brincar, mas errei na dose.
- Claro, por você tem graça. Mas eu já sabia que você iria passar.
O Tom e o Luciano arrancaram o Caio de mim, o jogaram no sofá e pegaram a máquina para cortar o cabelo dele.
- NÃO, POR FAVOR, NÃO CORTEM MEU CABELO! - gritou histericamente.
- Claro que vamos cortar! - gritou o Tom.
- Não, por favor, eu imploro!
- Corta ou não corta minha gente?
Todos em coro gritavam “Corta, corta, corta!”. O Caio imprensado no sofá, me olhou de longe e gritou:
- MARLON, ME SALVA!
Acho que isso é uma coisa nítida. Vocês devem se lembrar que, quando Caio e eu namorávamos, havia uma brincadeira intima entre o Luciano & Tom e Caio & eu. Um casal atacava o outro. Na verdade, um atacava o outro e o atacado pedia ajuda ao namorado, que por sua vez atacava o namorado do atacante. Todos ali já haviam presenciado cenas como essa.
Quando o Caio me pediu ajuda, todos esperaram uma reação minha, inclusive os próprios Tom e Luciano. Mas eu não era mais namorado de ninguém. Eu, de braços cruzados, ri quando o Caio me chamou. Ele estranhou totalmente a minha atitude.
Para a surpresa de todos, o Luciano agarrava as duas pernas do Caio, enquanto o Tom o ameaçava com o cortador. O Luciano colou um adesivo nas pernas do Caio e gritou:
- PODE SOLTAR AMOR!
Quando o Tom soltou o Caio, o Luciano arrancou o adesivo com força. Era um adesivo depilador. O Caio gritou de dor e todos começaram a rir. Então, Tom e Luciano começaram a atacar as pernas do Caio e começaram a distribuir adesivos para todos.
- Todo mundo vai tirar o couro do Caio hoje!
- Hahahahaha, vocês me pagam!
O Tom se aproximou e perguntou:
- Quer um, Marlon?
- Não, tudo bem.
- Poxa, Marlon, vamos participar!
- Não, não, melhor não.
- Tá...
O Caio ficou com as pernas vermelhas e cheias de cera. Depois atacaram o Caio e começaram a descer as escadas com ele. Eu esperei todos saírem para ir atrás. Eu andava lentamente. Encontrei o pai do Caio indo junto comigo pelas escadas.
- Está quieto, Marlon. - observou ele - Tudo bem?
- Tudo!
- E aí, garotão, e a vida?
- Vai indo...
- Está trabalhando muito?
- Muito. Muito mesmo.
- É, e agora que você está por conta própria...
- Pois é, tem que ralar.
- Você sabe que nós temos muito orgulho de você, não sabe?
Foi totalmente inesperada aquela frase para mim.
- Hã?
- Não sabe? - questionou ele surpreso.
- Não... é que... eu não esperava o senhor dizer isso agora, assim.
- Não tem hora certa ou errada para se dizer uma coisa dessas.
- É verdade e eu agradeço tudo o que vocês fizeram por mim.
- Quer mesmo me agradecer?
- Se fosse possível...
Ele ficou pensativo. Ainda estávamos descendo as escadas.
- Se quer me agradecer de verdade, então volte a namorar com o Caio!
Eu e o meu, até então ex-sogro, descíamos as escadas atrás de todo mundo. Precisávamos de um pouco de privacidade. Quando ele me disse sobre o seu desejo, eu estacionei no degrau:
- O que o senhor está me dizendo?
- Marlon, eu aceito muito bem a sexualidade do Caio, visto que eu sou uma pessoa esclarecida sobre esse aspecto. Enfim, não nos cabe discutir os motivos por eu aceitar o meu filho agora. Você me conhece já. Acredito que me conheça muito bem para ter percebido que eu sou muito protetor em relação ao Caio e tenho medo quando ele sai à noite, fico nervoso sempre que ele demora a chegar.
A cada matéria que eu leio nos jornais ou vejo na televisão sobre assassinatos movidos pela homofobia eu penso que poderia ser o meu filho.
O Caio... como eu posso dizer? Ele não dá pinta mas estando com alguns amigos ele fica muito espalhafatoso. Nunca que eu vou pedir para ele se repreender ou policiar o seu jeito de ser. Eu estaria sendo ridículo. - quando ele disse isso, pensei no dia em que pedi ao Caio para ele ser “mais homem” quando estivesse com os meus antigos amigos - Mas eu temo que em uma dessas saídas aconteça o pior. É só uma preocupação de pai.
- Eu entendo o senhor: quer que eu proteja o Caio. Nada mais justo!
- Querido Marlon, esse é só um dos motivos para que eu queira que vocês voltem! - disse ele em tom de brincadeira.
- Hahahaha, tem mais motivos?
- Bem, vejamos: além de proteger o Caio, gostaria que vocês voltassem porque não gosto desse revezamento de parceiros, seja hétero ou seja gay, eu não gosto mesmo, mas no caso de vocês é pior por causa da sexualidade sim.
Eu hoje sou pai antes de tudo, antes de ser homem, antes de ser marido e mesmo que eu seja livre de preconceitos, a gente fica pensando nas dificuldades que os nossos filhos encontram lá fora.
- Entendo.
- Bem, um outro motivo seria a segurança sentimental dele. Ele é muito sensível e surta fácil... - interrompi com uma gargalhada - mas é verdade! - disse ele rindo também - E quando você morou conosco foi o período mais calmo aqui em casa. - ele deu uma pausa - Mas todos os motivos que eu citei são... egoístas. Eu estou pensando no Caio e não em você. Mas eu tenho motivos para você também. Você ama o Caio, eu sei, ele te ama também. Sobre a questão da violência homofóbica, eu não me preocupo com você, mas tem a segurança emocional também, porque você é todo fortão, mas é mais sensível que o Caio, ou você acha que eu nunca te ouvi chorar?
Eu corei nessa hora. Ele foi listando mil motivos para eu voltar para o Caio. Todos com muita clareza.
- E o último motivo, é que eu te vejo como um filho também.
- E vocês foram meus pais!
- Agora, quer um conselho meu?
- Manda!
- Continue do jeito que você está indo. Vai dar certo.
- Que jeito?
- Você está ignorando ele, eu percebi hoje.
- Mas eu faço sem querer, não é de propósito.
- Mesmo assim.
Descemos as escadas e já encontramos o Caio todo sujo de farinha e tinta guache. Cada um tinha que pegar “um dedo” de tinta e sujar o Caio de alguma forma. Quando chegamos, o Tom gritou:
- Marlon, vem sujar o Caio!
Eu olhei para o meu sogro e sorrimos um para o outro. Fui em direção às tintas, sujei meu dedo indicador. As pessoas que faziam um círculo em torno do Caio me abriram espaço. Ele estava sendo segurado pelo Luciano. Ele estava rindo a valer. Quando eu me aproximei, ele ficou mais calmo. Eu parei na frente dele, pensando em como sujá-lo.
- Onde eu vou sujar? Já está todo sujo.
- VAI, MARLON! - gritou alguém.
Eu pintei o nariz dele. Ele fechou os olhos quando eu o toquei. Do nariz, eu puxei bigodes de coelho.
- Pronto! Parece um coelhinho...
- Hahahaha, sujo desse jeito? - perguntou ele.
Eu só retribui o sorriso e saí do meio da muvuca. Sentei em um dos bancos da área social do condomínio e olhei a bagunça de longe, junto com os meus ex-sogros. Depois o Caio passou por nós todo sujo.
- Olha para isso: estou imundo!
- Quem mandou passar no vestibular? - perguntou o seu pai.
- Dããã!
Eu estava no banco, entre os pais dele. Ele me olhou, sorriu e foi em direção às escadas.
- Não toque nas paredes! - gritou a mãe dele.
O pessoal foi se aproximando.
- Marlon, vamos sair para comemorar hoje, não é? - perguntou a Claudinha.
Eu olhei para o pai do Caio.
- Pode ser...
- Tá, então você e o Lu vão juntos, certo?
- Certo!
Eu me levantei, me despedi dos pais o Caio e fui em direção ao Luciano.
- Lu, você vai para casa agora? Está ficando escuro, a gente vai e se arruma.
- Vá indo na frente, eu vou depois.
- Certo.
- Não vai se despedir do Caio antes? - perguntou o Tom.
- Não precisa.
- Você quem sabe.
Não estava afim de ir. Ir como amigo não. Mas tinha que fazer esse sacrifício. Fui cochilar um pouco. Estava escuro, mas ainda era cedo. Nem vi quando o Luciano chegou. O Tom chegou com ele, pois se arrumaria lá também.
- O Caio perguntou por você. Ele disse que você esqueceu que vocês conversariam depois. - disse o Tom.
- Não esqueci, só vi que não iria dar para conversarmos ali.
Fomos para um barzinho, pois nem todos que foram dançavam e eram gays. Quando chegamos nós três, vimos que só faltava a gente.
- Atrasamos? - perguntou o Tom.
- Não. Nós todos é que nos adiantamos! - respondeu o Caio.
- Isso foi uma ironia?
- Não, estou falando sério.
Fomos nos acomodando. Eu nem olhei para o Caio. Ainda não. Me comportei como se fosse uma noitada qualquer.
Cumprimentei a todos:
- Oi - disse eu ao Caio.
- Eu te esperei hoje.
- Temos tempo ainda. - disse eu fingindo não se importar.
- Senta aqui do meu lado.
- Estou bem aqui.
Ele ficou visivelmente triste, mas ele era o Caio.
- ENTÃO: PRIMEIRA RODADA? - gritou ele para todos.
Eu me diverti. Fiquei até surpreso com isso. Depois de tanto chorar, enfim um dia para ser boêmio. O garçom trouxe, depois de algum tempo, um bolo com velinhas. O Caio ficou emocionado.
- Ah, gente...
- Vai, sopra logo e deixa de ser gay. - disse o Tom.
- E o primeiro pedaço vai para quem? - perguntou alguém.
Pairou um silêncio. Todos se fizeram de rogados. Achei aquilo um saco, então disparei:
- Isso não é um aniversário. A primeira fatia vai para o Caio. Hoje é o dia dele, oras!
Pronto, pus água no chope. Fiquei orgulhoso de mim mesmo. Eu me diverti muito, mas, durante a noite, eu fui podando todas as tentativas bobas de reaproximação com o Caio.
Eu queria uma conversa que fosse séria e definitiva. Eu sei que são coisinhas assim que reaproximam, que fazem voltar o encantamento, mas eu estava magoado demais para tais coisas.
Admito que fui um pouco grosso, mesmo fazendo um bem para mim mesmo. Eram umas quatro ou cinco horas da manhã e a maioria das pessoas já tinha ido embora.
- E aí, rola uma praia agora? - perguntou o Luciano.
- Não estou muito afim. - respondeu o Caio.
- Então vou ligar para chamar o táxi.
O Caio ficou um tempo calado, brincando com o canudo do copo.
- E aí, se divertiu? - me perguntou ele.
- Sim, sim, muito. Fazia tempo que eu não saía assim com tanta gente... quer dizer, fazia tempo que eu não saía de jeito nenhum.
- Ah, que bom então.
- Acho que vou pedir mais um copo antes de irmos.
Eu fazia o pedido ao garçom.
Ao me virar, o Caio continua engatando conversa:
- É, hoje foi legal. - sem muito entusiasmo.
- Foi sim. - respondi animado.
Tirei mais uma fatia do bolo e esperei a bebida. Quando ela chegou, eu comecei a beber e comer. A mesa era grande, sobraram muito poucas pessoas, então as conversas não eram ouvidas por outros. Se alguém na ponta da mesa conversasse algo, as pessoas do meio não ouviriam. Enquanto eu comia o bolo, o Caio disse:
- Eu acho que te daria a primeira fatia...
- Bobagem!
- Bobagem?
- É. Não é um aniversário. Isso foi legal para você, assim você ficaria com a primeira fatia. Aposto que você gostou disso.
- Mas eu te daria com prazer.
- Não seria necessário e... olha... não estou comendo do bolo, afinal?
- Sim...
Quando o táxi chegou, decidimos deixar o Caio em casa antes. O Tom dormiria na minha nova casa. Quando já estávamos dentro, o Tom, mais uma vez, insinua algo:
- Caio, por que você não dorme lá hoje?
- Ah, eu não sei... se ninguém se importar...
Mais uma vez aquele silêncio ridículo.
- Não, ninguém vai se importar, não é mesmo minha gente? - perguntou ironicamente o Tom.
- Claro, claro. - respondeu o Luciano.
Fiquei calado. Todos esperavam por uma resposta minha, mas não obtiveram.
- Viu, ninguém vai se importar!
- Err... acho melhor ficar em casa mesmo.
- NÃO! - gritou o Tom - Você vai dormir lá e pronto. Ninguém vai passar na sua casa.
Ele ficou calado e eu continuei mudo. O Luciano ia na frente, eu e o Caio íamos nas janelas e o Tom no meio.
Chegamos e subimos imediatamente. Eu fui entrando, sentando no sofá e tirando o tênis. Tirei as meias, coloquei-as dentro do calçado e fui para o meu quarto. Depois eu fui para a cozinha preparar um café, para cortar o efeito do álcool. O Caio foi para a cozinha depois.
- Está fazendo o quê?
- Café.
- Quer que eu faça?
- Não precisa, só estou fazendo uma xícara.
- Mas posso fazer para todo mundo.
- Bem, eu já acabei o meu. Se você quiser, pode fazer o de todo mundo.
- Certo.
Eu continuei na cozinha, encostado na pia. Ele foi pegando o coador. Enquanto fazia o café, ele diz:
- Eu não viria dormir aqui.
- Em casa é mais confortável né? - fingi não saber o motivo.
- Não por isso. Acho que você não queria que eu viesse.
- Eu? Eu não disse nada.
- Justamente por isso.
- Eu sou tão visita aqui quanto você.
- Você mora aqui.
- E por qual motivo eu iria impedir você de vir para cá.
- Sei lá. Você foi áspero a noite toda.
- Eu fui solteiro a noite toda.
- Como assim?
- Você me pediu para sentar ao seu lado, mas eu disse não. Você me daria a fatia do bolo, mas eu disse que aquilo era bobagem, você se preocupou se eu me importaria com a sua vinda para cá. Mas tudo o que eu fiz, fiz porque não somos nada. Não faria sentido sentar ao seu lado, nem comer do seu bolo, nem te impedir de vir para cá porque eu não sou nada seu.
- Mas às vezes, quando a gente se importa, não quer dizer...
- Mas eu não fiz isso, não generalize e tire conclusões precipitadas.
- Desculpe.
- Hahahaaha, também não precisa se desculpar. - fingi estar alheio.
- Bem, pelo menos parece que vamos conversar finalmente.
- Hoje não.
- Por quê?
- Porque é tarde, estou um pouco bêbado e muito cansado. Quero tomar um banho, dormir bem e conversar amanhã.
- Você fugiu desde ontem.
- Não tenho do que fugir, não tenho medo de nada. Você é que parece querer se livrar logo disso.
- E você não? Não quer resolver logo isso?
- Assim às pressas não. Por isso não vamos conversar hoje. Quero um dia que seja tranquilo e que tenhamos todo o tempo do mundo para falarmos o que quisermos.
- Mas só poderá ser à noite. - lamentou ele.
- Você vai fazer alguma coisa hoje à noite?
- Não.
- Então...
- Tudo bem.
- Quero que seja definitivo. Vamos conversar e será pela última vez! - falei.
- Como assim? - ele exclamou assustado.
- Cansei de ficar nesse chove não molha. A gente conversa com calma, com tranquilidade e resolve tudo o que tem para resolver. Você não quer resolver logo tudo de uma vez? Será perfeito.
- Realmente... você mudou!
Ele não falou mais nada.
Eu fui para o banheiro tomar banho e dormir. Peguei minhas coisas e fui para o sofá. Quando eu já estava todo enrolado, ele aparece na sala.
- Não, Marlon. Eu durmo no sofá.
- Já estou acomodado.
- Não, Marlon, eu não vim para cá tirar você da cama.
- Ai, Caio, deixa de formalidades. A gente não precisa fingir que nunca fomos íntimos.
- Mesmo assim, não vou me sentir bem sabendo que você está dormindo no sofá por minha causa.
- Tá, tá, tá, Caio. Boa noite!
- Marlon...!
- Sim?
- Você é maior que eu. Deixa eu dormir no sofá.
- Não, tchau!
Acabei dormindo no sofá. Fiz de tudo para acordar mais cedo que todos e ir para o trabalho, mas eu tinha ido dormir muito tarde e não deu tempo de descansar de verdade.
Quando acordei, senti que alguma coisa estava diferente. Na verdade, senti que alguma coisa tinha voltado ao que era antes. Mas foi por alguns segundos. Acordei e senti o cheiro do café do Caio. Era uma coisa característica de quando moramos juntos. Tanto eu quanto os meus ex-sogros acordávamos sentindo o cheiro do café, que invadia todos os cômodos da casa. Quando percebi que não tinha acordado cedo, me decepcionei.
Até eu estranhava esse pessimismo em mim. Está certo que aquela situação era angustiante, mas eu sentia tristeza de forma demasiada. E nem havia motivos para isso. Mas eu me sentia como da vez em que eu confessei ao Caio que eu estava apaixonado por ele e que, se não namorássemos, eu não aceitaria mais nada dele. Não fazia sentido para mim. Não sou do tipo de pessoa que gosta de ficar insistindo (não confundam “gostar” com “fazer”).
Se ele naquela época dizia que só poderia me oferecer a amizade, eu decidi me afastar. O mesmo acontecia agora. Não gostava dessa sessão nostalgia interminável, queria que resolvêssemos logo. Do contrário, enquanto não resolvíamos, seria cada um no seu canto.
Levantei-me e ouvi as vozes na cozinha. Uma conversa animada. Por um momento nos imaginei morando todos juntos: Caio, Tom, Luciano e eu. Mas depois isso me pareceu impossível e chato.
Fui direto para o banho, caso contrário me atrasaria para o trabalho. Depois corri para o quarto e me vesti. A coisa mais fácil para mim é escolher roupa de trabalho. Depois, respirei fundo para ir à cozinha. Se pudesse, iria embora sem comer.
Quando cheguei, fui direto à geladeira pegar suco.
- BOM DIA! - gritou histericamente o Tom.
- Bom dia. - respondi rapidamente.
- Hum, alguém acordou de mau humor?
- Estou atrasado para o trabalho.
- Marlon, eu fiz café. - disse o Caio.
- Ah, nem percebi. Mas deixa, já estou tomando o suco mesmo.
- Quer que eu faça torradas?
- Eu como no meio do caminho. Estou atrasado.
Fui até a mesa, peguei um pão e o enfiei todo na boca. Deixei meio copo de suco em cima da pia.
Fui para o quarto, ainda com o pão na boca, para por perfume. Voltei e terminei de tomar o suco.
- Coma com calma, Marlon, isso faz mal. - alertou o Caio.
- Mal faz não pagar as contas no fim do mês.
Mais uma vez fui grosso sem querer ser.
- Não quis ser grosso, só estou com pressa!
- Você não foi grosso...
- Luciano, você vai estar aqui hoje à tarde?
- Não, por quê?
- Por nada. É que eu venho hoje à tarde para casa. Vou cochilar um pouco.
- Então você não vai para a aula hoje? - perguntou o Tom.
- Não.
- Eu vou. - disse o Caio.
- Vai? - comecei a rir - Mas você não é mais um de nós...
- Vai demorar um pouco até que as minhas aulas comecem. Até lá, eu não tenho muito o que fazer. Pensei em ir e assistir as últimas aulas que posso.
- Bem, então haverá outras oportunidades para a gente se ver por lá.
- Mas hoje, depois a gente vai sair, beber, comemorar a aprovação do Caio com o pessoal da sala. - disse o Tom.
- Ah é?
- É. Seria legal se você fosse. - disse o Caio.
- Não vai dar. Tenho planos para hoje à noite.
- Tem? - perguntou o Caio.
- Tenho... bom, tchau. - e saí pela porta da cozinha.
Os planos seriam esperar o Caio para conversarmos. Eu só esperava que ele não tivesse se esquecido disso. Se ele sairia depois da aula com o pessoal para comemorar, a que horas ele pretendia efetuar a nossa conversa?
Bem, se o Caio era o tipo de pessoa que não dizia as coisas para que eu aprendesse sozinho, então eu também cometeria o mesmo erro que ele.
Saí pensando se ele associaria o meu “plano para hoje à noite” com a nossa conversa inadiável.
Naquele dia o trabalho a ser feito na agência era fácil de executar. Passei toda a manhã ocupado. Como boa parte do trabalho é feito por computador, fiquei online no MSN. De repente, uma conversa sobe:
- Oi Marlon!
Era o Vinicius.
- Oi Vinícius, beleza?
- E aí, você e o Caio?
- Na mesma ainda.
- Por quê?
- Você sabe como é... ainda não conversamos direito desde que ele chegou de viajem
- Ele viajou?
- Sim, antes do vestibular.
- Ah, ele passou?
- Sim, segundo lugar.
- Ah, legal, se bem que todo mundo já sabia
- É.
- Por que vocês não comemoram logo essa aprovação juntos, cara?
- É complicado. Eu estou pronto para resolver logo tudo, mas vamos ver no que dá.
À tarde, fui para casa. Almocei qualquer coisa e fui dormir, pois estava morrendo de sono. Acho que nem dormi duas horas depois que cheguei da primeira comemoração.
Dormi e quando acordei já estava escuro, mas acredito que ainda era tarde e não noite. Tomei banho, peguei um lanche na cozinha e me pus a assistir TV. Quando o relógio anunciou 18 horas, eu decidi ligar para o Caio.
- Alô?
- Marlon?
- Oi, vocês ainda estão comemorando?
- Estamos...
- Certo.
- Por quê? Quer vir? - perguntou animado.
- Não, vou ficar em casa.
- Por que você não vem? Seria legal.
- Prefiro ficar descansando. Vou precisar estar descansado para hoje à noite.
- Você quem sabe...
- Bem, alguém tem que se preocupar com o nosso futuro.
- Do que você está falando?
- Da conversa que teríamos hoje à noite. Mas acho que você não está muito afim.
- Como assim? Você disse que tinha planos para hoje! - disse ele assustado.
- E antes disso, o que eu te disse que faríamos hoje à noite?
- Mas você foi estranho hoje de manhã...
- Estava atrasado, Caio. Os planos que fiz para hoje à noite incluíam você.
- Bem, eu pensei... - interrompi.
- E eu fiquei pensando: “Por que ele marcou uma saída com a galera justamente no dia em que resolveríamos tudo?”.
- Sabe, na verdade eu nem toquei nisso no momento em que o Tom me propôs ir à aula hoje.
- Mas você se lembrava que conversaríamos hoje, pelo menos?
- Sim, mas achei que se saíssemos, não teria problema. Era mais uma daquelas saídas que fazíamos às sextas-feiras depois das aulas.
- Certo.
- E depois eu achei que você também viria.
- Bem, eu vou ficar em casa. Tchau.
E desliguei. Imediatamente pensei “Será que eu ainda amo o Caio?”.
Lembrei-me do dia em que o vi pela primeira vez: estávamos no jardim da faculdade, a turma de calouros se reuniu para tirar a primeira foto da turma. Eu era alto, fiquei na fila de trás, o Caio ficou a poucos centímetros de mim, na minha frente.
Lembro de ter ido com a cara dele. Eu tinha gostado da forma como ele se comportava e da forma como ele se vestia. E depois pensei no dia em que nos esbarramos no banheiro e eu achei que tinha machucado o braço dele.
Pensei em mil bobagens e cheguei a conclusão que “Sim, eu ainda amo esse pirralho!”. Só não sabia se isso era bom ou ruim.
Minutos depois, alguém bate na porta.
- QUEM É? - gritei antes de olhar no olho mágico.
- É o Caio.
Eu abri a porta.
- Oi. - disse ele como um soluço.
- Oi. - disse eu em tom de estranhamento.
- É agora!
- O que é agora? – perguntei.
- Vamos conversar.
Ele entrou, eu fechei a porta e sentei no sofá antes dele.
- Você quer começar? - eu perguntei.
- Pode ser... antes de mais nada, eu queria saber o que aconteceu quando eu viajei.
- Nada de mais: eu fiquei surpreso com a sua viajem, mas não fiquei chateado, sua mãe me explicou bem o que você foi fazer lá.
- E aí depois você se mudou para cá?
- Pouco tempo depois.
- Sei...
- E você? Como chegou à conclusão de que tinha que viajar?
- Recebi um scrap da minha prima pelo Orkut. Ela dizia que estava com saudades, aí tive a ideia de ir para lá. Achei que seria melhor para nós dois.
- E foi?
- Para mim foi.
- É, para mim também.
- E foi aí que você começou o seu processo de mudança?
- Eu não mudei. Acho que não. Esse cara, que você está vendo aqui, você já o viu antes: da primeira vez em que eu te disse “ou é namoro, ou nem mesmo amizade”, lembra?
- Lembro. Então é desse jeito que você se sente?
- Sim. Por isso não estava mais suportando ficar perto de você e fingir que não estava acontecendo nada. Exceto o e-mail que você me mandou no sábado, todos os outros contatos que tivemos desde que você chegou foram dispensáveis e chatos.
- Até mesmo ontem, no resultado do vestibular?
- Sim.
- Poxa, mas foi um dia especial.
- Era um dia que eu sabia que aconteceria.
- Eu sei que eu cometi os meus erros, que resultaram nisso tudo que está acontecendo entre a gente, mas... era um dia especialíssimo para mim, gostei de você ter ido. Acho que você foi bem frio nessa sua colocação.
- Não vejo erros de ninguém, mas isso que aconteceu entre a gente me fez estar como estou agora. Então não culpe a mim, culpe a situação que não está favorecendo em nada.
Não gritávamos, ou alterávamos as vozes. Era uma conversa franca e “tranquila”.
- E por isso que você só se importava com o dia em que conversaríamos definitivamente?
- Sim.
- Bem, estamos aqui.
- Sim, estamos.
- Eu ainda não parei de pensar no fato de você ter beijado outra pessoa... - o interrompi.
- Beijei em retribuição, que fique claro. Não provoquei o beijo.
- Eu sei.
- Você é capaz de me perdoar por isso?
- Já perdoei. - ele disse.
- Ótimo, então por que ainda estamos falando sobre isso?
- Por que esse foi o motivo.
- Achei que o motivo teria sido a minha burrice.
- Que burrice?
- De não ter adivinhando o que o Arthur queria.
- Mas eu também já disse que exigi demais de você.
- Mas só chegou a essa conclusão depois que viajou, ou seja, não conta. Se você tivesse chegado a essa conclusão antes de ter partido, poderíamos eliminar o fato de eu ter sido enganado pelo Arthur.
- Disse bem: você foi enganado. Então essa parte também não conta.
- Mas se não contarmos esse episódio, então essa “coisa” que está acontecendo entre a gente não faz sentido. - falei.
- Exatamente isso: não faz sentido estarmos separados. - ele disse.
- Então, me desculpa, retiro o que disse sobre a sua culpa: você é mais culpado que eu nessa história. Porque, se você sabia o tempo todo que eu estava sendo enganado e agora diz que nada disso tem importância, então você é o culpado, pois poderia ter evitado tudo isso. - falei seco com ele.
- Por isso que no e-mail eu disse que, se houvesse alguém para culpar, que culpasse a mim.
- Sim, mas essa culpa só é válida se considerarmos esse episódio e você quer desconsiderá-lo. - falei.
- Tanto faz...
- Não, tanto faz não. Não menospreze a importância desse fato, senão teremos sempre que achar culpados para tal. Eu te traí, mas não tive intenção, fiz porque estava carente. Pronto, em relação a isso eu já te pedi desculpas e você já me disse ter me perdoado, porque não me considera culpado. Por outro lado, isso causou um desgaste no nosso namoro, mesmo, depois de uma análise, não haver culpados. Mas, se desconsiderarmos esse fato, seremos idiotas, porque nos desgastamos à toa. - eu disse.
- E não foi à toa?
- Não. Se você ficou chateado comigo, foi por uma razão que faz sentido a você. E se fez sentido, algum dia, então foi importante.
- Tudo bem, mas do que nos serve preservar esse episódio?
- Para aprendermos no futuro. - falei.
- Já aprendemos no presente.
- Costumo repetir os erros. - retruquei.
- Juntos conseguiremos impedir que isso aconteça de novo.
- Juntos?
- É, juntos!
- Então você está disposto a voltar comigo? - perguntei.
- Marlon, eu te amo.
- Eu também te amo. Mas devo admitir que te odiei algumas noites.
- Eu também fiz isso.
- E tudo isso é passado para você.
- É, por quê? Para você não? - ele perguntou.
- Sim, é também. É que eu tenho medo. Sinto falta da gente, mas não sei se no presente.
- Também sinto o mesmo, mas eu já caí em mim de que não poderemos viver um sem o outro.
- Sim, eu concordo.
Ficamos um tempo calados. Pensei que a conversa resultaria em duas possíveis coisas: terminaríamos de uma forma terrivelmente amigável, ou voltaríamos com declarações calorosas de amor.
Não imaginei que pudesse haver uma terceira opção: voltaríamos e ficaríamos mornos. Fiquei decepcionado com aquilo. Eu queria abraçá-lo, arrancar-lhe um grande beijo e dizer mil vezes “Eu te amo!”. Mas eu não tinha a mínima vontade de fazer isso. Percebi que o que eu queria mesmo era que ele fosse embora, para eu terminar de dormir.
Depois que reatamos, eu pensei “Ok, pode ir embora, pois estou morrendo de sono e preciso dormir!”.
Não tinha a mínima vontade de abraçá-lo, beijá-lo ou expressar qualquer tipo de carinho. Para mim não havia mais nada para ser feito ou dito. Ficamos calados e eu comecei a ficar entediado.
- Quer comer alguma coisa? - perguntei enquanto me levantava.
- Não, estou bem, obrigado.
Fui até a cozinha e preparei um sanduíche qualquer.
- Quer que eu te faça alguma coisa? - gritou ele da sala.
- Não, eu me viro bem.
E realmente me virava mesmo. Parecia não existir mais nada que eu não pudesse fazer sozinho. Parecia que eu não precisava mais de ninguém.
Não. De ninguém não. Eu precisava, precisei e preciso de pessoas sim. Luciano, meu irmão, meus ex-sogros, meu pai, etc.
De quem eu não precisava era do Caio.
Imaginei que, depois que reatássemos, a presença dele seria muito bem vinda, pois, eu só me sentia mal com a presença dele enquanto ainda estávamos naquela fase estranha. Mas, nem mesmo quando essa fase passou teoricamente, eu me sentia à vontade com ele por perto.
Terminei de fazer o sanduíche e fui para a sala. Pus o copo no chão, cruzei as pernas na posição de lótus em cima do sofá e me pus a assistir TV. Ele ficou no outro sofá, calado e encolhido.
Parecia que ele esperava por mais alguma coisa, talvez um beijo, ou simplesmente uma aproximação física. Mas eu me mantive afastado fisicamente.
Minha mente, porém... seria pouco dizer que eu estava distante.
Ele ficava me olhando e eu olhava para o apresentador do telejornal.
Quando já havia comido metade do sanduíche, percebi que eu o havia abandonado.
- O pessoal ainda ficou lá? - perguntei.
- Sim. Acho que eles não vêm tão cedo.
- Você só veio para conversarmos, não é mesmo?
- Sim.
- É que eu fiquei chateado pensando que você tinha esquecido a noite de hoje. Mas, se eu soubesse antes, poderia ter adiado um pouco mais a nossa conversa. Olha, se você quiser voltar para lá, pode ir. Eu sei o quanto você está eufórico pela a sua aprovação.
Ele me olhava atentamente enquanto eu me fazia de rogado e preocupado com a diversão dele. Nem eu mesmo me reconhecia, mas, o quanto antes ele fosse, mais rápido eu poderia voltar a ser o que era.
Sentir que o amava e que precisávamos um do outro era uma coisa, mas perceber que ainda precisava ficar um pouco só era outra. Ele mesmo me dizia que os casais não se completavam, mas sim eram inteiros que tiveram a doce ideia de conviverem juntos. Eu ainda era um inteiro que precisava ficar sozinho.
- Bem, na verdade eles não vão ficar lá muito tempo. Se eu voltar para lá, vai ser desperdício de tempo.
- É, tem razão. - fingi concordar.
- Mas, de qualquer forma, já está ficando tarde. Acho melhor ir embora logo.
- Tem certeza?
- É... acho que sim. - ele disse gaguejando.
- Tá, você quem sabe.
Ele se levantou do sofá e eu pensei “Levanto, o beijo e me despeço?”. A minha vontade era de não. Seria muita frieza minha se eu não fizesse isso. Mas fazer também era demasiadamente irritante para mim. Parecia que tocá-lo era mais tedioso que a presença dele, então, preferi que ele ficasse um pouco mais, para que eu não precisasse beijá-lo.
- Mas se você quiser esperar o Luciano chegar... ele pode te levar depois.
- Será que ele se importaria? - perguntou ele voltando para o sofá.
- Claro que não.
- Vou ligar para ele.
Pegou o celular e começou a digitar os números. Comecei a me arrepender da minha ideia. Se ele ligasse para o Luciano perguntando, provavelmente o Luciano pensaria que ele gostaria de uma carona, pois sairia tarde do apartamento, ou seja, o Luciano poderia pensar que estávamos fazendo “as pazes” e, por sua vez, demoraria muito mais do que planejava.
O beijo e o “tenha cuidado no caminho!” não me pareceram tão irritantes agora. Para a minha sorte, o Luciano não atendia. Ele não põe o celular para vibrar, só para tocar. Provavelmente não ouviu.
- Não atende de jeito nenhum.
- Hum... é, então, nesse caso, eu não posso garantir que ele vá te levar depois.
O Caio me olhou por um tempo, olhou para o teto, olhou para o chão e disse:
- É, não vamos atrapalhar a farra dos outros. Ele vai chegar cansado.
- É.
- Bom, então até mais.
- Eu te ligo.
Quando eu comecei a me levantar, ele disse rapidamente:
- Não precisa.
- O que não precisa?
- Me levar até a porta.
- Eu espero o táxi lá embaixo com você.
- Pensei em ir de ônibus.
- Melhor não. Melhor táxi.
- Tá...
Eu passei a chave na porta e fomos descendo as escadas em seguida.
No caminho, eu fui pensando “Bem, podemos encontrar algum vizinho a qualquer momento, então o Caio não vai se atrever a me beijar e lá na rua também não”.
Não demorou e passou um táxi. Eu acenei para chamá-lo e ele parou.
- Eu te ligo amanhã. - eu disse.
- Ok, eu espero.
- Tchau.
- Tchau.
E se foi.
Quando o carro dobrou a esquina, suspirei de alívio. Acho que nem mesmo se eu continuasse achando que era hétero, eu teria fugido tanto daquele garoto.
Mas já em casa, tive pena dele. Óbvio que ele percebeu que eu estava fugindo.
Foi inevitável: eu me coloquei na posição dele. Imaginei-me pedindo perdão para ele, ele me perdoando de forma dura e depois me dispensando prometendo ligar no dia seguinte.
Tentei imaginar o que ele estava sentindo enquanto estava encolhido no sofá me olhando comer o sanduíche. Mas era tarde demais para se lamentar. Até porque, a ideia de beijá-lo ainda me parecia irritante. Depois do delicioso jantar de sanduíches e refrigerantes, tentei dormir.
Não consegui.
O Tom e o Luciano apareceram logo depois.
- Fizeram as pazes, né? - perguntou o Tom afoito.
- Sim. - respondi sem muito ânimo.
- AH, QUE ÓTIMO! - gritou histericamente e me abraçou.
O Luciano estava logo atrás do Tom e ficou me olhando. Ele percebeu que eu não estava feliz.
- Tom, vamos para casa! - disse em tom imperial.
- Ai, que pressa!
- Vamos, já está ficando tarde e eu estou cansado para dirigir.
- Tá. Tchau Marlonzinho-zinho-zinho.
- Tchau.
Quando o Luciano voltou, puxou papo:
- Você fizeram mesmo as pazes?
- Sim.
- Mas você não parece muito animado.
- Foi estranho. Depois de nos perdoarmos mutuamente, senti uma vontade incontrolável de que ele fosse embora logo.
- Ué, por quê?
- Não sei. Não queria beijá-lo, nem abraçá-lo, nem nada. Só queria que ele fosse embora.
- Mas você ainda o ama, não é?
- Sim, muito. Ainda pensei que esse sentimento fosse apenas saudades do que passamos juntos, mas não é. Eu sinto mesmo que o amo, sinto que não há ninguém no mundo como ele e sinto que ninguém nunca me fará feliz como ele. O problema é que eu não sei se serei feliz como antes. Uma coisa é certa: serei mais feliz com ele do que com qualquer outro cara.
- Vocês não transaram, então?
- Não.
- Será que não foi isso? Dizem que o melhor da briga são as pazes.
- Para um casal comum, sim. Mas nós somos Caio & Marlon.
- Hahahaha, é verdade!
Depois dessa conversa, eu fui dormir. Acho que estava mais leve, talvez por causa da conversa, ou porque tinha dado tempo para a comida ser digerida melhor.
Depois que me deitei, fiquei um tempo enrolado, pensando em cada detalhe, em cada palavra dita.
Não era o que eu esperava, mas não tinha me arrependido do que tinha feito. Depois de muito bocejar, dormi enfim.
Algumas horas depois, eu acordo. Quando dei por mim, agarrava o travesseiro contra as minhas pernas e estava na posição de conchinha. Fui abrindo os olhos devagar e dei de cara com a parede, pois a cama é encostada nela. Senti a pressão do travesseiro contra o meu corpo e o lençol que se acumulava nos meus braços. Espremi os olhos com as mãos e comecei a me sentir tremendamente incomodado.
O que poderia ser? Virei-me várias vezes na cama e não achava uma posição confortável para voltar a dormir. Voltei a ficar de conchinha e, por alguns segundos, a posição me pareceu favorável.
Mas não durou muito e eu já estava angustiado de novo. Ainda de conchinhas, peguei o travesseiro e o amassei entre as minhas pernas. Fiquei mais confortável para o sono. Comecei a cochilar e acredito que até tenha sorrido. Bocejei mais um pouco e soltei:
- Boa noite, Caio!
Desejei boa noite ao Caio, mas não obtive resposta. Isso me incomodou. Então repeti:
- Boa noite, Caio!
E ele não respondeu. Já de olhos abertos, eu o chamei:
- Caio?
Mas eu só consegui ver uma parece. Quando dei por mim, estava sozinho na cama e com um travesseiro entre as minhas pernas. Foi inevitável, eu levei a mão à testa e me bati.
- Burro! - eu falei em um tom mais alto.
Não sou de ter ideias rápidas e mirabolantes. Isso é coisa do Caio. Mas eu peguei o celular e liguei imediatamente para ele.
- Alô. - com voz de sono.
- Caio, te acordei? - perguntei eufórico.
- Marlon? - surpreso, mas ainda com voz de sono.
- Você estava dormindo?
- Estava...
- Eu te desejei boa noite e você nem respondeu.
- Hã? Quando?
- Agora há pouco.
- Como assim?
- Eu estava aqui na cama e fui tentar dormir. Te desejei boa noite e não obtive resposta.
- Ainda estou por fora.
- Já-já eu chego aí.
- O quê?
E desliguei. Corri para pegar as chaves do carro do Luciano e depois desci as escadas às pressas. Fui correndo buscar o Caio e, até o momento, nada me passava pela cabeça. Quando cheguei à porta do condomínio, eu liguei para ele.
- Desce!
- Não acredito que você está aqui em baixo. Deve ser umas... nossa, são quatro horas da manhã!
- Cala a boca e desce logo!
- Você está nesse carro aqui embaixo?
Então eu desci do carro e fiquei pulando no meio da rua, naquela escuridão.
- É você! - constatou ele surpreso - Espera, eu desço já.
Não demorou muito e ele apareceu sorrateiramente no portão do prédio, com as chaves. Eu estava dentro do carro e ficava sussurrando:
- Vem logo, vem logo!
Ele abriu o portão com muita dificuldade e veio correndo para o carro. Entrou e ficou histérico:
- O que é isso? Um sequestro?
- É, é, vamos!
Eu saí em disparada:
- Para onde vamos?
- Para casa, oras!
- Pensei que fôssemos para um motel.
- Não, porque eu nem avisei ao Luciano que peguei o carro.
- Por que você está fazendo isso? - em um tom mais carinhoso.
- Porque sim!
Voltamos para casa e subimos as escadas tentando fazer o mínimo de barulho possível.
Quando entramos em casa, eu fui puxando o Caio pelo braço até o meu quarto. Depois eu tranquei a porta e agarrei o Caio pelo rosto e o beijei. Ficamos um tempão em pé enquanto nos beijávamos intensamente. Era como se tentássemos nos equilibrar no chão. Não conseguimos, contudo. Caímos na cama e batemos nossas cabeças na parede.
- Ai!
- Se machucou? - perguntei preocupado.
- Sim, hahahaha, mas não foi nada de mais.
- Tá.
Voltei a beijá-lo. Não queria mais parar de beijá-lo. Depois da batida, comecei a puxar o rosto do Caio de novo, só que dessa vez de forma mais carinhosa. Ele se deitou em cima de mim e começamos a entrelaçar as nossas pernas. Mas ele parou.
- Por que me chamou? - perguntou ele com voz de choro.
- Porque sim!
- Por quê?
- Porque...
- Por quê?
- Porque eu te amo.
- Eu... eu...
- Eu sei.
E voltei a beijá-lo. Ele começou a me beijar com mais força que antes. Começamos a nos ajeitar na cama e nos deitamos de maneira mais confortável. Ele ainda estava de meias e shortinho.
Eu conseguia sentir um cheirinho familiar. Um cheirinho de quem acabou de tomar banho para ir dormir. O mesmo sabonete. A mesma espessura macia da pele fria e lisinha. O cabelo cheirando a xampu. Era um menino
Não. Era um menininho. Um garoto doce e agoniado. Esfomeado. Ele salivava enquanto me beijava.
- Calma, meu amor!
Ele parou, ficou me fitando. O cabelo dele estava maior e alguns fios tocavam os meus olhos. Eu o segurava pela cintura e ele me segurava pelo rosto. Ele parou o beijo e ficou assustado.
- É que...
- O que foi?
- Não sei.
- Fala.
- Faz tempo que não fico excitado.
Não resisti e abri um sorriso enorme.
- Oh, meu garoto lindo!
E voltei a beijá-lo. O que nos deixava excitados eram os nossos posicionamentos na relação. Ele era o garoto que carecia de cuidados e eu o rude que se derretia por qualquer doçura.
Era como se fossem personagens que fazíamos questão de ser. Não representávamos, nós realmente éramos aquilo. Por mais forte que ele fosse e por mais bobo que eu pudesse parecer ser, ele era o garotinho e eu o rude.
Não havia nada mais prazeroso do que ser o que realmente éramos. Talvez tenha sido isso que não fora experimentado antes. Tentamos ser o que não éramos e acabamos distantes. Mesmo que não fôssemos, era o que gostaríamos que o outro fosse.
Mas tenho certeza que isso era o que éramos. Confuso?
Então o puxei para baixo e deitei-me sobre ele. Pressionei todo o meu corpo contra o dele, deixando-o imóvel. Ele se agarrou ao meu pescoço e simplesmente deixou que eu conduzisse o nosso beijo.
Ele abriu as pernas e juntou os tornozelos na altura das minhas coxas. Ele se prendeu a mim e deixou que eu conduzisse tudo. Ele estava mole. Percebi que ele estava quente.
- Você está se sentindo bem?
- Estou meio febril.
Eu toquei o pescoço dele com as costas da minha mão e constatei que ele estava um pouco quente.
- É, você está quente, mas não é febre.
- É.
- Foi minha culpa, não é?
- Não vamos começar, Marlon. - pediu choramingando.
- Mas foi minha culpa.
Então eu enfiei o meu rosto entre o pescoço e o ombro esquerdo dele, pressionando o meu rosto contra o travesseiro. Ele também se enfiou entre o meu ombro e pescoço e ficamos assim, abraçados.
- Eu vou cuidar de você.
E acabamos dormindo. O meu celular despertou e eu tive que acordar. Fui tomar banho e depois fui para o quarto me trocar. Quando lá cheguei, o Caio já não estava na cama. Apostaria tudo o que tinha: ele estava na cozinha me fazendo o café. Quando fiquei pronto, fui para lá.
- Bom dia! - me saudou com um sorriso.
Eu fui em sua direção, o abracei por trás e o beijei no cabelo. Ele ainda estava coando o café. Sentei-me na mesa e comecei a comer as torradas que já estavam prontas. Ele se dirigiu a mim, pôs uma xícara em cima da mesa e sentou-se no meu colo.
Eu larguei o pão e o abracei de novo por trás. Enchi a nuca dele de beijinhos e de cócegas. Depois ele se deitou sobre o meu peito, ainda no meu colo, e eu voltei a tomar o meu café. Depois ficamos namorando um pouco na cozinha. O Luciano chegou e me lembrou da hora.
Eu fui escovar os dentes.
Quando voltei:
- Bem, eu já estou indo.
- Certo, traga o pão e o leite das crianças, viu?
- Hahahahahahaha, pode deixar.
- Arrasa com eles!
Depois de namorar mais um pouco.
- Eu vou ficar, dormir um pouco mais. Posso, Luciano?
- Pode, mas eu também já estou saindo.
- Bem, fique com a minha chave. Eu volto para tomar banho, almoçar e me trocar e depois partir para a faculdade. Esteja aqui à tarde, ok? - eu disse.
- Ok, meu amor!
Quando Luciano e eu já estávamos saindo, o Caio beliscou o meu bumbum e sussurrou:
- Vê se consegue chegar mais cedo hoje...
Quando eu senti o beliscão, olhei para trás. Ele estava com um sorriso sapeca e piscou um olho para mim. Mas, por mais que ele tentasse, não conseguia ver a conotação sexual naquele ato.
Eu via um garoto lindo brincando de ser homem safado. Eu ri e ele riu de volta. Descemos Luciano e eu. Ele me dava uma carona e seguia para o trabalho dele. Luciano já era formado e atuava na área que escolheu. Era jovem, mas já bem sucedido. No caminho, ele perguntou o que tinha acontecido.
- Nada, eu só senti falta do Caio à noite e fui lá.
- Você foi lá?
- Fui.
- Como?
- Com esse carro aqui.
- Hã?
- É, eu peguei o seu carro e fui lá. Sequestrei-o.
- Nossa!
- Desculpa.
- Não. A ideia foi ótima. Por que eu nunca pensei nisso antes?
- Hahahaha.
- Eu sabia que vocês iriam voltar.
- Estou mais aliviado, sabe?
- Imagino. Então, você pegou o carro de madrugada e foi para lá?
- Eu liguei para ele antes.
- Ah, mas aí perdeu de fazer uma surpresa.
- Não. É que... foi assim: eu acordei no meio da noite e fui tentar voltar a dormir. Quando eu estava quase conseguindo eu disse “Boa noite, Caio!”.
- Não. Sério? - perguntou ele abismado.
- Sim. Aí eu percebi que ele não estava lá né? Então eu peguei o telefone, liguei para ele e disse “Te desejei boa noite e você nem respondeu!”. Ele ficou sem entender nada. Aí depois eu fui lá.
- Marlon, o romântico. - brincou ele.
- É.
- Então vocês fizeram as pazes.
- Ainda não transamos, se é isso que você está insinuando.
- Não?
- Não.
- Por quê?
- Porque... sei lá. Ficamos meio nostálgicos.
- Hum.
Ele me deixou no trabalho e esse foi um dos dias mais tranquilos na agência para mim. Eu não pude sair mais cedo, mas impedi que qualquer coisa extra me chegasse, ou qualquer contratempo.
Corri para voltar para casa. Quando cheguei, tudo estava um pouco diferente. O Caio tinha feito uma faxina. Não que o apartamento fosse sujo.
Pagávamos uma diarista por semana, mas havia semanas que não podíamos e nós mesmo fazíamos a faxina. Mas o Caio tinha deixado tudo com um cheirinho mais agradável e tirou alguns móveis do lugar.
Pus a mochila no sofá.
- Caio?
- OI - gritou ele do meu quarto.
Eu fui até lá. Ele estava dobrando as minhas roupas e arrumando o meu armário.
- Oh, amor, não precisa fazer isso.
- Eu não preciso, mas seu quarto sim.
- Deixa isso aí, vai.
- Não, já estou terminando.
- Você me fez chegar mais cedo para te ver arrumando a casa?
- Hahahahahaha, tarado!
- O que você tinha me preparado?
- Ah, já era.
- Como assim?
- Gastei toda a minha energia fazendo limpeza.
- NÃO! - gritei fingindo estar desesperado.
- Hahahahahhaha.
- Ah, saquei o lance: você arrumou tudo, para que depois desarrumássemos, não é? Danadinho!
- Ai, Marlon, seu pivete!
- E agora, o que eu faço?
- Já está quase na hora de você ir para aula. Vá tomar banho, pois o almoço está quase pronto.
- Ai, que tédio. Quando nos casarmos, será assim?
- Não. Eu terei o meu restaurante e você cuidará dos nossos seis filhos: Willie Marlon, James Caio, Aretha Priscila, Latoya Laura, Marlonelson e João.
- João? Por que esse foi menosprezado, coitado?
- Não, só me faltou criatividade mesmo.
- Meu Caio voltou! - disse animado, abraçando-o por trás.
- Para, está amassando a calça.
- PARA DE ARRUMAR ESSA ROUPA! - gritei fingindo estar irritado.
Tomei a calça das mãos dele, joguei-a no chão, puxei o Caio pela cintura e o beijei. Ele me abraçou em seguida. Depois ele começou a fazer charme, me empurrando.
- Não, Marlon, para!
- Seu safado, mentiroso!
- Não, é sério...
- Sei...
Deitamos na cama e começamos a namorar um pouco. O Caio me beijava com paixão. Eu me sentia afortunado com tanta entrega. Mas não durou muito. O Caio me tirou de cima dele e gritou:
- O ARROZ VAI QUEIMAR!
E saiu em disparada para a cozinha. Eu fiquei com cara de bobo na cama e pensando “É, o Caio voltou. Saco!”.
Quando você sabe que as coisas voltaram ao normal? Quando o que era feito antes volta a ser visto, talvez? Pois era o que estava acontecendo. Eu estava empolgado com aquele beijo, com aquelas carícias...
Quantas vezes o Caio não interrompeu um “namorinho” para salvar alguma panela no fogão? Eu fiquei na cama suspirando de tédio. Claro, um tédio gostoso de sentir. Isso até me animava. Eu saí da cama e fui andando até a cozinha.
- E aí, o arroz queimou?
- Não. Mas a água estava evaporando rápido demais.
Ele pegou a panela e pôs em cima da pia, depois pegou uma peneira e tirou a água. Eu fiquei encostado na parede, olhando-o dominar a cozinha como se ele morasse ali desde que nasceu. Eu esboçava um leve sorriso com aquela cena. Depois que ele resolveu o “caso do arroz”, virou-se e me viu.
- Ei, está rindo de quê?
- De nada, oras!
- Está sim. Fala, o que é?
- Nada, menino.
- Fala!
- Ué?
Ele se aproxima fazendo charminho, me abraça e mantém o rosto bem próximo do meu.
- Vai, Marlonzinho-zinho-zinho, me diz! - choramingou.
- Assim eu não resisto...
Mas antes de eu terminar a frase, ele tira os braços de mim, fica sério e até um pouco chocado. Logo depois ele se vira, sem falar nada, e volta para o arroz.
- O que foi isso? - perguntei estranhando aquela atitude.
- Nada.
- “Nada” não. O que foi?
- Nada, já disse.
- Caio, a gente não vai voltar a esconder coisas um do outro não, né?
Ele se vira e me olha com os olhos apertados, como se quisesse enxergar algo longe.
- Como assim “voltar a esconder coisas”? Por quê? Por acaso você escondia algo?
- Não, Caio. Você entendeu o que eu quis dizer...
- Entendi. Entendi o que você disse. Você disse que eu escondia coisas e que agora estava voltando a fazer isso.
- A gente não vai voltar a brigar, vai?
- Não sei... - disse bravo.
- Caio...? - choraminguei.
- Tá, desculpa. É que eu... não, deixa para lá.
- Não, Caio. Fale logo!
- É que eu te chamei lá daquele apelido infeliz.
- Marlonzinho-zinho-zinho?
- É, é. - disse impaciente.
- E o que é que tem?
- Não gosto mais desse nome.
- Ah, mas eu acho tão fofo. Sentia falta de você me chamando assim, sabia?
- Pois eu acho bom você ir se desapegando desse apelido, porque eu nunca mais vou te chamar assim.
- Que besteira, amor. Você criou esse nome, você sempre me chamava assim quando fazia um charminho. Eu gosto.
- Mas eu não gosto mais. Ponto.
Ele voltou para o arroz e eu continuei encostado na parede. Senti um clima muito pesado, bem parecido com a época em que brigamos. Eu estava prestes a chorar. Ele pegou uma colher, para soltar o arroz, mas ele fazia de forma agressiva, raivosa. Temi por aquele momento.
- Caio? - chamei por ele - Eu te amo!
Ele parou de esmagar o arroz, soltou os ombros, que estavam tensos e soltou um pouco mais a colher.
- Desculpa, amor, desculpa. Eu também te amo.
Eu fui em sua direção e o abracei por trás. Fiquei um tempo assim. Ele se encaixou no meu corpo e me prometeu:
- Vou te dar um apelido melhor que esse, tá?
- Hahahahahahahaha, tá bom!
Evitei uma briga. Com aquilo, ficou claro que o Caio ainda estava ressentido com o episódio.
Eu só não sei se ele me culpava, culpava a si, ou os dois. Parecia mais que ele se culpava. Não era novidade que, mesmo em menor quantidade que eu, o Caio sentia ciúmes de mim. Mas era novidade essa sensação de insegurança nele e esse comportamento quase que imaturo. Percebi que precisava ter mais tato com ele, nessa nova fase do nosso relacionamento.
Depois que ele terminou de cozinhar, fez um suco e almoçamos. Foi um almoço silencioso. Nada daquela animação de minutos antes, que estava entre nós. Foi triste.
Depois eu fui tomar banho e fomos juntos para a faculdade. O Caio só voltou a ser ele de novo quando encontramos com o pessoal da sala.
Durante as aulas, ele parecia solto e até brincava mais, já que agora não era mais aluno de Marketing. O professor fazia perguntas e o Caio implorava para responder.
- Eu, eu, eu, aqui. - levantava o braço.
- Para, Caio, você não estuda mais aqui. - brincou o professor.
- CAIO, DIZ PARA MIM. - gritava o Tom.
O Caio se esticava na carteira para dizer a resposta ao Tom.
- EU SEI, FESSOR, EU SEI! - gritava o Tom.
- Não! Está fazendo gracinha, é? - continuava o professor na brincadeira.
De fato o Caio fazia falta para todos. Obviamente que não faltavam momentos de piada durante as aulas e nem pessoas para “substituí-lo”, mas ninguém conseguia fazer como ele fazia.
Ninguém conseguia passar uma ideia de ingenuidade e graça como ele e, tudo isso, com palavras e gestos que contrariavam a sua infantilidade. Tudo de uma forma que conquistava a todos a seu redor. Todos queriam imitá-lo, fazer as mesmas piadas, mas não conseguiam ter o mesmo êxito.
Depois da aula, fomos para a lanchonete, como de praxe. Comemos e rimos. O Caio sentou ao meu lado e pôs uma das pernas sobre a minha. Quando estávamos em público, costumávamos entrelaçar as pernas por debaixo das mesas, para sermos discretos.
Pensei, então “Voltamos!”. Nos olhávamos entre os copos e as garrafas e sorríamos um para o outro.
- E quando começam suas aulas? - alguém perguntou.
- Nossa, vai demorar um pouco. Porque esse semestre já começou, então só no próximo ano.
- E você vem para as aulas, então?
- Não sei. Não com a mesma frequência de antes. Mas venho sim. E festa eu não vou faltar, claro.
Quando estávamos indo embora, perguntei:
- Você dorme lá hoje, não é?
- Preciso passar em casa, antes. Porque eu dormi lá com você hoje, então...
- Claro. Eu vou com você.
- Seria legal.
Fomos para a casa dele. Os pais não estavam, então decidimos esperá-los. A vontade de fazer amor com ele era grande, mas os meus sogros poderiam chegar a qualquer momento. Ele pegou uma mochila e uma muda de roupa. Depois ficamos namorando na sala.
- Sinto falta de você aqui, sabia?
- Eu também, mas eu não quero voltar.
- Sim, eu entendo. Acho que será bom para nós dois que cada um tenha o seu cantinho.
- É.
Depois de um tempo, os pais dele chegaram.
- Oi Marlon. - cumprimentou o meu sogro - tudo bem?
- Tudo certo.
- Eu só estava esperando vocês chegarem para dizer adeus. Vou dormir com o Marlon hoje, tá?
- Está esperando o quê? Rua! - brincou a mãe dele.
- Tá, tchau, sua mãe ingrata. Faça sua janta sozinha agora. Fui.
Depois nós fomos para casa. O Luciano já havia chegado, mas já estava de saída. Ele foi buscar o Tom para darem uma volta.
- Caio, vamos pedir uma pizza?
- Nada bobo o senhor, heim Marlon?
- Eu? - fingindo inocência.
- Não quer que eu cozinhe a janta?
- Hum... Não!
- Hahahahahahahaha.
Estávamos no sofá. Eu me estiquei um pouco e comecei a beijá-lo no pescoço.
- Hum... não, Marlon, eu quero ver televisão. - fazia charme.
- Veja, ué! - e continuei beijando.
- Mas você fica me atrapalhando.
- Eu estou na sua frente? Não, não estou.
- Mas eu perco a concentração... hum... para!
- Está bom.
Então eu parava e ficava sentado ao lado dele. Ele esboçava sorrisos maliciosos e continuava assistindo a TV. Depois ele me olhava rapidamente e voltava a rir.