O depoimento - Parte IV

- Chocada? – perguntei à Débora. Ela saiu da inércia das horas passadas me ouvindo, sem nada dizer, exceto verbalizando vez ou outra um – ahã – só para confirmar que ainda estava me ouvindo.
- Devo admitir que sim! Ouve-se tantas histórias, mas a crueldade humana parece não ter limites. – disse ela, ajeitando-se na cadeira desconfortável da penitenciária e checando se o celular havia gravado meu depoimento até então.
- Como você pode ver, a violência dos homens não se restringe apenas às mulheres. Nós, homossexuais a vivenciamos diariamente, ora mais sutil, ora descaradamente bruta. Bem! Mas você não está aqui para ouvir meus queixumes, vamos continuar o relato. – sugeri, pois até eu estava cansado e sofrendo com aquelas memórias todas voltando a reviver.
Há tempos eu notara uma mudança no comportamento do Mickael, mas foi durante a minha convalescença, quando ele veio me visitar diariamente, que constatei que ele estava triste e incomodado com alguma coisa.
- O que está acontecendo com você?
- Nada!
- Claro que está. Você nunca foi assim.
- Assim como? Não tem nada de errado comigo. Sempre fui desse jeito. – tentou me enganar.
- Isso é que não! Você anda triste, faz algum tempo que vejo você preocupado pelos cantos. Teve alguma notícia ruim da sua família?
- Minha família? Só você para me fazer rir. Eles estão felizes por terem se livrado da minha presença incomoda e vergonhosa.
- Tá, se não é a família o que é então? – insisti.
- Já disse, nada! Você anda muito enxerido!
- Pensei que fossemos amigos. Se não quiser me contar, tudo bem. – chantageei.
- Você é foda! Não precisa apelar! Tudo bem, eu conto. Não vai mudar nada mesmo. – retrucou, derrotado.
- Eu sabia que tinha alguma coisa. Você anda macambuzio, em total contraste com a bicha espalhafatosa que sempre foi.
- Olha quem fala! A ex-bicha afetada. – devolveu cínico. – É um carinha que conheci. Ele estava entre os clientes da casa noturna, assistindo ao show. – continuou, cauteloso.
- Ah, sabia, que tinha homem na jogada! Mas, anda, desembucha! – exclamei curioso, me ajeitando na cama para ficar mais confortável.
- Então, é um tremendo macho! Deve ser um pouco mais velho do que a gente. Meio tosco, não sei bem como explicar; tipo um cara que não é de cidade grande, um campesino como dizem aqui na Espanha ou palurdo, pejorativamente. Tem uns ombros, meu amigo, que fazem a gente suar, as pernas então, tipo tronco de árvore, manja? Daquelas que mal cabem nas calças e deixam o cu da gente alucinado. – empolgou-se.
- Mais velho quanto? – questionei, pensando tratar-se de um daqueles babões que costumavam frequentar os shows como única maneira de admirarem carne fresca.
- Sei lá! Uma dúzia de anos a mais. Eu estou te falando que ele é um baita de um macho tesudo e você me vem perguntar a idade dele, tenha santa paciência! – devolveu injuriado.
- É que achei que fosse daqueles velhotes tarados. – desculpei-me
- Velhote! Que nada! É um macho daqueles que tem muita lenha para queimar. O nome dele é Héctor. Mas, deixe eu continuar, ou só vai querer saber da idade do gato? Então, ele veio puxar conversa comigo quando fui servir a mesa dele, onde estava com dois amigos. Mas, sabe como é, não deu para dar muita trela porque estão de olho na gente o tempo todo para ver se estamos trabalhando ou embromando. Os amigos dele arrumaram umas garotas que estavam na mesa ao lado, tipo caçadoras de picas. Ele pediu mais um drinque e tornou a puxar conversa, como eu disse que não podia ficar de trelelê, ele me perguntou quando estaria livre. Meu coração gelou. E, saca só essa! Ele não foi embora naquele dia antes do amanhecer. Só tinha ele e o nosso pessoal terminando de ajeitar tudo para fechar. Fui dar uma caminhada com ele, o dia nem tinha amanhecido direito ainda. Ele disse que me achava lindo, que tinha visto minha apresentação montada de drag queen, mas que tinha gostado de mim desse jeito mesmo, de cara limpa. Disse que não era preconceituoso, mas que não curtia fantasias atrás das quais as pessoas se escondem. E, ouve essa, me perguntou se tinha uma chance de a gente se encontrar mais vezes e se podia rolar alguma coisa entre a gente. Primeiro fiquei com o pé atrás, pensei que o rolar se referia a ele me enrabar. Por falar em enrabar, não falei que o negócio dele deve ser do tipo jumento, saca, pelo tamanho da mala. Mas, continuando, não foi a isso que ele se referia, ele estava mesmo a fim de algo mais definitivo. Quase pirei! Um macho daquele me pedindo em namoro; namoro é meio brega, mas me pedindo algo mais que algumas fodas. Dá para acreditar? Fala alguma coisa! Essa tua cara já está me deixando maluco.
- Estou te ouvindo, ora essa! Agora me esclarece uma coisa, por que você está macambuzio então? Se o cara é um bofe, não quer apenas te enfiar o pau no cu, onde está o problema? Não entendi. – respondi.
- O problema, é que é areia demais para o meu caminhãozinho. Você acha mesmo que alguém vai querer alguma coisa além de foder com uma bicha feito eu?
- O cara não falou que te acha lindo? Isso não precisa ser nenhum adivinho para constatar. Ele não disse que não te curtia como drag queen, mas como você é? Então? O que mais você quer?
- Um cara desses não vai sair por aí comigo, se expondo, para todos questionarem a masculinidade dele. Não dou uma semana para ele começar a pôr defeito em tudo que eu faço e falo. Já vi esse filme antes.
- Pois se viu, aprendeu o que? Eu bem sei como é, passei por isso também. Mas, uma coisa eu te garanto, valeu muito, muito à pena. É só você segurar a franga.
- Eu sou franga, o que é que eu vou fazer? Virar o que não sou? Jamais!
- O que foi que esse teu jeito franga te trouxe até hoje, vamos lá, agora é falando sério e com toda a sinceridade, sem ficar fazendo teatrinho de bicha ofendida. – argumentei. – Nada! Não foi? Ou melhor, nada não, te trouxe o desprezo das pessoas assim que puseram os olhos em você, te trouxe todo tipo de ofensas que puderam verbalizar, te trouxe agressões gratuitas só pelo fato de você ser como é, e posso ficar listando mais centenas de motivos para te rejeitarem. O cara gostou de você, gostou do que viu, não só na aparência, mas na sua essência, a sensibilidade, a delicadeza, tua beleza e sabe-se lá mais o que. O fato é, ele até pode te dissuadir a mudar alguns comportamentos. E, se ele é como você descreveu, um macho hétero, tosco, campesino ele vai esperar mudanças, é óbvio. A sociedade é hipócrita, vai nos desprezar sempre ao se deparar com afetações. Agora eu te pergunto, você é a afetação, ou é o Mickael sensível e delicado, homem que curte macho? A afetação, as fantasias querendo parecer mulher e qualquer outra merda atrás da qual você quiser se esconder, não vão mudar nada na cabeça das pessoas, só vão atrair mais ódio e desprezo. Essas bichas que saem por aí levantando bandeira, exigindo que a sociedade as aceite montadas feito palhaças, não passam de frustrados lutando contra o mundo, procurando briga até com a própria sombra só para se aceitar como são. O mundo e a sociedade não vão mudar nunca. Não dessa forma, não sob essa pressão barata. Se essa mudança ocorrer, coisa que já aconteceu com outros moralismos que caíram no abismo, ela vai acontecer de forma sutil, a sociedade percebendo que pessoas como nós são tão normais quanto as outras se vivermos como todos vivem. Para ter paz é preciso que você se mimetize com a natureza, não que destoe ou lute contra a corrente. Basta observar o leito de um rio, tudo que se opuser ao seu fluxo é levado de forma sistemática e destruidora. Não queira ser o tronco, a pedra a lutar contra a correnteza, você será arrastado sem dó nem piedade. O Carlão, meu ex, me ensinou isso de forma muito amorosa. Eu achava que ele estava implicando comigo, com meus trejeitos quando me pedia para ser menos bandeiroso. Com o tempo, eu fui percebendo que mudar meu comportamento não servia apenas para satisfazê-lo, mas fez com as pessoas mudassem a maneira de me tratar. Cada saída à rua não era mais uma guerra de insultos e indignação e sofrimento de minha parte. Você nem deu chance ao cara. Não sabe se ele vai querer que você mude a casca e não o conteúdo. Por que então fica perdendo a oportunidade de ser feliz? - argumentei.
- Ele vai pedir, ou você duvida disso? Esse tipo de hétero macho, é assim, e pronto.
- Mas é assim que você gosta, não é?
- Quem não gosta?
- Então ouça-o, e mude a casca se for preciso. Ou prefere se relacionar com outra biba? Você é quem sabe! Só lembre de uma coisa, biba com biba dá lumbriga!
- De onde você tirou isso?
- Acabei de inventar! Deixe de ser besta e vai atrás da sua felicidade. Me apresenta o bofe, como é mesmo o nome .... Héctor, já lembrei, pois estou me roendo de ansiedade.
- Nem morta! Para ele colocar o olho nessa tua bunda e me deixar de escanteio, só se eu fosse kamikaze.
- Essa bunda nunca mais vai prestar para nada! – exclamei humilhado, pelo trauma ainda não superado.
- Não fala assim! Eles te operaram, não foi?
- Costuraram as pregas, mas não a dor e nem o que aqueles caras fizeram comigo. Você não faz ideia do que seja um bando de marmanjões te rasgando todo, como se você fosse um nada e não uma pessoa com sentimentos e capaz de sentir dor com tamanha brutalidade. – não consegui segurar as lágrimas, talvez nunca venha a conseguir.
- Lembra daquela surra que os capangas do señor Fajardo me deram porque eu dei um soco na cara daquele cliente que enfiou o punho no meu cu? Pois desde aquele dia eu jurei vingança a esse velho. Talvez leve um século, mas um dia mato esse filho da puta. – eu nunca tinha visto o Mickael destilando tamanha revolta.
- Lembro sim! Nós somos mercadoria aqui, não seres humanos. Eu também estou com ódio desse velho. Você acredita que eu liguei para ele antes dos caras me colocarem naquela lancha? Ele não fez nada para me ajudar. Só mandou os cupinchas quando não adiantava mais, eu já estava arregaçado.
Fiquei feliz ao saber algumas semanas depois, que o Mickael e o Héctor estavam se encontrando frequentemente, mesmo ele tendo me dito que o Héctor estava pedindo mais discrição. Ele havia resolvido aceitar meus conselhos, pois disse que cada beijo que trocava com o Héctor era a mais sublime das sensações. E também, que ele já tinha percebido que o cara estava de quatro por ele. Então, que ele também podia fazer suas concessõezinhas.
- Eu não disse! O que é melhor, um beijo apaixonado de um macho totalmente na sua, ou meia dúzia de trejeitos que todos desprezam. Fez a escolha certa, Mickael, agora é só curtir sua felicidade. Você não imagina o quanto estou feliz por você, meu amigo.
- É concordo! Mas ele que não pense que vou fazer tudo o que ele quiser! – revidou, tentando ser mais durão do que na verdade era.
- Fala isso para o Héctor quando ele estiver com o troço dele dentro de você te dizendo que você é a coisa mais doce que ele já teve. – retruquei.
- Aí não vale! Quem é que é doido a esse ponto?
- Viu? Tudo vale a pena quando se é amado. – argumentei.
A mais bizarra das visitas que recebi durante a minha convalescença, foi a de um dos capangas do señor Fajardo que havia me resgatado na praia de La Devesa, Juan Pablo. O outro capanga se demitiu assim que regressaram comigo naquele estado lastimável, quando o señor Fajardo despejou sua ira sobre os dois culpando-os por toda aquela desgraça, embora nada pudessem ter feito para evitar o acontecido; talvez porque estivesse em melhores condições de abrir mão daquele serviço sujo, ou por ter o rabo menos preso. Foi no terceiro dia em voltei para casa, a enfermeira que vinha duas vezes ao dia fazer a troca do curativo anal tinha acabado de sair quando bateram na porta, ele devia estar só esperando ela terminar seu serviço.
- Está aberta, entre! – cheguei a pensar que era a enfermeira que tivesse se esquecido de algo.
- Hola! – disse o Juan Pablo enfiando lentamente a cara pela porta.
- Hola! O que quer? Diga ao señor Fajardo que seja lá pelo que foi que ele te mandou aqui, que eu estou em recuperação, seguindo ordens médicas e não posso ir a lugar algum. – despejei sobre o coitado, sem antes ouvir o que tinha vindo fazer.
- Não estou aqui a mando do señor Fajardo! Vim por conta própria, mas posso voltar outra hora se for mais conveniente. – eles tinham ordens expressas de não ter nenhum tipo de contato conosco, a não ser para aquilo que fosse estritamente necessário e ligado a sua função. Coleguismo e bate-papos estavam terminantemente proibidos. Esse foi o motivo principal de eu estranhar aquela visita.
- Desculpe! Não quis ser rude com você. Entre e sente-se. – falei arrependido.
- Não obrigado, vou ser rápido ...
- Preciso agradecer a vocês dois por terem me resgatado naquele dia, nem sei o que seria de mim se vocês não tivessem aparecido. – interrompi-o novamente, antes que pudesse dizer a que veio.
- Não é necessário! Na verdade, estou aqui para pedir desculpas. Não teve jeito da gente chegar lá antes, a viagem de carro levou quatro horas. Quando chegamos vocês já tinham zarpado. Tentamos de tudo para fazer contato com a lancha e ver se era possível chegar até vocês, mas infelizmente, sem podermos dizer a verdade sobre essa urgência toda de alcança-los, sem poder pedir ajuda à guarda-costeira ou à polícia, não havia o que fazer. Ficamos de mãos atadas. Só nos restou esperar até o dia seguinte, até vocês regressarem. – disse ele, martirizado por não ter podido fazer nada.
- Vocês não precisam me pedir desculpas, eu sei que não foram os responsáveis por tudo o que aconteceu. Diga isso também ao Férnan, por favor.
- Ele pediu demissão! Disse que não queria mais compactuar com as falcatruas do señor Fajardo. Lamentavelmente não posso fazer o mesmo. – revelou, constrangido.
- Sinto muito por você! Imagino que não deva ser um trabalho fácil. Por um lado, o señor Fajardo é um carrasco, por outro, nós não facilitamos a vida de vocês. – confessei com um sorriso, pois algumas vezes tinha dado um baile nos capangas para me livrar de sua vigilância. Ele me devolveu o sorriso.
- Como você está se sentindo? – questionou timidamente.
- Não estou nos meus melhores dias. E, como você pode ver vou levar pelo menos duas semanas para voltar a caminhar sem sentir tantas dores. Os médicos disseram que outros sessenta dias para voltar ao trabalho. Sabe que cheguei a rir! Se eles soubessem qual é exatamente o meu trabalho, talvez não previssem um tempo tão curto. – respondi com humor. Ele riu novamente, desta vez menos tímido.
- Vou torcer para ficar tudo bem. – disse ele, agora procurando a cadeira que eu lhe havia indicando assim que chegou, pois algo o deixara agitado.
Só fui me dar conta do que era quando ele começou a cruzar as pernas e se movimentar continuamente na cadeira, tinha ficado de pau duro. Eu estava deitado de bruços, virado para a peseira da cama, só de cueca e uma camiseta que chegava até a cintura, pois tinha acabado de fazer o curativo anal. O olhar fixo na minha bunda e coxas praticamente nus devia ter me alertado, mas prestei mais atenção na conversa do que na maneira sumária com a qual estava vestido. Ele procurou esconder a excitação e eu precisei rir, ambos o fizemos com discrição. Ele ainda ficou por um quarto de hora ou pouco mais, tempo que precisou para domar o pinto fogoso, falando de outros assuntos que o distraíssem daquela bunda roliça e das coxas torneadas que atormentavam sua visão. De certa forma ficamos amigos, o que era proibido, por isso mantínhamos uma distância segura para não levantar suspeitas.
Quando voltei ao trabalho, três meses depois, foi o Juan Pablo quem veio me buscar no hotel. Desde o incidente e, de ficar sabendo que após a cirurgia eu tinha ficado com uma estenose anal, o senõr Fajardo redobrou os cuidados com sua galinha de ovos de ouro. Uma vez que os clientes, aqueles que já me conheciam desde antes do estupro, tinham revelado que eu estava deliciosamente estreito, e não se furtavam a ser bastante generosos para ter o privilégio dos meus serviços. Eu havia atendido a um homem quarentão pela primeira vez, tratava-se de um conhecido político da região. Foi um serviço fácil, ele devia estar matando cachorro a grito, pois assim que me viu nu, seu bagulhinho ficou tão rijo quanto a haste de um cabideiro. Só de percorrer com as pontas dos dedos o caminho da glande até as bolas o sujeito já gozou. Mesmo constrangido, ele pediu que eu ficasse. Suas carências talvez fossem mais emocionais do que sexuais. Conversou demoradamente comigo, agarrado à minha cintura e, até então, tinha sido o primeiro cliente a me fazer perguntas sobre a minha vida e, a ter um real interesse na pessoa que estava ao seu lado, e não no puto que estava ali para ganhar o dia. Obviamente não dei minha ficha, falei genericamente sobre o passado sem deixar pistas que pudessem fazê-lo concluir quem eu realmente era. No entanto, mesmo sendo evasivo, eu fiquei mais emotivo do que o trabalho exigia. Ele acabou metendo a piquinha em mim com uma delicadeza que nunca havia sentido, apesar de ela não fazer mais do que cócegas, no meu buraquinho recém-recauchutado. Quando terminei de atendê-lo, desci até o lobby do hotel, havia uma garoa fina lá fora e o porteiro veio saber se eu queria um táxi.
- Não obrigado! Já estão a caminho para me buscar.
O Juan Pablo pareceu logo em seguida. Desculpou-se pelo atraso, alegando que houve uma batida por conta da chuva e os carros bloquearam o trânsito por um tempo, antes de serem removidos. Eu estava tão envolvido com lembranças antigas que até me esqueci de dar uma resposta. Ficamos em silêncio, ele ao volante, eu sentado no banco de trás.
- Está tudo bem? – perguntou, quebrando o silêncio, e notando minha expressão de choro.
- Hã! Ah! Está. Foi o cliente. – balbuciei distraído. Ele pisou subitamente nos freios com mais força que necessário e o carro deslizou sobre o asfalto molhado perdendo levemente a trajetória.
- O que ele fez? Ele te machucou? Foi estúpido com você? Te bateu? – ele despejava uma pergunta atrás da outra enquanto levava o carro até a calçada para estacionar.
- Não! Não! – apressei-me a dizer, tanto para tranquilizá-lo quanto por receio de colidirmos com alguma coisa depois da manobra brusca.
- Diga o que aconteceu! Se o señor Fajardo ficar sabendo disso depois e, que eu não tomei as devidas providências, vai sobrar para nós dois. – apressou-se a dizer.
- Fique tranquilo Juan, não aconteceu nada. Verdade, juro! O cliente me deixou emotivo, foi só isso. – retruquei.
- Foi só isso mesmo?
- Foi.
- Posso te levar a um lugar? Sem que ninguém fique sabendo. – arriscou, depois de se convencer de que estava tudo bem comigo.
- Isso sim, é que vai nos colocar numa enrascada. Para aonde quer me levar? Só pode querer me sequestrar, a essa hora da madrugada. – respondi.
- Quem me dera! – murmurou, para que eu não o ouvisse. – A um bar que fica aberto a madrugada toda, vamos? – emendou ligeiro e em voz audível.
- Posso até te acompanhar, mas você sabe que eu não bebo. – devolvi.
- Sei! Há de ter alguma coisa para você beber. – disse ele, voltando a pôr o carro em movimento.
A garoa havia engrossado e se transformado numa chuva fria. A despeito disso, o lugar estava apinhado de gente. Conseguimos apenas uma ponta no balcão lotado, uma vez que não havia mais mesas vazias.
- Está bom para você aqui? Podemos ir a outro lugar se quiser.
- Claro! Está ótimo, vamos ficar aqui.
Pedi um suco, ele um drinque que, de tão bonito, acabei elogiando, e ele fazendo questão que eu desse ao menos um gole para experimentar. Sorriu quando lhe devolvi o copo elogiando sua escolha. Ambos estávamos tensos, não por estarmos descumprindo ordens, mas porque repentinamente estávamos frente a frente. Ele foi mais atirado, e começou. Quis saber se eu havia me recuperado completamente, ao que respondi que fisicamente sim, mas emocionalmente ainda lidava com alguns pesadelos, o que ele lamentou. Minutos depois, já havíamos engatado uma conversa que nos fez esquecer do tempo e, nem notar que o lugar ia ficando vazio. Voltamos para o carro e, ao invés de sentar no banco traseiro, ocupei o banco do carona. Ao trocar as marchas ele resvalava a mão na minha perna, era para parecer casual, mas eu dei uma abertura e acabei pegando na mão dele e levando-a para a minha coxa.
- Não devia ter feito isso! Posso me desconcentrar. – disse, bem-humorado.
- Como naquele dia em que foi me visitar? – atrevi-me, virando o rosto em sua direção.
- Exatamente como naquele dia! – respondeu, estacionando numa reentrância da calçada onde outrora funcionava uma farmácia. – Não consigo parar de me lembrar daquele dia em que te peguei na praia. O corpo escultural completamente nu, as coxas grossas e lisinhas, a bunda, uma obra-prima fenomenal, o sexo quase infantil, o sangue entre as pernas parecendo um cabaço recém-tirado, seu rosto assustado e ferido. Coisas que a um só tempo dão tesão, e revoltam.
Ele pegou na minha mão, a levou ao rosto e a beijou, eu acariciei sua barba por fazer. Ficamos olhando um para o outro. Dava para ouvir nossas respirações no carro fechado. Outro beijo, dessa vez na minha boca. Eu retribuí. Mais um, demorado e intenso. Mais outro, que mordeu meu lábio e fez sua língua penetrar minha boca. Eu a entreguei. O calor que vinha do corpo dele, confortante e sedutor. O perfume que ele sussurrou estar sentindo na minha pele. O encosto de banco onde eu estava se reclinando devagarinho. O peso dele aumentando sobre mim. Mais um beijo lento e carinhoso. A rigidez roçando minha coxa. Uma mão quente e forte entrando pela minha calça, alcançando minhas nádegas e aquele sorriso se abrindo em seu rosto. Meus dedos hábeis abrindo aquela camisa e se perdendo naquele tronco peludo. Um aperto forte nas minhas nádegas, seguido pelo deslizar voraz de um dedo ao longo do meu rego. Minha rosquinha na ponta dele. O gemido. Outro beijo. Mais um, enquanto a calça dele desce. A carne rija e quente dele tocando minha pele. Um beijo apressado antes do meu corpo girar. A pressão no centro da rosquinha. O cacetão que arregaça e entra, deslizando até se alojar completamente em mim. O gritinho que escapa pela dor que há muito não era tão pungente. A preocupação dele com ela e, sua diluição com a carícia ao redor dos meus mamilos. Meu gemido que faz a verga dar um pinote de tanto tesão na mucosa úmida e quente que a envolve. Ele geme. Eu gemo. Um entra e sai começa, o vaivém se intensifica. Eu gemo. Ele grunhe. Os vidros do carro que embaçam e nos isolam do mundo lá fora. Só eu e ele. Só aquele calor que assanha minha pelve. Só aquele tesão que o faz me estocar com força e cuidado. Meu gozo que sobrevêm sem aviso e lambuza o assento do carro. A lembrança de que uma camisinha devia ter sido usada, mas não foi. A pegada dele que aumenta, se agarra ao meu tronco, me puxa e faz o cacetão adentrar ao mais profundo dos meus receptáculos. O urro dele. A umidade tépida que escorre e se espalha nas minhas entranhas. O arfar exausto de nossos corpos suados. O prazer daquele abraço que mitiga os sofrimentos. Os olhares que se encontram e viram cúmplices dali em diante.
Eu ainda dormia quando numa manhã, antes das dez, o Mickael entrou na minha quitinete, lépido como uma borboleta. Demorei a entender o que estava acontecendo, não foi uma invasão, pois tínhamos cada um as chaves da quitinete do outro. Esfreguei os olhos, a luz era intensa demais para notívagos que nunca levantam antes do meio-dia, uma vez que nosso trabalho profano se valia da obscuridade das trevas. Ele praticamente se atirou sobre mim numa alegria esfuziante, movendo a mão diante dos meus olhos que demoraram a perceber a fina tira de ouro que circundava seu dedo anular.
- Pirou? Que horas são? Acabei de me deitar! – resmunguei sonolento.
- Olha para isso! Olha! Nem acredito, ele me deu ontem à noite. Você acredita? Quase tive um piripaque. Não é lindo? É a coisa mais maravilhosa que eu já vi. – exclamou, cacarejando como uma galinha que acabara de pôr um ovo.
- O que é isso? Que alvoroço todo é esse?
- Abre os olhos bicha! Ele me ama, ele disse que me ama, dá para acreditar? Você tinha razão, ele não estava só a fim do meu rabo, ele está a fim do Mickael, o Mickael sem fantasias, o Mickael sem o glamour das plumas, o Mickael simplezinho.
- Deixe eu ver, se não é de latão! – debochei, só para provocá-lo, quando entendi o que estava se passando.
- De latão é o teu cu, bicha invejosa! É verdadeiro, verdadeiro como ele. – devolveu, ofendido.
- Fico feliz por você, você bem sabe, não é? Feliz por vocês dois, pois ele também vai ganhar um presente que vale ouro. Você merece! – Para biba! Não vai me fazer chorar. – pediu, me abraçando.
- Eu sei, obrigado! Obrigado pelas dicas, obrigado por seu meu amigo, obrigado, obrigado um milhão de vezes.
- Menos! Me conta como foi isso?
- Então, foi ontem depois do expediente. Você sabe que ele só aparece a cada três semanas, um mês, depende do trabalho lá nas terras dele em Castilla-La Mancha. Demos uma escapada e ele me levou para o motel de sempre. Eu estava com todo o bagulhão dele no meu rabo quando ele colocou a caixinha na minha mão. O puto ainda teve a ousadia de me perguntar se eu queria casar com ele, vê se pode, com aquele tesão de homem enfiado em mim, quem em sã consciência ia dizer que não. – revelou assanhado. – Casar! Ele falou em casar! De papel e tudo! – emendou, sem caber em si de felicidade.
- Sortudo! Você merece toda essa felicidade!
- Já combinamos que da próxima vez que ele vier, vamos sair para comemorar, você, a Larissa e a Karina.
Foi o que acabou acontecendo num domingo de inverno rigoroso em Madri. Havíamos nos planejado de modo que todos estivessem livres para compartilhar a felicidade daqueles dois. O que não estava nos planos de ninguém, foi o que aconteceu quando o Héctor deixou o Mickael na porta do edifício no final da noite daquele dia, depois de ambos terem feito sua comemoração particular entre os lençóis. Os capangas do señor Fajardo só esperaram o carro do Héctor estacionar. O Mickael foi arrancado à força e arrastado para dentro do prédio, enquanto outros três se encarregaram de dominar o Héctor e levá-lo até um beco vazio àquela hora no quarteirão de baixo, onde fizeram um belo estrago naquele rosto viril.
Aos domingos o movimento na casa noturna terminava mais cedo e, o prédio mergulhava no silêncio logo no início da madrugada. Por isso, estranhei ao acordar com gritos vindos do final do corredor onde ficava a minha quitinete no último andar. Os gritos vinham de uma voz mais fina, esganiçada, enquanto algo como uma bronca que uma criança leva do pai, vinha de uma voz mais rouca e autoritária, essa eu logo reconheci, a do señor Fajardo. Atrevi-me a abrir uma fresta da minha porta para espiar o corredor. Os gritos vinham da quitinete do Mickael, tão desesperados e suplicantes que cometi a loucura de correr até lá. Minha presença só foi notada quando o Mickael esbugalhou os olhos na minha direção. Haviam-no despido e amarrado, pés e mãos, e estavam colocando uma larga fita adesiva sobre sua boca, cercado por três cupinchas o señor Fajardo prendia aos mamilos dele a dois clipes pequenos, semelhantes ao tipo usado para recarregar as baterias dos carros, enquanto um dos cupinchas enfiava uma haste metálica no cu do Mickael que se debatia desesperadamente. Um dispositivo que o señor Fajardo segurava nas mãos estava conectado à tomada de energia elétrica, enquanto fios saídos dele seguiam na direção dos clipes e da haste. Eletrochoque. Foi a palavra que se desenhou na minha mente, pois eu já havia passado por aquilo, no dia em que o cliente que esbofeteei por querer enfiar o punho no meu rabo me delatou. O corpo do Mickael estremeceu todo com a primeira descarga e seu grito apavorado soou surdo atrás do tapa-boca. Eu parti para cima do velho, consegui derrubar o dispositivo de suas mãos com um soco, mas fui imediatamente dominado pelo leão-de-chácara, uma montanha de músculos contra a qual eu não tinha a menor chance. Possesso, o velho se recuperou do susto e me bateu o quanto pode, já que o cupincha me mantinha imóvel em pé diante dele. Talvez por repentinamente se lembrar que deixar marcas no meu rosto e corpo fossem sinal de prejuízo, ele parou de me bater. Sua ira se voltou contra o Mickael e os disparos consecutivos de choques nos mamilos e no cu não demoraram a deixa-lo sem sentidos. Esse corretivo era usado contra qualquer um de nós toda vez que queria nos punir, para que ninguém ousasse afrontá-lo ou desobedecê-lo. Uma das prostitutas, uma equatoriana, chegou a perder o útero quando a haste enfiada em sua vagina danificou o órgão irreversivelmente.
- Estou de olho em você também! Observe bem, pois é assim que você vai acabar se tentar bancar o engraçadinho comigo! Se já se esqueceu como é, vou lhe refrescar a memória. – ameaçou o velho, acenando para que o leão-de-chácara me soltasse.
Assim que eles deixaram a quitinete, corri para o Mickael. Seu corpo parecia uma gelatina. Precisei sacudi-lo para que voltasse à consciência. Ele se encolheu em posição fetal e balbuciava desesperado o nome do Héctor. Só então, me dei conta de que ele também poderia ter sofrido alguma represália. Lembrei-me do Juan Pablo e arrisquei pedir ajuda. Ele voltou depois de algumas horas e disse que a polícia havia encontrado um homem com a descrição dele, todo machucado e sem sentidos no beco do quarteirão de baixo logo ao amanhecer.
- Velho miserável! – rosnei, tomado de ódio. Só então pude contar tudo o que havia acontecido ao Juan Pablo.
- Nunca mais cometa essa loucura! Não afronte o velho, ele é capaz de tudo! – ele falava como se soubesse muito bem do que o crápula era capaz.
O Héctor não era homem de se deixar assustar. Dias depois, a polícia fez uma devassa na casa noturna. As prostitutas e os gays trazidos de outros países foram retirados às pressas e às escondidas antes de a polícia invadir o estabelecimento. Eu estava atendendo um cliente fora e, quando o Juan Pablo se aproximou do prédio, ele estava cercado pelos carros da polícia. Demos meia volta e terminei a noite num motel com ele. O velho ficou fora de si por alguns dias, sabendo que estavam de olho nos seus negócios e, que toda a cautela, de agora em diante, seria pouca para que o departamento e imigração e a chefatura de polícia se dessem por satisfeitos.
Um dia foi a Larissa quem me esperava sentada junto à minha porta ao regressar de um programa. Estava abatida e tinha chorado. Eu estava exausto, o cliente era o executivo irlandês que sabia extrair todas as minhas forças com sua tara insaciável. Trouxe-a para dentro e me pus a fazer um chá. Ela demorou a entrar no assunto. Antes, fez uma porção de perguntas genéricas, procurando entrar no assunto da forma mais branda possível, não porque quisesse me preocupar, mas porque precisava se poupar.
- Estou grávida, outra vez! – o – outra vez – foi pronunciado com ênfase.
- Pelo amor de Deus! Como isso foi acontecer?
- Como é que uma coisa dessas acontece? Uma pica, uma buceta no cio e o estrago está feito. – respondeu ela.
- Tá, mas e a camisinha? Você não usou? Sua maluca!
- Claro que usei, não sou doida! Rasgou, e o filho da puta não tirou o pau.
- É a terceira vez Larissa! Misericórdia!
- Que culpa eu tenho se sou feito uma coelha? Basta ter um macho por perto que já fica prenha. – estou agoniada, Rosi. Lembra como o velho ficou da última vez? E agora esse negócio recente com o Mickael. Estou fodida! – choramingou.
- Esqueça o velho! Justamente por causa do que aconteceu com o Mickael, ele é o maior interessado que tudo acabe bem. Caso contrário, é ele quem se fode. – argumentei. – Minha preocupação é com você, com a sua saúde. Aquele açougue onde ele leva as garotas é um pardieiro. – emendei, referindo-me à clínica onde o señor Fajardo levava as garotas que engravidavam para abortar.
- Pensei em me atirar lá para baixo, são quatro andares, não deve sobrar muita coisa. – confessou desesperada, intensificando o choro.
- Tá maluca! Deixe de falar besteira!
- Isso aqui nunca vai ter fim! Vamos morrer aqui, ou vão nos matar quando não servirmos mais para o serviço. Eu não aguento mais, Rosi! Quatro a seis caras todas as noites, minha buceta parece macarrão que cozinhou demais. Como é que eu vou encarar um homem, se um dia encontrar algum, que queira ficar comigo depois ficar toda laceada e desse passado sujo? – questionou, desalentada.
- Não perca as esperanças! É possível que estejamos mais perto de conseguir sair daqui do que você imagina.
- Como assim?
- O Héctor! Algo me diz que ele é o nosso passaporte para a liberdade. Você viu o que aconteceu depois do que fizeram com o Mickael. Ele não vai deixar barato. Ele quer ficar com o Mickael, e vai fazer de tudo para tirá-lo daqui. Para ele é fácil, ele é cidadão espanhol, conhece as leis, tem recursos. Ele vai implodir essa merda se for preciso.
- E isso aqui? – questionou, colocando a mão sobre o ventre.
- Eu vou com você, falar com o velho. Ele que se vire! Vou estar ao seu lado o tempo todo, como das outras vezes. Vai ficar tudo bem outra vez. – consolei-a, tomando-a nos braços.
O procedimento foi realizado uma semana depois, junto ao de uma panamenha na mesma situação, só que com a gestação mais avançada. O velho discursou um rol de impropérios, xingou-as de tudo que sua capacidade intelectual podia. Disse que queria ser ressarcido dos prejuízos, até alguma alma mais prudente alertá-lo de que esses riscos faziam parte do negócio.
Olhei-me no espelho numa manhã em que acordei mais cedo. Havia tempo que eu não me olhava verdadeiramente. Toquei meu rosto com as mãos molhadas da água fria com a qual acabara de me lavar. Estava marcado por sulcos. Eles não existiam há um tempo atrás. Ou será que fui eu quem não os viu? Foram surgindo tão insidiosamente ao longo da última década que nem notei. Doeu vê-los vincados ao redor dos olhos, no canto da boca, ladeando a asa do nariz, não eram profundos, mas estavam ali, como testemunhas de muito sofrimento. Fiquei a meditar o quão inexoravelmente o tempo acrescentaria mais alguns, até que do meu viço não restasse mais nada. Engoli o nó que estava na garganta. Talvez fosse melhor assim, que o tempo voasse para que aquela vida não me deixasse continuar a sofrer por muito tempo.
A polícia rondava ostensivamente o edifício, como abutres em torno da carniça. Nossos programas diminuíram, o que, particularmente, meu cuzinho agradeceu penhorado. Não ter que sair não significava que estávamos dispensados do trabalho. Precisei rondar as mesas da casa noturna, fazer presença, seduzir clientes a extravasarem suas taras nos quartos do primeiro andar. No entanto, a presença de sujeitos de aspecto suspeito, levavam o velho a nos dispensar, receoso de que fossem policiais disfarçados. Eu nunca duvidei que fossem. Já tinha visto sujeitos com comportamento semelhante rondando a favela, o golpe não demorava a acontecer, fosse na captura dos traficantes, fosse numa operação de invasão que promovia o caos e fatalmente algumas mortes.
O Mickael e o Héctor se casaram oficialmente um mês e meio depois daquela emboscada. O señor Fajardo amassou o bilhete que lhe foi entregue logo após o fim da cerimônia discreta e linda que os uniu, dando conta de que perdera uma de suas galinhas, sem que nada pudesse fazer para recuperá-la. Como a Larissa, a Karina e eu havíamos retornado há pouco da rua, para onde havíamos pedido permissão para ir com a desculpa de distrair a Larissa, ele despejou sua raiva sobre nós. Sabia que devíamos ser cúmplices dessa nojeira, como classificou o casamento dos dois, e nos ameaçou dizendo que até então tivemos uma vida fácil, mas que ele próprio se encarregaria de torná-la mais excitante. Eu pensei comigo mesmo, quem não vai demorar a ter uma vida excitante vai ser você, seu miserável; pois o Héctor nos garantiu que estava se mobilizando para nos tirar dali, que até a Interpol já estava no percalço do velho.
O Juan Pablo se arriscou vindo uma noite, na verdade a da véspera da operação, para a minha quitinete. Ele fizera isso algumas outras vezes, quando os culhões ingurgitados lhe tiravam o sossego.
- Você é maluco, ou o quê? – sussurrei quando o vi parado diante da porta.
- Estou subindo pelas paredes! – devolveu fazendo cara de traquinas.
- Quer nos colocar numa enrascada? Já não bastam todas as coisas que estão acontecendo? Se o velho nos pega aqui, é morte certa! – ponderei. Ele apenas sorriu e abriu os braços.
- Se for esse o meu destino, que seja entre as tuas pernas. – devolveu, cheio de tesão.
O que eu sentia por ele era difícil de definir. Não o amava, isso era certo. Não éramos verdadeiramente amigos, embora me sentisse confortável em procurar sua ajuda, pois sabia que ele me atenderia com satisfação. Também não saberia dizer quais eram seus reais sentimentos por mim, pois também não era amor ou amizade. Funcionávamos no sexo, era prazeroso para ambos. Parecíamos estar seguros e mais fortes quando engatados, parecíamos não ter problemas quando nossos corpos estavam aconchegados. Era assim essa relação. Foi assim naquela derradeira noite, quando o aconselhei a não vir ao trabalho no dia seguinte, para protegê-lo do que estava suspeitando que ia acontecer, enquanto seu falo ia amolecendo lentamente dentro do meu ânus encharcado de porra.
- O que vai acontecer amanhã? Por que está me dizendo isso?
- Não sei o que vai acontecer amanhã! É toda essa situação. É a polícia rondando, são aqueles caras que aparecem nos shows, estou temeroso de que aconteça alguma coisa e você venha a ser preso ou coisa pior. – confessei.
- Do que você está sabendo? Me fala!
- Não sei de nada, Juan! Juro! É só um pressentimento. Por favor, invente alguma coisa e suma por alguns dias, eu te peço. – supliquei.
- Não vou deixar você aqui, se acha que vai acontecer alguma coisa.
- Pense bem! Se, veja bem, estou dizendo se acontecer alguma coisa, tipo a polícia entrar aqui e descobrir tudo, não vai acontecer nada para mim e para os outros ilegais. Somos as vítimas. Vai sobrar para o velho, o que é mais que bem feito, mas também vai sobrar para vocês que estão dando cobertura para os crimes que acontecem aqui. Por isso, eu te peço, se afaste por um tempo. Tire férias, invente alguém doente na família, sei lá. – ele se comoveu com a minha preocupação.
- Vou pensar! Mas deixe de se afligir tanto! Você se mexendo tão agitado está me deixando maluco de novo. – disse ao me abraçar e, enfiar a rola, que já estava quase escapando pela portinha, novamente para as profundezas do meu cuzinho.
Na madrugada seguinte não houve como escapar. O prédio fora cercado discretamente, ao contrário do alarde que a explosão que derrubou a porta da rua fez ao voar pelos ares. Levou menos de um minuto para que a minha porta cedesse com um chute, depois que acordei assustado com o barulho da explosão. Imediatamente, surgiram diante da cama, dois policiais portanto metralhadoras. Eles se distraíram por uma fração de segundos com a minha nudez, antes de checarem se havia mais alguém no banheiro. Me arrastaram até o corredor, nu em pelo, onde iam aparecendo um a um os ocupantes das quitinetes, alguns e algumas tão pelados quanto eu. Fomos obrigados a sentar no chão enquanto a devassa continuava, e um policial, cheio de galões reluzentes, acompanhado de outros dois sujeitos de terno, nos examinavam parecendo estarem no comando, encarando-nos num misto de desprezo e solidariedade. Alguns tiros ecoaram nos andares abaixo, devem ser os capangas do señor Fajardo, pensei. Naquele momento, juntei as mãos e implorei para que o Juan Pablo não estivesse entre eles.
A primeira luminosidade da manhã começava a despontar no horizonte quando fomos embarcados num ônibus cheio de policiais armados, e levados até a sede da Interpol espanhola. Ao mesmo tempo, o veículo da morgue era carregado com os sacos pretos contendo os corpos de quatro pessoas, entre eles, o señor Fajardo, que acabaram perdendo a vida no confronto com a polícia.
Ao contornar o retorno para pegar a pista da avenida no sentido contrário de onde ficava a casa noturna, o ônibus passou rolando devagar em frente ao café que ficava exatamente em frente. Sentado numa mesa junto à janela da calçada, com uma xícara de café diante de si, vi o Juan Pablo. Ele também me viu à janela, seu olhar acompanhava o lento avanço do ônibus trocando as marchas. Eu imediatamente soube que señor Fajardo não havia morrido pelas mãos dos policiais, mas por um ajuste de contas. Nunca vou saber que contas foram essas. No entanto, não era somente eu que recuperava minha liberdade com aquilo tudo, o Juan Pablo, pela fisionomia plácida com que olhava para o outro lado da rua, também recuperara a dele.
Nunca senti tanta alegria quanto no momento em que vi, a um canto da sala, a Pilar e o señor Gutierrez sentados cada um na extremidade de um banco de madeira, algemados a argolas chumbadas na parede. Ambos baixaram as cabeças ao nos reconhecerem. E eu tive a certeza de que aquele pesadelo, que já durava dez anos, havia terminado ali. Tive uma crise de choro, pois sabia que tinha recuperado a minha liberdade, mas não sabia o que fazer com ela.
Fomos interrogados individualmente durante todo aquele dia. Cada um contou sua história, ou pelo menos aquilo que tinha relação com o fato de estarmos na Espanha ilegalmente. Passamos mais dois dias confinados numa sala; ao menos ali, pude ficar com a Larissa e a Karina, antes de sermos deportados para o Brasil. Só pude acenar para o Mickael e para o Héctor de longe, quando os agentes nos embarcaram no avião que nos traria de volta ao Brasil. O Mickael se apoiou no ombro do Héctor e, apesar de estar sorrindo na minha direção, chorava feito uma criança. Minhas lágrimas desceram copiosas sabendo que ao menos um de nós havia encontrado a felicidade naquele inferno. Foi a última vez que os vi.
Eu dormi a viagem toda. Não queria pensar no que me aguardava quando pousássemos, até me dar conta de que nada, efetivamente nada e, nem ninguém, me aguardava. Eu era como aquela ave que se desgarra do bando durante a ventania e não encontra mais o caminho e, a partir daí qualquer caminho serve. Depois de liberado pela polícia federal saí à rua, era um dia quente de verão e tornar a pisar solo brasileiro não fez a menor diferença, de alguma forma, aquele calabouço onde passei os últimos dez anos, continuava presente no meu ser. Tratei de encontrar o caminho para a casa da Cleide. Ela havia se mudado da favela depois de se aposentar. Comprara um pequeno apartamento num bairro distante. Ela havia sido meu único elo com o país desde que parti. Nossas conversas pela internet sempre tinham sido curtas e vigiadas, mas ao menos me mantiveram ancorado a alguma coisa. Seria mais uma vez um abrigo temporário, até eu saber o que fazer.
Ela chorou muito ao me abraçar, ainda na porta. Eu chorei junto dela. Sempre foi uma espécie de mãe para mim, além de amiga, confidente e conselheira. Tudo o que, a que me pôs no mundo, nunca foi. Ela estava velha, nem a tintura escondia os fios brancos e o rosto marcado pela vida. Ainda tinha o mesmo sorriso cauteloso e amigo, que permitia a intimidade chegar só até onde fosse de sua vontade.
- Você está lindo! Lindo como sempre foi, para sua própria desgraça! – disse ela, daquele mesmo jeito, sem papas na língua, como sempre.
- Só se for por fora! Aqui dentro sou uma roupa velha, surrada e desbotada. – devolvi.
- Deixe de ser besta! Quem me dera ter a sua idade e esse corpão. – revidou.
- De que ia adiantar? Você nunca fez nada quando podia. – exclamei
- Olha que te sento a mão seu abusado! Adiantou você aprontar poucas e boas? Para onde isso te levou? – ela sabia pegar pesado, e viu que me magoou. – O que vai fazer agora? – questionou, para disfarçar.
- Não sei! Estive pensando em visitar o Carlão. – ela engoliu em seco quando me ouviu pronunciar aquele nome. – O que foi? Vai me dar mil razões para eu não fazer isso, não é?
- Não! Só vou precisar de uma. – ela me encarou séria, senti um arrepio.
- Como assim?
- Ele foi assassinado no presídio, durante uma rebelião, alguns meses antes de eu me mudar para cá. – revelou. Comecei a chorar. – Vingança. – acrescentou.
- Ao que me parece, meu destino é perder as pessoas pelo caminho. – comentei.
- Não me diga que você ainda não esqueceu esse homem! Ou que nutria esperanças de se relacionar novamente com ele? Criatura, você não toma jeito! – exclamou perplexa.
Ela ia falando devagar, contando como o Aristides perdera o mando da favela para uma facção rival, como foi a tomada de posse violenta das vielas pelos novos mandantes, como foram os sucessivos assassinatos dos homens que estavam com o Aristides, de como ele desapareceu após a morte do filho. Nunca fui capaz de explicar porque saber que o Carlão havia morrido me deixou tão arrasado. Talvez por que isso colocava um ponto final definitivo em nossa história e, pontos finais sempre deixam algo em suspenso, possibilidades que só existirão em nosso imaginário.
Fiquei em São Paulo apenas o suficiente para negociar a minha ida até Minas Gerais. Na minha situação, a única pessoa que talvez ainda fosse me acolher era a minha avó. A resposta à minha ligação ao meu tio demorou a voltar, sinal de que haviam tentado dissuadir minha avó de me receber o quanto puderam, até serem vencidos por sua teimosia.
- O que você vai fazer naquele fim de mundo? Como é mesmo o nome do lugar onde sua avó mora? Fique e tente arrumar um emprego por aqui. Você é tão habilidoso para fazer as mãos das clientes, por que não procura um salão? Pode ficar aqui até arranjar um lugar para ficar. – ofereceu a Cleide.
- Janaúba. O lugar se chama Janaúba. Talvez eu precise de um lugar pequeno, posso tentar isso que você falou por lá mesmo. Agora que já não sou mais tão atacada o pessoal de cidade pequena não vai mais me perseguir tanto. Aprendi a voar a favor do vento, e não contra. – argumentei.
- Se falta serviço aqui, imagine lá naquelas bibocas. Lá não haverá madames de carteira recheada. E, vai se iludindo que não vão cair matando em cima de você. Dou um mês para que sua viadagem esteja na boca da cidade toda. – afirmou ela.
- Sabe de uma coisa, Cleide? É impressionante como você é positiva, como você consegue levantar o astral da gente! Affê! Valha-me Deus, desconjuro!
- Tá bom! Não falo mais nada. Mas você já devia ter aprendido a me dar ouvidos. – aquela firmeza em suas afirmações é que me matava.
Foto 1 do Conto erotico: O depoimento - Parte IV

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Comentários


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lordricharlen Comentou em 25/03/2020

Nunca vi uma bicha tão burra como essa, amor de pica pelo Carlão bem feito ele ter morrido




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Ficha do conto

Foto Perfil kherr
kherr

Nome do conto:
O depoimento - Parte IV

Codigo do conto:
153420

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
23/03/2020

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4

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