A paixão por um cuzinho retirante Havia três anos que não chovia em Ibiara no semiárido do sertão paraibano. Pelo menos não aquilo que se poderia chamar de chuva. A última, em março, não passara dos cinquenta e dois milímetros, e despencou numa manhã tórrida quando os poucos fiéis deixavam a missa, pelas escadarias da matriz. Ninguém se preocupou em procurar abrigo das gotas esparsas, que ao caírem no solo ressequido da praça, sumiam com a mesma rapidez com que despencavam. As beatas olhavam para o céu de nuvens baixas, e deixavam que o líquido precioso atingisse seus rostos vincados e murchos, fazendo o sinal da cruz em agradecimento por mais essa dádiva. Desde então, a providência divina esquecera-se daquele fim de mundo. Raimundo morava num sítio na zona rural, com a mãe, viúva da seca, e dois irmãos, frutos da última visita do pai, depois de oito anos de ausência, que debandara para o sul a procura de melhores condições de vida. Ele ainda se lembrava daquela visita. Estava com oito anos quando aquele estranho chegou trazendo uma mala cheia de bugigangas, como um mascate, e dentre elas, um caminhãozinho de plástico que ainda ornava a prateleira abaixo da imagem da Santa Virgem. Era um homem de estatura média, tinha os olhos fundos num rosto crispado pelo sol, e abriu um sorriso capenga quando o viu sentado numa pedra ao lado da moita de mandacarus que marcavam a entrada da propriedade. No mesmo instante que o viu, teve a certeza de que era seu pai, aquele homem do qual a mãe lhe contara algumas histórias, quando era preciso ir dormir sem engolir mais do que uma mão de farinha com um pedaço de rapadura. Instintivamente correu na direção dele e o abraçou pelas pernas, fazendo com que ele passasse a mão em seus cabelos. Os irmãos mais velhos também largaram o que estavam fazendo e correram ao encontro daquele sujeito. Ele não conseguia desviar o olhar arregalado daquele estranho que retirava da mala o pouco que seu trabalho na construção civil rendera, e que ficou espalhado pela casa de pau a pique depois que ele partiu. Naquela noite, depois do jantar, que a mãe preparara com o macarrão que também viera na bagagem do pai, e uma, das poucas galinhas esqueléticas que ciscavam pelo terreiro, ele e os irmãos se lambuzaram com a calda de uma lata de pêssegos, os primeiros que ingerira na vida. Quando se deitou na rede naquela noite, experimentou uma serenidade que poucas vezes voltaria a sentir, embalado pelos gemidos da mãe e os ganidos dele vindos da rede onde foram se deitar. Poucos dias depois ele se foi, tão estranho e desconhecido como viera, e nunca mais ele soube de seu paradeiro. Nove meses depois, a mãe acordou aos berros numa madrugada abafada, pouco antes do alvorecer, colocando para fora de suas coxas ensanguentadas dois meninos que mais se pareciam com leitões, mas que eram mais franzinos do que estes, antes que seu irmão mais velho retornasse com dona Geralda, a parteira do vilarejo. Quando chegou, a velha limpou aqueles dois corpinhos e os deitou sobre as tetas da mãe, balançando a cabeça numa atitude negativa e dando a entender que eles provavelmente não vingariam. Mas ela se enganou, eles passaram a ser sua única companhia depois que os irmãos mais velhos se foram, um após o outro, quando a chuva do inverno não veio. Raimundo estava completando dezesseis anos naquele dia quando deixava a igreja com a mãe e os irmãos. Deixaram que as gotas da chuva arrefecessem a caminhada de pouco mais de meia légua que separava o sítio da praça central de Ibiara. Passaram pela venda para uma feirinha pobre, que os minguados trocados que a mãe trazia bolsa permitiam. Era o único comércio aberto naquela manhã de domingo, e as poucas pessoas que se atreviam a entrar ali, atestavam a miséria que a estiagem impunha àquelas plagas. Uma caminhonete estava estacionada num canto da praça, defronte a venda, e uma faixa presa a sua lateral chamou a atenção de Raimundo. Os dizeres pintados sobre o tecido branco recrutavam homens para o trabalho nos canaviais do interior de São Paulo, aquela terra distante onde, além de água em abundância, havia empregos sobrando e, onde fazer um pé-de-meia era mais fácil do que chupar picolé, como propalavam exagerados, aqueles que voltavam para visitar os parentes, gabando-se dos parcos trocados que lhes restavam ao fim de um mês de trabalho humilhante. Uma pequena multidão se aglomerava ao redor da caminhonete, onde um sujeito moreno de uns trinta e poucos anos, corpo atlético e uma roupa justa, esclarecia as perguntas que lhe faziam. Sua voz grossa e pausada falava do valor do salário, das condições de trabalho, do custo da viagem a ser reembolsado ao patrão, e omitia propositalmente os direitos daqueles que se aventurassem. No rosto dos ouvintes ia aparecendo uma ponta de esperança, eles iam ficando tagarelas, contavam episódios ocorridos com eles mesmos em épocas anteriores, ou de parentes que ainda estavam lá no sul. Aos poucos os interessados foram se manifestando, mais pelo desespero de colocar um prato de comida para a família, do que pela oportunidade de trabalhar. O sujeito ia anotando os nomes e declamando a lista de documentos que precisavam providenciar antes da viagem. Tudo deveria estar em suas mãos dali a quatro dias, quando voltaria para levar aqueles, que ia apartando com sua experiência de recrutador. Entre os escolhidos estavam apenas aqueles que podiam render alguma coisa. Aqueles que o tipo físico ainda exibia estarem em condições de enfrentar uma jornada dura sob sol escaldante, e talos de cana chamuscados. Enquanto assistia a tudo aquilo, Raimundo sentia seu peito se oprimindo. Os dois irmãos mais velhos saíram de casa aos dezesseis anos, e estavam sabe lá Deus onde. Mas não estavam mais dando despesa em casa, onde a escassez imposta pela estiagem fazia minguar, a cada dia, o feijão que estava nos pratos. As lavouras, plantadas no solo árido, não vingavam, as duas cabeças de gado compradas com o dinheiro enviado pelo irmão mais velho, há quase um ano, perambulavam famélicas a procura das folhas de palma, e o céu permanecia azul flocado aqui e ali por nuvens que agouravam, mas não traziam a chuva. Chegara a vez de ele tomar uma providência, isso o martirizava, mas não podia mais ser protelado. Quando se aproximou do sujeito massudo que anotava os nomes num caderno, sua voz tímida gaguejava, a despeito da coragem que ele próprio havia se imposto. O homem o mediu de cima abaixo, e seu olhar parou por uns instantes para que ele analisasse a figura franzina que estava a sua frente. - Quantos anos tem, rapaz? – perguntou, encarando-o com seus olhos escuros e cintilantes. - Dezessete! – respondeu de imediato. – Estou para completar dezoito, senhor. – emendou, numa tentativa de não ser recusado. - Você me parece muito fraquinho para dezoito anos! – retrucou o homem, avaliando a expressão assustada do menino que tentava enganá-lo. - Mas sou bom na enxada e sei lidar com o gado. – proclamou Raimundo, vendo suas chances se esgotando. - Lá você não vai precisar saber manejar um facão por oito horas, e ter braços fortes o suficiente para amontoar a cana cortada. Se não der cona disso, esqueça. – retorquiu o sujeito, tentando desestimulá-lo. - Sou capaz disso. Tenho certeza. – continuou Raimundo, perseverante. O homem esboçou um sorriso que mais parecia um esgar, antes de repetir, com a voz enfadada, o rol de documentos que ele precisaria providenciar. E Raimundo saiu dali na certeza de dar um rumo a sua vida, mesmo que não soubesse o que o destino lhe reservava. No dia aprazado ele estava na praça da matriz, a espera da caminhonete com os outros infortunados. Quando o sujeito chegou, acompanhado de um motorista que permanecera ao volante, deixou-o por último, analisando meticulosamente os documentos que aqueles retirantes lhe exibiam. Depois de percorrer com o olhar astuto aquelas folhas de papel descartou uma meia dúzia, como se descarta uma fruta apodrecida, e pegou a papelada que Raimundo lhe apresentara. Os olhos não se concentraram nos papéis, mas encaravam-no apesar da cabeça do sujeito estar voltada para baixo. José Geraldo estava com trinta e dois anos. Tal como aqueles que agora se aglomeravam a sua frente na esperança de obterem um trabalho longe de seu estado, ele deixara o interior de Pernambuco há quase uma década, para tentar a sorte no sul. Tivera alguns empregos, que ele logo percebeu não modificariam sua condição de vida, e procurou por algo que lhe retribuísse o esforço. Quando sentiu que podia dar uma vida segura à esposa que deixara em sua cidade natal, voltou para busca-la, sonhando consolidar a família com que tanto sonhara. Mas ela embuchara de um cabra que passou a dividir com ela, as noites solitárias que José Geraldo lhe deixara. Sua honra saiu inabalada da peleja que teve com o cabra, mas imputou-lhe o peso da vida do desafeto. Sua habilidade em lidar com as pessoas foi decisiva na obtenção de um cargo de chefia junto aos boias-frias nos canaviais do interior de São Paulo. O falar tranquilo e econômico, seu porte físico avantajado, e uma paciência para explicar as lides, consolidaram-no no posto que exercia, e vinham lhe trazendo, aos poucos, aquele conforto que procurava. O olhar empático e inocente que aqueles olhos astutos, cor de avelã, lançavam em sua direção o distraiu por alguns momentos. O rosto angelical exibia um conjunto de sardas sutis na pele muito branca dos malares, e uma linha de sorriso moldava os lábios rutilantes com graça e singeleza. Sua decisão se baseou nesses aspectos, ignorando aquilo que os papéis a sua frente demonstravam. Quando deu seu veredicto, viu aquele rosto se iluminar, e só isso foi capaz de fazê-lo sentir-se recompensado. No dia combinado, Raimundo juntou seus pertences, amarrou uma trouxa com sua rede e, inseriu nela nada mais do que seis ou oito peças de roupa, puídas e desbotadas, um torrão de rapadura para amenizar a viagem, além dos últimos trocados que a mãe tirara de um saquinho de tecido que ela camuflava numa ranhura da parede. Ela não passou da soleira da porta. Não havia lágrimas em seus olhos, e ela lhe dera um até breve como se ele fosse até ali ao lado recolher as rezes. Os gêmeos estavam em sua volta e um deles abraçava uma das pernas da mãe. Quando acenou da entrada do sítio, foi como se aquela imagem se congelasse em seu cérebro. Algo em seu íntimo lhe dizia que nunca mais tornaria a vê-los, e duas lágrimas pesadas rolaram por suas faces salgando seus lábios. Um caminhão, que fora recolhendo aquela mão-de-obra recrutada ao longo das estradas poeirentas daqueles distritos perdidos no sertão, levaria todos até Serra Talhada em Pernambuco, e dali para o interior de São Paulo um ônibus fretado completaria a jornada. José Geraldo acompanhava tudo de perto, certificava-se de que todos estivessem de posse dos documentos, fazia as últimas recomendações, e controlava a ansiedade daquela gente como um boiadeiro toca seu rebanho. Os homens se comportam conforme a influência do que os cerca. Quando se acham sozinhos, ou acompanhados de poucos amigos, revelam o lado melhor ou pior de si próprios, e seu caráter é definível. Quando são incluídos numa massa mais vasta de indivíduos semelhantes a eles, seu comportamento muda, e com ele sua personalidade. Seus modos tornam-se mais arrogantes, a voz e o olhar, mais seguros, como se o fato de pertencerem a um grupo homogêneo justificasse cada ação, mesmo a mais reprovável. Isso Raimundo percebeu assim que subiu na carroceria do caminhão. Bastou que um daqueles marmanjos colocasse seus olhos sobre o corpo esguio, o rosto imberbe de olhar cândido e aquelas mãos afiladas, um tanto femininas, para que uma enxurrada de frases jocosas alvoroçasse os ânimos. - Será que você vai conseguir segurar o cabo de um facão? É bom começar treinando com esse cabo aqui! – disse um jovem musculoso que, ao mesmo tempo em que liberava uma risada estrondosa, alisava a pica dentro das calças, fazendo com que todos caíssem na gargalhada. - Melhor ele praticar nesse cabo aqui, que já não vê umas mãozinhas tão delicadas há pelo menos duas semanas! – exclamou outro, já mais velho e provavelmente casado, que abriu a braguilha deixando pender a imensa verga flácida, provocando uma histeria coletiva. Enquanto mãos calejadas e ásperas, vindas de todos os lados, tentavam usurpar um pouco daquela pele branca e viçosa. Raimundo procurava se defender distribuindo socos, à esmo, e respondendo às provocações com o tom mais grave que conseguia imprimir a sua voz adolescente. - Chega dessa balburdia! Comportem-se como homens, e não moleques! – vociferou José Geraldo, num ressonar autoritário. – Não pensem que vou tolerar confusões. O primeiro que me causar problemas fica pelo meio da estrada, e que se arranje para voltar! – acrescentou, enrugando a testa, enquanto desafiava com o olhar penetrante cada um daqueles rostos zombeteiros. - Você, garoto, venha para cá! – berrou, apontando para Raimundo, que desceu da carroceria do caminhão abraçando sua trouxa com mais ímpeto. – Entre na caminhonete! – ordenou, sem encará-lo. – Coloque essa tralha na caçamba, ou você acha que vai percorrer 2400 quilômetros agarrado a esse bagulho? Quando os quarenta peões embarcaram no ônibus, Raimundo recebeu nova ordem para permanecer da caminhonete, pois seguiria viagem com José Geraldo e o motorista. Ele não retrucou, pois percebeu que aquele homem, de alguma maneira, o estava protegendo da turba ensandecida que o vilipendiaria pelas próximas trinta e seis horas. Aceitou mais aquela imposição com a mesma resignação que vinha aceitando o que a vida lhe oferecia. O espaço no banco da caminhonete era pequeno para três pessoas, e Raimundo seguia calado, espremido entre aqueles dois homens que se revezavam ao volante do veículo. No início respondeu a algumas perguntas que os dois fizeram, tentando descobrir um pouco de sua vida sem atrativos, depois as retas a perder de vista, o ronco monótono do motor e um ar que ia ficando cada vez mais denso, começou a impor um peso crescente as suas pálpebras. Quando o sono o venceu, a cabeça pendeu sobre o ombro de José Geraldo, que a recebeu sem reservas. Por sorte a caminhonete trafegava numa velocidade superior a do ônibus de maneira que eles sempre chegavam à frente nas paradas, o que dava mais tempo para esticar as pernas e até tomar um banho para afastar o cansaço do corpo. Na primeira parada em que foi possível tomar um banho, Raimundo relutou em se despir diante daqueles desconhecidos. Estava a ponto de desistir quando viu aqueles corpos brutos e parrudos, completamente nus, sendo ensaboados debaixo do chuveiro. - Deixe de frescura e tire essa roupa! Não vou ficar aguentando vudum pelo resto da viagem! – exclamou o motorista, que nesse momento ensaboava um sacão peludo que pendia libidinosamente entre suas coxas musculosas. - Calma! Já estou indo. Só estava esperando vagar outro chuveiro. – balbuciou encabulado, enquanto ensaiava para tirar os andrajos que lhe cobriam o corpo mal definido, sob o olhar curioso dos dois, e de mais três estranhos, que aguardavam para comparar seus dotes com os dos demais. Aquela timidez inocente era farejada por um macho desde os primórdios da humanidade. A socialização apenas coibira com um véu tênue a gana que a testosterona despertava em todo macho, mas em momentos como esse, os instintos primitivos voltavam a se manifestar. O ar vaporoso e úmido do recinto, produzido pelos chuveiros ligados, ia se impregnando aos poucos de um odor ácido, resultante dos humores dos corpos másculos, juntamente com o excesso de ímpeto, da expectativa de luxúria e da fragrância dos sabonetes que ao se mesclarem produziam aquele cheiro selvagem. E, ao fechar os olhos sob a água morna que despencava sobre sua cabeça, Raimundo conseguia sentir os olhares lascivos e febris de cobiça ardendo sobre suas ancas arredondadas até a curva delicada do pescoço de seu corpo deliciosamente desnudo. No entanto, esse gesto poupou-o da visão de alguns membros já rígidos e violáceos, sobressaindo impacientes entre as pernas daqueles homens, o que o teria atemorizado ainda mais. Ao final da viagem cansativa o rapaz se sentiu mais só do que nunca. A paisagem ao redor era formada por colinas cobertas pela cultura da cana, o ar que entrava em suas narinas era mais úmido e, variados matizes de verde, que ele jamais sonhara existir, se perdiam ao longe até a linha do horizonte se encontrar com o céu azul. Eles chegaram à fazenda pelo menos três antes do ônibus, tempo que ele usufruiu explorando os galpões onde guardavam os tratores e implementos, as instalações que funcionavam como alojamento dos boias-frias sazonais, um pequeno aglomerado de casas de madeira onde viviam algumas famílias de funcionários, e um pomar que, à época, estava com os pés de laranja debruçando seus galhos devido ao peso das frutas amareladas que pendiam como esferas de ouro. - Pode pegar quantas quiser! - disse uma mulher que passava em direção as casas de madeira, acompanhada de uma menininha de cabelos encaracolados, ao vê-lo admirando as frutas com tanta gula. Raimundo ainda segurava os últimos gomos entre as mãos quando o ônibus estacionou junto ao pátio próximo aos alojamentos. A voz autoritária de José Geraldo voltou a retumbar sonora e clara, instruindo os recém-chegados quanto às orientações que deveriam seguir para se instalar, e estarem a postos na alvorada do dia seguinte para darem início ao corte da cana. Depois, virou-se para Raimundo, que ainda se sentia perdido e deslocado, com a voz abrandada e encarou-o. - Você vem comigo. – ordenou, entrando na caminhonete e tomando o rumo da pequena cidade, distante cerca de quatro quilômetros, por onde haviam passado na vinda. - Para onde está me levando? – arriscou-se a perguntar, quebrando o silêncio depois de alguns minutos. - Para o seu local de trabalho. – respondeu José Geraldo, com aquela economia de palavras que o caracterizava. Chegaram à frente de uma pequena casa de uma rua que saia da lateral de uma praça, onde um coreto de madeira pintada de amarelo se destacava no centro de canteiros delimitados por buxinhos podados e flamboaiãs cobertos por flores vermelhas. José Geraldo destrancou a porta de entrada e fez um gesto convidando-o a entrar. Ao cruzar a soleira da porta protegida por uma varanda, entrou numa sala pequena, com piso de ladrilhos e uma ampla janela que deixava entrever o pequeno jardim fronteiriço. Um sofá e duas poltronas circundavam um tapete, e numa das paredes, uma estante de alvenaria guardava alguns adornos, uma televisão e alguns livros. Dela saía um corredor curto que, de um lado, levava ao banheiro e de outro, ao único quarto da casa, aos fundos uma cozinha iluminada pelo sol, reservava um canto com uma mesa redonda e quatro cadeiras, e no outro, percorrendo toda a parede, uma pia, um fogão e uma geladeira se perfilavam numa sequência harmoniosa. Ao destrancar a porta dos fundos, José Geraldo apontou para um alpendre coberto com telhas vãs, do qual três degraus levavam ao quintal. - É aqui que você vai ficar! – exclamou, depois de lhe apresentar sua casa. - Nunca estive num lugar ao lindo! – disse, com a voz embargada e o olhar admirado. – Mas, fica um pouco distante do trabalho, como vou fazer para chegar até lá. – inquiriu, curioso. - Seu local de trabalho é aqui mesmo. A partir de agora é sua responsabilidade manter esta casa como a está vendo agora, limpa e organizada. Será que você é capaz disso? – perguntou, encarando-o com expressão séria. - Sim, mas eu vim para trabalhar no corte da cana e não para limpar uma casa. – retorquiu surpreso. - E você acha que está em condições de encarar um trabalho como aquele? Aquilo é trabalho para homem, e muitos daqueles que vieram, vão desistir em poucos meses, exauridos pelo esforço estafante. – revidou sereno. - Mas eu sou homem e preciso daquele salário para ajudar minha mãe e meus irmãos. – exclamou Raimundo, aborrecido pelo desdém com que José Geraldo se referira a ele. - Você vai ter o seu salário, mas francamente, conscientize-se de sua condição. Você é um garoto, que mentiu na idade e não faz ideia do que seja um trabalho árduo por dias seguidos. Seu corpo não aguentaria uma semana naquela lida. – falou, serenando ainda mais aquela voz grave e paternal. - O senhor pensa que eu não sei o que é trabalhar no cabo de uma enxada ou andar léguas com umas latas de água debaixo de sol quente e que, por ser magro, não dou conta do serviço? – questionou contrariado, com uma voz chorosa. - Não foi isso que eu disse. E chega dessa conversa inútil. Está decidido, você vai manter esta casa em ordem, entendeu? – exacerbou-se diante daquela incompreensão juvenil. – E mais, amanhã mesmo vamos te matricular numa escola. Você já estudou alguma vez na vida? – perguntou severo. - Sim. Eu completei o ensino fundamental, pois era tudo o que havia em Ibiara. – respondeu irritado. – E com boas notas, se quer saber! – exclamou orgulhoso. A expressão de José Geraldo parece que esboçou algo como um sorriso rudimentar, algo que seus músculos faciais não estavam habituados a fazer, e que ele não quis que Raimundo visse. O garoto se resignou, aliás, como sempre. Ele se acostumara a obedecer sem questionar, mesmo que nem sempre compreendesse as razões pelas quais recebia as ordens. - Agora deixe suas coisas no quarto, precisamos providenciar um colchão para você poder dormir. – resmungou enfático. – E algumas roupas. Você não pode andar por aí com esses andrajos! – emendou. - Mas eu não tenho dinheiro para comprar essas coisas. – revidou de pronto. - Eu sei disso. Digamos que isso é um presente meu. – respondeu José Geraldo, comovido com o linguajar direto do garoto. - Não sei se é certo aceitar presentes do senhor. – disse Raimundo, depois de deixar seus pertences sobre a cama de casal. - Êta garoto complicado! Você é sempre assim tão ranzinza? – revidou inquisidor. – E pare de me chamar de senhor a todo o momento. Meu nome é José Geraldo, entendeu? – acrescentou carrancudo. Raimundo calou-se. Não quis deixar aquele homem zangado, e no fundo sensibilizou-se por estar sendo tratado com tanto cuidado. Ele certamente não era páreo para ficar questionando as atitudes de um homem como aquele, que chefiava outros e tinha uma vida da qual ele não sabia absolutamente nada. Depois de alguns meses ele se habituara àquele convívio pacífico. Desempenhava suas tarefas pela manhã sem mágoas e, até aprendera a gostar delas. Preparava o almoço que depois levava para José Geraldo, de bicicleta até a fazenda, antes de seguir para a escola. Saía no final da tarde, quase ao mesmo tempo em que José Geraldo voltava do trabalho. Jantavam um na companhia do outro, e depois ele se sentava à mesa da cozinha e fazia suas lições. A conversa entre eles ia ficando cada dia mais rica e íntima. Os momentos em que passavam naquele convívio doméstico passaram a ser os mais felizes de suas vidas. Embora José Geraldo, agora chamado carinhosamente apenas de Ge, uma forma inusitada e única inventada por Raimundo, pela qual nunca havia sido chamado, continuasse econômico em seu palavrear. Ao contrario de Raí, a forma pela qual José Geraldo retribuiu aquela ousadia com seu nome, que tagarelava entusiasmado com tudo o que vivenciava naquela nova vida. Ele sorria com facilidade. Algumas vezes até das atitudes de José Geraldo. Cantarolava pela casa e dera abrigo a um cãozinho peludo, que certo dia amanhecera ao lado do portão, esquelético e encardido, com um olhar tão suplicante quanto aquele que Raimundo vira em muitos de seus conterrâneos. Tosou-o e banhou-o até que o animalzinho adquirisse um aspecto cativante, e cuidou dele como que para compensar a dedicação que José Geraldo dispensava a ele. O bichinho, bem alimentado, foi adquirindo uma aparência decente e se enchendo de energia para as brincadeiras, quase ao mesmo tempo em que Raimundo deixava aquele corpo de menino e ia adquirindo uma definição de contornos, um gingado sensual que a bunda carnuda e proeminente, deixava cada vez mais sedutor. Não apenas seu aspecto físico passava por transformações, agora que completara dezoito anos. Como os hormônios, abundantes dessa fase da vida, inquietavam Raimundo e aguçavam seus sentidos. As camisas e cuecas suadas de José Geraldo, que ele separava para colocar na lava-roupas, exalavam um cheiro viril que o fascinava. Ele as cheirava uma por uma, aspirando aquele perfume másculo que povoava seus pensamentos com as imagens que ele entrevia pela fresta da porta do banheiro quando José Geraldo se banhava ao chegar em casa. Essa profusão de sensações agitava seu íntimo, enchia-o de tesão. E isso passou a se refletir em seu comportamento. Ele se dedicava a Ge com um carinho e um desprendimento inédito. Fazia seus pratos favoritos, procurava descobrir tudo o que ele gostava, e passava a suprir esses mimos. Embora José Geraldo percebesse essa mudança no comportamento de Raimundo, continuava com dificuldade para expressar seu contentamento com esse carinho todo. E, por seu lado, começara a ficar incomodado com aquela bunda roliça brincando de esconde-esconde embaixo dos shorts apertados de Raimundo, do cheiro fresco de baunilha daquela pele lisa e branquinha, e do toque suave de suas mãos afiladas em seus braços peludos, na sua barba hirsuta, ou mais desconcertantemente nos pelos de seu peito largo. À noite, quando sabia que no colchão ao lado, Raimundo dormia apenas de cueca, sua jeba enrijecia dentro do calção e poluía sua mente com imagens obscenas e libidinosas, impedindo-o de conciliar o sono. Aos poucos esse clima efervescente começou a mostrar seus resultados devastadores. Enquanto José Geraldo protelava ao máximo seu retorno para casa, após o trabalho, detendo-se para uma rodada de cerveja num bar ou outro, a fim de esquivar-se das abordagens sempre mais explícitas de Raimundo, este se convencia da indiferença de José Geraldo por sua pessoa, e começava a retribuir, se bem que timidamente, as investidas de um colega de escola, que já havia passado um pouco da idade de frequentar os bancos escolares junto àqueles adolescentes. Todo o retorno que José Geraldo parecia não querer lhe oferecer, esse colega se mostrava ávido a conquistar. E foi assim, que começou a aceitar os convites para estudar na casa dele, as caronas em sua motocicleta, e as propostas indecorosas sussurradas ao pé do ouvido, acompanhadas por pegadas vigorosas em suas nádegas fogosas. Raimundo, por enquanto, ainda se esquivava, repentinamente, quando as encoxadas começavam a ficar mais impetuosas, e o membro, completamente tomado de uma sanha febril de seu dono, se avolumava descaradamente dentro das calças, cutucando-o até fazer seu cuzinho piscar de desejo. Num final de tarde, quando o inverno recolhia precocemente a luz pálida do sol e fazia as primeiras estrelas piscarem, qual vagalumes, no firmamento, José Geraldo esperava aflito a volta de Raimundo, que deixara a escola há horas. Quando finalmente apareceu na garupa da motocicleta do colega, e este lhe passou sorrateiro, as mãos na bunda carnuda ao se despedir, acompanhando com o olhar guloso a silhueta de Raimundo entrando em casa, um calor subiu-lhe até o rosto, tornando-o duro e vermelho. Seu olhar, usualmente sereno e calmo, tornou-se vago e fixo. Seus punhos se cerraram involuntariamente, e ele precisou enfiá-los no bolso da calça para não lança-los na direção de Raimundo, que entrava em casa com um sorriso fagueiro mostrando seus dentes pequenos e reluzentes como pérolas. - Onde você esteve até estas horas? Já olhou no relógio? Sabe que horas são? – berrou colérico, tomado de um sentimento que aquele motociclista conseguira implantar em seu peito como uma adaga. - Estava estudando na casa do Bernardo, eu te avisei esta manhã. – respondeu Raimundo, assustado com aquela transformação. - Estudando o quê? O caralho desse filho da puta? – inquiriu, com a voz gutural brotando das profundezas do peito magoado. - Não vou me dar ao trabalho de responder suas ofensas descabidas! – exclamou, virando-lhe as costas e tentando deixa-lo a remoer suas fantasias. - Ah! Vai sim, seu fedelho. Você vai dar conta de todos os seus passos para mim, seu viadinho ingrato! – grunhiu com os dentes cerrados, ao mesmo tempo em que o agarrou rudemente pelo braço e o projetou de encontro ao sofá com uma bofetada que fez zunir os tímpanos do garoto. Em seguida, desatou o cinto e começou a sovar as coxas torneadas e os glúteos polpudos, enquanto Raimundo chorava pela dor e pela incompreensão daquele homem. José Geraldo saiu pela porta da frente, fazendo-a bater com força contra o batente, enquanto Raimundo soluçava encolhido como um feto, com a cara mergulhada no sofá. Quando conseguiu recuperar o fôlego, foi até a cozinha e dispôs o jantar de José Geraldo sobre a mesa e, sem fome, entrou debaixo do chuveiro, deixando que a água morna atenuasse a dor dos vergões arroxeados que cobriam a pele branca de suas nádegas e coxas, deitando-se em seu colchão ao lado da cama de José Geraldo, o único refúgio que lhe restava. Demorou a adormecer atormentado pela volta daquela sensação de abandono e solidão. Só voltou a acordar no meio da madrugada, e percebeu que José Geraldo dormia agitado por uma respiração arquejante. Tirou a cueca e esgueirou-se nu para junto do corpo parrudo que jazia inquieto num dos lados daquela cama larga. Havia perdido o sono, e acomodou-se languido agarrado ao travesseiro. Sua respiração começou a ficar ofegante, e ele começou a ouvir os próprios batimentos do coração quando José Geraldo se moveu encaixando seu corpo quente no seu. Aquela profusão de pelos que se espalhava em redemoinhos pelo peito e ventre, agora estava colada em suas costas. O hálito morno de José Geraldo roçava sua nuca, numa massagem delicada a cada expiração dele. A virilha daquele macho estava perfeitamente encaixada em sua bunda, e o pinto dele se endurecia pressionando seu rego. Ele não se moveu quando sentiu que o outro se esfregava nele, ampliando os movimentos ondulantes numa sofreguidão crescente. José Geraldo aspirava o perfume de banho recente que aquela pele macia exalava. Ele sentia a cabeça da pica coçando, num alvoroço difícil de controlar. Estava arrependido de ter descarregado sua ira naquele corpo flébil, cuja posse seus instintos de macho predador pleiteavam há tempos. Tirou o calção, pois sua jeba inchando começou a incomodá-lo, e deixou que ela se alojasse entre as coxas de Raimundo. Ele não sabia como dizer que o desejava que quisesse tê-lo em seus braços, que queria explorar suas entranhas com seu falo angustiado. Penitenciara-se, tantas vezes, por lhe sobrevirem esses pensamentos luxuriantes, questionara-se se esse desejo era certo ou se podia exigir alguma retribuição por aquele amor que lhe sufocava o peito e, de repente, constatava que estavam lhe roubando a chance de reencontrar a felicidade, bem debaixo de seu nariz. Ao se questionar sobre tudo isso, Raimundo virou o rosto em sua direção, a súplica que via em seus olhos úmidos deu-lhe a resposta que precisava. Levou a mão ao rosto delicado e beijou seus lábios com ardor, mergulhando sua língua naquela boca aveludada e receptiva. Sentiu aqueles braços calorosos enroscando-se em seu pescoço, e deixou o tesão assomar seu querer. Ao sentir as mãos ásperas de José Geraldo deslizando por suas costas e agarrando suas nádegas, Raimundo gemeu de felicidade. Aquela surra havia despertado a gana de seu macho, e ele lhe lançou um sorriso maroto, confirmando que estava pronto para ser seu. Chupou a língua que depravava sua boca e degustou o sabor da saliva de seu homem. Contorcia-se quando a mão frenética se insinuava em seu reguinho liso, demonstrando a intenção de ser explorado por ele. Enquanto Raimundo se oferecia aos seus apelos, José Geraldo avançou como um lobo contra aquela bundinha empinada, dedando o cuzinho apertado e separando os glúteos macios com suas mãos. Uma minúscula fenda rósea se escondia entre as pregas protegidas por aquele rego estreito e profundo. Ele enfiou a cara entre as nádegas e lambeu o buraquinho que se contraía de ansiedade. Sua barba pinicava aquela pele macia e deixava nela uma mancha vermelha que se juntava aos vergões deixados por seu ciúme. A pica latejava e era preciso aplacar sua luxúria. Ele a esfregou no rosto de Raimundo já liberando o pré-gozo. Ao ver que ele a lambia e chupava com desejo, um arquejo gutural brotou em sua garganta, e ele mandou que Raimundo a engolisse. Afoito, foi metendo aquele instrumento grotesco na boca dele, mal permitindo que ele respirasse, mas usufruindo de cada sugada carinhosa como se fosse o dono daquele rapaz. O pau babava e Raimundo o sugava deleitado com o cheiro másculo daquele líquido. Acariciava as bolonas escandalosas que roçavam seu rosto, e deslizava a ponta dos dedos entre o púbis peludo daquele macho. Os pentelhos negros e grossos se prendiam em seus lábios, enquanto José Geraldo enfiava e tirava de sua boca aquele membro poderoso, e esfregava sua mão calejada no contorno de seu rosto. Depois ele ergueu suas pernas no ar e as abriu colocando seu corpo imenso entre elas. Com brutalidade, a mão direita do homem enfiava o caralho completamente distendido em seu reguinho, percorrendo-o até encontrar a corrugação das preguinhas. Quando ele forçou aquele mastro contra seus esfíncteres Raimundo sentiu sua respiração parar por uns instantes, só voltando a seguir numa cadência acelerada, depois que um grito aflorou em sua boca, quando o cacete invadiu sua ampola retal num golpe firme e extremamente doloroso. Parecia que suas vísceras estavam se rasgando, e ele só voltou a ter consciência do que estava acontecendo, quando a jeba já pulsava dentro dele, apertada por suas carnes trêmulas. José Geraldo arfava deitado em cima de seu corpo, e ia metendo seu falo quente, com movimentos curtos e compassados, no túnel receptivo de suas entranhas, até golpear sua próstata. A dor que sentia era tão forte que todos os seus sentidos se concentravam nela, ali no meio das pernas, era como se suas vísceras, batidas como uma trouxa de trapos ensopados, lutassem para sair do corpo. Ele tentou se agarrar a alguma coisa, mas seus cotovelos se afundavam no colchão, e a única coisa confiável que encontrou, foi o torso peludo e suado que estava sobre ele, e então, ele cravou a ponta dos dedos naquela carne rija e gemeu feito uma cadela no cio. A pica sendo tão afavelmente agasalhada por aquele cuzinho apertado, como nunca a havia sentido ser acalentada, atiçou todos os sentidos de José Geraldo. Ao mover a jeba num vai-e-vem ritmado, sentia aquela mucosa morna e úmida massageando seu membro viril, e o auge do prazer começava a querer brotar em ondas, que ele lutava desesperadamente para controlar, tentando prolongar aquela sensação pelo maior tempo possível. Aos poucos as forças estavam esgotando seu corpo, e Raimundo ouviu sonoramente um ganido rouco que assinalou o gozo de José Geraldo, e não demorou a sentir o caralho dele inchando com os últimos golpes em sua carne, e os salpicos quentes correndo entre sua mucosa esfolada, despejando sua porra cremosa dentro dele. O prazer que aquilo lhe causou foi único, e brotou na forma de lágrimas que inundaram seus olhos. - Eu te machuquei? – perguntou José Geraldo, recobrando-se do transe sensual que se apossara dele. - Eu amo você! Sonho com isso há meses, mas nem em sonho eu podia imaginar que você fosse tão maravilhoso. – balbuciou Raimundo, cobrindo o rosto de José Geraldo com seus beijos apaixonados. Suas pregas nunca mais desfrutaram de sossego, estavam invariavelmente intumescidas, e foi preciso se habituar ao uso de um absorvente aderido à cueca, para não expor seus eflúvios constantes, quando o amante o solicitava ininterruptamente por vezes a fio, procurando saciar seus apetites carnais. Mas Raimundo o fazia com graça e dedicação, provando seu amor incondicional por aquele que elegeu como seu macho. José Geraldo vivia em estado de graça. Agora sabia que tinha tudo o que precisava. Sua dedicação àquele ser que lhe iluminou a vida era peremptória, e ele fez dela seu objetivo maior. Por conta disso os anos os brindaram com a cumplicidade gratificante que uma união como essa é capaz de proporcionar.
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mei esta história, como as demais. Gostaria de que houvesse continuação, relatando como foram os anos de convívio entre os dois. Se possível, que Raimundo visitasse a família e esta viesse morar em São Paulo, perto dele. A mãe poderia conseguir um emprego na fazenda onde José Geraldo é capataz. Um abraço carinhoso para ti.