À sombra do amor A vista da baía da Guanabara ao crepúsculo, enquanto as luzes iam se acendendo lá embaixo, tornava a escalada do morro mais amena para Murilo, que àquela hora voltava do serviço, num verão implacável. Era a estação do ano que ele mais detestava. Não pela estação em si, mas pelo calor insuportável que é a marca registrada do Rio de Janeiro, e que ele tanto execrava. As vielas estreitas e de traçado sinuoso da favela, onde se ouviam as mazelas do cotidiano de um povaréu sem eira nem beira, misturado ao cheiro acatingado que saia dos barracos perfilados ao longo da subida íngreme, sempre o faziam lembrar-se da sua condição humilde. Era como se os seus sonhos ficassem lá embaixo, no meio das infinitas possibilidades da cidade maravilhosa, e o que escalava o morro junto com ele, eram os pesadelos de uma vida difícil e tumultuada. Outro motivo, pelo qual o verão lhe desagradava tanto, era o fato de não ter aulas na faculdade, o que o obrigava a voltar para casa mais cedo, e participar daquela vida repugnante da comunidade, muito embora ele quase não enfiasse a cara para fora de casa, a não ser para ir ou voltar do trabalho. Desde que conseguira seu primeiro emprego na atual empresa, aos dezesseis anos, como contínuo interno, suas horas naquele aglomerado subnormal de desfavorecidos sociais, criminosos, ociosos e cafajestes, oriundos dos mais diversos rincões do país, havia diminuído bastante, o que se intensificou com a entrada na faculdade há cerca de um ano atrás. Mas, ainda não eram suficientes para que ele conseguisse sentir-se bem consigo mesmo naquele lugar. Talvez por que as reminiscências de sua infância estivessem atreladas àquele morro e àqueles barracos. Ao abrir a porta de casa e mergulhar na penumbra do ambiente, só conseguiu identificar o som da televisão ligada no quarto contíguo. A irmã caçula estava estirada sobre a cama assistindo a primeira novela. Ele apontou a cabeça pela fresta da porta, ela o identificou, e ele se dirigiu até a escada que dava acesso aos cômodos no andar de cima. Não trocaram uma única palavra. Ele atirou a mochila sobre a cama e se despiu enquanto caminhava até o banheiro. Abriu o registro e deixou que a ducha fraca, com sua água fria, amenizasse a queimação que lhe açoitava a pele muito alva e lisa. Depois do banho vestiu um short e uma camiseta e voltou para baixo até a cozinha, onde vasculhou a geladeira a procura de algo para comer. Havia pouco o que procurar. Duas ou três vasilhas, com alguns restos de refeições anteriores, eram quase tudo o que havia na geladeira. Despejou num copo os últimos goles de água gelada e voltou a encher a garrafa no filtro, antes de devolvê-la a prateleira. Em seguida, começou a preparar o jantar antes que a mãe voltasse do trabalho. - Solange! – chamou em vão, tentando obter a atenção da irmã. – Solange! A mamãe não te mandou fazer alguma comida? O que você ficou fazendo o dia todo que não preparou nada? – gritou em direção ao quarto onde a irmã assistia à televisão. Não obteve resposta. - Solange! Você ouviu o que eu disse? – repetiu, mais encolerizado. - Hein? O que é? – retorquiu a adolescente, totalmente alheia ao que se passava a sua volta. - Você passou outra vez o dia todo sem fazer nada, custava preparar o jantar? Você sabe que a mãe chega tarde e cansada, para daí começar a cozinhar. A que horas a gente não vai jantar? – vociferava, sabendo que estava desperdiçando seu verbo. Novamente não obteve sequer um resmungo de contestação. - O que está fazendo? – perguntou a mãe, assim que entrou em casa cerca de quarenta minutos depois, e o viu cercado de louças pela pia e panelas fumegando sobre o fogão. - Estou terminando o jantar. Fiz um macarrão com molho à bolonhesa e uma salada. – respondeu, sem se desviar do que estava fazendo. - Eu mandei a Solange preparar o jantar. Onde ela está? – retorquiu a mãe, deixando a bolsa e uma sacola sobre uma das cadeiras que circundavam a mesa de refeições. - Está no quarto vendo TV. Já falei com ela e não adiantou. – devolveu indiferente. - Solange, sua puta! Eu não mandei você fazer comida para seus irmãos? Levanta daí sua cadela preguiçosa, vai tirar aquela louça da pia e colocar a mesa para a gente poder jantar. – berrou a mãe, invadindo o quarto e desligando a televisão. – Eu não sei mais o que fazer com você. Qualquer dia destes dou um chute nessa sua bunda e te boto para fora de casa. Vai, se mexe cadela vadia. – xingava descontrolada, depois do exaustivo dia de trabalho. A filha a encarou com ar debochado e, lentamente, pôs-se a fazer o que mãe determinara. Aquelas três almas pareciam autômatos em seus afazeres, mal se falavam, e quando o faziam, eram apenas grunhidos ininteligíveis. Os dois filhos mais velhos vieram pouco depois, falantes e ligeiramente mais agitados pelo efeito das cervejas que haviam ingerido há pouco com os comparsas num boteco da favela. Sentaram-se no sofá que estava num canto do cômodo, sob a janela que descortinava os barracos morro abaixo, e de onde vinha uma benfazeja brisa que soprava do mar com seu cheiro característico. Alheios ao que se passava na casa continuavam a discutir o resultado do futebol do final de semana, onde o time deles perdera sua invencibilidade no campeonato. Esperavam pela refeição enquanto, de tempos em tempos, enfiavam a mão pelo cós das bermudas e buliam seus cacetes sem nenhum pudor. - Está quase tudo pronto. Alguém sabe quando o Geraldo vai chegar? – perguntou Murilo. - Ele me disse que o patrão pediu para ele fazer serão as quintas e sextas; você sabe como seu irmão é, aquele lá, por uns tostões, não consegue dizer não. – respondeu a mãe, que terminava de temperar a salada. - Ainda bem que ele é assim, não é? É o que ajuda a colocar comida na mesa. – revidou Murilo, em tom de censura. - Lá vem o fresquinho defendendo o irmãozinho. Até parece que são só vocês dois que colocam alguma coisa dentro de casa. – disse Adilson, o mais velho, contestando a afirmação de Murilo. - Pelo menos de maneira honesta é o que acontece sim. – retrucou Murilo. Referindo-se ao fato dos irmãos mais velhos não terem uma ocupação formal, e aparecerem com objetos caros, como eletrodomésticos, notebooks, celulares, e outra infinidade de coisas muito além dos minguados que recebiam fazendo bicos esporádicos e, de cuja origem, ninguém os questionava. - Vê se não fala besteira, seu merda. Senão eu dou um jeito de você não abrir mais a sua boca. – revidou Adilson. - Calem a boca! Não quero discussão na hora da comida. – bradou a mãe, intervindo na discussão. – Termina logo esse suco Solange. Oh, lerdeza de menina! – vociferou, ao tomar acento ao redor da mesa. Murilo engoliu a refeição o mais rápido que pode, lavou seu prato e talheres, enfurnando-se em seguida no quarto no andar de cima, que dividia com o irmão Geraldo. Fora assim desde a sua mais tenra infância, desde onde sua memória passada conseguia alcançar, um sentimento de solidão naquela família sem vínculos. A mãe, dona Francisca, fora uma jovem migrante alagoana que deixara Inhapi no alto sertão de Alagoas, para primeiro se instalar com a irmã e o cunhado na periferia de São Paulo. Conseguira um emprego como doméstica numa casa de família. Os patrões se mudaram para o Rio de Janeiro e a levaram na mudança. Foi nessa época que conheceu seu primeiro homem. Contava então dezenove anos, era extrovertida e identificou-se com o carnaval, maior acontecimento da nova cidade. Nove meses depois dava a luz ao primogênito, Adilson, sozinha numa maternidade pública, e custeada bondosamente pelos patrões nos meses que seguiram ao parto. Foi despedida quando deixava a criança sozinha no berço e voltava de madrugada, sempre acompanhada de um novo caso. Sensibilizados com a sua situação, os patrões lhe deram uma quantia a título de indenização, com a qual adquiriu um pedaço de chão numa encosta não regulamentada na zona norte do Rio de Janeiro onde atualmente se situa o bairro da Maré. Com os parcos recursos ergueu dois cômodos e se instalou com o filho, seu segundo homem, um mulato canastrão, e um ventre grávido, naquele morro que se ia ocupando desordenadamente. Parira o filho, Carlos, num domingo de Páscoa chuvoso, ali mesmo, amparada por duas vizinhas e uma velha que se intitulava parteira, pois o companheiro, pedreiro sem ocupação definida, mal conseguia colocar o pão na mesa. Ela, desde que a barriga pontiaguda tomara dimensões que a impediam de realizar suas tarefas como faxineira, não conseguira mais ajudar no orçamento doméstico. Passou os três anos seguintes discutindo com aquele sujeito, que ao perceber que a mulher voltara a fazer suas faxinas, resolvera acalentar seu infortúnio cercado de desocupados nos bares próximos ao traçado da linha vermelha que à época estava em construção. Depois de ter levado uma surra do macho embriagado, e tê-lo denunciado na delegacia, nunca mais soube de seu paradeiro. Deixava as crianças aos cuidados de uma adolescente, filha da vizinha e comadre, a quem dava uns parcos tostões no final de cada semana, e uns extras, quando fazia algum programa noturno, como perfumes e roupas usadas, com os quais as patroas a presenteavam. Foi a caridade de uma patroa da zona sul, que se sensibilizou com o fato dela estar com o pai doente, e sem ver a família no alto sertão alagoano, que possibilitou uma visita a sua terra natal. Fechou o barraco, deixou os filhos aos cuidados da irmã em São Paulo e embarcou ao rincão de origem. Passou quase um ano supostamente dando guarida às necessidades dos pais envelhecidos. Quando a pressão para desafogar os escassos rendimentos da irmã e do cunhado se tornaram mais contundentes, ela retornou trazendo o terceiro macho a tiracolo, e resgatou os filhos em São Paulo. O sujeito, homem simples e trabalhador, logo conseguiu um emprego numa oficina mecânica, e enquanto preenchia o ventre da mulher com mais um filho, Geraldo, em homenagem a seu pai, acrescentava mais alguns cômodos ao barraco, que ia ganhando prestígio entre os ocupantes do morro, cada dia mais repleto, pelo fato de ter se tornado o ponto de peregrinação daqueles que precisavam de uma xícara de açúcar, um par de ovos, um tanto de feijão, que ficara faltando de última hora. Pela primeira vez Francisca experimentava um período menos sombrio em sua vida. O trabalho dela e do parceiro permitia dar o essencial às crianças, manda-los à escola e aproveitar algum sábado de sol nas praias da zona sul. Foi em meio a essa calmaria que o Murilo nasceu, e reinou como caçula por cinco anos seguidos. Sua afinidade com o irmão Geraldo, três anos mais velho, começou no berço, talvez por se identificarem na figura paterna, que os tratava com mais carinho que aos meio-irmãos. Mas aquela falta de entusiasmo do companheiro em frequentar as rodas de pagode, os churrascos de laje, as quadras das escolas de samba, e se contentar com algumas idas aos jogos de futebol, e à praia com as crianças a mortificava. A cena ainda estava viva na memória infantil do Murilo, quando eles regressavam da praia de Copacabana naquele sábado descontraído e feliz de novembro, o sol ainda banhava a silhueta dos prédios ao longo da orla quando eles chegaram em casa. A porta da frente estava trancada, e foi preciso que o pai o colocasse no chão, para poder tirar as chaves do bolso da bermuda. Ele e os irmãos vinham quase calados, coisa rara de acontecer naquelas circunstâncias, mas que o sorvete que ia se derretendo em suas mãos e ocupando suas bocas, conseguira realizar. Dos cômodos que o pai acrescentara a laje do barraco vinha uma espécie de ganido estridente, misturado a uma risadinha entrecortada por gemidos prudentes. Enquanto os garotos se espalhavam pela sala, o pai subiu as escadas e, segundos depois, despencava de lá de cima um negrinho escaveirado, segurando uns trapos nas mãos com a benga longa e fina balançando entre o espesso tufo de pentelhos. Sem entenderem o que estava acontecendo, as crianças se entreolharam atônitas, tentando compreender a presença daquela figura esquálida nos aposentos mais reservados da casa. - Cadela vadia! – soaram na voz grave do pai as palavras que chamaram a atenção dos vizinhos, seguidas pelo plaft, plaft contínuo da mão pesada que ia esbofeteando a cara da mulher flagrada em pleno coito. As crianças continuavam mudas com o sorvete a derreter e lhes lambuzar as mãos, o olhar petrificado na porta por onde o negro se desabalara completamente nu. Quando o silêncio no andar de cima já os começava a inquietar, o mecânico desceu as escadas, o cabelo amarfanhado e o rosto vermelho possuído pelo ódio. Murilo correu em direção as pernas do pai e se agarrou nelas, seguido pelo irmão Geraldo. Novo demais para compreender a extensão do que estava acontecendo, seu coração pressentia o desfecho trágico daqueles acontecimentos. O pai o apertou contra o peito com tanta força que ficava difícil respirar, deu-lhe um beijo na testa e desalinhou seus cabelos. Ele não sabia bem porque, mas começou a chorar. E entre as lágrimas que lhe embaçavam a visão, viu as costas do pai, donde pendia uma mochila recheada, passando pelo umbral da porta, e esta foi a última vez que o viu. Francisca só desceu um bom par de horas depois, de cara sem culpa, mas inchada pelos bofetões que a mão pesada do mecânico tinha desferido. Os mais velhos logo compreenderam toda a situação, enquanto Murilo, em sua candura infantil, continuava tentando desvendar o que aqueles últimos acontecimentos significavam. As consequências daquele desatino se fizeram sentir nos meses subsequentes. Francisca agora saia todos os dias, inclusive domingos e feriados. Além do serviço de doméstica, ela encarava uma jornada madrugada adentro, atrás do balcão de uma lanchonete em Botafogo, para dar conta das despesas. A comadre já não permitia que a filha cuidasse das crianças, receosa de que a virtude da filha, que ela julgava impoluta, mas desde há muito perdida nas vielas sombrias da favela, fosse abalada pela libertinagem da vizinha. Por isso, em sua ausência, era Adilson quem se via responsável pelos irmãos, e nesse papel ele se mostrou um verdugo genioso, descarregando especialmente sobre o caçula, as atrocidades com as quais aquele mundo o apadroava. No mesmo ano em que Murilo começou a frequentar o ensino fundamental, a mãe começou a trazer, com uma frequência crescente, um mulato parrudo que vivia circulando pelos becos da favela, e que tinha o poder de desaparecer por alguns dias assim que a polícia resolvia dar uma incerta no morro. Das visitas que aconteciam à luz do dia, com o pretexto de fazer uma roda de samba, degustando os quitutes de Francisca na companhia de amigos e umas cervejas, ele passou a fazer alguns pernoites, até estes se tornarem rotina, e ele se instalar definitivamente no quarto da amante. Enquanto Murilo tentava conciliar o sono sob aquele teto abrasador no confinamento do quarto que agora partilhava com todos os irmãos, chegavam-lhe aos ouvidos os gemidos e os bramidos da devassidão desmoralizante da mãe e do amancebado. Logo após o carnaval do ano seguinte, na vigência de uma licença médica da empresa onde passara a exercer os serviços de copeira, Francisca começou a sentir as primeiras contrações de uma gestação terminal. O parceiro precisou fazer uma daquelas suas habituais ausências estratégicas, e não estava por perto naquela noite chuvosa quando a mãe berrou para que Geraldo fosse chamar a tal dona Alzira que a acudira no parto do Carlos. O garoto voltou meia hora depois, encharcado e sem fôlego, com a notícia de que a velha havia ido visitar uma filha para os lados de Rezende. - Então vá chamar o ‘seu’ Sebastião, e veja se ele pode me levar até o hospital naquela lata-velha. – disparou, se contorcendo nas contrações. – Vai logo seu merda, não vê que eu estou me acabando em dores? – lançou furiosa. Enquanto o solícito velho tentava ajudar Francisca a se acomodar no banco de trás do carro, cercados por um punhado de crianças e vizinhas curiosas, ela sentiu mais uma contração rasgando suas entranhas, e pela vagina laceada e tão flácida quanto macarrão que cozinhou demais, começou a sair a cabeça encarapinhada de uma menina tão mulata quanto o pai. Todo o conteúdo daquele ventre empanzinado foi expulso numa única contração, que ia escorrendo pelas coxas abertas até o soalho do carro, antes que pudesse ser amparado pelas mãos providenciais de uma vizinha condoída. - Essa já está me dando trabalho desde cedo. – disse Francisca, com a respiração entrecortada. O tumulto despertara a atenção de uma viatura policial que passava pela entrada da favela. Os policias levaram Francisca e a recém-parida Solange até o pronto-socorro mais próximo, onde ocorreu a expulsão da placenta. Durante o atendimento o jovem médico questionou Francisca sobre a possibilidade de uma ligadura, uma vez que ela já era mãe de cinco filhos. - Nem pensar doutor! Está certo que agora eu tenho meu homem e acabo de lhe dar uma criança, mas vai saber, se eu um dia precisar de outro homem, ele não vai querer saber de mim se eu não puder lhe dar um filho. – sentenciou decidida. Geraldo e Murilo eram os únicos a frequentarem a escola com regularidade. Não só gostavam de aprender, como também se mostravam dedicados e felizes pelas horas de trégua que aquele ambiente lhes proporcionava longe do cotidiano do morro. Os dois mais velhos passaram a andar por mais tempo na companhia do novo padrasto, e só esporadicamente frequentavam as aulas. Essa afinidade com o padrasto se mostrava providencial para o crescente interesse que Adilson vinha demonstrando com o corpo adolescente do Murilo. A pré-puberdade do irmão estava atiçando os hormônios que ferviam sob seus músculos. As coxas de uma alvura virginal, e o avolumar constante das nádegas que mal se camuflavam sob o short tornavam-no mais destemido e ousado. O padrasto também dirigia um olhar de cobiça para aquelas ancas e não impedia que Adilson tomasse certas liberdades com aquele menino assustado. Quando o instinto viril acossava seus desejos, Adilson esfregava a pica naqueles glúteos roliços, enquanto impedia que o irmão se desvencilhasse de sua gana. Enquanto os protestos eloquentes de Murilo ganhavam força, ele se divertia com a vulnerabilidade daquele corpo sedutor. A promiscuidade daquele quarto apertado que os irmãos dividiam era frequentemente o território onde Adilson dava vazão a sua tara. Encoxava Murilo durante o sono e tentava fazer seu cacete se alojar naquela carne quente. Nessas horas, apenas Geraldo se lançava em socorro do irmão e, destemido, enfrentava o mais velho com todo seu furor. Era assim que Murilo continuava ileso, apesar da indiferença da mãe, que se fazia de surda diante de suas reclamações contra o irmão, e da transigência complacente do padrasto. No entanto, num domingo em que se encontrava sozinho com Adilson e o padrasto, não conseguiu se libertar da investida do meio-irmão, que o possuiu num arremedo libertino. Embora tivesse esperneado para todos os lados, a jeba gulosa do Adilson conseguiu invadir seu cuzinho e, aos gritos, sentiu suas pregas sendo dilaceradas pelo membro potente do irmão. Exausto, e quase sem fôlego sentiu suas entranhas se enchendo da umidade máscula do Adilson, antes dele retirar de seu cuzinho em brasa aquele cacetão que ainda gotejava porra. - Trate de limpar isso tudo, sem deixar vestígios, entendeu? – sentenciou, apontando para a mancha de sangue que havia se formado onde Murilo estava deitado, enquanto este se refazia, entre soluços, do aliciamento sofrido. O que Murilo nem desconfiava, era que aquilo ia se repetir com mais frequência. Pouco depois de completar dezesseis anos, Murilo conseguira um emprego de contínuo, pelo programa Jovem Aprendiz, numa empresa da zona sul. Seguia para lá todos os dias após as aulas, e isso o afastava daquela vida que ele era obrigado a tolerar por força das circunstâncias. Em pouco tempo o dono da empresa percebeu o interesse do jovem e resolveu efetivá-lo, mesmo depois que o tempo do programa terminou. Deu-lhe uma oportunidade no setor de recursos humanos da empresa e viu, satisfeito, seu pupilo desempenhando cada vez melhor os desafios que lhe eram designados. Foi assim que Murilo chegara ao atual cargo que, desde o início do ano, se somava às aulas noturnas na faculdade de engenharia. O patrão financiava parte dos custos, feliz por ver o progresso contínuo daquele jovem determinado. Assim que Murilo entrou na empresa, afinidades e uma aura de mistério fizeram com que se formasse uma amizade com Roberto, o engenheiro de produção que, apesar da pouca idade, comandava a linha de manufatura dos produtos da empresa. Roberto tem a mesma idade do Carlos, vinte e nove anos, é um jovem de classe média, nascido e criado nas arborizadas ruas do Grajaú. O pai, pequeno comerciante, e a mãe, diretora de escola, deram uma boa educação aos três filhos, bem como um lar estruturado e acolhedor. Desde seu ingresso na faculdade, Murilo percebeu que o amigo se mostrava cada vez mais interessado em lhe prestar auxílio na carreira comum que iam partilhar. Assim, os convites para frequentar sua casa não foram nenhuma surpresa para Murilo. Os pais dele, a irmã mais nova e o irmão mais velho, também simpatizaram de imediato com aquele jovem tímido e calado, que carregava um olhar tristonho e curioso naqueles cativantes olhos de um verde intenso. Foi naquela casa que Murilo sentiu, de forma contundente, a importância do apoio de uma família. Entre os risos fraternos durante as refeições compartilhadas, o zelo pelo bem-estar do outro, as alegrias pelas conquistas alcançadas, tudo era celebrado em harmonia. Em pouco tempo Murilo se viu acolhido por aquelas pessoas como jamais fora desde que se entendia por gente. Roberto namorava uma ex-colega de faculdade que, às vezes, começava a se incomodar um pouco com a presença quase constante de Murilo nas atividades que fazia com o namorado. Era um churrasco na casa dos pais dele, um cinema, um final de semana na praia, tudo só parecia fazer sentido ao namorado se o amigo estivesse junto. Embora aquelas reclamações o desconcertassem, Roberto era incapaz de abrir mão do amigo. Nesse convívio, ele começara a sentir tesão cada vez que um sorriso se instalava nos lábios sedutores do amigo, ou quando a sunga se moldava tentadora sobre as nádegas volumosas e, ainda, quando o toque macio daquela pele muito clara e lisa fazia seus pelos se eriçarem num calor confortável. Numa ocasião, por descuido, quase deixou escapar o nome do Murilo, quando sua pica explodiu em golfadas de porra dentro da vagina da namorada, num gozo carnal e prazeroso. Conseguiu refrear as sílabas do nome do amigo, mas não o desejo de sentir aquele mesmo prazer no corpo que o alucinava. Aquelas investidas que Adilson protagonizara durante quase toda a adolescência de Murilo, e que a princípio o repugnavam, foram se diluindo em sua resignação até que ele passou a impedir, por conta própria, a voracidade sexual do irmão. Sua capacidade de reagir se consolidou com o passar dos anos, e ele já não se via mais obrigado a sentir aquela rola consumista verter sua voluptuosidade em seu cuzinho apertado. No entanto, aqueles espasmos que tanto o afligiram no passado, agora se transformavam num desejo incontinente, toda vez que estava próximo do Roberto. Aquele corpo masculamente esculpido e desenvolto, aquele cheiro amadeirado e virtuoso que emanava da pele bronzeada do amigo, e a sensualidade que aqueles pelos distribuídos pelo peito largo exaltava, vinham tumultuando seus pensamentos. E, aos poucos, ele foi se tomando de amores por aquele homem, e seu desejo maior passou a ser o de devotar-lhe todo o carinho que carregava recluso dentro de si. Desse modo começava a se formar o amálgama que os ia unindo na sutileza do cotidiano. Enquanto Murilo deixava a ternura de seu carinho fluir sem receios, Roberto já se sentia irremediavelmente vinculado a essa paixão. Pôs um fim ao relacionamento, que já não fazia mais nenhum sentido, com a namorada, e passou a se empenhar na conquista daquilo que tanto almejava. Ao som retumbante e sob os traços luminosos multicoloridos dos fogos que enchiam a noite de Reveillon na praia de Copacabana, aconteceu o primeiro beijo entre os dois. Um toque sedento de lábios que se desejavam. Sentimentos que fluíam junto com as salivas que se mesclavam numa substância contumaz a unir suas almas, e a instigar a comunhão de seus corpos. Enquanto as primeiras horas do novo ano transcorriam lá fora, Murilo e Roberto exploravam os sedutores contornos de seus corpos. Reclusos no quarto do Roberto os dois se entregavam aos caprichos mais primitivos de sua natureza animal. Saboreavam o desejo lascivo de seus corpos necessitados um do outro. Murilo estremeceu ao ver o caralhão impudico e o sacão viril do Roberto balançarem livres entre aquelas coxas peludas. Libertino e voraz, seu cuzinho se regozijava ante aquela visão, contrapondo-se aos receios com os quais a razão o inibia. Ao passo que Roberto mal se continha diante daquela bunda nua e visceralmente saborosa. Suas mãos deslizavam famintas sobre aquela pele sedosa, apertando voluptuosamente a rigidez daqueles músculos perturbadores. Após outro longo e avassalador beijo, Roberto percorreu o caminho entre o pescoço e os mamilos de Murilo, com sua língua úmida e delituosa. Lambeu, chupou e mordiscou aquelas protuberâncias macias e provocantes. Murilo reagia a sua ofensiva com um gemido, demonstrando a satisfação que sentia com isso. Entregava-se passiva e complacentemente a seu desejo, seu olhar parecia lhe prometer uma recompensa por sua investida, e ele foi à procura desse prêmio com toda sua sofreguidão de macho. Quando o sabor dos beijos do Murilo não conseguiram mais conter seu tesão, Roberto começou a roçar sua estrovenga úmida no rosto suave do Murilo. Teve que se esforçar para não experimentar o gozo instantâneo ao sentir os lábios mornos e delicados do Murilo lhe envolvendo a pica com sutileza e muita determinação. Murilo começou a chupar aquele cacetão suculento, teso de energia e cheirando a macho. Saboreou sem culpa aquela aguinha máscula que minava da pica indócil do Roberto, e percorreu com a língua, ávida por prazer, cada centímetro daquela rola calibrosa, reta e coberta de veias dilatadas. Roberto se contorcia de tanto tesão, e mergulhou a jeba na garganta de Murilo quando sentiu que seria incapaz de controlar o gozo que explodiu em jatos cremosos na boca carinhosa do amigo. Murilo ia engolindo a porra espessa e cheirosa que enchia sua boca, enquanto subia seu olhar apaixonado em direção ao de Roberto. Desde então, a troca de olhares entre eles passou a ser carregada de significado, e era através deles que toda a cumplicidade daquele amor se manifestava. - Quero acordar ao seu lado todos os dias. – disse Roberto, quando o alvorecer daquele primeiro dia do ano, estendia o sol preguiçoso e de ressaca sobre a cama onde haviam se amado a madrugada toda. - Eu te amo muito, sabia? E acho que não sei mais viver sem esses braços me envolvendo quando acordo. – retrucou Murilo, enquanto sentia o caralhão do Roberto deslizando lentamente para fora de seu cuzinho ferido. Não apenas o amor entre ambos se consolidara, mas também a necessidade de começarem uma vida juntos. A oportunidade apareceu pouco tempo depois. Roberto fora deixar um casal amigo dos pais em casa, para os lados da Urca, quando se deparou com uma placa de VENDE-SE no canteiro defronte de um pequeno edifício numa travessa da avenida Pasteur. Estacionou e foi se informar com o porteiro. Saiu de lá, depois de ter visto o apartamento, cheio de planos e tramando mentalmente toda a estratégia para que aquele imóvel se transformasse no canto em que viveria plenamente seu amor com Murilo. Depois de expor suas intenções aos pais, que o ajudaram na aquisição do apartamento, tentou guardar segredo enquanto promovia uma pequena reforma para deixar tudo mais moderninho e com cara de coisa nova. - Estou desconfiado desse seu jeito esquisito. – disse Murilo, quando Roberto já não encontrava mais desculpas convincentes para explicar seus sumiços e compromissos fora da rotina. - Bobagem sua. Está cismado à toa. – respondia, às desconfianças do amigo. - Eu te conheço um bocado para saber que anda aprontando. Você anda muito misterioso, com cara mais safada do que de costume, e cheio de segredinhos. – revidou Murilo. – Até parece que tenho concorrência! – exclamou certo dia, fazendo troça de mais uma desculpa esfarrapada que não engolira. - Bobão! Você botou fogo nesse macho e não vai se livrar de mim tão fácil assim. Agora vai ter que dar conta de aplacar todo esse tesão que sinto por você. – respondeu, agarrando a bunda do Murilo enquanto lhe enfiava a língua sacana na boca, quando o deixou na porta da faculdade após o trabalho. No feriado do dia do trabalho, que também coincidia com o aniversário do Murilo, Roberto levou-o até o apartamento recém-reformado, e abriu o jogo. Depois de assistir, consternado, às lágrimas vertendo pelo rosto do Murilo com a novidade, enxugá-las com o dorso dos dedos num gesto cheio de ternura e amor, deixou-se abraçar e saboreou, lentamente, cada beijo amoroso que Murilo lhe dava. Amaram-se sobre o assoalho de madeira da sala, embalados pela luz da tarde que se despedia em tons que iam de um amarelo pálido ao vermelho acastanhado. Pelas janelas abertas se infiltrava o burburinho da rua, o canto dos passarinhos que iam se empoleirar na copa das árvores em frente ao edifício, e a brisa marina daquele entardecer de primavera. Roberto roçava de leve as nádegas de Murilo, que descansava sua cabeça no peito do amante, e brincava com seus dedos longos e finos entre os pelos grossos e negros dele. - Agora temos que mobiliar tudo. Quero que você deixe esse cantinho com a sua cara. E pela próxima década temos um financiamento a quitar. – disse Roberto. Sua voz espelhava a felicidade que estava sentindo. E, a perspectiva de um futuro comum com Murilo lhe pareceu a melhor fase de sua vida. - Vamos tirar isso de letra. O mais importante é que eu tenho você ao meu lado. Quero que você se sinta o homem mais realizado do mundo, e vou encarar qualquer desafio com você para que isso aconteça. – respondeu Murilo. Ciente de que aquele amor, e aquele homem, agora seu macho, era o responsável pela maior guinada que sua vida mortiça experimentava. No dia em que empacotava suas coisas para se mudar da favela, um corre-corre de marginais agitava as vielas que o sol ia esquentando e tornando mais fedorentas. O reboliço agitou cada tugúrio assim que a notícia de que a polícia estava tomando o morro circulou. Embaixo de cada um daqueles telhados havia o que camuflar, fazer desaparecer ou simplesmente se desvencilhar. O padrasto e o Carlos saíram assim que a notícia ganhou força. Engendraram-se pelos labirintos e juntaram-se aos comparsas que corriam pelas vielas como ratos espantados por um gato. A emboscada seguida da morte de dois policiais que patrulhavam as imediações do morro, dois dias antes, foi o motivo da deflagração da ação policial, que vinha num grande contingente e fortemente armada. Pouco depois os tiros começaram a espocar em todas as direções. Mulheres e crianças gritavam, marginais se comunicavam por sinais e apitos, o morro fervilhava como uma caçarola sob o lume do fogão. A balburdia durou pouco mais de três horas. Quando os policiais começaram a descer traziam traficantes, foragidos de penitenciárias, caçados pela justiça algemados e fazendo cara de vítima. Depois foram sendo trazidos corpos em grandes sacos de plástico preto. Foram seis no total. Atrás vinha um bando de mulheres e seus amancebados, crianças e viúvas dos delinquentes, bradando contra os policiais, revoltando-se contra aquilo que eles achavam que podiam perpetrar sem consequências. Uma mulata de cabelo alisado na chapinha, com as gorduras querendo saltar do shortinho que mal continha seus quadris enormes, e uma peça mais ínfima que a inferior a lhe cobrir parcialmente as tetas disformes, irrompeu porta adentro aos berros. Quem a atendeu foi Solange, que nem se dispusera a acompanhar a ação policial de tão acostumada que estava com aquelas incursões. - Solange, cadê a sua mãe? Avisa ela que a policia prendeu o homem dela e que mataram o Carlos. Ele estava lá no alto do morro disparando com um fuzil contra os policiais. – a mulata nem conseguia despejar sua ladainha de tão ofegante que estava. Antes que a menina pudesse responder, o grito da mãe que acabara de entrar em casa, fez com que a mulata desse um salto de susto pelo que vinha em suas costas. - Aqueles filhos da puta mataram meu filho! É isso que você está dizendo? – berrou Francisca, alucinada. - É. Acertaram seu homem e depois o algemaram. Mas o rapaz continuou atirando em quem subia e deram cabo dele. – sentenciou a mulata. Murilo ouvia as vozes alteradas lá embaixo, mas não interrompeu o que estava fazendo. Aquilo tornava mais urgente e necessária a sua saída daquele antro. Como fizera seu irmão Geraldo, meses antes, ao aceitar a transferência que a empresa onde trabalhava lhe ofereceu. A ida do irmão para o interior de São Paulo, fora o último golpe a que estava disposto suportar. Quando desceu o morro com as mochilas nas costas, pouco restava da ação policial. Um último rabecão deixava a entrada da favela, enquanto diversos carros de jornais, rádios e emissoras de televisão, transmitiam ao vivo os acontecimentos. Sua mãe estava cercada de microfones e gravadores enquanto dava sua versão dos fatos para um telejornal, mesmo não os tendo acompanhado. - Meu filho era um jovem trabalhador, um menino muito bom, que gostava de todo mundo. Nunca fez nada de ilícito, era trabalhador. Vêm esses policiais e saem dando tiro em todo mundo, matando inocentes. Eu perdi meu filho e agora só quero justiça. – declamava, esforçando-se para que algumas lágrimas dessem credibilidade às suas palavras, tal como ela vira muitas outras fazerem depois que seus parentes marginais levaram a pior. Era essa a encenação que fazia com que a mídia acompanhasse, com interesse, o drama daquela gente. E agora, era ela que podia protagonizar uma história que seria repetida exaustivas vezes em diversos telejornais. Indignado, Murilo desistiu de se despedir dela. Sabia que tudo aquilo era mentira, mas que era assim que aquela gente reagia. Havia de se encontrar uma maneira de dar culpa à polícia. Era ela quem deveria assumir o papel de vilã, ao invés dos marginais que viviam na comunidade. A sociedade que comprasse aquilo como verdade, mesmo que depois sentisse na carne os efeitos das atrocidades que aquela gente era capaz de cometer, sob a evasiva da pobreza. Dois meses depois Francisca o procurou no trabalho. Sabia do relacionamento do filho com o colega de trabalho, e mantivera-se neutra, enquanto os irmãos e o padrasto tripudiavam sobre aquele amor verdadeiro. Estrategicamente essa postura poderia lhe ser útil no futuro, e foi possuída desse sentimento que procurou por Murilo. - Desde que os meganhas mataram seu irmão e prenderam seu pai a situação lá em casa ficou péssima. Estou só com três dias de faxina e isso quase não dá para nada. – disse, procurando não encarar o olhar atento e desconfiado de Murilo. - O que você fez com a grana que eu te dei todos os meses? – inquiriu - Tive que comprar umas roupas para a Solange, e o Adilson perdeu o celular dele, além de outras despesas. – ruminou, tentando comovê-lo. - Eu te entreguei metade do meu salário desde que comecei a trabalhar aos dezesseis anos. O Adilson e o Carlos nunca trabalharam, quando não pegavam um bico, saiam assaltando e sabe-se lá o que mais. A Solange não vai à escola, vive de agarramento pelos becos da favela, não ajuda nada em casa, o que você está querendo? Que eu continue a bancar, como o Geraldo e eu sempre fazíamos, a vagabundice dos outros? – exasperou-se - O Adilson e sua irmã até procuraram emprego, mas está difícil, você sabe! – retrucou a mãe. - Eu até imagino com que empenho esses dois procuraram emprego. E nem pense que eu vou sustentar aquele desgraçado que me fodia a noite toda na cama, enquanto você se fazia de surda e cega. – desabafou, enquanto seus olhos se inundavam com as lágrimas que não conseguia conter. - Eu sei que errei, deixando o Adilson se aproveitar de você, mas isso já passou. – argumentou, indiferente ao sofrimento que ainda abalava o rosto do filho. - Isso nunca vai passar. Cada uma daquelas estocadas que eu senti no meu cuzinho está marcada aqui dentro, e eu vou carregá-las pelo resto da vida. – falou com a voz embargada. – Você não me procurou para saber como eu estou, nem para me felicitar por ter encontrado alguém que me ama e que me protege. O que te motivou a me vir ver foi tentar conseguir tirar algum proveito de mim, e isso eu não vou permitir mais. – acrescentou com firmeza. Desde então Murilo não teve mais notícias dela. Convidara-a em outras datas comemorativas, mas ela não se dignou a aparecer, apesar de confirmar que iria. Nas primeiras vezes isso o mortificou, e com o passar do tempo deu-se conta de que o vínculo se rompera definitivamente, se é que um dia existiu algum. Roberto e a família faziam de tudo para amenizar esse abandono. Cercavam-no de cuidados e carinho, aos quais ele retribuía fartamente com seu jeito meigo e dócil. No entanto, uma sensação incomoda persistia em seu coração, e muitas vezes a rejeição daqueles que o puseram no mundo o inquietava e entristecia. Seu ancoradouro seguro era o amor que sentia por Roberto, e este por ele. Nutria-se dele para enfrentar os desafios, e valia-se dele para encarcerar os fantasmas do passado. Os dois viviam sua paixão sem grandes atropelos. Seus empregos lhes garantiam uma condição de vida de qualidade, tinham tudo o que precisavam, sem exageros; davam-se ao luxo de fazer as viagens com as quais ambos sonharam desde crianças, e levavam uma vida discreta e feliz no apartamento que refletia a felicidade que aquele amor lhes proporcionava. Quando Murilo concluiu o curso de engenharia, a formatura se tornou motivo de comemoração, e os pais de Roberto prepararam uma festa surpresa. O entusiasmo dos dois era tão ou mais eloquente do que o que haviam vivenciado com a formatura do filho. Embora Murilo e Roberto estivessem juntos há algum tempo, a data também serviu para comemorar a união dos dois, e como presente, ambos foram agraciados com uma viagem. Uma espécie de lua-de-mel que, na realidade, já estava mais do que selada. De qualquer forma, era a viagem mais longa e distante que haviam tido, e cujo destino, o Tahiti na Polinésia Francesa, era assunto e desejo que muitas vezes vinha à baila em conversas familiares. Chegaram a Papeete, a capital da ilha, num voo vindo de Los Angeles, depois de uma escala em Lima, no Peru, e cerca de trinta horas depois de saírem de São Paulo. As escalas, com seus embarques e desembarques, o fuso horário, e as intermináveis horas de voo caíram no esquecimento quando chegaram ao bangalô que parecia flutuar sobre o mar de um verde esmeralda translúcido, e deixava ver a areia e os peixes nadando no fundo. Da varanda da ampla suíte dava para ver os tons da água do mar fazendo um degrade do verde citrino ao azul turquesa se perdendo no horizonte, onde um enorme navio se destacava pela alvura de seu porte majestoso. Era uma tarde de ventos mornos, um céu iluminado pelo sol brando que fazia as esparsas nuvens brancas parecerem flocos prateados a flutuar naquela imensidão mansa. Roberto despiu-se tão logo se viram sozinhos no bangalô. Murilo havia se encantado com essa cena, desde a primeira vez que a vira. O namorado tirando a camisa ou camiseta, e aqueles ombros largos, braços musculosos e peito deliciosamente peludo se movendo com agilidade sob a pele bronzeada, o excitavam. Seu tesão se apimentava quando ele ficava só de cueca, ajustada àquelas coxas grossas e peludas, e aquele volume enorme se salientando na virilha. Não foi diferente desta vez, por isso ele o abraçou e deu-lhe um beijo suave no ombro direito, enquanto suas mãos acariciavam aquelas costas vigorosas. - Hummmm! Vejo que todas essas horas de voo não conseguiram te abater. – disse risonho, enquanto se virava para Murilo e o puxava para junto de si. - Nem um pouco! E com toda essa delícia a minha disposição eu só posso me sentir um felizardo. – retrucou, enquanto chupava os lábios que Roberto apertava contra os seus. - Prepare esse cuzinho, porque eu vou te comer todos os dias e a todo o momento! – murmurou Roberto, enquanto apertava a bunda de Murilo com gula e destreza. – Afinal, essa é nossa lua-de-mel, não é? – continuou, excitando-se com a pele sedutora do amado. - É uma viagem para celebrar nossa união, não um cheque em branco para você me devorar sem piedade! – brincou Murilo. - Quando estou com você em meus braços tudo o que eu quero é ter cada milímetro desse corpo tesudo, e nem me fale em ter piedade desse cuzinho que fica me atentando sem parar. – gemeu entre dentes, apertando ainda mais aquelas nádegas carnudas, enquanto a pica endurecia e a cabeçorra ameaçava sair pelo cós da cueca. - Quero sentir você dentro de mim. – entregou-se Murilo, sentindo suas calças descendo pelas coxas roliças e lisas. Segundos depois ambos estavam estirados sobre a larga cama voltada para o terraço e o mar que se perdia no horizonte. O corpo do Roberto cobria quase totalmente o de Murilo, de onde saiam apenas os braços que envolviam o torso avantajado do amado. Aquela pele embaixo dele, cujo cheiro o inebriava e excitava, fazia com que Roberto se esfregasse sedutoramente no parceiro. A respiração de ambos se acelerava enquanto o desejo ia se tornando imperativo. Seus lábios havia tempo estavam unidos, se lambendo, se roçando, se provocando. Roberto puxou as coxas de Murilo pelos joelhos, apartando-as e trazendo-as até quase seus ombros. Aquilo expunha o cuzinho de Murilo a uma vulnerabilidade que ele já não temia, ao contrário, encorajava-o e o deixava mais receptivo ao cacete do amado. Roberto fazia a jeba deslizar dentro do rego aberto e procurava insistentemente a maciez acalentadora das pregas do cuzinho do Murilo. Quando as sentiu se contraírem de tesão, apontou a glande úmida e lubrificada pelo pré-gozo e meteu a pica insaciada naquela carne túrgida. Ouviu o gemido lastimoso e dolorido de Murilo se perdendo no ar. Esse som doce e pungente atiçava seus brios de macho, e ele forçou seu membro todo até o íntimo mais resguardado e profundo de seu companheiro, preenchendo-o completamente. Murilo travou as coxas e os esfíncteres anais ao redor daquela rola, e cheio de paixão, sentia-a pulsando em suas entranhas como um animal enjaulado. Trocaram um demorado olhar de cumplicidade, e desfrutaram silenciosamente o sublime significado daquela conjunção. Quando Roberto começou a bombar aquele cuzinho apertado, instigado pelos gemidos permissivos de Murilo, num vaivém compassado e lento; e acariciava delicadamente o tronco e os mamilos, ia sentindo a entrega irrestrita à sua investida. O sacão pesado dele balançava como um pêndulo de relógio a cada estocada no cuzinho que encapava sua rola, e as bolonas ainda cheias de sumo fértil de macho chacoalhavam dentro do sacão preparando o creme viril que ele estava para ejacular naquele casulo acolhedor. Enquanto Murilo sentia o roçar dos lábios de Roberto em sua nuca e o caminho de beijos sensuais que ele deixava em seu cangote, empinava sua bunda de encontro ao peio faminto que lhe esfolava o cuzinho. Um urro prazeroso e gutural aflorou na garganta de Roberto, ao mesmo tempo em que seu gozo viscoso e morno inundava o cu de Murilo. Enquanto a ardência da mucosa esfolada ia sendo aplacada pela umidade viril de Roberto, Murilo deixava seu gozo fluir num alento para seu tesão refreado. Só então todo o cansaço da exaustiva viagem os atingiu, e adormeceram um nos braços do outro, como o amor os havia aninhado. As duas semanas seguintes transcorreram sem pressa, entre passeios, mergulhos nas águas transparentes e mornas daquele mar azul turquesa, tenros e sutis afagos e carícias, noites de prazer permeadas de sexo e luxúria, que consolidaram ainda mais aquele amor que já não conhecia mais segredos, que resplandecia em cada troca de olhares, que já não precisava de palavras para se fazer compreender e trocar. Um amor que simplesmente existia por que eles existiam, e era tão pleno quanto eram suas convicções de que haviam encontrado a felicidade. Quando regressaram, ambos sabiam que não dependiam de cenários paradisíacos, de motivos ou de influências externas para viverem aquele amor, pois era naquele cotidiano de trabalho e no abrigo das paredes daquele apartamento que comungavam todo o prazer daquele sentimento que lhes dava chão e segurança. A empresa onde trabalhavam passava por um processo de expansão e estava realizando a fusão com uma concorrente no Chile. Roberto havia sido designado para conduzir e administrar essa fusão, o que o obrigou a fazer diversas viagens para o país vizinho com uma frequência cada vez maior. Além dos engenheiros e executivos que ele recebia no Rio de Janeiro, onde estava instalada a sede da empresa, suas idas até a filial quebraram a rotina da vida atribulada que ambos levavam. E, apesar de suas ausências não se estenderem por mais do que alguns dias, eles experimentavam uma saudade vívida, que de alguma forma temperava aquela paixão, e condimentava cada reencontro com sensuais trocas de carícias e sexo. Aquela sexta-feira de setembro começara com uma temperatura agradável, e um sol iluminando a crista das ondas que se esparramavam sobre o oceano com um argenta reluzente. Murilo dedilhava o volante acompanhando os acordes de uma música que vinha despontando cada dia com mais frequência no dial das rádios, mas cujo nome ele ainda desconhecia. Ele acordara irrequieto, dormira poucas horas na noite passada, sentindo a ausência do braço pesado do Roberto a lhe enrodilhar a cintura, que já durava desde o início daquela semana. Enquanto o trânsito avançava lentamente, ele ansiava pela volta do companheiro, e não via a hora de cobri-lo de beijos e afagar seus cabelos no final daquele dia. No telefonema da véspera, Roberto havia dito que embarcava em Santiago por volta das 17:00 horas, o que o faria chegar lá pelas 21:00 horas ao Rio de janeiro, vinha acompanhado de dois engenheiros da filial chilena, e os deixaria no hotel antes de voltar para casa. Embora as demandas no serviço fossem grandes, Murilo não via os ponteiros de seu relógio avançarem na velocidade que ele desejava. Quase no final do expediente conseguira se decidir pelo cardápio do jantar. Esse havia se tornado um de seus hobbies favoritos, cozinhar para o Roberto. Vendo que o amado era um bom garfo, havia se dedicado a aprender e aperfeiçoar a arte de preparar uma bela refeição. E Roberto se regozijava com aquela dedicação saboreando encantado cada surpresa que o companheiro lhe preparava. Murilo chegou em casa por volta das sete da noite, depois de uma breve parada num supermercado onde comprou alguns itens de que precisava, e uma garrafa de um Montepulciano para acompanhar o risoto que pretendia terminar, as vistas do Roberto enleando-o pela cintura e o encoxando, enquanto aspirava a pele de sua nuca, um hábito que cultivava desde que Murilo decidira cozinhar para ele. Desvencilhou-se das roupas e tomou uma ducha, antes de se enfurnar na cozinha. Como contava com um bom tempo antes da chegada do Roberto, deu início aos preparativos do jantar sem pressa. Passava um pouco das dez quando só lhe restavam alguns toques finais que deixaria para quando Roberto já estivesse em casa. Nesse meio tempo ligou a TV, e entre a procura pelos canais, deparou-se com a finalização de uma reportagem que dava conta de um arrastão que se iniciara no início da noite quando o trânsito na linha vermelha estava quase parado. No tumulto, enquanto alguns motoristas tentavam voltar pela contramão, os meliantes vindos das favelas à beira da via, começaram a disparar tiros contra os veículos e a assaltar os ocupantes. A ineficiência da polícia, demorando a chegar ao local, foi providencial para que um teatro de horrores se desenvolvesse ao longo de quase um quilômetro da via expressa. Algumas pessoas foram alvejadas dentro dos carros sem a menor chance de reação, outros foram alvos fáceis ao tentarem sair correndo pelo asfalto e sucumbiram como animais sendo abatidos numa caçada. Com a chegada de militares e policiais o cenário da tragédia já estava delineado, corpos e feridos estavam por todos os lados, enquanto os bandidos já haviam retornado ao abrigo dos barracos nas vielas escuras e nojentas das favelas, analisando e avaliando os objetos fruto do butim. Murilo apanhou seu celular e ligou para Roberto. A ligação caiu na caixa postal. Àquela altura Roberto já devia ter deixado os engenheiros no hotel e estar rumando para casa. Um pensamento nefasto perpassou a mente de Murilo, e ele o afastou com todas as suas forças. Refez a ligação e deixou um recado na caixa postal, suplicando que Roberto desse retorno tanto logo ouvisse a mensagem. Mais meia hora de um silêncio atormentador se passou sem que ele obtivesse uma resposta. Fez pelo menos mais quinze ligações e, nas últimas, seus dedos já erravam as teclas, obnubiladas pelos olhos úmidos. Era quase meia noite quando teve coragem de ligar para os pais de Roberto. - Desculpe ligar a essa hora ‘seu’ Marcos, como estão todos? – disse, adiando educadamente a pergunta que queria fazer. - Olá meu filho. Tudo em ordem, e com vocês? – saudou a voz eloquente do outro lado. - Pois é. É por isso que estou ligando. Por acaso o Roberto entrou em contato com vocês? Ele está retornando do Chile esta noite e até o momento não chegou em casa. – Murilo se esforçava para pronunciar as palavras o mais calmamente possível, embora sua angústia o estivesse martirizando. - Não! Não falei com ele desde quarta-feira quando ele me ligou contando sobre o trabalho. – a voz do pai de Roberto ganhava um timbre preocupado. - O celular dele só dá caixa postal, e ele sempre me liga quando está a caminho, mas até agora não recebi nenhuma ligação. – disse, segurando o choro. – A companhia aérea informou que o voo vindo de Santiago pousou às 20:54, pouco antes do previsto. Houve um arrastão na linha vermelha esta noite, o senhor ouviu a notícia? – perguntou, já soluçando. - Sim, ouvi. Mas não fique preocupado, se algo tivesse acontecido já estaríamos sabendo. – tentou tranquiliza-lo. – A Patrícia e eu estamos indo até aí! – acrescentou, desligando o telefone. Murilo não aguentou ficar esperando e desceu até a entrada do edifício, agarrado ao celular como se este fosse o maior tesouro que possuía. Assim que identificou a Tucson do pai do Roberto estacionando na calçada oposta ao edifício, correu em seu percalço. No mesmo instante, uma viatura da polícia estacionava em frente à entrada da garagem do prédio. Murilo conseguiu ouvir a voz do policial que apertara o botão do interfone, perguntando pelo apartamento do senhor Roberto Almeida Fernandes, e sentiu o chão desaparecer sob seus pés. Antes de o porteiro responder, Murilo segurava o braço do policial com tanta força que chegou a imprimir um vergão sob cada um de seus dedos. - Onde está o Roberto? – perguntou desesperado. - Quem é o senhor? – retrucou o policial desvencilhando-se daquelas mãos que o apertavam. - Meu nome é Murilo. Sou o comp ..., sou amigo do Roberto, e estes são os pais dele. Onde está o Roberto? – suplicou - Houve um incidente na linha vermelha, o taxi onde o senhor Roberto estava foi abordado por marginais, e eu preciso que um familiar nos acompanhe. – disse o policial. As palavras dele iam perdendo nitidez no meio de um zumbido que começou a tinir nos ouvidos de Murilo. - O que aconteceu com meu filho? – perguntou a mãe de Roberto, tomada de um pressentimento instintivo. - Ele foi baleado na cabeça, e já estava morto quando a polícia chegou ao local. – disse o policial, mantendo um tom respeitoso e funesto, mas mesmo assim destituído de qualquer sentimento, como se dar uma notícia dessas fizesse parte da rotina de seu ofício. Enquanto a mãe de Roberto era amparada pelos braços do marido, Murilo sentiu como se estivesse caindo num abismo onde não podia vislumbrar o fundo. Uma dor aguda parecia rasgar seu peito, e ele não conseguia inspirar o ar que lhe permitisse respirar. Apoiou-se no gradil do edifício quando sentiu que aquele abismo o estava engolindo. Por uns instantes não distinguiu aqueles vultos que o cercavam. - O que foi que aconteceu? – repetiu, com o olhar fixo no nada e completamente abobalhado. - Senhor. É melhor o senhor se sentar um pouco, venha até a viatura. – Murilo não entendeu uma palavra sequer, apenas deixou-se conduzir até o banco da viatura, como se fosse um boneco de pano. A longa madrugada foi passada no necrotério com o pai e o irmão do Roberto, depois seguiram-se os trâmites legais para a liberação do corpo e as providências para o sepultamento. Murilo não conseguia concatenar aquilo que se passava em sua mente com o corpo no qual estava, pareciam entidades diferentes, entidades que não se conheciam. Nunca uma dor tão profunda e avassaladora o atingira com tamanha força. Ele se esgueirava pelo salão onde o corpo inerte de seu amor jazia com o rosto plácido e sereno, sem coragem de se aproximar e contemplar a morte cara-a-cara. Apenas poucos minutos antes de fecharem o esquife, quando apenas poucos familiares circundavam, num silêncio consternado, aquele homem até ontem cheio de sonhos, de um futuro promissor, de uma verdade tão sincera e de uma paixão tão intensa, que ele se achegou e tocou o rosto lívido e frio do companheiro, deu- lhe um beijo suave, transbordando amor pelas lágrimas que rolavam por sua face. Ninguém de sua família o confortou no mês que se seguiu. O único que lhe deu algum alento foi o irmão Geraldo que, embora impossibilitado de estar ao seu lado, foi capaz de lhe trazer alguma serenidade com suas palavras. Murilo retomara sua rotina, mas não era mais o mesmo. Tudo lhe pesava, cada dia na empresa virara um martírio, cada retorno ao apartamento nos finais de tarde trazia-lhe a lembrança do Roberto. Num domingo, olhando o mar pela janela da sala, ele decidiu que chegara a hora de escapar dessa desesperança que o rondava depois de sua paixão lhe ter sido arrancada tão brutalmente. Da única pessoa que realmente se embrenhara em seu coração mutilado, e que se instalara ali para todo o sempre. Era preciso mudar de cenário. Aquela beleza apregoada mundo afora só estava na vista míope dos turistas, cuja experiência com a cidade maravilhosa não passava de imagens coloridas dos panfletos das agências de turismo, ou de efêmeros dias se espreguiçando na orla destinada a impressionar os menos avisados. Mas quem, como ele e muitos outros, vivia ali sabiam, a cidade tinha nos morros e alagadiços a sua verdadeira identidade. Pois era lá que vivia uma população de milhares de segregados da sociedade, chafurdando nos becos das palafitas, ou escalando as vielas fétidas dos morros coalhados de favelas, abrigo e refúgio de marginais e criminosos. Essa população toda se abrigava naquelas encostas encarapinhadas de malocas como aves de rapina a espreitar pelos incautos que passavam lá embaixo, quando então as presas eram atacadas num golpe rápido e certeiro, assistindo, perplexas, seus bens sendo levados para aquele poleiro de celerados. Murilo precisava encontrar forças para sobreviver, e nesse antro, isso seria impossível. Decidira partir. Algumas semanas depois tinha tudo arranjado. Solicitara sua transferência para a filial chilena. Tinha um novo destino. Não sabia se permanente, mas era ao menos um caminho. A família do Roberto recebeu a notícia com pesar. - É como perder meu filho pela segunda vez. – disse a mãe dele, que naquele dia pareceu a Murilo ter envelhecido uma década, de tão abatida que ficara após a morte do filho. E, que o segurou em seus braços como se aquele fosse o único vínculo que lhe restava com seu filho. Embora nada mais o ligasse ao passado no morro, Murilo decidira se despedir da mãe. Dois dias antes de sua mudança seguir para o novo destino foi visita-la. Era um sábado de garoa fina e, à medida que subia aquele morro como tantas vezes fizera no passado, virava-se para apreciar a vista lá embaixo. Uma névoa baixa não permitia que a visão alcançasse mais do que umas poucas dezenas de metros. Quando chegou a antiga casa teve o escrúpulo de bater à porta. Quem a abriu foi Solange, num minúsculo shortinho jeans e numa sumária blusinha que mal lhe cobria os seios enormes e as gorduras ao redor da cintura. Quando o vão se abriu, ela ainda se esfregava num sujeito sem camisa com o tronco e os braços cobertos de tatuagens. O risinho desenfreado desapareceu da cara dela assim que identificou as feições do meio-irmão. - A mãe está em casa? – perguntou Murilo, enquanto seu olhar esquadrinhava aquela espécie de sala que pouco mudara desde que ele deixara aquela casa. - Oi. Ela está para chegar. – respondeu Solange, afastando o sujeito com um discreto empurrão. - Será que demora? – indagou Murilo, ciente de que não poderia suportar muito tempo naquele lugar. - Não. Ela ligou agora a pouco dizendo que já estava chegando. – sentenciou, enquanto se distraia com as caretas que o sujeito lhe dirigia como forma de indagar pela identidade do recém-chegado. – Este é o Silas, meu namorado. – acrescentou, fingindo um pudor que ela não tinha. Murilo nem se dignou a olhar para o sujeito, estava prestes a sair pela porta onde acabara de entrar quando, num relance pelo aposento, seu olhar se concentrou num dos cantos sofá, interrompendo sua partida. Voltou ao centro do ambiente e se sentou ao lado do objeto que lhe saltara aos olhos, um notebook VAIO com um adesivo exibindo um coqueiro no qual se apoiava uma prancha de surfe tendo um sol alaranjado se pondo no horizonte. Um decalque que Roberto havia comprado num quiosque no Tahiti, e que adesivara no presente de aniversário que recebeu de Murilo. - Não é lindo? Foi presente do Silas. – disse Solange, assim que percebeu o interesse do irmão pelo computador. Murilo deslizou os dedos sobre o adesivo como se o acariciasse, não distinguira as palavras da irmã senão como um murmúrio distante e ininteligível, seus olhos se encheram de lágrimas, e ele precisou arregimentar todas as suas forças para se levantar dali e sair daquele lugar. A porta se fechou com um estrondo após a sua passagem, enquanto o casal se encarava sem compreender o que estava acontecendo. Murilo desceu correndo as vielas sinuosas soluçando como uma criança. Demorou um tempo para se refazer do impacto. A pessoa que ele mais amava precisou perder a vida para que um bandido pudesse impressionar a vagabunda da vez com um mimo além de suas posses. Era disso que vivia aquela escória, era assim que aqueles barracos estavam abarrotados de eletrônicos, computadores, celulares, câmeras e toda parafernália de objetos que pessoas de bem tinham adquirido com seu esforço. Se Murilo tivesse permanecido mais alguns instantes diante daqueles dois, talvez os tivesse estrangulado com as próprias mãos. Mesmo sabendo que não faria diferença alguma no que já estava consumado e, que nenhuma punição seria imposta ao namorado da irmã, Murilo foi denunciar o bandido na delegacia que apurava o assassinato daquelas pessoas na linha vermelha. Seu caráter lhe impunha essa atitude, mesmo que seu espírito não encontrasse tranquilidade alguma com o gesto. Os pais e os irmãos do Roberto o acompanharam até o aeroporto. Despediram-se dele com o mesmo afeto com o qual o haviam acolhido. Quando o avião decolou ganhando altura sobre o azul profundo do mar, e iniciou uma ampla curvatura no céu, Murilo vislumbrou aqueles morros coalhados de malocas ficando cada vez menores lá embaixo, adquirindo a dimensão exata de sua insignificância à medida que o avião subia. Em seu íntimo não restara nada além daquela dor de abandono, haviam lhe tirado seu maior bem e o direito de sonhar, sentia-se seco e crispado como uma folha de outono, que se desprende das demais e é levada, sem destino, pelo vento.
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"My Gosh" que conto é este? Fiquei emocionado ao lê lo, estou sem palavras, esplendido, mesmo que seja triste. Tenho um amigo que perdeu o amor da vida dele desta forma tambem :(
"My Gosh" que conto é este? Fiquei emocionado ao lê lo, estou sem palavras, esplendido, mesmo que seja triste. Tenho um amigo que perdeu o amor da vida dele desta forma tambem :(
Achei interessante, mas tenho uma crítica. Achei que o texto sentenciou a favela como um lugar de pobres ladrões e pessoas sem valor. Enfim, foi mais um bom conto!