Aquele cheiro adocicado e enjoativo de flores começou a se misturar com meus pensamentos, e ficava cada vez mais difícil distinguir o que era pensamento e o que era sonho. Eu senti que estava adormecendo, embora me recusasse a me entregar ao cansaço. O quarto ficou frio, talvez fosse a falta daquele corpo musculoso onde eu me aconchegava antes de dormir. Imagens flutuavam na penumbra. Minha pele estava gelada e arrepiada, como se eu estivesse nu. Aquele rosto de lobo acinzentado me encarava. O que estava acontecendo com as minhas pernas, eu as sentia pesadas como chumbo, mas elas estavam se abrindo. Mais um sonho irreal que me afligia. A glande enorme vertendo pre-gozo estava próxima do meu rosto, eu podia senti o cheiro daquele líquido se mesclando ao das flores. Depois a dor, ela fez com que eu me agitasse, mas havia pouco espaço para se mexer. Ela ia se espalhando pela minha pelve na medida em que algo grande e desconfortável ia entrando em mim. Eu gritava, mas a voz não saia. Eu levei os braços até as minhas coxas, queria tirar aquilo de dentro de mim. Mas só conseguia sentir que alguma coisa me impedia de chegar até ali. Era quente e não era a minha pele. Dois clarões iluminaram por uma fração de segundos o teto do quarto, depois que ouvi os dois estampidos que me lembraram dos rojões do ano novo. Fui esmagado por um peso que caiu sobre mim, o cheiro de cachorro molhado também voltara. Nada fazia sentido, tudo eram imagens flutuando no nada. Eu mergulhei no silêncio.
- Ele está acordando! – a voz grossa e calma se parecia com a do Phillipe.
Eu quis esboçar um sorriso, mas meus músculos não me obedeciam, afinal fora apenas um pesadelo. A luz vinha de todos os lados e incomodava meus olhos, que a custo eu tentava abrir. Minha cabeça estava apoiada num colo quente e vigoroso, o colo do Phillipe.
- Eu sabia que era um pesadelo! Eu amo você. Não faça mais isso comigo. – balbuciei com dificuldade.
- Deve estar delirando, ele perdeu muito sangue outra vez. – Sebastiana, a voz é sua, mas está tão longe.
- Ainda é o efeito da droga. Traga algo para cobri-lo. – sua voz está diferente meu amor.
O teto girava cada vez mais lentamente, até parar. Quando as conversas começaram a ficar mais nítidas, cessaram. Um rosto me encarava de maneira amistosa e protetora, o do delegado. Sua mão pesada afastou a mecha de cabelo que estava na minha testa.
- Como está se sentindo? – perguntou carinhosamente.
- O que ... quem ... o que faz aqui? – eu não sabia o que perguntar primeiro.
- Acalme-se. Você está em seu quarto. Venha que eu te ajudo a se sentar. – suas palavras denotavam uma solicitude que eu desconhecia.
- Minhas roupas, onde estão minhas roupas? O que estou fazendo nu aqui na cama? – disse, agarrando o lençol que me cobria.
- Olhe bem para mim. Preste atenção! Eu o encontrei esta madrugada aqui na cama, você já estava nu e ... – ele temia minha reação ao continuar, por isso procurou se certificar se eu estava em condições de enfrentar a realidade.
- Você estava de madrugada na minha cama! – exclamei apavorado.
- Não! Havia alguém com você, alguém que estava te machucando. – ele procurava coragem para revelar os fatos. Só então notei que alguma coisa pegajosa e úmida estava entre as minhas coxas.
- Estou sangrando? – gemi, vertendo uma lágrima que saltou dos meus olhos, e constatando horrorizado que estava deitado sobre uma poça de sangue.
- Vai ficar tudo bem, procure se acalmar. – disse, ao me apertar contra o peito.
- Vossuncê foi atacado patrãozinho! – revelou a Sebastiana, que me acudia com toalhas e uma bacia com água morna, desvendando assim o que o delegado temia proferir.
- Atacado? – indaguei estupefato.
- Consegue se levantar ou quer que eu ajude? – perguntou o delegado, antes que eu acenasse que sim. – Vou deixa-lo, depois de conseguir se limpar, eu o espero em frente ao quarto. – acrescentou.
Ele me amparou assim que passei pela porta do quarto. Tudo ainda me parecia estranho e o chão parecia estar se movendo sob os meus pés. Caminhamos lado a lado até a frente da casa, um braço dele circundava minha cintura. Tive a sensação de que ele estava gostando de me ter assim tão próximo. Os mesmos policiais militares que estiveram lá na manhã que sucedeu ao assassinato do Phillipe, me cumprimentaram discreta e respeitosamente. Eu pude ver dois pés descalços saindo debaixo de sacos plásticos que cobriam um volume irregular.
- O que aconteceu? Quem está debaixo daqueles sacos? – havia aflição na minha pergunta.
O delegado fez sinal para os policiais e um deles retirou os sacos. O Moacir jazia sobre o gramado, com uma estranha máscara de pele acinzentada e peluda cobrindo sua cabeça e a parte superior dos ombros. Estava completamente nu, e preso ao caralho havia uma espécie de capa que aumentava muito a espessura da rola, repleta de saliências circundando todo o comprimento da pica. Só a cabeçorra e o sacão estavam de fora. Havia sangue em sua virilha e na parte frontal das coxas. Numa parte lateral do tórax havia dois ferimentos onde também havia sangue e a pele parecia ter explodido de dentro para fora dilacerando-se numa circunferência de aproximadamente dez centímetros de diâmetro.
- O que significa isso? – indaguei, procurando por uma resposta naqueles rostos que acompanhavam cada uma das minhas reações.
- Eu precisei disparar contra ele. Era ele quem estava te seviciando quando entrei no quarto atraído por seus gemidos. Foi com isso que está ao redor do pênis dele que ele estava te machucando. Foi ele quem matou o senhor Bayard depois de perceber que ele tencionava defendê-lo. – suas explicações iam entrando em meus ouvidos enquanto eu fazia força para captar todo o contexto.
- Como assim? – ainda faltavam detalhes para eu compreender o que havia se passado.
- Ele é um descendente dos índios gueréns que habitavam a região há muito tempo atrás. Eles foram expulsos pelos índios tupiniquins, da etnia tupi que era sua rival, e depois mais uma vez pelos portugueses que chegaram a estas bandas na época da colonização. Alguns desses índios ainda perambulam por aí, intitulando-se guerreiros e dispostos a prejudicar aqueles que julgam ter usurpado suas terras. Como faziam quando canibalizavam seus inimigos capturados. Ele colocou uma substância que estamos levando para análise, no conduto do ar condicionado que vai da unidade externa para dentro do quarto. Encontramos uma pequena fração numa garrafa próxima a varanda do quarto. Por meio dessa substância ele os entorpecia, o que o deixava livre para praticar a sodomia com você, sem que houvesse reação tanto de sua parte quando do senhor Phillipe. Creio que a intenção inicial dele era gerar atrito na relação de vocês para que se desentendessem e abandonassem a ideia de se estabelecer aqui, onde os ancestrais dele enterravam seus mortos, o que me parece ficava muito próximo do local onde está a casa; mas, por algum motivo, naquela noite o efeito da droga não foi o esperado e o senhor Bayard conseguiu esboçar uma reação, por isso ele cravou aquelas estacas nele. Elas têm uns desenhos que remetem a símbolos da etnia tapuia, a qual o grupo dele pertence. – revelou, com a certeza de haver feito um bom trabalho.
- Eu disse que era o capeta! O capeta estava dentro dele patrãozinho! Meus orixás me avisaram! – exclamou a Sebastiana, que se aproximava com uma bandeja e algumas xícaras de café fumegante.
- Como você pode ver, a crendice popular por estas bandas não conhece limites. Os índios com seus rituais, os africanos com o candomblé e a macumba, as beatas católicas com seu fervor aos santos, tudo se miscigena num caldeirão de superstições.
Eu ouvia aquele discurso mais desolado do que nunca. Havia perdido a pessoa mais importante da minha vida por causa de crenças absurdas. Perguntei ao delegado o que ia acontecer de agora em diante.
- Vamos retirá-lo daqui. Será montado um inquérito no qual preciso de seu testemunho. O anterior será encerrado. E então você pode seguir a vida normal. – disse.
Haveria uma vida normal depois disso? Que vida seria normal sem o Phillipe? De repente me senti tão abandonado. Como viver naquela solidão?
Só prestei novo depoimento três dias depois. O delegado veio me apanhar em casa, acho que tentando se redimir de suas acusações veladas. No caminho me perguntou se eu já sabia o que faria da minha vida, com real interesse.
- Estou tão perdido que qualquer decisão que vá tomar agora pode ser um erro do qual vou me arrepender no futuro. – respondi.
- É uma postura sensata. Não deixe que isso abale sua vida. Sei que pode soar pretencioso, mas o tempo vai tirar essa dor do seu peito. – era confortante ouvir aquilo, especialmente do homem que pretendia me jogar numa cadeia.
- Só não consigo entender por que o Moacir foi tão cruel. Sempre o tratamos muito bem. – disse, ainda intrigado com uma atitude tão radical.
- Talvez ele estivesse com ciúmes, pelo senhor Bayard ter o que ele não podia ter. – aquilo me soou tão estranho que o encarei inquisidoramente.
- Você deve ter plena ciência de sua beleza e, pelo que seus funcionários me disseram, era extremamente carinhoso com seu parceiro. Quem não sonha encontrar alguém assim? – ele abriu um sorriso tímido na minha direção e apoiou uma das mãos na minha perna.
- Mas essa insanidade acabou comigo. Acabou com o amor da minha vida. – disse, sentindo um nó se formando em minha garganta.
- Você é jovem, o futuro pode te trazer um novo amor. Tomara que ele desfrute desse mesmo carinho e devoção que você dedicou ao Phillipe. – Haveria outra profecia em suas palavras?
Como sempre, seus contos são fantásticos!!! demais!
Por que tu não faz um blogspot e postar lá.