Capítulo 19
Às carreiras como saímos, minha mãe e eu não tínhamos tido chance de trocar mais que perguntas objetivas e comandos. Cheguei correndo e, correndo, saímos. Lembrei de conferir se ela trazia os óculos, o remédio da pressão e o da dor de cabeça. Lembrei de ligar para minha tia e para Seu João - que conseguia chegar a tempo de nos levar. Lembrei de mandar mensagens muitas para Maurício e de fazer isso pelo "FaceTime" para que Fernando não me visse online no "Whatsapp". O que só piorou minha situação, porque, agora, era ignorado em dois aplicativos diferentes. No afã da partida, no ardor do silêncio e na culpa da crueldade, só não lembrei de olhar para minha mãe e perceber o quanto ela estava abatida.
Uma vez no assento, não havia mais nada que eu pudesse fazer para chegar; a gastura que me dava a indiferença de Maurício varria, sem grande esforço, todo o frágil remorso que o rosto triste de Fernando tentava me trazer; e como sofrer pelo Todo-Indiferente já era coisa que eu fazia com o pé nas costas, tive tempo, enfim, de deixar baixar a adrenalina e foi, então, que vi minha mãe.
O cenho endurecido, misturado de tristeza e aflição, se juntava à palidez do rosto, que contrastava com o negrume das olheiras. Só precisei segurar sua mão e minha mãe parou de medir forças com o choro.
Um choro sofrido, comprimido e íntimo. Um choro que ela parecia não querer deixar sair, não por vergonha ou pela honradez de esconder que chora. A mulher ao meu lado não chorava causas ainda não perdidas. Era como ela dizia. Tinha aprendido com a mãe que chorar de véspera chama o choro concreto. Mas se não conseguia segurar o pranto desta vez devia ser porque já tinha dado a causa como perdida, seus olhos viam circunstâncias, a tempestade, e não o homem dormindo dentro do barco. Eu também não O via.
"Eu tô com medo." Confessou depois de algum tempo chorando em silêncio e pra dentro.
"Mãe, a gente sabe que ela tá debilitada. O pior pode acontecer." Ela assentiu repetidamente descrevendo uma careta dura e muito molhada.
"Eu só quero chegar a tempo."
"A gente vai chegar. Vocês ainda vão ter muito tempo pra ficarem juntas." E minha mãe soltou uma risada repentina que acendeu seu rosto vermelho.
"Você fala tão bonito, meu filho." Foi minha vez de soltar uma risada.
"Deixa de ser boba."
"Fala sim. As palavras saem bonito da sua boca e não fica parecendo um robô, sabe. Eu tenho muito orgulho.” Ela sorriu incontida, mesmo que tentasse se conter. Aos olhos molhados, se juntou mais um molhadinho, que parecia até que expulsava as lágrimas tristes quando os olhos se fecharam, empurrados pelas maçãs risonhas. “Eu não me arrependo de nada." Desfez-se o sorriso.
"Como assim?"
"Não me arrependo. De ter saído de São Luís, por aceitar... morar de favor, sabe. Viver da bondade dos patrões. Vocês não iam tá, assim, bem, falando desse jeito se eu..."
"Vocês?"
"É. Você e as meninas de Dalva."
"Ah."
Minha mãe mandava dinheiro para ajudar na educação das minhas primas, que embora estudassem em escola pública, faziam alguns cursos pagos. Tia Dalva tinha as gêmeas, Lívia e Lilian, e um filho mais velho, Pablo, para quem minha mãe parou de destinar quantias quando se tornou claro que não era muito chegado a estudar.
No resto da viagem, minha mãe seguiu ligeiramente mais sossegada e até nos vimos no clima para um chá calmante no curto intervalo no Aeroporto de Guarulhos. E o chá nos acalmou tanto que nos deixamos adormecer no conforto totalmente reclinável da primeira classe logo que decolamos, para São Luís, de vez, agora.
Nem preciso dizer que a primeira coisa que fiz com os pés no Cunha Machado (mas também em Guarulhos) foi correr ao celular afoito de expectativa para, então, descobrir que todo e qualquer aguardo tinha sido, muito naturalmente, vão. O ruim dessas mensagens instantâneas é que se tem a sensação de que a qualquer momento você pode ser surpreendido com a chegada da resposta que tanto espera. O que é ainda pior é que todos estes instantes vão se aglutinando, pesados, a cada vez em que passam sem que a resposta chegue. Se era árduo e, por que não, humilhante para Marianne Dashwood ter de perturbar o mordomo à custa de uma carta que Willowghby jamais escreveria, arde ainda pior em nós cujo mordomo vive à mão e cuida que cada um daqueles instantes possa ser saboreado e observado se empilhar por sobre todas as horas de espera. Uma grande Babel de instantes amargos.
"Please, Mr. Postman. Look and see if there's a letter in your bag for me." Eu chorava em coro na minha intimidade.
"Ali." Disse minha mãe. "Pablo tá ali."
Mesmo não o tendo visto por muitos anos, não era exatamente difícil percebê-lo destoando de todas as outras pessoas pelo saguão de desembarque. O meu primo era a mesma coisa de antes: blusa de marca, bermuda de marca e chinelos de marca. Ouro, ou pelo menos, dourado, era esbanjado em seu pescoço e pulso e dedos em correntes grossas e anéis grosseiros. No rosto, a mesma expressão lesada de maconheiro com que tinha se despedido de mim da última vez.
"Ô, tia." Ele disse num sorriso grande abrindo os braços para abraçar minha mãe e pude ver o cigarro que guardava atrás da orelha. Ele tinha um jeito meio bronco, mas malandreado, todo trabalhado na malemolência.
"Como é que 'cê tá, meu filho?" E aquela coisa toda...
"Éguas, tia! Não vai dizer que esse aqui é o Chorinho?" Me limitei a rir por cortesia.
Chorinho era como ele me apelidara tempos atrás quando eu era uma criança que passava o tempo todo chorando. "Caramba! Tá crescido." E me abraçou com aqueles brações musculosos, enterrando meu rosto em seu peitoral proeminente. O cheiro do desodorante squeeze que usava provocava arranhões esquisitos nas minhas entranhas.
"Tudo bem?"
"Muito melhor agora." Ele disse. "Vamo?"
Pablo colocou nossas malas num carrinho que saiu empurrando pra fora do aeroporto. O carro dele era um Fiat Uno velho, de duas portas e lataria remendada com massa cinza.
O céu já ia vermelho-arroxeado querendo deitar de vez e descansar no anil do céu profundo. Minha mãe, no banco de trás com as malas e eu no carona, com os olhos fixos no celular pronto pra me sobressaltar a qualquer instante.
"Visto por último às 15:43."
...
Este capítulo continua no blog "Conto Sigiloso" ( o endereço se encontrar no meu perfil aqui).