Capítulo 20
Mal me tinha gozado, Pablo se levantou, vestindo a bermuda e se mandando porque tinha que ir trabalhar. Vesti minha roupa e me deixei estirado na cama, relaxando e lembrando dele pelo pouco tempo que seu efeito durou e logo eu estava entregue, outra vez, à profundura do abismo que era querer Maurício.
Consigo compreender que, todo senhor e dono que era, não havia de querer me ver lhe desobedecendo, mas o que tinha de tão errado? Eu estava simplesmente terminando com o outro. Terminando o que ele bem sabia que não significava nada pra mim.
Sim, eu sei que ter admitido isso assim tão claramente era de uma frieza enorme, coisa de Maurício, mas eu estava falando só comigo mesmo e não havia necessidade, e eu nem tinha energia para tanto, de me enganar mais. Fernando significou muito pouco. Tão pouco quanto Pablo estava significando agora. Maurício. Maurício significava e só ele.
Os outros serviam bem a aquietar-me o espírito nos vazios dele, mas a calmaria era breve, frágil, se desfazia. Como asas de borboleta.
Não, não adiantava. Eu sabia. Nada que eu fizesse, o quanto me revirasse naquele colchonete, o quanto me descabelasse... Nada ia fazer com que Maurício me respondesse. Isso só ia acontecer quando ele assim desejasse.
E como podia ser que não desejava? Depois de Búzios? Depois das juras de amor e dos beijos? Não estava ele também sofrendo? Não estaria agoniando e se xingando por ser tão orgulhoso e nojento? Será que também ele socava o travesseiro imaginando ser o próprio rosto? Porque se houvesse algum sofrimento nele, o único causador deste sofrimento era ele mesmo.
Outra vez, remoer e xingar e revirar também não fizeram com que ele falasse comigo, mas tinha quem quisesse falar.
“Tia Dalva.” Eu não reconhecia a voz, mas parecia ser de uma criança.
“Oi.” Eu, abrindo a porta da sala.
“Oi. Tia Dalva tá aí?” Era Natã.
Ele estava com o uniforme da escola e de chinelos. Parecia que tinha acabado de chegar.
“Tá não, Natã. Foi trabalhar.”
“E Lívia?”
“Lívia e Lilian tão na escola ainda.”
“Ah, tá.” Ele disse meio reticente, meio envergonhado, se demorando. “Tá bom.” E ia se virando lentamente, quando eu reconheci nele um Abel ainda criança como que zanzando pela casa pra ver se era convidado a se juntar à família de patrões.
“Ei, eu vou colocar um filme pra ver. Quer ver comigo?”
“Qual filme?” Perguntou querendo manter sua dignidade.
“O Diário da Princesa.” Pensei rápido. Se eu estivesse certo, aquele menino ia amar o filme.
“Já viu?”
“Não. É de quê?”
“Ah, vou colocar e você vê? Valeu?”
“Tá bom.”
Não deu outra. Os olhinhos de Natã brilhavam a cada cena e quando Mia apareceu transformada, ele pulou e bateu palmas, incontido.
A essa altura Lívia já tinha voltado pra casa e me olhou cheia de confidências.
“Isso é pro pai pagar a língua.” Ela disse de modo que só eu podia ouvir.
“Tem o 2, Natã. Sabia?” Eu disse empolgado.
“Jura?! Quero ver. Bota!”
“Ai, bota. Quero ver de novo.” Lívia também tomada de empolgação.
Assim, passamos o começo da tarde, assistindo a Mia Thermopolis e comendo as sobras do banquete de boas vindas.
Estávamos na cena do discurso entre o casamento que não aconteceu e o que aconteceu, quando minha mãe chegou e já tão careca de me ver assistindo, entrou ela mesma dizendo:
“Eu endosso.” O semblante muito mais leve do que o que tinha quando a deixei por último.
Lívia se levantou pra tomar a benção da madrinha dela e eu pra abraçar minha mãe. Ela logo sentou e contou como estava minha avó, que tinha acordado e estava bastante lúcida até.
“Cadê, Lívia?” Perguntou minha mãe.
“Ah, vai saber, dinda. Saiu da escola junto comigo e não me deu nem tchau.”
Como o filme terminou e ainda queríamos nos sentir da realeza, seguimos com “Um príncipe em minha vida.” Natã, claro, maravilhado com tudo aquilo.
Mas o pai dele chegou e o chamou firme e minha mãe se adiantou ao menino e ficaram lá se cumprimentando enquanto Natã passava pra casa.
Foi Jorginho mesmo que levou, em seu carro, Lívia, minha mãe, ele mesmo e eu pra ir ver minha avó no horário da visita. Eu cuidei em ficar bem quieto durante o trajeto.
Minha avó estava surpreendentemente bem. Estava risonha e até falante, na medida do possível.
“Como tá bonito.” Me disse quando parei ao lado dela na cama e acariciou meu rosto com suas mãozinhas enrugadas.
Eu me curvei pra abraça-la, com cuidado. Era tão frágil, tão gostosinha, minha avó. E eu me lembrei de como era bom ter família. Tinha me esquecido, enfiado em uma família que não me pertencia. Valorizando um carinho que não me vinha quando tinha tanto carinho pra receber de pessoas pra quem eu tinha importância. E daí, comecei a chorar. Por um monte de coisas.
“Fica bem, tá, vó.” Eu disse como se ela pudesse decidir isso por se mesma.
Lívia parou do meu lado e passou o braço pelas minhas costas, me abraçando. E me deixei chorar mais.
Não só pela minha avó, como todos deviam estar pensando. Por ela, pelo que ela significava e porque eu tinha uma família. Ali, eu não era o agregado, o intruso. Aqueles eram os meus. E por mais que todos eles contrastassem com o hospital chic em que estávamos, não fazia diferença: eu estava em casa.
Tia Dalva também chegou pra visita. E tio Jorge e tio Osmar e outros primos que eu ainda não tinha visto daquela vez. E foram tantos abraços e risos e casos recontados que eu só me lembro de me sentir grato de poder estar ali.
Até Lilian apareceu. Levemente bêbada, mas Lívia e eu a puxamos pra fora e demos café a ela em tempo de evitar que mais alguém percebesse. E até isso me deixou feliz.
Mas como sempre, até aquela felicidade estava condenada.
...
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