Adolescentes em ação [11] ~ Hora de assumir

Ao adentrar a sala continuava cantando.

Uma voz feminina, que eu conhecia bem, passou a cantar junto comigo. Cantava da cozinha.

“Ninguém esconde o amor; Ninguém proíbe o amor..”

Dona Lúcia trabalhava conosco já há um bom tempo. Conhecia a mim e ao Rafa desde que éramos crianças. Tinha por volta dos sessenta anos. Era uma mulher esclarecida e até moderna. Conversava bem e era atualizada. Trabalhava em nossa casa de segunda à sexta. Chegava de manhã, fazia todo o seu serviço, esperava eu e meu irmão chegarmos da escola, servia nosso almoço e após arrumar a cozinha ia para sua casa. Morava bem perto de nós. Na rua da feira.

Fui cantando até a cozinha e terminamos os versos juntos.

- Que legal, dona Lúcia! A senhora conhece esta música.

- Adorava o Agostinho dos Santos. Pena que tenha morrido tão cedo. Mas eu sou velha, por isso que conheço esta música. Mas, e você, Lucas? Como sabe esta canção?

- Ouvi um amigo cantando e daí, baixei no meu computador. É muito bonita.

- Você sabia que esta música foi tocada no meu casamento?

- Que legal, Dona Lúcia!

- Quando escutei você cantando, eu pensei “o Lucas está apaixonado”. Quem é a felizarda, Lucas?

- Não tem felizarda não, Dona Lúcia. Só gostei da música mesmo e não paro de cantá-la.

Dona Lúcia me serviu o almoço. Liguei uma pequena TV que havia na cozinha para assistir o Globo Esporte.

- Cadê o Rafinha, Dona Lúcia?

- Já almoçou e subiu para o quarto dele.

Dona Lúcia, cozinhava muito bem. Era ultra simpática. Ultimamente tínhamos de conferir cada copo ou talher que pegávamos, pois ela não estava enxergando direito e por conseqüência não conseguia lavar os utensílios tão bem quanto antes. Mas, conferíamos sem que ela percebesse casso estivesse sujo, disfarçávamos e pegávamos outro. Ela era muito boa. Um coração de ouro. De forma alguma a magoaríamos.

- Foi ao médico na sexta Dona Lúcia?

- Fui sim, Lucas. Por isso que eu nem vim aqui

- E o que ele falou?

- Que tem de operar. É catarata.

- Isso é simples, Dona Lúcia. A sra. Vai ficar boa fácil.

- É sim. Vou marcar.

- Mas não pode ficar dirigindo em quanto não estiver boa, eu já avisei a senhora. Se a senhora não se comportar – falei brincando – eu vou contar para o Marcel.

Marcel era o filho de dona Lúcia. Fez hotelaria e morava na Espanha. Loiro, olhos azuis, alto, muito bonito. Era bem mais velho que eu. Deveria ter uns 28 anos. Conversávamos no MSN quase todos os dias. Conhecia-me desde quando ele ainda era adolescente, pois vez ou outra vinha em nossa casa conversar com sua mãe. Era, simpático, educado e inteligente. As vezes ficava jogando vídeo game comigo e com o Rafinha. Adorávamos o Marcel. Trabalhava em um hotel da Espanha já fazia três anos. Não me recordo o nome da cidade. Mas, era uma cidade balneária. Só tinha aposentados, segundo ele. Como trabalhava na recepção, mantinha o MSN conectado e a qualquer momento trocava alguma mensagem comigo.

Terminou o programa esportivo e iniciou o Jornal Hoje. Uma notícia me chamou atenção. Um travesti tinha sido morto num estado do nordeste. Não me lembro se era Alagoas ou Pernambuco. O repórter dizia que o travesti fora torturado. Introduziram um cabo de vassoura em seu ânus, depois o arrastaram puxando-o com um automóvel, deram-lhe diversos tiros de espingarda, puseram fogo em seu corpo e decaptaram-no.

Nunca tinha ouvido falar de tanta violência com uma só pessoa. O repórter ainda relatou que não era o primeiro caso. Parecia existir um grupo de extermínio a homossexuais, principalmente travestis.

Fiquei preocupado comigo mesmo.

Será que eu também corria este tipo de risco se me assumisse? Será que aqui no estado de São Paulo, o mais desenvolvido do país, aconteceria também este tipo de atrocidade?

Eu me questionava com aquelas perguntas para as quais não tinha as respostas.

Desliguei a TV e subi para meu quarto, pois estava bobo de sono e queria tirar o atraso.

Antes, passei no quarto do Rafa e dar um oi.

- Onde você tava, Uca, que não te vi na saída?

Contei para o Rafa tudo que havia acontecido após o sinal, no banheiro desativado do final do corredor das salas de aula do LG. Contei tudo com todos os detalhes.

- Pelo menos vocês deram uma boa surra naquele desgraçado do Breno. Eu queria estar lá também. – Disse o Rafa todo revoltado.

- O pior é que me sinto mal de ter usado de violência. Papai sempre fala que não podemos agir como agem os bandidos e os maus caráteres

- Mas, ele precisava mesmo de uma lição. Ele não só fez isso hoje. Você sabe que fora isso que ele estava fazendo com o Globeleza, ele tem batido em um monte de moleque na escola. Todos bem menores que ele, e sem motivo algum.

- Eu sei Rafa ele merecia sim. Mas não cabia a mim e ao Marcos puni-lo daquela forma e sim à justiça.

- Mas o Globeleza não quis denunciar, e, você disse que ele ameaçou contar sobre você e o Marcos, para a escola toda.

- Ameaçou sim, e por causa disto Marcos o espancou mais ainda. Mas não sei se vai adiantar.

Pensando na ameaça que Breno nos fizera e na reportagem que acabara de assistir, veio a minha mente que agora eu teria de conviver com alguns medos que até então desconhecia.

- Rafa, desde sexta-feira quero falar com você uma coisa e não tive oportunidade...

- Sobre “aquilo” que fizemos?

- Não só sobre aquilo que fizemos, mas sobre o que somos e faremos.

- Fale, Uca.

- Você acha que somos gays, Rafinha? Ou foi tudo apenas uma aventura, uma curtição, mas que passará logo.

- Uca, eu sou gay sim.

- Como você afirma isso com tanta certeza?

Aquele menino que vivia fazendo palhaçada estava conversando naquele momento de forma super séria, como até então eu nunca vira. Falava pausado e de forma serena. Não hesitava nas palavras.

- Eu sei porque sei. Há muito tempo eu olho para os meninos e sinto tesão. Percebi isso uma vez em que baixei um vídeo pornô na net e notei que sentia mais tesão ao ver o cara que a mina. Há muito tempo que só me masturbo pensando em garotos. Ainda ficava com meninas, apenas para disfarçar. Mas a primeira vez que transei com algum carinha, foi com o RB, como eu já te contei. O segundo foi o Marcos. Mas uma coisa é certa: não curto meninas. Não quero meninas. Gosto de ficar com meninos.

- E porquê você nunca me falou nada?

- Medo de sua reação. Sei que gosta de mim, é meu irmão, me ama, mas tive medo de que não compreendesse e ficasse chateado por ter um irmão gay. Você sabe o quanto eu te amo Uca. E tive medo de que se distanciasse de mim. – Falou isso e já começou a chorar.

Com o Rafa era assim, ou muito riso, ou muito choro.

- Já te disse outro dia que te amo e sempre estarei ao seu lado. De maneira alguma você poderia ter pensado isso, Rafinha.

- E você, Uca? Já sabe o que quer? Fiquei contente ao ver que você curtia o lance também. Você ta apaixonado pelo Marcos, né?

- Calma moleque. Fale uma coisa de cada vez. Eu acho que sei o que quero sim. Eu nunca tive experiência nenhuma até sexta. Gostei. Curti muito mesmo. Achei que seria só uma curtição, mas o FDS com Marcos ao meu lado me fez ver que eu quero estar perto dele. E eu só gosto dele porque ele é homem. Cheguei a conclusão de que também não gosto de meninas. Quando eu ficava com as meninas, nunca senti nada parecido do que foi ficar com um menino. E eu também como você, só fiquei até hoje com o Marcos e com o RB.- Fiz uma pausa e perguntei - E por qual razão você diz que estou apaixonado pelo Marcos? Afinal, não te disse nada.

- Eu teria uma lista de coisas para te dizer como eu sei que está apaixonado, mas vou dizer só uma que acho suficiente.

repetia ao seu fiel amigo quando desvendava um mistério, e me explicou – Primeiro a sua reação de manhã quando eu confirmei para Marcos que o cabelo dele estava estranho; segundo que faltava um tufo de cabelo na cabeça dele. Se na sexta-feira o moleque chegou aqui com o cabelo normal e na segunda-feira de manhã lhe faltava um punhado; considerando que não foi ele quem cortou, senão não estaria reclamando, e nem seu pais cortariam seu cabelo daquele jeito, deixando-o feioso; considerando que ele dormiu ao seu lado no final de semana e você foi o único que teve a oportunidade de tosar-lhe o cabelo sem que percebe-se; considerando ainda que você não estava brigado com ele, e assim sendo não cortou-lhe o cabelo por vingança ou maldade, chegamos então a seguinte conclusão: Senhor Lucas Augusto Trevisan Zanini, o senhor cortou o cabelo de Marcos para guardar uma recordação do garoto a quem se apaixonou.

Quando ele terminou sua exposição eu o aplaudi, bem devagar.

- Parabéns, Sir Sherlock Holmes, deveria fazer plantão 2ºDP e dar uma forcinha pra polícia.

- Obrigado. – Disse levantando-se da cama onde estava deitado conversando comigo. Ficou em pé, colocou a palma da mão direita encostada no abdômen e a parte oposta da mão esquerda em suas costas. Ficou ereto e depois inclinou seu corpo para frente até quase ficar em uma posição de 90 graus, da mesma forma que os atores de teatro fazem quando agradecem o público ao final do espetáculo. Porém, a combinação da inclinação com o posicionamento das mãos mostrava que o Rafa estava imitando um lord, um cavalheiro, um “Sir”. E perguntou-me:- Você guardou o punhadinho de cabelo para que se um dia ele morrer, você pedir para ele ser reconstruído a partir de seu DNA, igual no filme A.I.? Guardou o punhadinho de cabelos do Marcos dentro do ursinho de pelúcia?

Prá variar, rimos mais um pouco

- Rafa, voltando ao papo sério. Sabe que é barra ser gay. Que existem uma série de preconceitos que estarão constantemente em nosso caminho. Se nos revelarmos, perderemos amigos, ou melhor, gente que pensamos serem nossos amigos. Ganharemos inimigos, seremos objetos de piadas, seremos excluídos de festas, seremos vistos como pervertidos, doentes, sem vergonhas. O que você pretende fazer? Vai se assumir.

- Uca. Se tenho você, o papai e a mamãe ao meu lado, pouco me importa o que pensam, digam ou façam as outras pessoas do mundo. Porém, não vou sair com a bandeira do arco íris empunhada para ir à escola. Entretanto, se alguém me perguntar se sou gay, não irei negar. E não admitirei ninguém zombando de mim. Que façam às minhas costas, quando eu não estiver vendo. Mas, nem sonhem que eu saiba.

- Mas pretende contar para o pai e mamãe?

- Acho que ainda não é necessário, Uca. Mas, quando for necessário, contarei sim e espero que tenha seu apoio.

- Você tem meu apoio. Sabe bem disso. Tenho certeza que papai e mamãe compreenderão bem e lhe apoiarão. Também acho que você quem deve decidir quando deve contar e se deve contar, afinal é um problema que só diz respeito a você.

- E você, Uca. Como pretende fazer em relação a tudo isso?

- Exatamente, sem tirar nem por, da mesma forma que você, meu inteligente irmãozinho.

- Mas, seu caso é diferente, Uca.

- Diferente, como?

- Você não ta namorando o Marcos?

- Ficando.

- Ok. Ficando. Mas, mesmo assim. Serão vistos juntos a todo o momento. Todo mundo vai sacar.

- Eu andei anos ao lado do Rodrigo e nunca ninguém achou nada.

- Mas, você não babava quando via o Rodrigo.

- E eu ando babando agora, seu Mané? – falei isso enquanto o agrarrava esfregando as juntas dos meus dedos da mão direita, fechada, na sua cabeça.

Lutamos um pouquinho sobre sua cama.

- E você, moleque feio?

- Que é que tem?

- Não ta namorando o RB?

- Já te falei que não. Ele é meu amigo.

- Sei. E por acaso é normal comer a bunda dos amigos? – perguntei já rindo muito.

- Se for gostosa, por que não? – respondeu gargalhando

E completou.

- Falando nisso sua bundinha é bem gostosa em maninho. Mostra ela pra mim. Puxou minha bermuda com a cueca junto, minha bunda veio a mostrar e ele deu uma mordida, deixando a marca de seus dentes.

- Pára, Rafa. Ta doendo.

Ele me soltou e disse rindo. Adoro morder uma bundinha.

- Vou largar você aí seu tarado.

Levantei-me de sua cama. Ajeitei minha roupa saí de seu quarto, mas voltei imediatamente.

- Rafinha?

- Fala irmãozinho, querido do coração, razão da minha existência, luz do meu viver...

- Pára, moleque. É sério.

- Fale, disse ele segurando o riso.

- Não vai acontecer novamente, mas... Se rolar novamente aquelas paradas que fizemos na sexta a noite, não queria que você comesse o Marcos...

Levantou-se, veio ao meu encontro e me abraçou apertadamente, na verdade estava me espremendo tanto que quase não podia respirar.

- Meu “mãozinho”! Ta com ciúme, né? Tadinho dele.

- Você promete?

- Prometo sim, Uquinha. Mas, “dar” prá ele eu poderei? – falou ironicamente.

- Nem comer e nem dar.

- To brincando, Uca. Não transaria com o namorado de meu irmão.

- Obrigado, mano.

Beijei-o na face e fui sair.

- Mas, Uca. Também vou pedir uma coisa...

- Lógico Rafa. Fale.

- Não gostaria que você fizesse alguma coisa outra vez com o “R”. Nem comer e nem dar.

- Sim. Sem problemas. Mas, você não falou que são apenas amigos.

- Falei sim. Por quê ?

- Não. Nada não,

Fui para meu quarto sabendo que o sentimento que meu irmão tinha pelo RB era bem mais que amizade.

Tocou o telefone.

- Alô?

- Lucas. Sou eu, RB.

- Fala “R”. Não morre mais, falávamos de você agora.

- Bem ?

- Lógico que falávamos bem. E por acaso teríamos alguma coisa de mal para falar de você ? Kukaukaua

- Legal. Fico contente em ouvir isso. Lucas, por gentileza, o Rafinha ta aí?

- Ta sim.

Percebi que a voz do “R” esta estranha.

Gritei para o Rafa que a ligação era pra ele. Ouvi ele atender e coloquei o fone no gancho.

Olhei para minha cama e dei um mergulho. Estava muito cansado. Queria dormir a tarde toda.

Vi no criado mudo “O terceiro travesseiro”. Resolvi ler um pouquinho.

O Rafa entra ao meu quarto e diz que o “R” aparecerá mais tarde em nossa casa.

- Nossa, Uca!! Ele estava tão triste. Disse que queria desabafar um pouco. Disse para ele vir aqui, pois era melhor que falar ao fone.

- E porque ele não vem agora?

- Disse que não poderia, pois tem um monte de coisas pra fazer.

- Trabalhos de escola? Ele poderia fazer aqui e ajudaríamos ele.

- Não, de escola ele é tranqüilo. É bom aluno, já me falaram. É serviço doméstico mesmo. Lavar louça, arrumar a casa, lavar banheiro... Todo dia ele tem essas coisas pra fazer. Ele chega sempre no vôlei, ou no ensaio do teatro, atrasado.

- Putz...Que ruim, Rafa.

Rafinha voltou para seu quarto. Retomei minha leitura. Adormeci sem conseguir ler uma página inteira. O cansaço me vencera.

Dormi umas três horas sem parar. Acordei com o pau bem duro com vontade de fazer xixi. Fui ao banheiro e fiz com dificuldade. Como é ruim urinar com o pau duro. Só não é pior do que urinar depois de ter gozado, quando você acaba fazendo xixi prá tudo quanto é lado, menos dentro do vaso. Depois dá um trabalhão ter de ficar limpando para a mamãe não reclamar, e com razão.

Estava com fome. Resolvi descer para comer algo. Passei antes no quarto de Rafa. A porta estava encostada. Eu bati, pois ouvi vozes. Mandou que entrasse. O RB já estava lá. Vi que estava chorando.

- Oi “R”!

- Oi Lucas.

Fiquei meio sem graça. Não sabia o que dizer. Não sabia se perguntava algo ou esperava que ele falasse.

- A mãe do “R” bateu nele ontem, Uca.

- Por quê?

- Porque ele chegou tarde.

- Chegar tarde foi um pretexto. Ela sabia onde eu estava. Tinha o telefone daqui. Ouviu o carro de seus pais quando me levaram em casa. Bateu porque gosta de me agredir.

O R acabou nos contando que a mãe dele era separada de seu pai, que constituíra outra família, e não dava muita atenção para ele e seu outro irmão, mais novo, Roberto, ou Betinho. Que seu pai mandava uma pequena quantia de dinheiro mensalmente como forma de pensão, mas pouco ou nada participava de sua educação e de Betinho, que tinha XI anos de idade.

Sua mãe por sua vez, segundo ele, mimava Betinho e fazia todos os seus gostos, mas tratava RB super mal. Discutiam quase todos os dias. Tudo era pretexto para briga e para surrá-lo. Tinha uma irmã mais velha, já com 19 anos, que trabalhava, fazia faculdade e optara por ficar quase todo o tempo na casa do namorado para não entrar em atrito com a mãe. O quintal onde estava construída sua casa, de sua avó e do irmão de sua mãe, parecia campo de batalha por desentendimentos entre Helena, mãe de RB e sua cunhada, Elvira, esposa de seu tio. Este tio de RB vivia induzindo Helena a surrá-lo, criava verdadeiros infernos até que ela estourasse e batesse nele.

Dizia coisas como “esse moleque é respondão, se fosse meu filho já teria apanhado” ou “ nossa, que menino vagabundo, nem ajuda a mãe em casa, meu filho não”. RB nos contou que o filho deste tio já tinha mais de 25 anos e não trabalhava, fumava muita maconha e já havia praticado pequenos furtos.

- Posso falar pro Uca o resto e RB?

- Pode sim.

- Uca, este primo fica dando em cima do R. É só o R estar sozinho em casa que ele vai la, tira o pau pra fora, pede para ser chupado, pede pro R dar a bunda prá ele, espia o R tomando banho.

- Mas, eu nunca fiz nada com ele e nem vou fazer. Ele é um marginal. Um vagabundo. Nem banho toma direito. Ele insisti, eu me recuso e ele fala “eu sei que você é veado”. Mas, eu nunca dei motivo para ele afirmar isso de mim.

- Por que ele é também RB. Por isso que ele vai em cima de você.

Falei isso porque me lembrei do “ensinamento” que Fabinho me dera de manhã: “uma bicha reconhece a outra”.

- RB, conte pra sua mãe o que esse seu primo ta te fazendo.

- Não adiantaria Rafinha. Ela não iria acreditar, ou, até acreditaria, mas meu tio diria que eu inventei. Minha avó também se influencia muito pelo que meu tio diz e pressionaria a minha mãe a me punir por “mentir”. No final sobraria para mim.

Escutei o RB falar aquilo para o Rafinha e vi que sua situação era parecida com a do Globeleza. Estava sendo molestado dentro de sua própria casa e não podia dizer nada para não piorar sua situação.

Quantas crianças e adolescentes já não teriam vivido aquela situação de abuso e foram obrigadas a permanecerem caladas? Fiz esta pergunta a mim mesmo sabendo que só naquele dia eu tive conhecimento de dois casos. Quantos outros não permanecem ocultos sem que o oprimido, objeto de abuso sexual do opressor, sequer possa manifestar sua dor ou tristeza?

Estava com fome e aquela conversa estava muito triste para todos nós.

- Vamos tomar café, depois conversamos mais. Rafinha, vai com o RB comprar pão.

- Sim Sahib – Ironizou – Mas tem de ser da “Menino de Ouro” ou posso pegar aqui perto mesmo?

- A Rafa, deixa de ser preguiçoso, vai lá na MENINO. Sabe que o pão de lá é melhor mesmo. E nem é tão longe daqui.

- Não é mesmo, né, Sahib? Afinal, não é Sahib que terá de caminhar até lá.

Enquanto o Rafa foi com o RB à padaria, fui pro MSN um pouco.

Nem bem conectei, Marcos me manda uma mensagem.

- Morreu?

- Acho que não...kuaksaukasua

- Você pede prá eu entrar no MSN e não entra. Queria que eu conversasse com outros carinhas, é? rsrsr

- Desculpe-me. Dormi. ...zzzZZZ ...zzzZZZ

- Bela adormecida. Rsrs

- Tudo por causa do “3º travesseiro”, fui dormir super tarde.

- Ta gostando?

- Muito. Mas tem umas partes que achei um pouco nojentas.uksukasauskau

- Eu te avisei..rsrsrsr

- Vem pra cá. O “R” ta aqui também. Ta meio triste.

- P q ?

- Depois te explico. Venha logo.

- To indo.

Desligou.

Escuto o alarme do MSN tocar. Outro contato me chamando. Agora era Marcel. O filho de dona Lúcia.

- Como estás?

- Bem.

- Que bom, Lucas. Novidade?

Marcel também era homossexual. Desde que foi para Espanha assumira abertamente a homossexualidade. Não o fizera aqui no Brasil, creio eu, que para ocultar de sua mãe e não enfrentar os preconceitos da sociedade. Mas na Europa se soltou. Antes de ele ter me contado que era gay, seu Orkut já o havia me entregado.

- Sem novidades. E vc ?

O MSN é alegria de quem escreve errado. Não precisamos ter preocupação alguma com regra gramatical nenhuma. Nem a palavra inteira precisamos escrever. Quem não sabe escrever direito usa MSN. Quem sabe também usa e até desaprende a escrever. O que importa no MSN são duas coisas: entender e se fazer entendido.

- Vou casar.

- ???

- Sim conheci um carinha de Barcelona, estamos namorando já faz um ano e daqui a algum tempos casaremos.

- Aí pode casar?.

- Não é bem um casamento. É união civil, onde os parceiros acabam adquirindo direitos como se fosse um casamento. É um contrato entre duas pessoas.

- Então é quase igual a um casamento, mas não é um casamento?

- Sim, os parceiros acabam possuindo os mesmos direitos que pessoas casadas.

- Na realidade então só muda o nome?

- É. Em vez de casamento chama-se União civil.

- P q então não colocam logo o nome de casamento se é igual casamento, em vez de chamar de união civil? Não entendi isso.

- A religião católica é muito influente aqui na Espanha. Penso que fizeram a lei assim pra igreja não encher o saco.

- Aí na Europa não tem nenhum lugar que exista casamento gay, não?

- Tem sim, na Holanda e mais alguns países que não me lembro. Aqui na Europa a vida do gay não é tão difícil como no Brasil. Preconceito existe, mas não como aí. Bem menos.

Aquilo que Marcel me contava contrastava com a notícia que tinha ouvido na hora do almoço, do travesti torturado até a morte. Contei isso para Marcel. E ele me disse que se eu achava que no Brasil o gay é discriminado e sofre violência, o que eu acharia que é a vida do gay nos países muçulmanos?

- Lá é proibido ser gay?

- Além de ser proibido, caso pegos, os gays são punidos com prisões, chibatadas e até morte. Abra esse link que vou te enviar.

Abri um link e nele havia informações de como o gay era tratado em diversos países do mundo. O primeiro país citado era o Afeganistão:

“ O julgamento de quem pratica a sodomia ou outra prática homossexual qualquer dura minutos e o acusado não tem direito a advogado de defesa. A punição é o desabamento de uma parede sobre o homossexual condenado. Depois de trinta minutos sob os escombros, se estiverem vivos, são entregues á família para receberem cuidados médicos.’

O link citava a discriminação aos homossexuais, reconhecida e permitida em lei, em diversos países do mundo. Mas o que acontecia no Afeganistão, me ficou gravado na memória, pela crueldade da punição. Não apenas matavam o gay que condenavam. faziam isso de um forma cruel. E o que é pior, faziam isso baseados em leis que, segundo eles, seguia os princípios de sua religião, o Islamismo.

Mas as religiões não pregam a paz e o amor? Pensei comigo mesmo.

- Nossa Marcel!!! Terrível, né.

- Sim.

- Vai chamar sua mãe pro seu casamento?

- Não, querido. Nunca vou contar pra minha mãe.

- Ela não desconfia de vc?

- Acho que não...

E antes de eu digitar mais alguma coisa ele me mandou outra mensagem.

- Ela tem certeza.

- Como assim? Ela sabe de alguma coisa? Viu alguma coisa?

- Não, Lucas. Não é isso. É que mãe sempre sabe.

Li aquela frase e meus pensamentos foram a milhão. Se mãe sempre sabe, a minha também sabe. Lembrei que a mãe do Marcos também desconfia ou sabe dele.

Será que minha mãe já sabe de mim? Eu mesmo só soube na sexta-feira. Meu Deus!!

Eu via que ia ficar maluco. E olha que eu só era gay há 4 dias, contando com aquele em que estávamos.

- Marcel.

- Oi

- Quero te contar algo, pq confio em vc. Mas quero sigilo.

- Vai me contar que vc tb é gay ? perguntou-me.

O que estava acontecendo? Ele estaria lendo meus pensamentos agora? Era isso mesmo que eu iria lhe contar, mas como ele sabia?

- Cara...Eu iria te contar isso sim. Mas, como vc sabe que eu ia contar isso?

- Que mais vc poderia me contar se estávamos conversando somente a respeito disso? E pq vc me pediria segredo se não fosse isso?

- Tem razão

- E tem mais...

- O q ?

- Eu sempre soube de vc...uhauhsuahusahush

- Q ?!!??? Sempre soube?? COMO?????

- AHH Lucas...um gay sempre reconhece outro..Lucas, tenho de sair...chegou hóspede...bjs...até mais “amiga” uahsuahsuashaush

Desligou o MSN.

Puta que Pariu!!! Aquela história de novo de que um gay reconhece outro!

.

O LG era super habitado por gays. Se um sabe que o outro é, então todos os gays do LG sabem de mim? Mas, eu sou gay e só sei daqueles que são afeminados e/ou assumidos.

A campainha tocou. Achei até bom. Era Marcos.

- Quero um beijo. – Eu disse logo que ele entrou

- Só beijo?

- Prá começar.

Ficamos nos beijando e nos amassando lá na sala até quês os meninos chegarem com os pães.

- Os pães, Sahib.

Fomos todos prá cozinha. Ficamos um tempão em volta da mesa comendo e discutindo os fatos do dia. Comentamos o caso do Globeleza; as ameaças de Breno e a sova que levou; os problemas do R com sua família. Depois contei para eles do casamento do Marcel.

- Como é bem mais fácil a vida do gay em país desenvolvido.

- Como assim, Marcos.

- Se você reparar bem Lucas, são nas regiões ou países menos desenvolvidos que os preconceitos e discriminações são maiores.

- Tem razão. O travesti do noticiário foi torturado no sertão nordestino, lá é bem atrasado.

- Mas não quer dizer que aqui em São Paulo não haverá casos semelhantes

- Será Marcos?

- Sim. Preconceito e discriminação contra o gay existem em todos os lugares do mundo, o que modifica é a forma e em que quantidade que esta discriminação e preconceito se manifestam.

- Mas aqui no estado de São Paulo, você acredita que torturariam algum gay?

- Lucas, acho que algo desse tipo seria mais difícil, mas não impossível.

Realmente aquela conversa era assustadora.

RB estava bem triste. Mal abria a boca, mas resolveu falar.

- Se vocês três, que suas famílias são “bem de vida” têm esse medo todo da discriminação...

- Não somos ricos, R. – Adiantou-se o Rafa.

- Eu sei Rafinha. Deixe-me explicar. Vocês três possuem uma condição socioeconômica melhor que a minha. Suas famílias estão bem estruturadas e vocês têm o amor e carinho de seus pais que o apóiam e o apoiarão a qualquer momento. Mesmo assim, vocês estão comentando da dificuldade de ser gay nesta sociedade preconceituosa. Pergunto a vocês: E eu? Como poderei assumir minha sexualidade? Se não tenho apoio e carinho da minha própria mãe. Se sou pobre. Como poderei enfrentar os mesmos problemas que vocês em desigualdade de condições?

RB estava muito nervoso e triste. Pois seus problemas pareciam que nunca teriam fim. Ele já nos disse ainda que não se importava de fazer os serviços domésticos na casa dele. Que já que não trabalhava era uma forma de contribuir em casa. Contou-nos que tirava boas notas e que ganhara, num sorteio promocional, uma bolsa de estudos em uma escola de inglês. Que se dedicou a este curso e agora lia, escrevia e entendia inglês perfeitamente. Citou isso como exemplo de sua dedicação aos estudos.

- E mesmo assim, minha mãe não me dá valor. Acham que ela vai me apoiar quando eu lhe disser sobre minha sexualidade? Fico imaginando meu tio alugando o ouvido dela. Ele vai dizer que é falta de porrada e coisas deste tipo.

E para finalizar, aquele menino bonito, falou algo que nos desconcertou mais ainda: - A única coisa que eu gostaria de ter na vida é uma família como a que vocês têm.

Começou a chorar. E nós três também.

O Rafa quebrou o silêncio.

- R, sei que não é a mesma coisa. Mas saiba que você tem a nós como amigos, e eu tenho você dentro do meu coração.

Levantou-se, foi até a cadeira em que o R estava sentado. Com a mão direita acariciou seus cabelos e com o polegar da mão esquerda enxugou suas lágrima. Sorriu para o R que correspondeu e deu-lhe um pequeno beijo em seus lábios. Depois, afastou sua boca da de RB, segurou seu rosto com as duas mãos.

- Pode sempre contar comigo. Ok?

- RB só acenou a cabeça concordando e deu um leve sorriso.

- Agora fica aqui tomando café que eu te chamo já, já.

- Marcos e Uca, subam aqui comigo.

Correu para seu quarto e fomos atrás.

Fuçou em umas pastas de músicas e partituras que usava para treinar bateria.

- Achei. – Gritou.

- Achou o que moleque?

- Perae, Uca. Você vai entender.

- Marcos, seu violão ta aqui em casa ainda?

- Ta sim. Ontem fui embora tarde e não quis levá-lo. Achei melhor deixá-lo aqui.

Pegou umas folhas e perguntou a Marcos: - Você consegue fazer este som, de baixo, com o violão?

- Consigo, mas preciso de uma caixinha de som, para som ficar mais alto e não ser abafado.

- Tem uma ali. É só pegar e conectar. – E continuou a dar orientações – Uca, você vai fazer esta parte com o teclado e este back vocal aqui junto com o Marcos, entendeu?

- Sim Sahib.

Ah como eu esperei pra dizer “Sim Sahib” para o Rafinha. Rimos os três.

- Vai ter de ser de primeira. Sem ensaio. Porque senão ele escuta e deixa de ser surpresa.

Foi até o computador, imprimiu algumas folhas enquanto eu e Marcos, bem baixinho ensaiávamos o back vocal que faríamos.

A batera do Rafa ficava montado em seu quarto, Trouxe meu teclado e o liguei. Marcos plugou seu violão a uma caixa de som. O Rafa ainda ajustou o tripé do microfone próximo da bateria, para que pudesse tocar e cantar ao mesmo tempo.

- Então, “boys”, já podemos chamá-lo?

Dissemos que sim e ele gritou para o RB subir.

- R, sei que você manja de inglês, mas caso não entenda alguma coisa, acompanhe por aqui, pois também coloquei a tradução.

Passou para o RB algumas folhas que tinha imprimido.

O R ficou sentado, em uma poltrona que havia no quarto do Rafa, bem na frente da bateria, mas há uns dois metros de distância. Eu ficava no teclado, a sua direita e Marcos, sentado num banquinho, posicionado a sua esquerda. Formávamos um semi circulo e o R, quase dentro dele.

Rafinha bateu a baqueta três vezes.

Começamos a tocar uma música de Johnny Rivers – Hang Sloopy -,sucesso dos anos sessenta, bem ritmada, em que se destacavam a bateria e o baixo, que Marcos fazia no violão.

Rafinha começou a cantar. Tão bonito quanto na noite anterior. Ele conhecia bem aquela canção, pois a tocava com freqüência para treinar-se na bateria.

Cantou em inglês. Eu e Marcos entrávamos no refrão fazendo o coro.

Meu irmão me surpreendeu realmente. Pensei, num primeiro momento que ele estivesse fazendo tudo aquilo apenas para alegrar Rb, ou por pena de sua situação. Mas lembrei-me que algumas horas antes da visita do RB ele já havia me feito aquele pedido para que eu nunca mais “ficasse” com o R. Também me lembrei que eles já estavam ficando juntos há um bom tempo e não a partir da última sexta-feira, como eu e Marcos.

A partir deste dia nunca mais Rafinha chamou o RB, por este apelido, ou por seu nome, Ricardo Bruno. Para o Rafa ele era o Sloopy... O pequeno Sloopy.


CONTINUA....


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Ficha do conto

Foto Perfil contosdelukas
contosdelukas

Nome do conto:
Adolescentes em ação [11] ~ Hora de assumir

Codigo do conto:
214606

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
08/06/2024

Quant.de Votos:
3

Quant.de Fotos:
0