Adolescentes em ação [16] ~ mãe sempre sabe

Fiz questão de frisar que minha tia não fez uma faculdade porque entendo que a falta de informação, conhecimento, cultura, contribui muito para que as pessoas alimentem preconceitos diversos. Isto, porém, não significa que todo mundo que não estudou e não fez faculdade será uma pessoa preconceituosa.

Nos países desenvolvidos, onde o analfabetismo é mínimo, ou zero, e onde a população tem facilidade para evoluir em seus estudos, o preconceito e a discriminação são mais reduzidos, apesar de, infelizmente, existirem.

Com o episódio de minha tia, Rafinha se sentiu fragilizado. Aquela decepção fora muito grande. Jamais contamos este fato para o RB e o Marcos, de tanta vergonha que sentíamos por temos em nossa família uma pessoa homofóbica.

- Uca, eu vou contar de mim, para o papai e para mamãe.

- E por que você se decidiu em fazer isso?

- Já que até a tia Eneyda age como nossa inimiga, é melhor eu contar para eles logo, assim eu saberei que quando eu for rejeitado por alguém, por ser gay, eu terei a quem me abraçar para chorar.

- Você já tem a mim...

- Tenho sim, da mesma forma que você me tem também. Mas, você também será alvo do preconceito, você também vai se sentir fraco, você também vai querer alguém que te ame te abraçando e de dando apoio, e as únicas pessoas que estarão fortes ao seu lado para te dar este apoio serão nossos pais.

Aquele moleque, mais novo do que eu, que muitas vezes agia como um tolo por causa das graças que fazia, dissera-me palavras verdadeiras. Na realidade eu já estava fragilizado e sentia falta de ouvir das pessoas que eu amava, meus pais, que teria o apoio deles e que eles estariam ao meu lado e de meu irmão. Acreditava que seria mais fácil enfrentar o mundo com eles ao meu lado.

Passaram-se dias até que chegara a semana em que seria realizado o festival de música GLS.

- É neste final de semana, pessoal. – Disse- nos Rodrigo numa segunda feira.

Continuamos a ensaiar aquela semana inteira. Rodrigo e as panteras passaram a freqüentar minha casa diariamente. Os ensaios eram mais longos e terminavam quando meus pais chegavam do trabalho, assim não tinham como reclamarem do barulho.

Os “internet’s” se aproximaram muito de nós após a campanha para a eleição do Grêmio e eles cuidarriam da parte técnica de nossa apresentação, luz, som e efeitos especiais. E os moleques manjavam muito disso tudo. Foram eles quem se ofereceram para ajudar-nos. Confundíamos muito seus nomes, então os chamávamos de W1, W2 W3, respectivamente do maior, que era o mais velho, ao menor, que era o caçula.

No LG, depois que enfrentei Snape, caí em desgraça com sua esposa. Mal olhava na minha cara em sala de aula, respondia com rispidez às minhas perguntas – que acabei deixando de fazer – para tira dúvidas; e o rigor na correção de minhas redações e provas era totalmente exagerado.

- Professora Eme, a senhora vai considerar como pleonasmo esta expressão de minha redação?

- “Entrei para dentro de minha casa correndo para ir ao banheiro.” – Repetia ela em voz alta para toda classe ouvir – Se “entrar para dentro” não é pleonasmo, não mais sei o que o seria então.

- Eu apenas quis ser enfático. Eu tenho consciência que entrar pra dentro é pleonasmo. E a licença poética?

- Adentrei à minha casa, Lucas. Adentrei e não “entrei para dentro”.

- Engraçado, professora. O Ari Barroso escreveu uma das músicas mais bonitas de nosso país, e na letra dela ele diz “Esse coqueiro que dá coco”. Coqueiro só pode dar coco e nem por isso esta música deixou de se tornar um clássico.

- Quando o senhor for um “Ari Barroso” o senhor vem discutir comigo e eu lhe darei licença poética.

A diaba poderia até estar correta, mas a maneira como ela falava e no menosprezava é que era ofensiva.

Eu sei que a tolerância comigo era menor e eu comecei a participar e me desinteressar cada vez menos de sua aula e isso se refletiria em minhas notas.

- Lucas, perdi meu livro da demônia e semana que vem tem prova. Empresta o seu para eu xerocar? –

- Pega aí, Rodrigo. Acho que nem vou estudar mesmo para essa “desgraça”. Acho que já não adianta mais mesmo. Já to com média vermelha no bimestre.

Com Snape, apesar de não tanto quanto acontecia com sua esposa, minha situação se complicava. Ele já encontrava detalhes na cópia de suas matérias em meu caderno, que faziam com que eu não obtivessem os 5 pontos que todos alunos facilmente conseguiam na média bimestral. E eu sabia que na prova dele não me daria bem. A média vermelha em química era apenas uma questão de tempo.

Certo dia passando com Marcos próximos a um grupo de garotos que não tínhamos muita amizade, tive a impressão de ouvir algo que me desagradara.

- Você escutou, Marcos?

- O que, Lucas?

- Parece que naquele grupinho falaram quando passamos por eles, “olha o casalzinho de namorados”

- Eu não ouvi. Você tem certeza?

- Tenho.

- O que você quer fazer? Quer voltar lá e damos uma prensa neles?

- Não. Seria pior. Por enquanto, deixa quieto.

A amizade de nós quatro com o professor Luke aumentava a cada dia e, vez ou outra, íamos os quatro visitá-lo em sua casa.

Ele morava com sua mãe, dona Edith, uma senhora muito simpática. Tinha por volta dos 70 anos, professora aposentada, culta e uma mente muito aberta. Sabia da homossexualidade de seu filho e por conseqüência da nossa.

Era muito engraçado o fato daquela senhora, idosa, tratar a homossexualidade, e os homossexuais, com muita naturalidade. Talvez a expressão certa não fosse engraçado, mas sim irônico, pois muitas pessoas bem mais novas, inclusive os alunos do LG, eram carregados de preconceitos em relação a estas questões. E ela, criada em outra época, quando os padrões morais e de costumes da sociedade eram outros, mais conservadores e atrasados, não possuía preconceito algum.

A dona Edith se afeiçoou muito ao RB, talvez por causa de seus problemas familiares ou somente porque ele era muito bonzinho mesmo. Futuramente quando estaria doente, o professor Luke contrataria o R para servir como uma espécie de acompanhante de sua mãe. O RB saia da escola, almoçava e depois ia para a casa do Luke e ficava com sua mãe até a noite quando ele retornava do trabalho. A amizade entre RB e a dona Edith tornou-se cada vez maior. Ela o tratava como um neto e ele, por sua vez como se ela fosse sua avó. Conversavam muito sobre livros, atualidades, os problemas do RB em sua casa. Ela lhe dava conselhos quanto ao seu namoro com o Rafinha e o chamava por um apelido muito carinhoso, Amorzinho.

Numa de nossas visitas à casa de Luke, tivemos uma conversa que nos foi muito int

Numa de nossas visitas à casa de Luke, tivemos uma conversa que nos foi muito interessante e esclarecedora.

- Eu ia com meu cunhado – irmão do pai de Luke – numa boate gay em São Paulo, lá na Augusta, chamava-se Medieval.

- Mas por que a senhora foi lá, tia? – perguntou RB.

- Amorzinho, eu fui uma vez para assistir ao show do Cauby Peixoto. Depois acabei indo outras vezes porque fiz amizades com os “entendidos” amigos do meu cunhado.

- Entendido? – perguntou Rafinha.

- Entendidos era como eram chamados os gays lá pelos anos 60, anos 70. – Ela respondeu atenciosamente a pergunta do Rafa, como uma professora tirando dúvidas de um aluno.

- Dona Edith, e como foi, e o que a senhora sentiu quando soube do Luke? – Perguntei á aquela simpática senhora.

- Soube o que? Que ele era gay?

- Sim.

- Saber eu sempre soube...

Já veio a minha mente a frase “mãe sempre sabe”.

- Mas como a senhora sempre soube? Por que todo mundo fala que mãe sempre sabe? – Perguntou Marcos para dona Edith.

- Porque Marcos, nós mães carregamos vocês na barriga durante nove meses, depois acompanhamos suas vidas desde bebê até quando já estão adultos, lembramos de fatos ocorridos com vocês, filhos, que vocês próprios não se lembram. Vocês são parte de nosso corpo, são parte de nosso espírito. Sabemos seus gostos, suas dores, seus costumes, suas manias. Se nós mães somos tão próximas e tão preocupadas com vocês filhos, que fica, quase que impossível, de vocês esconderem algo de nós. – E continuou – E por sabermos que a sociedade discrimina os homossexuais, vimos esta situação como um risco às suas seguranças, então o nosso pressentimento, a nossa intuição materna aponta para os protegermos e estar mais “coladas” e atentas às suas vidas o que acaba fazendo com que confirmemos nossas suspeitas.

Em toda minha vida, aquela teria sido a explicação mais lógica para a justificativa da frase “mãe sempre sabe”.

- E por que a senhora nunca falou nada para o Luke, tia Edith? – Perguntou Rafinha.

- Por que eu estaria desrespeitando sua intimidade. Seria um desrespeito contra sua pessoa. Uma violência. Durante anos ele me escondeu isso, por achar que o fato de eu saber seria doloroso para mim. E sendo doloroso par mim, ele também sofreria, porque o filho não quer ver sua mãe sofrendo, sentindo dores na alma. Eu me senti muito aliviada quando ele me contou, pois vi que ele retirou um peso de si e ficara mais feliz.

- E porque você contou Luke? –Perguntei para ele que estava bem próximo só ouvindo nossa conversa.

- Quando passei a me aceitar como homossexual eu já tinha 30 anos. Tomei esta decisão muito tarde, pois, sempre soube de minha homossexualidade, mas não a aceitava. Preocupava-me com o que os outros iriam pensar e desta forma acabava vivendo numa infelicidade total, pois não tinha vida de homossexual e nem de heterossexual, já que “não me sentia bem” com as mulheres. Acabava me enfurnando dentro de casa e apenas vendo a vida passar. Também vivia nervoso e me irritava com tudo e com todos, já que este “problema” me incomodava muito. Apesar de ter uma família que me amava e de muitos amigos, eu me sentia solitário. Em uma ilha deserta.

- E o que te levou a tomar a decisão de se assumir?

- Uma reportagem da revista Veja. Reportagem de capa. Fez-me enxergar que eu não era um doente ou anormal. E o que foi melhor, que existiam milhares, milhões de pessoas como eu. Na reportagem, comentavam de um lugar chamado autorama, onde centenas de gays se reuniam “ao ar livre” para trocarem idéias, como vocês gostam de falar.

- E você foi lá. Luke? – Indagou-lhe RB.

- Rafa, até tinha mulher, mas poucas. – Continuou a nos contar – Eu olhei para toda aquela cena e pensei “Meu Deus! Como tem gay no mundo! Retornei no final de semana seguinte, na sexta a noite, quase meia-noite. Aquele estacionamento estava congestionado. Deveria ter ali uns quinhentos carros. Uns parados e outros circulando. Chegava a haver engarrafamento. Olhei de novo para aquilo e pensei “O mundo é gay!”

Todos nós caímos na risada.

- Eu não me sentia mais só a partir do momento que vi toda aquela multidão com a mesma sexualidade que a minha. Percebi que não era um estranho vivendo neste mundo. Foi um momento de muita felicidade para mim. Nunca mais me senti diferente.

Fez uma pausa e realmente em sua expressão, demonstrava que se lembrava daquele momento com alegria.

- Outra coisa quando fui ao autorama, que me fez surpresa, uma grata surpresa, foi ver aqueles rapazes se beijarem, se acariciarem e namorarem. Eu não sabia que aquilo era possível. Para mim, a homossexualidade estava relacionada apenas á relação sexual e não ao afeto. Não pensava que dois homens pudessem se apaixonar.

- Mas eles querem saber do porquê que fez você me contar. – Disse para Luke a dona Edith.

- Calma mamãe, vou chegar lá.

- Um dia tive coragem e desci do carro no autorama.

- Você não descia Luke? – Perguntei.

- Não. Mesmo sabendo que ali só tinha gays, tinha medo que alguém me visse e me reconhecesse. Mas, um dia criei coragem, desci e fiz amigos, passei a ir em boates, bares e a me divertir.

- Ele não parava mais em casa. Dormia na rua e chegava de manhã. Eu ficava super preocupada - Relatou-nos a dona Edith.

- Foi ai que você contou?

- Não, Marcos. Eu bem que deveria ter contado porque o meu comportamento e hábito mudaram e preocupavam minha mãe, mas ainda não tinha coragem para assumir-me para ela e nem pra ninguém. Convivi com duas vidas, Igual ao Batman que de dia era o Bruce Wayne e de noite o herói mascarado.

- Afinal, Luke, quando você contou e por quê?- perguntou o Rafa ansioso.

- Só contei anos depois, por causa do falecido.

- Falecido? Que falecido?

- Falecido, Amorzinho, é o ex-namorado dele. Ele o chama assim desde que terminaram.

- Eu conheci o falecido, Airton era o nome dele, me apaixonei e nossa vida passou a ser uma só. Ele não saia daqui de casa, praticamente morava aqui e ficou difícil não dizer a minha mãe o que acontecia. Foi aí que contei e foi a melhor coisa que fiz na vida, pois ela que já sabia, me aceitou muito bem. E a partir daí passei a viver minha vida com plenitude, com uma liberdade que eu não tinha. Já não tinha de me esconder de ninguém, pois se minha mãe, que é a pessoa que mais me ama, já sabia e não se importava, por qual razão eu me importaria que outros soubessem.

- E o fato de você se assumir não te prejudicou em seu trabalho?

- Não, Lucas. Sempre fui estudioso e competente. Nunca misturei minha vida particular com meu trabalho. Nunca dei oportunidade para ninguém falar nada de mim ou perguntar nada a meu respeito.

- Mas, os alunos não sabiam de você?

- RB, sempre um ou outro conhece alguém, que conhece alguém que me viu não sei onde e acaba sabendo. Mas, como sempre tratei os alunos com respeito e nunca, como já disse, usei de minha condição de professor para paquerar ninguém, mesmo os que pudessem saber alguma coisa de minha vida particular, nunca ousaram a me xingarem ou fazerem troça de mim. Ao contrário, praticamente todos os anos sou homenageado e escolhido como paraninfo.

- E o “falecido”? Perguntou Rafa.

- Outra hora falamos do “falecido”, Rafa.

A dona Edith, mais tarde, quando o Luke não estava perto, nos contaria que ele ficava muito triste quando se lembrava do “falecido”. Parecia que ainda o amava muito.

Eram muito divertidas as visitas à casa de Luke. E como de fato ele não misturava a vida particular com a nossa relação na escola, onde eu era o senhor Lucas Augusto e que muitas vezes levava umas boas broncas do “professor de geografia”.

- Luke, você se arrepende de alguma coisa? –Eu perguntara aquilo porque queria saber, caso eu tomasse aquela decisão, se iria me arrepender depois.

- Sim, me arrependo muito das coisas que eu não fiz.

- De que se arrepende?

- De não ter me aceitado antes como eu sou. Poderia ter sido feliz há mais tempo. Deveria ter contado antes para a minha mãe e deixado a opinião dos outros de lado, teria obtido minha liberdade há mais tempo. E vocês sabem que sem liberdade, não existe vida.

Esta conversa toda com o Luke e sua mãe me dava mais força para contar logo aos meus pais sobre minha sexualidade, e seguir uma decisão que o Rafa já houvera tomado e estava prestes a concretizar.

- Marcos, to pensando seriamente em contar para os meus pais. – Disse quando saímos do apartamento de Luke.

- Você leu meus pensamentos – respondeu-me.


continua....


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Ficha do conto

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Nome do conto:
Adolescentes em ação [16] ~ mãe sempre sabe

Codigo do conto:
214720

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
10/06/2024

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