- Meu Deus!! Quanto veado e sapatão. Nunca imaginei que fossem tantos.
- Cala a boca Rodrigo, senão você será linchado aqui. – Falei para ele que estava tão surpreso como eu.
- E a Ariadne nos falou que poderiam vir qualquer um e não só a comunidade GLS. –acrescentou Marcos.
- Mas parece que não avisaram o “qualquer um” ou “ele” não encontrou convite para comprar. – Retrucou Rodrigo.
- Rodrigo, você tirou seu aparelho?
- Ele seria retirado na semana que vem...Então, né, Lucas...O vocalista da banda tem que ter uma boa presença...Fui lá, falei com o dentista e pedi se dava para retirar para o festival...E toa aqui...Lindão
- Ta aqui. Lindão é por sua conta. – Falou Rafa zuando.
O festival estava sendo realizado num pavilhão aqui de nossa cidade em que há muitos anos fora usado como estúdios de cinema. Estava lotado. Veio gente não só do ABC, mas de toda a grande São Paulo. Eram cinco mil pessoas ou mais. Foi cobrado como ingresso um quilo de alimentos não perecíveis para serem doados a alguma instituição de caridade.
- Olhem quem está ai também, o Luke! – falou RB apontando para o nosso amigo em professor, que estava distante e não nos via.
- Quem é Luke? – Perguntou meu pai.
Nosso pai nos acompanhara para levar os equipamentos e também porque tínhamos uma surpresa para mostrar para ele. Quando o convidamos, tivemos a preocupação de alertá-lo de que se tratava de um festival GLS, e a única resposta que ele deu foi “e daí?”.
- Luke é o nosso professor de geografia. Aquele que é nosso amigo e que costumamos visitá-lo. – Explicou Rafinha para nosso pai.
- Aquele que vocês falaram que a mãe dele gosta de cantar o mesmo tipo de música que eu?
A dona Edith, além de toda a simpatia e sabedoria que possuía, adorava cantar. Cantava Maísa, Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira e um monte de outros cantores que, do nosso quarteto, somente Marcos é quem os conhecia. Muitas vezes ele levara o violão em nossas visitas á casa de Luke, para tocar e cantar junto com a dona Edith.
- Ele mesmo pai. – Confirmei.
Logo na entrada havia uma banda, que aparentemente era formada por mulheres. Não estou falando banda de rock e sim estas bandas que se apresentam em praças e desfiles.
Aproximamos da banda, que tinha uns quarenta elementos ou mais. E pudemos notar que a banda não era de “mulheres” e sim de homens vestido de mulheres. Quando meu pai escutou a música que a banda tocava, observou as roupas e as perucas que “elas” vestiam, deu uma gargalhada e falou.
- Elas estão vestidas de Dorothi, do filme O Mágico de OZ.
A música que tocavam, e que tocaram diversas vezes naquela noite era “Over de Rainbow”.
Descobri muito tempo depois que Judy Galard, a atriz que interpretou a pequena Dorothy, é considerada um ícone popular gay. Dizem que seu pai era gay e dois dos cinco maridos que tivera também eram. Os gays mais antigos, há muito tempo, para se identificarem entre si, se chamavam de “amigo de Dorothy”- isso quem me contou foi a dona Edith – Talvez, porque no filme, Dorothy tinha como amigos personagens estranhos, um leão, um espantalho e um homem de lata. Como a sociedade achava, e acha, os gays “criaturas estranhas”, surgiu a expressão “amigos de Dorothy”
Além de “Over de Raibow”, a banda atacou de “I Will Surviver”, “It’s Raining Man”, “Barbie Girl”, várias do Village People e outras músicas identificadas com o seguimento gls.
Meu pai conhecia todas e não se acanhava em dançar e cantar as que ele lembrava.
- Meninos, esta é do tempo em que eu ia às “discotecas” nos anos 70, ou 80...nem me lembro. – Disse quando a banda executava “Macho Man”
Eu e o Rafa estávamos morrendo de vergonha de ver nosso pai dançando La perto da banda, junto a um monte de gays. E o pior é que ele pedia para dançarmos juntos. Eu danço mal e morro de vergonha.
- Vamos, meninos. Venham dançar. – Insistia ele para nós.
- Não pai. Estamos “de boa”. – Falou Rafinha.
- Você podem ficar ai parados se quiserem, mas eu vim aqui para me divertir. Eu vou lá dançar com seu pai.
Quem disse isso foi o Rodrigo, que se jogou no meio da multidão e, junto com meu pai, dançou fazendo uma coreografia com braços e punhos, enquanto a multidão cantava os versos de “Macho Man”.
- Aquele moleque tocava comigo na igreja. – Disse RB.
- Que moleque? – perguntei, pois ele apenas apontou com a cabeça um lado e eu não vira ninguém.
- O segundo trombonista da primeira fila. – Ele explicou mostrando a banda.
Olhamos atentamente e vimos a quem ele se referia.
- Mas, “aquela Dorothy” não é aluno do LG? – perguntou Marcos.
- É sim – respondeu RB – ele é de um segundo anos, mas não é da minha classe e nem da do Rafa. Ele é quietinho. Todo mundo fala que ele é nerde. E olha ele aí agora.
Passamos a observar a banda mais de perto os elementos da banda. Realmente tinha mulheres sim na banda. E eram lésbicas. Nos surpreendemos que entre elas estavam “os irmãos metralhas”. Tocavam instrumentos de sopro. Lembro-me que Monga tocava tuba.
- Estão gostando da banda, senhores?
Reconheci aquela voz que nos perguntava.
- Oi Luke! – cumprimentei- o – A banda é sensacional. Meu pai falou que elas estão vestidas iguais a “não sei quem” de um filme.
- Dorothy, do filme O Mágico de Oz. Foi sugestões minha. Eu tinha visto uma banda igual, numa parada gay em um filme chama “Meus Queridos Presidentes. Dei a dica para Ariadne, e parece que gostaram da sugestão.
- O senhor é militante gay, Luke? – perguntou Marcos.
- Não sou militante de nada. Cumpro apenas minhas obrigações como cidadão. Lutar pelo direito a igualdade é um dever de todos. Não estou aqui por ser gay. Lógico que quero e pretendo me divertir. Mas, viria de qualquer forma, já que aqui se trata de um ato em defesa de direitos que todas as pessoas tem.
- Mas, isso aqui não é uma festa, Luke?
- É uma festa sim Rafinha. Não deixa de ser uma festa. Mas o intuito principal é lembrar as pessoas que os gays existem e devem ter seus direitos respeitados.
Continuou a nos explicar.
- Fica mais difícil você reunir milhares de pessoas em um local, sem musica, sem dança, nem diversão e quere apenas debater questões sociais. A grande maioria das pessoas, e entre elas se incluem os gays também não tem a consciência de cidadania e não sairiam de suas casa apenas para uma reunião de discussão ou uma marcha de protesto. Assim, os grupos que organizam estas manifestações, unem o útil ao agradável. Fazem a festa de cultura GLS e ao mesmo tempo procuram lembrar a todos os participantes da importância de cobrarem seus direitos e o respeito da sociedade. Só não podemos olhar esse movimento todo como apenas uma festa e nada mais.
- Luke – perguntei – para quem serão doados aqueles alimentos?
- Eu não sei. Mas olha a Ariadne ali. Ela deve saber.
Ariadne se aproximou de nós. Cumprimentou-nos com beijos na face, inclusive ao professor.
- Já está todo o pessoal da sua banda ai, Lucas? – Perguntou-me.
- Faltam ainda “os internet’s” e as panteras.
- Ariadne, por gentileza, você poderia nos explicar par quem serão encaminhados os alimentos arrecadados? – Perguntou-lhe Luke.
- Sim. Posso sim.
Ela nos explicou que existem diversos homossexuais que se encontravam em situações de penúria, doentes e abando nados por seus familiares. E que os alimentos seriam doados a uma instituição que cuida destas pessoas.
- Esta instituição abriga muitos travestis que tiveram complicações de saúde devido o uso de silicone industrial. Também muitas estão com outras doenças oportunistas que aparecem quando as pessoas infectadas pelo vírus da AIDS não fazem o tratamento corretamente e nem se alimentam ou se cuidam corretamente.
- Mas só abrigam travestis? – perguntei.
- Não. A assistência é dada a qualquer homossexual que precise ser ajudado, Inclusive atende a aqueles que são expulsos de casa quando a família descobre sua sexualidade. Muitas vezes são ainda menores de idade e, se não fosse essa nossa ONG, seriam jogados pelo conselho tutelar, em um abrigo público qualquer, e poderiam ser abusados e violentados por adolescentes mais velhos.
Passei a perceber que doenças, abandono, pobreza, é algo ruim para qualquer pessoa, mas que para os homossexuais, enfrentar estes problemas é algo bem mais difícil, devido aos preconceitos da sociedade. Se a sociedade não é solidária com crianças que a todos os dias estão nos faróis pedindo uns trocados para comer ou usar craque, não será para os travestis, gays e lésbicas, os “anormais”, que ela se solidarizará.
Ariadne estava muito bonita. Vestia uma bermuda branca e uma camiseta lilás, como todos da organização do evento, com os dizeres “Igualdade: esta luta também é sua”.
Não demorou muito e chegaram “os internet’s” com o restante dos equipamentos técnicos e as panteras com “sacolas e sacolas” em que traziam suas vestimentas. Chamei Rodrigo e fomos para os fundos do grande palco armado no pavilhão Vera Cruz. Luke e meu pai também foram conosco para o local onde nos prepararíamos..
Várias bandas de rock, forró, pagode, grupos de dança, cantores e cantoras que se apresentariam individualmente e até um ventríloquo, se arrumavam em diversos pequenos quartinhos, feitos apenas com divisórias e que serviam de camarins.
- Vocês ainda não me falaram o que irão cantar – falou meu pai.
- Pai, já falei que é surpresa. Na hora da nossa apresentação, o senhor vai lá pra frente do palco e fique lá junto com o Luke e assista. Garanto que o senhor vai gostar. – Falei.
Passou perto de nós uma moça negra, tímida. Jeans e camiseta e os cabelos presos em forma de um pequeno rabo. A acompanhavam alguns rapazes, um pouco afeminados, segurando sacolas e assessorando. Alguém de camiseta lilás, que vi tratar ser alguém da organização do evento, a encaminhou para um camarim ao lado do nosso. Quando ela viu o Luke, parou abriu um largo sorriso e o cumprimentou de forma muito simpática.
- Como vai você meu, amigo? Não fez mais nenhuma musiquinha para mim?
- Se você quiser, preparo já alguma coisa para você se apresentar.
Não entendíamos nada daquela conversa que presenciávamos. Luke se vira pra nós e a apresenta.
- Senhores, esta é Silvetty Montilla, uma das maiores e melhores Drag’s do Brasil. Ela será a apresentadora do festival.
Eu tinha uma noção do que fosse uma Drag Queen devido a alguns programas de televisão. Sabia que eram homens que se vestiam de mulher de forma estilizada, mas não eram como travestis, que o fazem de forma permanente e procuram até alterar o próprio corpo. As Drag’s apenas se montam por diversão ou para shows e outras apresentações. São muito divertidas. Neste dia havia dezenas de drag’s andando ao meio da multidão.
Ela foi muito simpática, cumprimentou a todos nós e quando deu um beijinho para cumprimentar o Rb falou: - Esse ai parece que tem necão.
Foi para seu camarim se “montar” e disse para Luke que o aguardaria no camarim para que ele lhe levasse uma musiquinha para ela cantar na hora de seu show.
- O que é necão?
- Deixa que vou explicar para o senhor “seu” Carlos. – Foi se adiantando Rodrigo, para querer responder ao meu pai.
- Rodrigo, cala a boca. Pai, não é nada não. Depois em casa eu explico para o senhor. Vamos nos arrumar agora e o senhor vai lá pra frente. – Virei para Luke e perguntei – Luke, você fica com meu pai?
- Com o maior prazer. Deixe apenas eu passar no camarim da Silvetty e já me encontro aqui mesmo com ele.
Foi até lá. Demorou um pouco. Enquanto isso começamos a nos preparar para apresentação. Quando Luke voltou, perguntamos para ele que papo era quele de musiquinha que ele travara com a Silvetty.
- Ela em seus shows costuma cantar umas paródias engraçadas de músicas conhecidas. E uma das mais famosas, que ela inclusive gravou, foi eu quem compus para especialmente para ela.
- E como é que é Luke? Canta um trechinho para nós – Pediu Rafa.
E ele cantou apenas o comecinho. Não quis cantar tudo, pois disse que a ouviríamos no show da Silvetty. Era uma paródia de uma música da Xuxa.
- Todas gritam iai, quando querem dar o edi...
Ouvimos ele cantar um pedaço da música e era realmente muito engraçada.
- O que é edi? – Perguntou meu pau curioso.
Rodrigo já estava abrindo a boca pra falar.
-Pai, em casa eu explico o que é edi, neca, o senhor saberá tudo, mas em casa. E você Rodrigo, vê se fecha a boca.
Em casa conversávamos de tudo com nosso pai, mas eu estava meio envergonhado devido a pouca familiaridade que tínhamos com um ambiente cem por cento homossexual. Eu não queria que meu pai associa-se a imagem daquele movimento bonito de cidadania a expressões que lembravam apenas de sexo. Mesmos ele sendo muito cabeça aberta.
- Luke, e você foi lá no camarim da Silvetty fazer o que? - perguntei
- Fui levar uma musiquinha que compus agora para ela cantar na abertura do show.
- Canta pra nós - pediu Rafinha.
- Não. Essa é surpresa. Ouçam na hora do show
Voltou e chamou meu pai. Antes de se retirarem ainda fez uma pergunta.
- Meninos, qual o nome da banda de vocês.
E nós todos juntos que estávamos ali ansiosos para nosso show, respondemos de forma uníssona.
- Amantes sem Fronteira.
Como foi difícil achar um nome para o nosso grupo. Queríamos um nome que fosse representativo de nossos sentimentos e que fosse simpático para o público que nos ouviria. Também tinha de possuir uma boa sonoridade. Este nome foi uma alusão à organização internacional, Médicos Sem Fronteira, que atende vítimas de guerra do mundo todo, e que Luke citara em uma de suas aulas. Como o nosso intuito era levar uma mensagem de amor a todos, não importando sua sexualidade, etnia, religião, condição econômica, etc, escolhemos esse nome – Amantes Sem Fronteiras..
- E agora senhoras e senhores, “Rodrigo e os amantes sem fronteira”. – Falava Rodrigo imitando um apresentador qualquer nos anunciando em shows futuros.
- Ô mula-sem-cabeça... Quem falou pra você que é o nome da banda é Rodrigo e os amantes sem fronteira? – Perguntei.
- Eu não sou o vocalista da banda? Então...
- Deixa de ser imbecil. O “sucesso” que não temos está lhe subindo à cabeça. Volta aqui pro chão e fica quietinho e se concentre para a apresentação. Ok? – falei para ele.
Ele ainda falou, sucesso é certeza, apenas uma questão de tempo. Já vejo nosso CD’s nas lojas com grandes cartazes onde aparecem nossas iniciais “ASF”.
Todos nós riamos muito com as viagens de Rodrigo.
Preciso dizer que nos ensaios ele estava se saindo muito bem. Eu estava um pouco preocupado apenas com uma coisa: ele nos omitiu como se vestiria e como seria sua “performance”, Dizia-nos que depois de vê-lo a Ariadne deixaria de ser lésbica para ficar com ele.
- Sim...Fica esperando, gostosão, irresistível, último dos machos... – Zombou o Marcos de Rodrigo.
- Vocês verão.- Retrucou.
Aquele evento acontecera durante o dia todo, com várias outras atividades além do festival de música.
Teve até olimpíada gay. Com alguns jogos e gincanas.
Uma das provas desta gincana era bem inusitada. A organização colocou num quadrado de mais ou menos 5 metros de cada lado, quatro gogo boys, mais ou menos todos do mesmo tamanho e vestidos somente de sunga. Os rapazes eram lindos mesmo. Lambuzou dos pés a cabeça com chantilly. A tarefa era a seguinte, as quatro equipes concorrentes, formadas por três elementos cada, amarrados com as mãos para trás, teriam 5 minutos para retirarem o chantilly do corpo de seu gogo boy, só podendo usar as línguas e mais nada. Enquanto a prova se realizava, o DJ soltava uma música eletrônica qualquer, que junto com aquele cena quente deixava o público bastante agitado, que ao mesmo tempo que dançava, não parava de gritar.. Ganhava os pontos da prova a equipe que terminasse primeiro ou que tivesse retirado mais chantilly de seu gogo no prazo que fora dado.
Eu sabia que meu pai tinha “mente aberta”, mas eu estava muito constrangido. Eu não sabia que no evento teria aquele tipo de situação. Juro que se soubesse não teria convidado o meu pai para nos acompanhar. Mas, surpreendentemente, ao contrário de mim, ele agia com muita naturalidade e descontração. Enquanto via aquela prova dava gargalhadas e até fazia piada.
- Olhem meninos, aquele ali – falava apontando para um dos competidores que lambiam o gogo boy – Olha como ele vai com cede ao pote. Acho que mesmo que ele fosse diabético iria preferir morrer de tanto lamber aquele creme, mas não deixaria de continuar.
Quando se iniciaram as apresentações já eram quase nove da noite.
As luzes se apagaram. A galera começa a gritar. Três canhões de luz postados ao alto cruzavam seu focos, enquanto uma voz bem mácula, de locutor de rádio, anunciava, tendo ao fundo alguns acordes musicais.
- Senhorasas e senhores, gays e lésbicas, drags e travestis, bissexuais e simpatizantes, heterosseuxuais amigos aqui presentes recebam com carinho a apresentadora do festival GLS de música , a maravilhosa, SILVEEEEETTY MONTIIIIIIIIILLA.
O público aplaudia, gritava, pulava. Mas ela não apareceu.
uvimos um grito bem alto nas caixas de som com uma voz bem grave que parecia de ser de um “negão”: “calem a boca caralho”.
Fez-se um silêncio.
Os canhões miraram o centro da cortina e esta se abriu em duas partes, e Silvetty apareceu toda radiante, com um vestido longo brilhante devido a diversos apliques de brocados e lantejoulas, plumas diversas, uma peruca lisa tipo Chanel, saltos bem altos, elegantérrima, empunhava o microfone na mão direita e com uma voz, agora feminina e debochada, soltou em canto os versos que Luke lhe entregara no camarim.
“ Eu sou a Silvetty,
sou uma travesti,
quando eu der meu boa noite
vocês gritem iai”
Ela cantou os versinhos, que parodiavam a Ciranda da Rosa Vermelha, feitos pelo Luke. E depois deu grito:- Boa Noiteeeeee!
E a galera respondia.
-Iaiiiiiiiiiiiiii
Eela repetia.
-Boa noite!
E o povão gritava respondendo.
- Iaiiiiiiiiiiiiiiii.
Era muito divertido aquilo tudo. Eu fiquei sabendo aquele dia que iai, dito entre a comunidade gls, era pronunciado bem diferente do “Iai mano, beleza”, que ouvíamos muito entre os meninos heteros no LG. O iai gay é pronunciado de forma debochada, meio anasalada, arrastando o último I, e pronunciado com voz bem afeminada.
O show da Silvetty era divertidíssimo e o público a adorava. Fez diversas piadas com os presentes, brincando com as passivas, com os gordinhos, com os negros, com os gays coroas (as tias) . O público ria muito. Adoro a Silvetty até hoje. Continuou humilde, bondosa e solidária a todos que precisam de ajuda, apesar de hoje ser um nome de fama nacional.
Entretanto, tempos depois deste festival, Luke me chamou atenção para um fato que eu até então não notara e acabei concordando “as piadas das Drag’s em geral, são preconceituosas e discriminam os afeminados, os mais velhos, os feios, os pobres, os que moram na periferia e outros mais. Ou seja, aquilo tudo que nós gays não gostamos que façam conosco, as Drags acabam fazendo”. O Luke também observou que nós homossexuais nos discriminamos, nos dividimos e nos rotulamos uns aos outros. E deu um exemplo, disse que os que se acham “machinhos” não querem ficar perto dos afeminados pra não se queimarem.
- Ninguém tem culpa de ser afeminado. Do mesmo modo que ninguém escolheu ser homossexual, ninguém escolhe ser afeminado ou masculinizado. Cada um nasceu de um jeito e construiu sua personalidade devido a vários fatores que independem de sua escolha. – Explicou-me.
Como outro exemplo, lembrou que quando dois gays brigam, costumam se xingar de “passivas”.
- Lucas, você escutara muitas vezes um brigando com o outro e falando assim “essa passiva do caralho” – O Luke disse essa expressão alterando a voz como se imitasse um travesti.
E continuou a explicação.
- Ser passivo não é desvio de caráter ou moral para ser usado como xingamento. Ser passivo é apenas uma atitude durante uma relação sexual, relacionada a forma de prazer que um individuo tem ao “transar” com seu parceiro. Não é uma mera escolha. Ele sente prazer desta forma. È uma preferência. Fazer outra coisa não lhe daria prazer e a relação sexual não teria sentido para si. Os ativos deveriam agradecer a existência dos passivos, “se não comeriam quem?”
Vários números musicais foram apresentados antes que o nosso. Um garoto de nossa escola, que todos sabíamos que era gay devido aos seus modos e feições delicadas, que estudava canto lírico e sempre nas apresentações cívicas fazia o solo do hino nacional, apresentou-se no festival fazendo uma espécie de cover do Edson Cordeiro e canto ladeado por dois gogo boys a música Barbie Girl. O moleque tinha uma voz de soprano. Cantava muito e de tão alta e aguda quase nem necessitava de microfone. Um pouco atrás dele, os gogo boys que o ladeavam faziam o back vocal e dançavam com um gingado muito sensual enquanto cantavam “Come on Barbie, let's go party!” O pavilhão vera Cruz quase veio abaixo de tanto que o público aplaudiu e gritou. O David – este era o nome do garoto de voz lírica – foi sensacional. Senti um calafrio por achar que não teríamos um número para exibir a altura daquele que fora apresentado.
- “Tamo” fudido – Disse o Rafa.
- O moleque é bom prá caralho - Falou o Marcos.
- Vocês estão com medinho, é ? – falou Rodrigo todo enrolado num roupão para que não víssemos seus trajes – Confiem em mim, nós sairemos daqui com o primeiro lugar.
Será que o Rodrigo ta fumado, cheirado ou usou qualquer outra droga?” eu pensava. Como ele poderia dizer aquilo? Ensaiamos muito, caprichamos, mas fomos lá apenas com a intenção de participar e não de sairmos ovacionados como astros pop’s.
Silvetty foi anunciando os números um a um. Apresentou-se o ventríloquo que cantava vestido de smoking segurando uma boneca na mão direita, confeccionada por ele próprio. A boneca era negra, longos cabelos em cachos, trajava vestido de gala e juntos, cantaram “Con Te Partirò”. Foi um número muito bonito mesmo. O público gostou muito.
Seguiram-se diversas outras apresentações.
Silvetty estava cantando a musiquinha famosa feita pelo Luke – “Todas gritam Iai”- e quando teminasse nos anunciaria.. Eu estava muito nervoso. Na realidade, todos nós estávamos, menos o senhor “sou o show” que continuava enrolado em seu roupão.
- Cadê as panteras? Até agora não se arrumaram? – Perguntei nervoso.
- Estamos aqui – Disseram as três juntas, como se fossem o Huguinho, Luizinho e Zezinho, sobrinhos do Pato Donald.
Elas só deixaram para aparecer ali perto da entrada do palco, onde se juntavam os diversos “artistas” que iriam se apresentar, segundos antes de termos de adentrar ao palco. Também fizeram questão de surpreendermos com o visual. Estavam lindas.
E por falar em visual, eu era o que estava menos diferente, afinal, era apenas o tecladista que fica escondidinho atrás de seu instrumento e que pouco tem de aparecer além de tocar bem. Eu estava com uma calça caqui de sarja, uma camiseta branca, regata muito justa que salientava meu corpo, que modéstia a parte, não é feio e na cabeça coloquei o chapéu do Indiana que o Luke me emprestara. Calçava coturnos, e as barras de minha calça eu as enfie dentro dele. Rafa optou por bermudas pretas, bem justas que lhe destacavam as cochas e a “mala”, deixando Rb irritado de ciúmes – “se eu perceber alguma bichinha olhando pra você “”Rafael””, vão apanhar os dois” – colocou uma camiseta também preta, da qual arrancou as mangas e calçou tênis. Cobrindo toda a sua cabeça, colocou um lenço colorido, e amarrava suas pontas, para prendê-lo, na nuca. RB estava estiloso. Uma calça preta qualquer, porém o destaque era a camisa branca, de pano sedoso e brilhante, entre aberta ao alto mostrando o seu peito desnudo. A camisa era de manga comprida e dos punhos saiam babados de renda. Os mesmos babados apareciam na enfileirados na parte da frente da camisa. Parecia camisa de smoking, mas não era. Talvez uma camisa no estilo Luis XV, século XVIII. Marcos, lindo, nem precisaria de nada. O sorriso que exibia, apesar do nervosismo, ofuscaria a atenção de qualquer traje que vestisse. Ele colocou também uma bermuda. Bem simples, rasgada e com muitos fiapos saindo dos buracos. Não era apertada. Era azul desboatdo. Ala caia em seu quadril de forma que aparecia o cós de sua cueca. Desta vez ele não estava de cueca verde, que tinha por ser palmeirense fanático. Estava com uma cueca preta com detalhes brancos no cós. Vestia um colete de couro preto e uma fita amarrada na testa, como se fosse o Rambo.
Prestes a sermos anunciados, posicionamo-nos no palco conforme a marcação combinada previamente com os “internet,” que já estavam, os três nas mesas de som, luz e efeitos.
O nosso vocalista maluco continuava a enrolado no roupão e faltavam segundinhos para iniciarmos nossa apresentação. Aquilo estava me dano uma agonia tão grande que eu estava em posto de dar uns tabefes nele, que só ria sem parar, e fazia graça de tudo.. Pude observar por entre as cortinas meu pai junto de Luke bem perto do palco. Ales conversavam bastante e pareciam estarem se divertindo. Fiquei contente que meu pai se dera bem com Luke e que estava muito a vontade no evento.
Eis que é chegada a hora. Estamos todos nos palco em nossas marcações. Um canhão de luz ilumina apenas a Silvetty que anuncia.
- E agora um gripo de jovens que se reuniram especialmente par este festival.
Fez uma pausa colocou uma mão no rosto e com a outra segurou o cotovelo.
- Tem um lá de barbinha rala que tem um necão!!! Meninas, eu to louca!!!
Fez várias brincadeiras se referindo ao Rb e seu pau. Mas disse que todos os rapazes do grupo eram bonitos e que a intuição dela dizia que agradaríamos. Acho que ela fez todas essas gentilezas em consideração ao Luke. Só sei que ela foi simpática demais e conseguiu nos acalmar.
- Com vocês os AMANTES SEM FRONTEIRAS.
Uma luz vindo de cima, meio amarelada focou o RB, refletindo-se em sua camisa branca. Ele levou o violino ao ombro e começou a tocar a introdução. A platéia permanecia em silêncio total, como que surpresa de um violino e a musica que estava sendo tocada destoar das apresentações agitadas que apareceram até então. Exceto a do ventríloquo. Logo em seguida acompanhando o violino do R, começou a acompanhá-lo com a voz o nosso back vocal, formado pelas três panteras posicionadas numa das laterias do palco.. O “internet” que operava a mesa de luz, já abriu uma luzes sobre ela que mostram como estava glamorosas. Estavam uma ladeando a outra, com Fabinho ao centro. Vestiam- se iguaiszinhas, como se fossem trigêmeas. Um vestido bem justo, aprecia lamê, mas não era. Cor de uva, segundo elas. Modelo tomara que caia, porém tinham duas pequenas alças, bem fininhas, Iam até a altura de seus joelhos e parecia apertar-lhes as pernas de forma que não pudessem andar. Reparei que usavam meias de seda.. O cabelo, não sei como fizeram aquilo, estava muito armado e após penteado s parecia que tinham enchimentos. Era um tal de banana alta, segundo elas. Elas estavam muito bem maquiadas, sapato de salto alto e bico fino. Faziam “Uus” com suas bocas desenhadas ao lápis e batom, acompanhando numa suave afinação a melodia que RB tocava. Elas estavam idênticas às “Suprimes”, grupo vocal dos anos 60. A introdução termina e o canhão de luz ilumina bem o centro do palco onde, com um pedestal de microfone a sua frente esta um carinha com pinta de galã, num smoking branco, um lencinho negro no bolso combinando com a gravata da mesma cor, camisa branca também, com rendinhas, menores do que a do R, sapato branco os cabelos claros bem penteados caindo sobre a testa. Olhos bem azuis. Eu nunca havia comentado, mas o Rodrigo tinha olhos muito azuis, e só fui reparar o quanto aquele moleque era lindo exatamente neste dia e nesta hora. E ele soltou a voz cantando de forma romântica, acompanhado por mim.
Ao teclado, Marcos no baixo, e Rafinha na bateria. A música era em inglês e talvez muitos não estivessem entendendo o que dizia, e apenas escutavam ele cantar “If I delay, I go more here to die This is good, but I do not live without you”. E cantou o primeiro trecho da música como se fosse apenas uma balada romântica de um compositor americanos qualquer, sempre acompanhado pelas panteras em sintonia e afinação de se fazer inveja a muitos cantores de sucesso. De repente apagam-se as luzes. Escuta-se o som do violino, porém tocando um som mais parecido com rock. A bateria muda o ritmo e acelera a batida. A melodia que tocávamos continua a mesma, porém agora num ritmo frenético de rock. Explosões de fumaça, fogos de artifício e muita luz colorida completam a harmonia. O canhão de luz se acende novamente no centro do palco e o cabelo do cantor esta de gel e puxado par o alto. Suas roupas originais sumiram, restando apenas a gravata borboleta preta no pescoço, o dorso nu e um abdômen de tanque que matava qualquer um de tesão. Vestia uma calça apertada , preta, de vinil, que mostrava todo o contorno de suas pernas e deixava claro o tamanho de sua “mala” ( e que mala). O moleque era gostoso mesmo. Cantava agora como que possuído por algum espírito qualquer, talvez o do Fred Mercury, já que estava empunhando a metade superior do pedestal, como este cantor costumava fazer. Deu um show que contagiou o público que começou a acompanhar a canção que fora, sua letra, distribuída previamente, poucos antes de iniciarmos, por um dos “internet”. Rodrigo ia de um lado para outro do palco enquanto tocava. Imitava o Marcos quando ele solava o baixo; dançava com as panteras que, não sei de que forma usavam agora o mesmo vestido porém de minissaias, cabelos soltos até o ombro e óculos escuros de “gatinho”; e fingiu que beijaria o RB na boca, e a platéia delirou. E quando, agora, Rodrigo cantava os versos “There that will to cry out”, aquelas centenas de pessoas que nos assistiam, faziam o coro e respondiam cantando, “Uuuuu”.
Uma dessas centenas de pessoas que nos acompanhava cantando, dançando e vibrando muito, era meu pai, todo sorridente ao lado de Luke. Um carinha subiu ao palco e deu um abraço e um beijo no rosto do Rodrigo, mas foi logo retirado pelos seguranças. Terminamos nosso número e nos retiramos do palco ouvindo o povão pedir “mais um”, o que não seria permitido de se fazer. Era apenas um número por grupo.Não preciso dizer que o Rafinha estava chorando no meu ombro, né? A Silvetty nos chamou de volta, não para cantar novamente, sim nos “entrevistar”. Perguntou o nome de cada um de nós, fez palhaçadas com as panteras. Perguntava para o público se elas estavam bonitas, e eles responderam sim, e depois fez outra pergunta: “alguém comia?”. Lógico que o último que ela entrevistou foi o Rodrigo. O nosso vocalista, o líder da banda, o “all star”, como ele se chamaria por muito tempo.
- Seu nome?
- Rodrigo?
- Casado?
- Não. – Respondeu rindo.
- Não é porque não quer, Porque eu conheço uma princesa de ébano que casaria com você a qualquer momento – Disse ela se insinuando para o Rodrigo.
Silvetty fez várias brincadeiras com o Rodrigo, que adorou ser estrela, e depois deixou o Marcos fazer os agradecimentos em nome dos “Amantes sem Fronteira”.
- Agradeço aos irmãos Wilston, Willian e Wilker que cuidaram da parte técnica de nossa apresentação e um agradecimento especial ao senhor Carlos Zanini, pai de nosso tecladista e baterista. Foi ele quem nos deu a dica desta música que é a “canção gay” do Roberto Carlos e que cantamos em inglês numa versão feita pelo nosso violinista RB...
- O moleque do necão??
- Ele mesmo... –Respondeu o marcos em risadas.
E completou os agradecimentos.
- E agradeço a Ariadne, que nos convidou para participar deste grande ato de cidadania.
- Mais alguma coisa?
- Queria mandar um beijo para o meu pai, para minha mãe e outro prá você.
- É prá já. – Agarrou o Marcos, deitou em seus braços, segurou sua boca e fingiu que o beijava enquanto a galera gritava “Silvio” “Silvio”.
- Silvio não...Eu sou mulher...