LIVROS E PAIXÕES [23 e 24] ~ Desabafos

Não demorei muito do lado de fora porque minha garganta realmente estava incomodandoAmanheci sem voz no dia seguinte e tossindo um pouco. Mas a voz melhorou ao longo do dia.

Depois do almoço, eu peguei meu violão e saí rumo à casa do Alex.

Toquei a campainha e quem atendeu a porta foi o pai dele.

Porém ele não abriu passagem para eu entrar, ao contrário, saiu e fechou a porta atrás dele. E foi logo dizendo:

- Eu nunca pensei que fosse dizer isso, mas eu estou realmente feliz de te ver aqui, Renato!

- Hum? - eu abri a boca com uma interrogação, mas só saiu esse som.

- Sério; o Alex não voltou bem... Ele não gosta muito de falar, mas eu sei que aconteceu muita coisa com ele por lá... E ele estava muito sozinho desde que voltou. Passa o dia trancado no quarto e não toca mais nem uma nota... Estou muito preocupado.

- O senhor não é psicólogo?

- Olha aqui rapaz, você acha que eu não sei que ele está com depressão? Para o seu governo ele faz terapia e toma dois antidepressivos por dia.

- Eu não... Não sabia disso...

- Pois antes de entrar é bom que você saiba... É sério. Eu acho que você pode ajudar a ele mais do que qualquer terapeuta. Porque, bom, porque ele ainda te ama.

Ele não disse mais nada; abriu a porta para eu entrar e disse: “ele esta no quarto, boa sorte”

Entrar naquela casa era como invadir uma memória.

O lugar estava quase igual à última vez que eu estivera ali.

A única diferença era uma espessa camada de poeira cobrindo a guitarra do Alex, que estava no tripé de sempre.

Me lembrei que em épocas mais felizes o pai do Alex brigava com ele para que ele guardasse o instrumento e o seu tripé de apoio no quarto, porém depois de muita insistência ele acabou desistindo e o objeto passou a ter dupla função: instrumento musical e bibelô de decoração da sala.

Aquele abandono visível do instrumento já indicava que havia algo errado com o seu dono, mas outra coisa era mais perturbadora: o silêncio absoluto que contrastava com aquele ambiente, porque todas as outras vezes que eu estivera ali, a música sempre estava espalhada pela casa; interpretada e tocada pelo Alex ou através do som das várias bandas que ele amava.

Silêncio e Alex eram duas coisas que não combinavam, porque para mim ele era música, a mais bela das melodias que tocou minha alma, invadiu meu mundo vazio e o encheu de vida e alegria.

Segui pelo corredor até o seu quarto. A porta estava entreaberta e eu espiei dentro, antes de abri-la suavemente.

Olhando dentro do cômodo silencioso, vi que as malas estavam abertas no chão e havia várias peças de roupas espalhadas por vários lugares. Roupa suja, roupa limpa. Tudo misturado.

Nas prateleiras, antigamente repletas de livros, agora reinava o pó. E as janelas fechadas, além de manter o ambiente na penumbra, intensificava um cheiro de mofo que exalava do lugar.

Deitado na cama, por cima de papeis velhos e roupas sujas, estava o Alex, olhando fixamente para o teto onde uma mancha de infiltração que não estava ali anos antes parecia exercer sobre ele estranho fascínio.

Aquele garoto sobre a cama era uma cópia fiel e mais bonita do Alex, porém não podia ser ele!

O Alex que eu amei sempre foi um apaixonado pela organização; chegava até a ser chato.

E as prateleiras vazias... Onde estavam os vários livros que embalaram nosso amor?

Eu bati na porta de madeira e chamei seu nome pra desviar sua atenção para mim.

- Alex? Posso entrar?

Ele me olhou e abriu um sorriso lindo que me lembrou o sorriso do protagonista de um de meus filmes antigos preferidos. Ele perdido no deserto sorria da ironia do destino ao avistar o que, para ele, era mais uma miragem de oásis. O que esse personagem não sabia era que aquele era um oásis de verdade.

E o que o Alex não sabia era que eu não era uma lembrança de um antigo amor perdido e sim um amigo leal disposto a amar de novo.

Eu sentei na cama ao lado dele e ele disse muito mais para si próprio do que para mim: “esse lugar está nojento, né?”

- Está sim - eu respondi sorrindo.

- Eu queria limpar, mas como já estou quase indo embora... Achei melhor deixar assim mesmo. Seria perda de tempo.

- É, talvez... Ou talvez a gente pudesse ter um lugar menos fedorento pra conversar até você viajar!

- Você está certo!

- Quer ajuda? A gente pode fazer isso agora. E eu também gostaria de ver esse lugar limpo de novo...

Ele abriu um sorriso e deu um suspiro cansado antes de perguntar:

- Você quer mesmo fazer isso?

- Sim.

Ele levantou e foi buscar uma vassoura e o aspirador de pó;

Eu comecei a juntar as roupas do chão e carreguei tudo para o balde de roupa suja que ficava na área.

Quando voltei, tomei a liberdade de ligar o som e colocar um CD do Oasis, dos que estavam empoeirados na estante.

Ele não reclamou do meu abuso e na verdade eu gosto de pensar que ele até gostou de ouvir música de novo.

Nós nos divertimos escolhendo que livros mereciam ir para a prateleira e quais livros deveriam ficar na mala e serem jogados no fundo de um rio depois.

A maior parte das coleções dele ficou nos Estados Unidos, mas ainda havia muitos livros que prestassem na sua mala e no seu guarda-roupas.

Nós limpamos, espanamos tudo e eu sempre puxando assunto, falando do dia a dia aqui, da banda, da escola...

Ele parecia interessado em tudo, porém sempre evitava falar dos EUA e só falou um pouco da avó, que segundo ele, era uma pessoa maravilhosa e da tia que trabalhava na escola onde ele estudava.

Ele não quis entrar em maiores detalhes sobre a escola ou sobre seus amigos por lá.

Eu senti que a escola era um ponto sensível e não insisti.

Quando o quarto estava limpo e as janelas abertas, o ar fresco da noite entrou pela janela e deu outro clima ao ambiente.

Eu me sentei na cama ao lado dele, cansado da faxina, mas feliz por ter ajudado a devolver àquele quarto o antigo aspecto.

- Obrigado, cara! - ele disse sorrindo.

- De na... Nada! - minha voz falhou, mas eu retribuí.

- Cara, acho que essa poeira não te fez bem; a sua voz falhou de repente.

- É! Acho que irritou um pouco minha garganta. Na verdade, desde ontem minha garganta está meio estranha. Acho que a poeira tóxica da sua toca não é a culpada, afinal.

- Puxa! Menos um peso na minha consciência... hehe

Era bom o vir fazendo uma piadinha de novo.

- Ei, vamos mudar o CD, já ouvimos duas vezes esse álbum do Oasis.

- É, pode ser. Que tal a gente deitar no tapete para ouvir música? Como nos velhos tempos...

- Nem tão velhos assim, Alex!

- Talvez pra você, mas pra mim foi em outra vida.

Eu não discordei.

Enquanto estava deitado no tapete branco e peludo da sala, ao lado dele, ouvindo música, lembrei de quantas vezes nós fizemos isso; escolhendo músicas pra tocar debaixo da árvore das Luzes, bem antes da banda... A implicância dele com a Marília e o Carlos, as piadas de nerd, os comentários sobre mangás.

Agora nós estávamos ali deitados de novo e ouvindo música de novo, mas dessa vez estávamos só olhando para o teto.

Foi então que eu reconheci o CD do Lifehouse tocando.

Eu amava essa banda.

A música era “From Where You Are”

A letra falava exatamente da saudade de alguém que não estava mais ali.

https://www.youtube.com/watch?v=LBh7Muv0yac&feature=related

From Where You Are - Lifehouse

Tão longe de onde você está - Tradução

“Tão longe de onde você está

Essas milhas tornaram nossos mundos separados

E eu sinto sua falta, sim eu sinto sua falta

Tão longe de onde você está

Eu estou debaixo das estrelas

E eu queria que você estivesse aqui

Eu sinto falta dos anos que foram apagados

Eu sinto falta do jeito que o brilho do sol iluminava seu rosto

Eu sinto falta de todas essas coisas pequenas

Nunca imaginei que elas significariam tudo pra mim

Sim, eu sinto sua falta

E eu queria que você estivesse aqui

Eu sinto as batidas do seu coração

Eu vejo as sombras do seu rosto

Só saiba que onde quer que você esteja

Eu sinto sua falta

E eu queria que você estivesse aqui

Eu sinto falta dos anos que foram apagados

Eu sinto falta do jeito que o brilho do sol iluminava seu rosto

Eu sinto falta de todas essas coisas pequenas

Eu nunca imaginei que elas significariam tudo pra mim

Sim, eu sinto sua falta

E eu queria que você estivesse aqui

Tão longe de onde você está

Essas milhas tornaram nossos mundos separados

E eu sinto sua falta, sim, eu sinto sua falta

E eu queria que você estivesse aqui”

Foi impossível não lembrar dos dias de desespero que antecederam a viagem dele. O medo da separação tão eminente e que nenhum de nós sabia que seria tão dolorosa.

Como eu senti a falta dele mesmo depois de toda aquele confusão...

Como eu senti saudade...

Lembrei das estrelas que eu tanto desejei ver, lembrei da nossa última noite de amor e desejo. A paixão atormentadora e imatura à flor da pele.

E agora ali estava eu, ao lado dele, no mesmo lugar onde nós estivemos várias vezes.

Mas o tempo passou e a distância entre eu e ele era imensa.

Ele não era o mesmo e eu sentia falta do sorriso, da autoconfiança dele, da música, da alegria e impulsividade...

Cada pequeno detalhe eu sentia falta.

Eu sentia tanta saudade que meu coração começou a bater mais rápido.

Eu olhei para ele e ele me olhava.

Eu pude sentir, pelo rubor dos seus lábios e pela cor avermelhada da sua face, que ele recordou cada um desses momentos e também pensava as mesmas coisas que eu... Mas nós lemos nos olhos um do outro que estávamos fartos de saudade... Nos dois queríamos que o outro estivesse ali...

Eu queria o Alex de outros tempos e ele queria ver por trás da minha armadura o rapaz tímido de antigamente.

Nos reconhecemos um ao outro no outro. Nossas mãos se aproximaram e nossos dedos se entrelaçaram enquanto nós não desviávamos o olhar um do outro... O mesmo olhar que eu nunca esqueci. Aqueles olhos misteriosos...

Eu podia sentir o calor da mão dele e a reação do seu corpo à reaproximação do meu.

Naquele olhar eu soube que, embora toda a distância e todas as mudanças, aquele era o garoto que eu amava.

Mesmo mergulhado nas trevas da depressão o seu olhar revelou ao meu coração apaixonado a chama que ainda brilhava dentro dele.

Alí a distância entre nós estava desaparecendo.

De repente eu reconheci naquele rosto tão familiar, e ao mesmo tempo estranho, a pessoa que mudou o rumo da minha vida para sempre.

E ali eu tive mais certeza do que nunca que eu deveria dedicar todos os meus esforços a resgatar o meu amor e trazê-lo de volta.

O Alex era a minha nova chance de ser feliz e eu era a chance dele de sair do abismo.

A música acabou e outras tocaram e nós ficamos ali, ouvindo, lembrando... Até que após longos minutos ele cortou o contato visual e voltou a olhar o teto, mas nossas mãos continuaram entrelaçadas...

E nós adormecemos ali mesmo no tapete, cansados depois da limpeza e profundamente emocionados após esse VERDADEIRO REENCONTRO...

Algumas lágrimas de felicidade rolaram pelo meu rosto antes de eu adormecer.

Quando acordei, Alex estava sentado ao meu lado. Uma mão ainda entrelaçada à minha e a outra tocou de leve meu rosto em um gesto de carinho que fez meu corpo inteiro se arrepiar.

Parecia que ele estava tocando minha alma.

Depois daquele olhar, não poderia haver mais segredos entre nós. Ele sabia que eu o amava com cada fibra do meu coração e eu sabia que mesmo em silêncio ainda havia música dentro dele.

Eu me sentei, ainda no chão e encostei minhas costas na base do sofá. Ele veio e se sentou ao meu lado.

Ficamos com os nossos corpos bem próximos um do outro. Eu sentia o calor irradiar do seu corpo.

Nossas mãos continuavam entrelaçadas.

- Hoje foi o dia mais feliz que eu tive desde a nossa despedida desastrada, Renato!

Eu abaixei os olhos e intimamente encaminhei uma prece ao céus para que ele estivesse pronto pra me contar o porquê dos dias infelizes que ele viveu.

Ele continuou:

- Sabe, eu tinha muitos sonhos quando me inscrevi naquele programa de intercâmbio e o único que eu realizei foi o de conhecer minha família. Eles são pessoas maravilhosas! Você iria gostar de conhecer minha GrandMother.

- Imagino que sim.

- Da primeira vez que a gente se encontrou você me perguntou o que aconteceu comigo e eu disse que aquele não era um bom momento porque eu já tinha chorado demais na sua frente. Engraçado que meu pai e as pessoas me perguntam isso o tempo todo, mas a única pessoa com quem eu me sinto à vontade para conversar sobre isso... Bom... Acho que é você.

- Mas você não contou pra ninguém o que aconteceu com você?

- Não é o que aconteceu, até porque não foi uma coisa, foram várias situações... E dessas coisas papai sabe, vovó sabe, minha terapeuta Jeni sabe. Não é isso, o que eu só me sinto confortável pra falar com você é a forma como eu senti e venho sentindo essas coisas.

- Acho que eu entendo o que você quer dizer. Por exemplo, todo mundo sabe que o Carlos desencarnou e mais gente ainda sabe que nós namoramos, mas ninguém sabe ou consegue entender como eu me senti com isso, acho que quase ninguém conseguiria entender. Às vezes eu imagino que os outros são como turistas em uma praia vendo as ondas quebrarem; eles estão vendo a ressaca, mas só quem está no mar consegue sentir a força do impacto e descrever o quão fria é a água.

- Sabia que você ia me entender... - ele disse sorrindo e completou. - Engraçado, é a primeira vez que eu sorriu ao falar dessas coisas.

- Que bom, então!

- Acho que isso deve mesmo ser bom... - ele fez uma pausa, puxou o ar e soltou devagar e disse: - Bom, como eu disse, antes não aconteceu uma única coisa, aconteceram várias... Acho que o primeiro golpe foi a nossa despedida... Você não consegue imaginar o quanto eu chorei no aeroporto por você não estar ali pra se despedir. Nesse momento eu senti que tinha destruído “nós dois” para sempre... E isso doía demais. Foi como ter uma parte do peito arrancado a ferro; como perder uma grande parte daquilo que eu tinha de melhor.

Eu o escutei falar e me lembrei das muitas lágrimas derramadas e do grande vazio sentido por mim naquela época, mas não havia necessidade de comentar isso com ele; fiquei em silêncio e o esperei voltar a falar.

- Quando cheguei nos Estados Unidos dizia a todos que ficava no meu quarto chorando de saudade de meu pai e de meus amigos durante todo o primeiro mês.

Nunca superei essa dor.

Comecei a me sentir culpado e com nojo de mim mesmo por ter negado aquilo que a gente tinha de melhor. Jurei pra mim mesmo que nunca mais me aproximaria de outro garoto.

Na escola eu era o latinozinho da turma, tratado como retardado por quase todo mundo.

Não demorei pra começar a me sentir invisível, mas ter ficado invisível teria sido bom demais. Eu tentei entrar para o time de futebol da escola; não futebol americano; futebol normal. Lá esse é um espore mais feminino, mas mesmo assim nossa escola tinha um time.

O capitão do time era vizinho da minha avó. Nós ficamos amigos, pelo menos eu achei que ele era meu amigo.

Nesse ponto da história eu senti umas pequenas fisgadas de ciúme no meu estômago.

Eu senti que era por aí que estava a grande dor do Alex.

- O nome dele era Paul e ele parecia um cara legal. Eu comecei a frequentar a casa dele. Nós jogávamos vídeo game juntos e arriscávamos umas cestas no quintal. Um dia, estávamos na internet e ele pediu para eu mostrar para ele meus amigos do Brasil. Ele não tinha Orkut, então entrei no meu e mostrei algumas fotos. Só que quando vi uma foto sua, toda aquela cena da briga veio na minha mente e eu fiquei muito abalado e ele percebeu. Ele achou estranha minha reação, tentei explicar dizendo que era só saudade, mas ele percebeu que tinha algo mais, até porque fazia um bom tempo que eu não abria meu Orkut e a foto que estava lá era uma na qual estávamos eu, você e o Carlos depois de um treino de futebol.

- Ah! Eu me lembro dessa foto. A Marília tirou logo que eu entrei para o time.

- Essa mesma. Mas sim, ele não engoliu a história da saudade e como eu já confiava nele, resolvi contar toda a história. Ele ficou surpreso ao saber que nós dois tínhamos namorado, mas ele não teve nenhuma reação estranha e disse que me entendia e que isso não mudava nossa amizade. Eu fiquei agradecido por ter desabafado com alguém e voltei pra casa logo em seguida e deixei meu Orkut logado. No dia... No dia...

Nessa hora ele começou a gaguejar e a sua mão tremeu um pouco. Foi então que eu percebi que a coisa com a qual ele não soube lidar estava prestes a me ser revelada.

- ...no dia seguinte, quando cheguei no colégio, to... Todo mundo apontava pra mim... E... E ria. - ele estava começando a lacrimejar. - Eles me chamavam de bichinha... Uns caras me empurravam no corredor; eu fui correndo pra sala da orientadora pedagógica pra fugir das piadinhas. Nossa! Eu... Eu nunca me senti tão arrasado em toda minha vida! Era óbvio que de alguma forma todo mundo sabia. Aqueles risos me humilharam tanto... Me lembrei do que fiz com vc e nossa... Foi horrível! Parecia um castigo por por tu... Tudo...

Eu o abracei e ele chorou no meu ombro.

Lembrei-me dele perguntar se eu o estava estranhando... E das risadas do pessoal. Foram só umas sete pessoas e mesmo assim eu saí correndo, morto de vergonha e humilhado. Imagino uma escola inteira rindo de você. Bom, na verdade, eu não precisava imaginar; vivi muito isso depois da morte do Carlos. Fui chamado de viado por desconhecidos, tive que encarar as acusações da escola toda também. Mas depois de perder o Carlos a opinião dos outros não contava muito mais para mim.

Mas estava claro que o Alex não lidou bem com isso.

Acho que a culpa que ele sentia também dificultou o processo dele. O problema do Alex é que, no fundo, ele não se aceitava como era, e ver os outros jogando isso na cara dele, doía demais.

Quantos outros caras não sofrem por aí por não se entenderem.

Pior do que o preconceito dos outros é a auto discriminação.

O Alex foi vítima dele mesmo.

- Na... Na sala da orientadora, eu esperei minha tia que trabalhava na direção e quando ela chegou, eu soube que “alguém” publicou na net aquela nossa foto com uma matéria sobre um triângulo amoroso gay. Eu li o texto e quase vomitei por ver nossa história tão distorcida e cheia de piadinhas. Além disso, alguns amigos desse alguém havia espalhado panfletos com a historinha pela escola, e claro, todos estavam rindo de mim. O mais triste é que só a foto e a historinha não provavam nada. Foi a minha reação de desespero que me entregou para todos.

Até minha tia que achou que tudo fosse só uma piada de mau gosto, quando me viu aos prantos teve certeza que eu era gay e que aquela história tinha muito de verdade. Foi horrível ter que chegar em casa e contar pra minha avó que eu era gay.

Lembrei-me de quando ele contou para o pai sobre a gente.

Naquela época ele parecia seguro e levou tudo na brincadeira; do mesmo jeito que o pai dele. Agora entendo que as brincadeiras eram a forma dele lidar com tamanha insegurança.

- A vovó entendeu que essa era a minha opção, mas mesmo assim minha vida se tornou um inferno. Eu não tinha mais vontade de ir pra aula, não saía do quarto, não tomava banho, não queria comer. Cheguei mesmo a adoecer. Quando tive forças pra sair de casa, o que demorou quase duas semanas, o primeiro lugar que eu fui foi na casa do Paul. Aquele desgraçado ia me pagar. Eu bati na porta da frente e ele gritou para eu entrar pelos fundos. Dei a volta na casa, entrei pela porta da cozinha, que estava aberta enquando cheguei na sala de estar...

Ele deu uma pausa mais longa e voltou a chorar. Ele soluçava e se tremia todo e eu comecei a me preocupar com ele. Talvez fosse melhor parar por aí, mas ele conseguiu se controlar e continuou:

- ...quando entrei na sala de estar eu o vi sentado em uma poltrona. Eu o xinguei de desgraçado! Ordinário, filho da puta; de tudo que eu conseguia me lembrar. Ele só riu e quando chegou perto me deu um soco no estômago. Eu caí no chão me revirando de dor e ele me deu um chute. Tentei agarrá-lo e nós começamos uma briga até que ele me imobilizou com os braços para trás e a cabeça esfregando no chão. E ele me deu um soco no lado do meu tórax que me deixou sem conseguir ter nenhuma reação, até conseguir respirar direito. Eu estava de bermuda e sem cueca, o que facilitou o trabalho dele. Ele... Ele me violentou. E eu... Eu deixei.

As lágrimas dele já estavam molhando meu ombro e a história se tornava mais assustadora a cada fala dele.

- Como... Como assim... Você deixou!

- No começo eu tentei resistir, mas depois que ele me penetrou eu me entreguei, mesmo todo batido e ainda deixei ele me machucar mais. Ele me penetrava com muita força; parecia um monstro e eu, eu estava tanto tempo sem sexo que deixei...

- Não acredito que você fez isso! Esse cara arruinou sua vida, te bateu, tentou te violentar e você facilitou pra ele!

Foram as palavras erradas a se dizer. Ele chorou mais ainda e disse:

- Você acha que eu já não tenho nojo o suficiente de mim mesmo sem você me julgar assim?

- Me... Me desculpe. Eu não queria. Eu, eu sei lá. Só não entendi.

- Eu me odiava mais do que a ele. E essa não foi a única vez. Durante quase um ano, sempre que ele queria eu ia até a casa dele e a gente transava. Eu me odiava, odiava a ele, tinha nojo de mim mesmo... Deus sabe a vontade que eu tinha de me matar depois de dar pra ele. O depois era a pior parte. Era uma necessidade de prazer e dor doentia. Depois desse dia tudo que havia de bom em mim acabou. Depois desse dia eu nunca mais li ou toquei; muito menos cantei. Eu me tornei vazio por completo. Tudo que havia de bom em mim morreu. Eu ia para o colégio, mas era só isso; depois ficava trancado em casa, navegando pela net, vivendo de ilusão, me masturbando pela webcam com desconhecidos. E me viciei em sexo. Cheguei a sair pra procurar caras mais velhos durante a noite. Uma vez consegui seduzir o pai de um colega de classe; transei com ele em um banheiro na estação de trem. A cada dia eu fui ficando mais deprimido e com mais raiva de mim mesmo por fazer essas coisas. Depois de um ano de terapia eu finalmente consegui parar de transar com o Paul e com desconhecidos também.

Foi isso que eu me tornei, Renato. Será que você ainda quer ser o melhor amigo de um tarado que tem nojo de si mesmo e que já te humilhou no passado? Será que você vai olhar na minha cara depois de hoje?

Eu não podia fingir que não estava chocado.

A coisa toda era bem pior do que eu pensava. Ele estava no fundo do poço, e muito sujo de lama.

Porém eu sabia que havia mais no Alex do que isso. Eu tinha visto mais do que isso no passado e ainda nessa mesma noite eu vi música nos olhos dele.

Eu poderia sentir tudo por ele, menos nojo. Isso jamais!

Não, eu não podia virar as costas para ele por causa de um vício, ao qual ele foi levado pela depressão.

Eu o amava demais para isso e precisava demonstrar para ele de alguma forma, para que ficasse claro que nada do que ele falou abalou esse sentimento.

Eu poderia dizer que o amava, que ele sempre seria meu melhor amigo, mas isso não seria suficiente.

Ele estava me encarando com os olhos vermelhos e lágrimas escorrendo pelo rosto, esperando que eu respondesse a ele se iria ou não querer vê-lo novamente depois de tudo.

Eu precisava dizer mais do que palavras.

Eu segurei suas duas mãos, entrelacei nossos dedos, depois me aproximei mais e o envolvi em um abraço quente, apertado e carinhoso.

Eu queria que tudo aquilo que eu estava sentindo o envolvesse.

Dei dois beijinhos nas suas bochechas e encostei meu rosto no dele.

Ficamos face a face e ele me abraçou também.

Eu sentia suas lágrimas molharem meu rosto.

Ele foi se acalmando nos meus braços. Senti sua respiração se tranquilizar e ele aproximou seus lábios do meu ouvido e disse baixinho:

- Obrigado!

Quando cheguei em casa naquela noite não consegui parar de pensar em como algumas escolhas alteram muito nossas vidas e como pessoas são capazes de interferir ainda mais nela.

Eu e o Alex escolhemos magoar ao outro antes de nos despedirmos e as coisas saíram do controle para nós dois.

Mas enquanto eu tinha a Marília e o Carlos ao meu lado, ele não tinha ninguém e acabou escolhendo confiar na pessoa errada.

Fiquei pensando como a vida dele teria sido diferente se nós dois simplesmente tivéssemos tido a maturidade de dizer “Adeus meu amor, me ligue todos os dias!”.

Provavelmente a minha vida não mudaria muito. Talvez eu tivesse começado a namorar o Carlos um pouco antes ou um pouco depois, mas esse é o exato tipo de coisa que em qualquer versão do universo iria acontecer.

Quanto ao Alex, provavelmente ele teria chegado aos EUA com toda a sua confiança, marra e alegria. E em pouco tempo seria uma estrela por lá. Aposto que encontraria alguém e se apaixonaria.

Nessa versão da vida, nossa história seria apenas uma doce e alegre lembrança.

“O primeiro amor” sempre lembrado com carinho, porém só isso, só uma lembrança.

Depois de algum tempo pensando me ocorreu que eu fazia muito isso: pensar nas possibilidades, se as escolhas tivessem sido diferentes, se isso ou aquilo não tivesse acontecido...

Acho que foi nesse momento que percebi que esse tipo de pensamento é interessante apenas para entender como o presente se estruturou e não para ficar imaginando possibilidades de como seria a vida agora se o passado tivesse sido diferente, sabem por quê?

Porque só o que nós temos é o que é real!

Parece algo simples, ou algo que não deveria estar aqui nesse conto, mas esse conto é um relato de fatos da minha vida e perceber isso me ajudou muito desse ponto em diante da minha história.

Me ajudou porque desse dia em diante parei de me lamentar pelo jeito que a vida não é e comecei a trabalhar com a vida como ela é, com a realidade.

Afinal, as coisas já são complicadas demais sem que a gente some à realidade, ilusões e sofrimentos desnecessáriosQuando acordei na manhã seguinte, estava tranquilo.

A reflexão da noite anterior me fez ver que não adiantaria sofrer por tudo o que o Alex passou e pelas coisas que ele fez.

Tudo que eu podia fazer, e eu faria, era ajudar a ele superar isso com a minha amizade e com o meu amor, tendo sempre em mente que quando se trata de uma dor tão profunda quanto a depressão, nada acontece de um dia para o outro. Não existe mágica nesse tipo de recuperação e cada dia é um dia novo de luta e auto superação.

O telefone tocou; era a Marília.

- Adivinha que dia é amanhã?

- Hum... Trinta de dezembro?

- Não... É o segundo dia de ensaio duro da banda. O primeiro é hoje! Então corre pra cá!

- E eu posso saber por que tanto ensaio às vésperas do ano novo?

- Porque a gente vai tocar três músicas no concurso de bandas!

- Esse concurso é na rádio!

- Eu sei! E a melhor parte é que a banda vencedora tem uma das três músicas tocadas na rádio por toda a primeira semana do ano novo!

- Ah meu Deus! Isso é demais, Marília!

- Eu sei. Eu te disse que tocar no festival da cidade ia ser um marco na história da Tsubasa!

- Liga para o pessoal que eu já estou indo pra garagem de ensaio.

Cara, tocar na rádio ia ser demais!

Precisava compartilhar isso com o Alex.

Mandei uma mensagem:

“Alex, vamos tocar na rádio no dia trinta e um. Estou indo ensaiar com o pessoal. Aparece por lá! Beijo.”

A galera toda ficou empolga com a noticia. Dava pra imaginar? A nossa bandinha de garagem, que começou literalmente sem-teto, debaixo de uma árvore, na rádio?

O festival municipal foi legal, mas tocar na rádio era bom demais!

Nós já estávamos ensaiando por uma hora quando o Alex chegou.

Fiquei muito feliz de vê-lo ali.

Ele cumprimentou o pessoal e ficou sentado no canto vendo a gente tocar.

No começo fiquei triste porque em outros tempos ele teria pegado um violão ou uma guitarra e já estaria liderando o ensaio, afinal ele era o músico com mais talento que eu conhecia.

Mas eu não podia deixar as lembranças do que ele foi, interferir na minha forma de olhar para ele agora.

Eu iria trazer a música que havia nele pra fora, mas precisava respeitar o tempo dele.

Lembrei de uma música que minha mãe ouvia de vez em quando e achei que seria legal cantá-la ali.

- Marília, vamos tocar Collide do Howie Day?

- Ah, adoro essa música.

Ela repassou pra banda a cifra e as partituras.

Depois dessa música minha garganta começou a arder, mas continuei ensaiando.

E tive uma grande felicidade quando vi os pés do Alex batendo no ritmo da música. Me empolguei e comecei a pedir os clássicos que a gente tocava no começo da banda. Logo ele já estava mexendo a cabeça e os ombros e abrindo um lindo sorriso.

Nem sei explicar o quanto essas coisas simples me encheram de alegria.

Quando estava se aproximando a hora do almoço, minha voz começou a falhar nas notas mais altas.

- Renato, tem algo de errado com a sua voz.

- Eu já percebi, Marília.

- Talvez seja melhor você descansar um pouco a voz. - me surpreendi quando ouvi o Alex falando isso.

- Mas a gente precisa ensaiar!

- Se você perder a voz, vamos ter de parar de vez.

- Beleza então.

Depois de mais uma hora, paramos o ensaio para irmos almoçar. Acompanhei o Alex até a casa dele e nós fomos conversando.

- Cara, fiquei preocupado com a sua garganta.

- Ah, ela está ardendo um pouco já faz alguns dias. Não sei o que está acontecendo; achei que era só um resfriado mal curado, mas agora estou meio preocupado.

- Porque você não vai a um otorrino hoje à tarde, marca uma consulta e toma logo uma medicação?

- Boa ideia, cara!

Fizemos uma breve pausa na conversa e quando chegamos de frente à sua casa, ele pos uma mão em meu ombro e eu senti meu corpo todo tremer, reagindo àquele toque. Ele me olhou nos olhos e disse:

- Dessa vez vou te avisar.

- Não... Não sei do que você está falando.

- Eu vou voltar no dia dois para os EUA. Papai saiu de casa para comprar a passagem hoje de manhã.

- Mas já? Achei que você fosse ficar mais um tempo. Até o início das aulas, pelo menos. - eu falei isso com ar triste. É claro que eu sabia que ele não ia demorar aqui. Só não imaginei que fosse ser tão rápido.

- Olha... Você é um grande amigo e foi... Está sendo, na verdade... Incrível poder ficar perto de você de novo, ver como você cresceu e se tornou alguém admirável... Quero seguir seu exemplo e me fortalecer com a dor e não me entregar a ela. Renato, eu...

- Alex... Não continua... Eu vou continuar vindo aqui, te chamando pra sair e conversar nesses poucos dias que te restam no Brasil... E, ah... Dessa vez vou estar no aeroporto quando você estiver partindo e espero que você me ligue ou mande e-mails dessa vez.

claro... Quando você voltar, daqui a seis meses, eu vou estar te esperando no aeroporto pra te dar boas vindas.

Ele sorriu e foi um sorriso verdadeiro e iluminado...

- Como você consegue?

Eu retribuí o sorriso, mas o dele já havia se apagado.

E olhando para o chão ele me perguntou:

- Como você consegue querer ficar perto de mim, depois de tudo que eu te contei...

- Acho que você sabe a resposta.

Dei as costas para ele e comecei a caminhar rumo à minha casa.

Quando estava no meio da rua eu me virei e dei um tchau para ele que continuava parado na porta, mas agora ele estava sorrindo novamente.

Quando cheguei lá em casa, marquei um otorrino para aquele mesmo dia, às 18:30 h do outro lado da cidade.

Depois do almoço fiquei em casa pra descansar a voz e somente treinei violão.

Na hora agendada eu cheguei ao consultório do Dr. Marcondes. Sentei naquela cadeira e ele se aproximou de mim com aquela luz de otorrino na testa e iniciou um laringoscopia com espelhinho.

Segundo ele não havia nada de errado com a minha faringe. O problema, até mesmo pela história que eu contei, parecia ser mesmo nas cordas vocais.

Ele marcou um exame para o dia seguinte pela manhã, me explicou que é um exame muito tranquilo, feito com uma fibra ótica que entra pela narina e vai até lá embaixo, na laringe, para filmar minhas cordas vocais. E até o exame do dia seguinte eu precisava descansar minha voz.

Cheguei em casa arrasado por ele não ter me dado um diagnóstico e por não ter prescrito nada além de silêncio.

O pior é que eu não podia nem ficar me lamentando pra pessoas, porque eu tinha que ficar em silêncio.

No dia seguinte convidei o Alex pra ir comigo ao médico, afinal, era do outro lado da cidade e a gente teria um bom tempo pra conversar no ônibus. Ele aceitou meu convite, mas não deixou eu falar por causa da minha voz, e como ele não andava o cara mais falante do mundo, nós fomos simplesmente ouvindo meu MP4 até o médico.

Mesmo assim foi bom tê-lo ao meu lado.

O exame realmente era simples e quase nada incômodo, mas o resultado me assustou. Eu estava com nódulos vocais. Segundo o médico esses são os famosos “calos de corda”. Segundo ele essa é uma patologia comum em cantores e pessoas que falam gritando. O problema é que só regride com repouso, corticoides e em casos mais extremos, cirurgia.

Eu tive que admitir que já vinha sentindo algo estranho a alguns meses, mas só agora afetou minha voz.

- Dr. Marcondes, só tem um problema... Minha banda vai tocar na rádio amanhã. Eu posso cantar?

-Olha, o ideal seria você ficar repousando a voz. Ou seja, nada de cantar por pelo menos um mês. Agora, como essa apresentação parece ser importante, você pode tentar cantar... Mas do jeito que está hoje, duvido que sua voz aguente mais que uma música rápida, sem ficar rouca.

Para tudo!

Meu mundo caiu quando ele disse isso! Como eu iria dizer para os meninos que não ia cantar? A Marília também canta, mas eu sou o vocalista principal... Nossas músicas mais conhecidas no bairro sou eu que canto e a Marília não estava nem pensando em cantar na rádio.

Droga, isso ferrou tudo!

O Alex me olhou com uma cara estranha e disse:

- Eu conheço esse olhar, faz tempo que eu não o via. E ele me diz que você quer fazer uma besteira.

- Não é besteira, eu só não vou falar nada para os meninos... Aliás, eu não vou falar mais nada a partir de agora até a hora do show, amanhã. Eu tenho que aguentar pelo menos duas músicas.

- Cara... Isso não vai... Bom, você que sabe também!

E nós dois voltamos calados até a minha casa.

Ele entrou e disse:

- Ah... Tem uma coisa que eu não faço há muito tempo e acho que podemos fazer juntos. E você não vai precisar dizer uma palavra sequer... hehehe...

Foi aí que ele puxou dois blocos de papel branco da mochila e algumas lapiseiras...

Nossa! Passamos o resto da manhã e o início da tarde desenhando. E eu escrevendo nos papeis as coisas que queria dizer.

Foi bem divertido e me lembrou os velhos tempos.

Quando o Alex abaixava a cabeça pra desenhar eu ficava olhando seus cabelos caírem sobre o rosto.

Ele realmente tinha ficado mais bonito do que antes.

Quando a Marília ligou perguntando por que eu não estava no ensaio, o Alex falou com ela pelo telefone e disse que o médico sugeriu que eu ficasse descansando a voz. Ele não deu maiores detalhes e disse pra ela não se preocupar que eu ia cantar, mas eu o ouvi sugerindo a ela que ensaiasse uma música pra cantar, afinal ela também era uma das vocalistas da banda.

Esse meu dia de silêncio foi muito bom.

Já para o final do dia o Alex estava entendo cada vez melhor meus gestos e ele começou a não falar também, pra dar mais graça à coisa toda.

Minha mãe chegou no início da noite e olhou meio torto para o Alex, mas a gente ignorou.

Nós nos despedimos com um abraço gostoso e apertado.

Nossa como o cheiro dele me hipnotizava!

Naquela noite eu não pude falar, mas gemi um pouco batendo uma, me lembrando da última vez que eu e ele transamos e daquele cheiro de pescoço...

Era quase dez horas do dia trinta de dezembro quando eu acordei.

Eu havia tido um sonho muito bonito, mas não conseguia me lembrar direito. Fiquei rolando na cama por quase meia hora tentando me lembrar do que me deixou tão feliz naquele sonho.

Eu precisava criar coragem para levantar da cama e iniciar meu dia; o dia que seria um dos mais especiais da minha vida.

Porém eu estava sem coragem de testar a minha voz.

Decidi ficar em silêncio pelo máximo de tempo possível, mas uma dor estranha na garganta me dava um mal pressentimento.

Levantei da cama e fui olhar minha prateleira de mangás.

Meus olhos se fixaram automaticamente em um certo volume do Ynuiasha e eu revi em câmera acelerada o dia no qual eu conheci o Alex.

Quantas coisas mudaram desde então. Quantas coisas aconteceram, o quanto eu mudei...

Acredito que a minha mudança foi pra melhor.

Só de lembrar que eu corava e ficava vermelho como uma pimenta sempre que ele sorria ou chegava perto demais, me deu vontade de rir. Lembrei-me da nossa primeira conversa, quando ele me disse “nesse mundo não existem coincidências”... E eu completei a frase: “só existe Hitzusem”.

Hoje, alguns anos depois, não posso deixar de acreditar cada vez mais nisso.

Não que eu acredite que o destino esteja escrito, não, isso não. Eu acredito que cada um faz seu destino usando de livre arbítrio, porém existem alguns encontros especiais, algumas experiências que precisam ser vividas e essas experiências não acontecem por “acaso”.

Só existe algo maior que coordena nossas vidas.

Eu sentei na minha poltrona e pensei na minha situação.

Como eu pude perder a voz logo no dia em que a banda ia tocar na rádio e me ocorreu que talvez isso também não tivesse acontecido ao acaso.

Preparei meu próprio almoço, pois mamãe estava enrolada no trabalho.

Como era dia trinta, ela só voltaria a trabalhar no dia três de janeiro e por isso, trabalharia um pouco mais que o normal nesse dia.

Enquanto cozinhava o telefone tocou. Era o tio João ele disse: “alô”, e eu reconheci logo a voz, mas quando fui dizer “oi tio” levei um susto muito grande, minha voz não estava melhor... Ao contrário, eu estava completamente rouco.

Me desesperei e desliguei o telefone na cara dele.

Tentei gritar de raiva, mas não consegui...

Como isso pode acontecer!

O que eu falaria para os meninos da banda, ou melhor, o que eu “grunhiria” com essa voz pra eles?

Após esse momento de desespero inicial tentei me acalmar, afinal desespero e ansiedade nunca me levaram a lugar nenhum!

Foi então que eu sentei no sofá e tentei cantar alguma coisa, mas nada saía.

Me joguei no sofá, fechei os olhos e fiz uma prece pedindo inspiração divina e a ajuda do Carlos pra decidir o que fazer.

Foi nesse momento que o telefone tocou mais uma vez. Era o tio João de novo.

- Alô!

- Oi tio.

- Menino, um dia ainda te meto a porrada... Como é que você desliga o telefone na minha cara! - falou rindo.

- Ah tio... Desculpa! É que eu estava descansando a voz pra poder cantar hoje na rádio, mas...

- A sua voz está destruída!

- Poxa tio, obrigado!

- Ah... Calma, rapaz! Não é o fim do mundo; você já foi ao médico? Quer que eu te examine?

- Não precisa, não, eu já fui ao Dr. Marcondes e ele disse que eu estou com um nódulo e preciso parar de cantar por um tempo...

- Então filho, pare de cantar por um tempo e depois volte a cantar. Não é o fim do mundo.

- É... Mas talvez seja o fim da minha banda...

- A banda não é só você, RenatoDepois que ele desligou o telefone, fiquei pensando que a banda não era só eu. E pra falar a verdade, eu era só o segundo vocalista da banda e nós tínhamos músicos muito bons...

Eu precisava ligar pra Marília e dizer que eles tinham de ir sem mim.

Já tinha me sentado mais uma vez no sofá e estava com o telefone na mão quando a campainha da porta tocou, era o Alex.

Eu abri a porta e ele estava em pé, mais bonito do que eu jamais o tinha visto.

Reparei nos seus cabelos castanhos claros, sua pele branca, os ombros largos e a pele lisinha daquele rosto lindo...

Os olhos pareciam mais verdes que o comum, pois ele estava sem o óculos de armação preta que sempre usava.

Me lembrei da primeira vez que o vi de lentes de contato. Foi no dia do nosso primeiro beijo. Mas o que o deixava mais bonito do que das últimas vezes que eu o vi foi o sorriso lindo, um sorriso do qual eu só tinha visto a sombra recentemente. O sorriso que me fez corar como eu não corava há muito tempo.

Minha pele começou a queimar, queimar e acho que minhas pernas tremeram.

Ele falou:

- Acabei de ler na internet todos os episódios de Tsubasa que eu perdi, porque não acompanhei enquanto estava nos EUA, e preciso conversar com alguém, porque a história deu um nó na minha cabeça!

Eu só pude rir; parecia que eu tinha voltado no tempo.

- É; eu também estou com a cabeça enrolada com esse mangá. - eu grunhi com minha voz horrível.

- Cara, sua voz piorou... - ele falou entrando e me abraçando, porque entendeu a gravidade da minha situação.

Sentamos no sofá e eu falei pra ele como fiquei arrasado...

- Não é só por mim que estou triste, cara! Eu sempre sonhei com isso, mas não era só pra mim, entende? Eu queria que a gente ganhasse aquele concurso e tivesse uma música tocada na rádio, não por causa da minha voz, mas porque a banda toda é boa. Os meninos tocam muito. Até a Alê está tocando melhor aquele teclado...

- É; ela melhorou bastante. - ele disse brincando.

- Sabe, você entende do que eu estou falando, afinal essa banda começou com você também! Eu não queria ganhar só por mim; queria ganhar por nós e sei que as nossas melhores chances seriam cantando “Blind” do Lifehouse e a Marília não tem timbre de voz pra essa música.

- Por que Blind? Eu adoro essa música, me lembra muito... Bom... por que essa?

- Porque é uma música que valoriza vários instrumentos e o concurso avalia bastante o todo e não só a música e vocalista... E, além disso, eu tenho uma conexão com essa música, porque ela me lembra o meu amor por você!

Ele pareceu congelar.

Ele já sabia que eu ainda o amava, claro. Mas foi a primeira vez que eu falei de forma direta pra ele.

Mas essa reação não durou muito tempo. Logo depois ele abriu de novo o seu antigo sorriso e disse:

- Eu preciso ir; vê se te cuida.

- Vou me cuidar.

Não queria forçar nenhuma barra.

Se ele queria ir embora depois de ouvir que eu o amava eu ia deixar, até porque, eu entendia que eu só poderia dar e ele só poderia receber amor em forma de amizade.

- Ah, depois de descansar um pouco, você vai ter que cumprir um trabalho de Hércules!

- Qual?

- Avisar pra Marília que não vai cantar hoje!

- Nem me fala!

Ele foi embora e eu fui para o meu quarto enrolar o máximo possível para contar pra Marília toda a história da minha voz.

Depois de uns vinte minutos, liguei pra ela.

- Marília?

- Ai meu Deus, sua voz!

- Eu sei. Não vou poder cantar hoje!

- Calma... Tem certeza?

- Você não está ouvindo esse grunhido? Não dá pra cantar... Você vai ter que segurar a barra sozinha!

- Hum... Não sei se dou conta, além disso você é a voz da banda, cara... Talvez seja melhor eu ligar pra rádio e agradecer o convite e dizer que fica pra próxima.

- Ei? Você está louca? Não, vai lá com o pessoal e faz isso pela banda... Eu sei que você pode!

- Ai, Renato... Não sei, não sei mesmo... Eu canto algumas músicas, mas você é a voz da banda.

- Vocês precisam tentar.

- Hum... Nunca vai ser a mesma coisa, mas nós vamos ver o que podemos fazer então... Você vai pra rádio com a gente?

- Acho melhor não... Eu não estou bem com essa história da voz e não quero desanimar vocês.

- Entendo... Acho que é bobagem, mas entendo. Faz assim, Renato... A gente entra no estúdio às16:00 h e o programa só começa às17:00 h. Por que você não vai ouvir a gente lá do prédio da rádio? Você chega um pouco depois das quatro e aí a gente já entrou; assim, quando a gente sair perdendo ou ganhando, saímos todos juntos pra algum lugar depois!

- Tá; pode ser!

Olha, fica bem tá! Sua voz vai voltar, com certeza! E a gente vai fazer muito sucesso juntos!

- Tá bom, obrigado! Beijo.

Desliguei o telefone e fui almoçar.

A tarde seria longa para mim!

O prédio da emissora de rádio ficava a quarenta minutos da minha casa, assim, esperei até às 16:00 h para sair e não esbarrar no pessoal.

No caminho comecei a analisar a conversa com a Marília e a saída repentina do Alex, de minha casa.

Imaginei que provavelmente ele ligou pra ela antes de mim e disse que ia cantar no meu lugar.

Só podia ser isso. A Marília aceitou a coisa toda, fácil demais. Pelo visto esses dois iriam me aprontar uma surpresa.

Fiquei imaginando como seria, se ele dedicaria alguma música para mim e assim purgaria de vez o nosso passado, além de voltar a cantar e a tocar em grande estilo.

Seria lindo se a música que existisse dentro dele fluísse de novo.

Mas a Vida não é um conto de fadas!

Quando desci do ônibus meu celular tocou e era a Marília.

- Alô, Renato! - ela disse apressadamente. - Você já está aqui na rádio, ou está chegando?

- Estou quase em frente.

- Pelo amor de Deus, te apressa! O Alex teve uma espécie de crise e acabou de sair correndo do estúdio. Nenhum de nós pode sair daqui pra ir atrás dele... E...

Eu desliguei o telefone na cara dela e comecei a correr em direção à emissora.

Foi então que o vi sair do prédio correndo e pegando a rua lateral. Corri o mais rápido que pude na sua direção, tentei gritar o nome dele, mas minha voz não saía.

Ele continuou correndo, pegando uma rua atrás da outra, sem um destino aparente, e eu segui correndo atrás dele, tentando me aproximar mais a cada fôlego.

Já estava com o tórax doído de falta de ar e as pernas cansadas, quando ele começou a diminuir o ritmo e sentou-se na calçada perto de uma árvore.

Eu me arrastei até lá com o resto das minhas forças.

Cheguei por trás e coloquei a mão no seu ombro. Ele virou-se e me encarou com as faces rubras e os olhos cheios de lágrimas.

Foi então que me abraçou forte.

Ficamos assim, agarrados um ao outro até a nossa respiração voltar ao normal e ele parar de soluçar.

Depois, eu segurei a mão dele e disse : “vamos pra casa”.

Ele não respondeu e apenas me seguiu até a parada mais próxima. Pegamos o ônibus, ele sentou do meu lado e disse:

- Eu queria ajudar vocês! Liguei pra Marília marcando ensaio, mas não consegui ir!

As lágrimas começaram a escorrer dos olhos verdes dele mais uma vez. E ele continuou:

- Depois eu apareci na emissora disposto a cantar, mas quando entrei naquele estúdio, com todo mundo me olhando e ouvindo... Não... Não sei o que aconteceu, mas eu não consegui, simplesmente não consigo mais... Eu sou sujo demais pra tocar ou cantar algumas coisa. Eu não consegui; me desculpa! Estraguei tudo, saí correndo como louco, lembrando de cada coisa imunda que eu já fiz.

- Esquece isso, já passou... E você ainda vai tocar e cantar muito. Você só está meio bloqueado por causa de tudo que te aconteceu, só isso. Não adianta forçar, quando chegar a hora certa, você vai conseguir!

Passei a mão pelas costas dele e assim nós fomos até a nossa parada.

Como eu me senti tolo, fantasiando mil coisas...

Quando se trata de depressão as coisas são processuais, não se pode forçar nada e toda a minha reclamação e a minha súbita declaração levaram ele a sentir que precisava fazer alguma coisa.

Temi que o avanço que ele teve nos últimos dias se perdesse e ele voltasse para os EUA do mesmo jeito que chegou.

Fomos direto pra casa dele. Ele me convidou pra entrar e fomos para o seu quarto.

Ele já tinha parado de chorar e agora estava calmo e me abraçou de novo.

Mas havia alguma coisa de mais nesse abraço.

A forma como ele passava as mãos nas minhas costas, o jeito como ele esfregou o rosto no meu ombro e pescoço.

E, nossa! Aquele perfume já ia começar a me inebriar quando ele cochichou: “talvez eu possa fazer outra coisa pela gente além de tocar”.

Percebi aonde ele queria chegar e assim que ele passou a mão por debaixo da minha camisa eu o afastei de mim. Da forma mais delicada que eu pude.

Ele tentou resistir, mas depois se afastou e perguntou:

- O que foi?

- Eu que pergunto? Será que você não percebe o que está fazendo?

- Eu estou tentando me entregar pra você; fazer amor com você! - ele disse de forma alterada.

- Não, Alex! Você não está tentando fazer isso! - eu falei com voz enfática. - Você quer compensar com sexo a sua frustração.

A fisionomia dele mudou completamente e ele gritou.

- Você é psicólogo agora?

- Não! Eu sou seu melhor amigo! - Eu falei firme, mas sem gritar. Até porque minha voz não permitia gritar.

- Melhor amigo? Você disse que me amava! Achei que você queria mais que amizade de novo.

Ele se virou e começou a tremer.

O mesmo tick nervoso que eu observei no dia do nosso reencontro.

Ele continuou, com os olhos cheios de lágrimas, mais uma vez:

- Por que você está fazendo isso, me confundindo desse jeito? Por quê? Você não me ama?

Reuni toda a força moral que eu tinha e disse:

- Eu te amo tanto! Que não posso ceder aos seus impulsos, porque isso te faria mal e iria sujar o nosso amor! Por Favor, me perdoe! Mas eu não vou ser nada além de seu amigo até que você esteja bem de novo.

Então me virei e fui em direção à porta.

- Espera, por favor, espera! - ele disse chorando. - Me desculpa. Eu... Eu não queria; eu também te amo! Por favor, não faz isso comigo, não me abandona... Eu não iria suportar!

- Eu não vou te abandonar nunca! - eu disse olhando para ele mais uma vez. - Você não ouviu? Eu te amo! Eu te amo muito... Mas agora é melhor eu ir pra casa. Faz assim, fica aqui um pouco... Lê um livro, se distrai e quando você estiver melhor, vai lá em casa que eu vou estar te esperando!

Fui até ele e lhe dei um abraço apertado, depois saí para casa a passos largos.

Foi muito difícil resistir à tentação de fazer amor com ele, mas graças a Deus eu consegui!

Esse desejo não poderia ser normal.

Totalmente fora de contexto. Só podia ser uma compensação e conhecendo a história dele nos EUA, era isso com certeza.

Infelizmente se nós nos entregássemos ao desejo do vício dele, depois nosso amor estaria manchado pela culpa e pelo nojo e eu não queria isso. Não faria bem para ele nem para mim!

Cheguei em casa e tentei não pensar no que tinha acontecido. Afinal, se eu ficasse mal também, não poderia ajudá-lo.

Com toda essa confusão acabei nem ouvindo os meninos na rádio.

Liguei pra Marília e contei rapidamente como e onde eu encontrei o Alex. Não entrei em detalhes, pois ela não sabe da história dele. Só disse que ele estava sofrendo de depressão e na hora não deu conta.

Ela entendeu e não fez mais perguntas.

Perguntei da apresentação e ela disse que nos limites do possível, foi até boa. Ficamos em segundo lugar e ela e os meninos estavam em uma pizzaria com o pessoal das outras bandas perdedoras, comemorando o insucesso.

Já era quase 21:00 h quando o Alex bateu na porta de casa.

Eu o abracei e convidei para entrar.

- Cara, me desculpa... Não sei o que deu em mim, sei lá. Você sabe que eu sou doente?

- Você não “é”, você está doente. É totalmente diferente.

Ele entrou e se sentou no sofá. Eu sentei ao lado dele e perguntei:

- Você está melhor? Conseguiu se acalmar?

- Sim, acho que sim... Foi bobagem tentar voltar a tocar sobre tanta pressão...

- Você só queria ajudar. - eu disse olhando para o chão.

- Sabe, eu pensei muito no que você disse. Acho que realmente estou bloqueado, mas também pensei que se eu não tentar, aí sim não vou conseguir. Eu preciso tentar.

- Sim, você precisa. - eu disse tentando sorrir. - Isso pelo menos é um avanço, pois antes você não queria nem tentar.

- Será que... Me empresta o seu violão?

- Você quer tentar agora? Olha... Não se force, por favor!

- Não vou me forçar... Eu parei de tocar porque a música pra mim era emoção, sentimento, sempre me expressei pela música. E quando eu me vi na situação que eu estava, me senti tão sujo, tão nojento; era como se eu não tivesse mais emoção ou sentimento para expressar. Só havia vazio.

Mas hoje eu sei que tenho um sentimento, uma emoção maior do que eu, que quero expressar. Foi isso que eu tentei fazer na rádio, mas com tanta cobrança eu não consegui.

Eu olhei nos olhos dele e estavam marejados de lágrimas.

Ele continuou:

- Eu não consegui na rádio, mas talvez eu consiga aqui, só com você... Porque é só pra vc que eu tenho que expressar isso.

Eu não falei mais nada. Fui até o meu quarto, peguei o vilão, dei um rápida afinada e lhe entreguei.

Ele segurou o instrumento por alguns minutos. Eu não olhava pra ele, meus olhos estavam fixos no teto da sala. Eu fiquei lembrando das aulas de violão que ele me deu, das tardes na casa dele nas quais nos entregávamos um ao outro... Foi quando eu ouvi algumas notas...

Ele estava tocando... Primeiro algumas notas separadas, depois ele entrou em um ritmo e eu reconheci a melodia... Ele estava tocando “More Than Words”.

Olhei pra ele, mas sua face estava abaixada; eu só via as lágrimas caindo sobre o violão... Era como se cada corda fosse de navalha e cada toque nelas lhe causasse dor profunda.

Tocar aquela melodia tão simples era um grande sacrifício para ele... Um sacrifício que ele estava fazendo para me dizer mais uma vez, com mais do que palavras, que me amava... Que me amava muito mais do que conseguia expressar.

Mas era mais do que isso...

A música também era um muito obrigado e um pedido de desculpa pelo incidente da tarde.

Eu fechei meus olhos e pude sentir cada uma das notas.

A música não durou muito... E ao fim ele colocou o vilão de lado rapidamente, como se este estivesse em brasas...

Eu o abracei e ele continuava em prantos.

“Você conseguiu” - eu murmurei... E logo em seguida falei “muito obrigado, eu entendi”...

E nós ficamos abraçados, por vários minutos. Depois eu sentei e ele deitou com a cabeça no meu colo e eu fiquei acariciando seus cabelos.

Eu poderia passar a eternidade ali...

Aquele momento fez esse um dos dias mais especiais da minha vida.

Eu sabia que ele não tinha tido uma “grande melhora” nem nada disso, mas ele ter conseguido tocar, um pouco que seja, me mostrava que havia esperanças no futuro.

O que ainda me afligia eram os problemas dele com sexo e minha intuição mostrava dificuldades à minha frente!

No dia seguinte acordei quase 11:00 h da manhã. Geralmente não durmo tanto assim, mas como era o dia trinta e um de dezembro precisava estar descansado para passar a virada na festa do bairro.

Liguei pra Marília e ela me disse que havia desmarcado a apresentação na festa da árvore das Luzes por causa da minha voz.

Eu já estava falando normalmente, mas não queria forçar nada. Passar um dia com a voz em desgraça me assustou um pouco.

Eu e ela estávamos pensando onde passaríamos a virada do ano. Não havia praias na nossa cidade e viajar até a cidade mais próxima com praia -1:30 h de viagem - estava fora de cogitação.

Mamãe iria para uma festa do trabalho dela e queria me levar, mas eu insisti que gostaria de passar o ano novo com meus amigos.

Haveria duas grandes festas perto da gente. Uma na árvore das Luzes e a outra no estacionamento do shopping perto do nosso bairro. Mas a gente já estava cansado dessas festas de criança.

O Matheus soube por um amigo que em um parque que havia no bairro vizinho haveria uma festa meio clandestina, mas que já era tradicional. Todo mundo resolveu ir pra essa “Virada na Mata”, como era chamada a festa.

Fiquei um pouco temeroso logo que me disseram que era clandestina, mas os meninos disseram que não tinha bronca e o máximo que poderia acontecer era a polícia parar a festa.

Seria uma aventura de ano novo.

Acabei topando e ainda chamei o Alex.

Ele estava meio sem graça de encontrar o pessoal depois de ter saído correndo na véspera. Mas quando nos encontramos, na casa da Marília, com o restante do pessoal, ninguém fez nenhum comentário e ele logo ficou tranquilo.

Nossos pais juravam e atestavam que nós estávamos indo para a festa no “playground” do shopping. kkk.

Chegamos ao tal parque às 22:30 h quase em ponto. Levamos um susto porque o lugar era meio assustador... A entrada do parque era escura e tals, mas não demoramos a achar uma galera que estava saindo da trilha escura para encontrar a festa.

Foi mais fácil do que pensamos... O lugar onde a festa estava acontecendo estava bastante iluminado. Na verdade tenho quase certeza de que a polícia ganhava alguma coisa com aquela festa. Era praticamente impossível não achá-la.

A festa estava bombando, a maior parte das pessoas ali parecia ter entre dezessete e vinte e cinco.

As músicas estavam perfeitas pra dançar. Todo mundo se animou, dancei bastante com a Marília e com a Alê.

Confesso, que não dancei com o Alex, nem com nenhum dos meninos. Sei lá, acho estranho dançar com outro garoto. Vai entender minha cabeça!

Na verdade, pensando bem, acho que o único homem com quem dancei foi o Carlos.

Lá pelas tantas... Alguém pagou umas cervejas pra Marília. E ela que nunca havia bebido ficou meio “alta”.

Já era quase meia noite e eu queria passar junto com o Alex, mas não o vi por perto. Imaginei que ele tivesse ido comprar alguma bebida com os meninos. Comecei a procurar por ele (sem largar da mão da Marília que estava mais pra lá do que pra cá. Foi aí que percebi que todos nós tínhamos nos separado naquela festa cheia de gente e não tínhamos marcado nenhum ponto de encontro.

Nesse momento eu percebi que ia dar merda. Mas a Marília interrompeu meus pensamentos falando:

- Já é quase Ano Novo! \o/- tadinha... “estava doida do rabo dela”...

- É sim; já é quase Ano Novo e você vai começar de porre!

- Ah relaxa! Você está muito sério hoje. Quer um pouco?

Ela disse me oferecendo o copo de caipirinha que, sabe Deus onde, ela arranjou, porque eu juro que ela estava sem copo nenhum quando a encontrei.

Não tive como não rir da coisa toda. Sabe, ela estava certa. O que eu queria? Dar um beijo no Alex à meia-noite?

Fala sério... Sonhos de fada não existem e nós só temos o que é real!

O importante é que eu ia virar o ano com ele dentro do meu peito. Além disso, ele devia estar com os meninos ou me procurando do outro lado da festa.

- Quer saber... Quando você vê razão nas palavras de uma bêbada é porque está na hora de beber!

Peguei o copo de caipirinha e bebi.

O DJ colocou um forró e eu joguei o copo longe e puxei a Marília pra dançar, mas depois dessa música ele parou o som e iniciou a contagem regressiva... Eu abracei a Marília e a gente contou: “Feliz Ano Novo!” - estrondou um coro entre as árvores do parque.

Depois disso bebi mais um pouco. Descobri que era mais resistente à bebida do que pensava, mas não exagerei, afinal não queria dar mais um motivo pra mamãe arrancar meu couro quando eu chegasse em casa.

Depois de muitas músicas reencontrei o Matheus e o Cláudio que disseram que estavam com o Alex até alguns minutos antes, porém eles não faziam ideia de onde a Carlinha, Cecília e Alê tinham se enfiado... Nem para onde o Alex tinha ido.

Já era 1:00 h da manhã e nada desse pessoal aparecer.

Combinei com os meninos de nos encontrarmos naquele mesmo local, às 2:00 h para voltarmos para o nosso bairro e amanhecer na festa da árvore das Luzes.

Até lá deveríamos procurar o resto do pessoal e mostrar o ponto de encontro.

Nos separamos mais uma vez e eu levei a Marília a tiracolo.

Andamos até o outro lado da festa, até onde estava a mesa do DJ!

Atrás dele havia algumas pedras bem grandes. Contornamos as pedras e eu sentei a Marília em uma rocha mais lisa que ficava um pouco afastada do barulho. Ali as árvores já eram mais próximas e o barulho da festa era menor...

Eu percebi que ela não estava bem.

- Ai Rê, me ajuda; eu não estou legal!

- Calma; é da bebida. Vai passar.

- Sei lá. Estou muito... Tonta, enjoada. Estou muito preocupada. Eu fiz besteira e agora estou assim.

- Ei, que isso? - eu sentei ao lado dela e passei a mão no seu ombro. - Você não fez nada demais, só bebeu um pouco além da conta.

- Não é isso. Eu acho que esse enjoo não é normal.

- Claro que não é normal. É culpa da vodka misturada com a cerveja.

- Seu estúpido! - ela disse chorando. - Isso é sua culpa.

- Não sei como pode ser... - eu disse bebendo mais um gole da minha cerveja.

- Eu acho que estou grávida!

GrUUUPPPP!

Eu cuspi a cerveja que me engasgou...

- Grávida? O quê? Como? De quem? - eu falei horrorizado.

Ela fungou fundo e disse:

- Do seu primo, o Dani! Eu perdi a virgindade com ele logo depois do Natal e agora estou enjoada. Só posso estar grávida. É tudo culpa sua! Eu só fiz o que fiz por sua causa!

Sabe quando o tempo parece que congela?

Foi isso que eu senti.

Como assim ela transou com meu primo depois do Natal e não me contou isso?

E Como isso era minha culpa... E como... Ei espera!

- Marília, você não pode estar enjoada por causa de uma gravidez! Acorda!

Ainda não faz nem uma semana do Natal! É impossível você estar grávida.

- Você não me entende! - ela disse isso e saiu correndo pro meio do mato.

Juro a vocês que a pior coisa é tomar conta de bêbado, ainda por cima bêbada paranoica!

Respirei fundo e fui atrás dela, afinal era perigoso andar sozinha na mata, imagina no escuro e bêbada.

Se ela não estivesse grávida do meu primo certamente ficaria grávida de algum estuprador!

Liguei a lanterna do meu celular e comecei a procurar por ela, que tinha sumido.

Eu não iria muito longe. Se não a encontrasse logo, ia ligar pra polícia, mesmo que isso acabasse com a festa; só não poderia deixar a minha amiga perdida naquele parque.

Eu havia entrado uns cinquenta metros no mato quando ouvi uns sons estranhos que pareciam gemidos.

Fiquei preocupado que ela tivesse caído e se machucado, mas quando a luz do meu celular bateu na fonte dos gemidos meu mundo parou de girar e meu coração foi arrancado do peito e partido em milhares de fragmentos.

Acho que nunca me senti tão ferido em toda a minha vida. Aquele segundo de flagra pareceu durar toda uma eternidade e, pra ser sincero, até hoje nunca esqueci essa cena.

Diante de mim, iluminado por um feixe de luz branca, havia um garoto de uns quinze no máximo, que estava sem as roupas (essas estavam jogadas no chão ao lado dele), completamente peladinho e as duas mãos estavam apoiadas em uma árvore. Ele estava de pé com as pernas meio afastadas, pau duríssimo e a bunda lisinha empinada. Cravado nele estava o Alex que ainda bombou duas ou três vezes até perceber a luz e me reconhecer.

E nisso o garoto gozou feito louco, com porra esguichando pra todo lado, sem nem tocar na sua vara.

Alex levou um susto tão grande que empurrou o garoto para o chão e tentando guardar o pinto ainda duro e com camisinha dentro das calças, veio em minha direção e eu só consegui gritar.

- Não me toca!

- Renato... Eu não... Eu não sei...

- Cala a boca Alex! Você não tem que me dizer nada. Nós não temos nada. Somos só amigos.

Meu rosto estava queimando de raiva.

As lágrimas que saiam eram de ódio! Ódio! Se ele desse mais um passo eu juro que quebrava a cara dele.

Enquanto isso o menino que ele empurrou no chão estava tentando colocar a cuequinha.

- Não se apressa não, mano... Eu já estou indo embora e ele vai continuar a te comer!

- RENATO, ESCUTA... EU SOU UM CARA DOENTE! - ele gritou.

- E PARECE QUE VOCÊ GOSTA DISSO!

Ele se jogou no chão e começou a chorar.

- Não chora, não! Volta para aquilo que você estava fazendo! - eu gritei.

Então me virei e disse sem olhar pra ele:

- Não se atreva a me procurar, nem aqui e nem em lugar nenhum!


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Ficha do conto

Foto Perfil contosdelukas
contosdelukas

Nome do conto:
LIVROS E PAIXÕES [23 e 24] ~ Desabafos

Codigo do conto:
216051

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
09/07/2024

Quant.de Votos:
2

Quant.de Fotos:
0