Quando ele me viu, sorriu.
- Olha só quem acordou. - disse ele.
- Bom dia.
- Não seria boa tarde?
- E você acha que eu tenho cabeça para me ligar em hora? Para mim é bom dia e ponto.
- Sim senhor. Quer torta? Tem na cozinha.
Eu fui para a cozinha, parti um pedaço de torta, pus num prato, peguei um garfo e me direcionei para a sala. Sentei ao lado dele e perguntei:
- O que é isso?
- Aquelas merdas de filmes família de dia de domingo.
- Acordou que horas?
- Sei lá. Está frio, não é?
- Então por que está de pernoca de fora?
- Ah, é mais confortável. Vai almoçar comigo?
- Quero!
- A gente cozinha alguma coisa.
- Melhor pedir alguma coisa.
- Hahahahaha, eu sou bom na cozinha, tá? - ele disse.
- Aham!
- Vai pegar uma bermuda no meu guarda-roupas.
- Tá.
Eu fui no quarto dele e peguei a primeira bermuda da gaveta.
- Toma!
- Não, anta, a bermuda é para você.
- Pensei que estivesse com frio nas pernas.
- Veste a bermuda. É melhor que ficar de jeans o dia todo.
- Tá bom. - disse eu saindo da sala e indo para o quarto.
- Vai para onde?
- Me trocar.
Quando eu voltei, ele fez uma cara de estranhamento para mim.
- Que foi? A bermuda não ficou boa?
- Por que você foi se trocar no meu quarto?
- Ah, sei lá.
- Quantas vezes já te vi de cueca?
- Foi instinto, sei lá.
- Está com medo que eu avance em você?
Eu fiquei pasmo. Que coisa mais estranha a se dizer assim. Se ele ainda fosse mulher...
- Foi mal, eu não medi as palavras. É estranho ser gay para você.
- Como assim?
- É porque eu não posso brincar com você sobre uma temática gay. Mas é o único tipo de brincadeira que eu conheço.
- Mas você sempre brinca com todo mundo.
- Você que um hétero tem o tipo de humor que eu tenho?
- Sei lá. Você é engraçado para qualquer pessoa.
- Tá, senta aí.
Continuamos comendo. Depois de um tempo, eu fiquei grilado com o que ele disse.
- Mas você não precisa deixar de brincar comigo só por causa disso. Eu respeito você.
- Eu sei que você respeita, mas eu posso ser constrangedor para você algumas vezes.
- Vai nada!
- Então imagine um dia em que estaremos na praia e um cara lindo passa. Aí eu comento como ele é gostoso. Como você vai se sentir?
Era estranho mesmo! Eu nem sei como reagiria se ele um dia fizesse isso.
- Ah, não sei... nunca pensei sobre isso.
- Pois é bom ir pensando. O bom de se assumir para alguém é ser quem sou com essa pessoa. Senão não há necessidade de contar.
- Você sentia falta de ser quem era com um amigo não é?
- Que história é essa?
- Sua mãe disse que você assumiu uma vez para um amigo e ele se afastou.
- É, ele não era como você. Ele ficou com medo de virar gay também.
- Que estupidez.
- Eu não o culpo. Éramos novos.
- Mas eu consigo segurar essa barra. Pode deixar.
Não sei se conseguiria, mas faria tudo para não perder o Caio. Eu não ia gostar nada-nada que ele mudasse comigo só para eu não me sentir agredido. Eu queria que o Caio fosse verdadeiro comigo. Se ele é gay, então que ele seja gay na minha presença. Não reprimiria o Caio jamais. Eu o adorava muito para fazer isso com ele.
Depois fomos almoçar. O Caio fez macarrão ao alho e azeite, bife grelhado e batata frita. Não é que o moleque sabe cozinhar? Ficou muito suculento. Eu adorei a comida. Eu não ajudei em nada, não sabia fazer nada. Então fiz o suco. Fomos comer na sala e ficamos conversando.
- Seus pais nunca estão em casa.
- A sorveteria fica aberta de segunda a segunda. Mas você acha que eles ficam só na sorveteria?
- Como assim?
- Motel, filho!
- Sério?
- Claro! Fim de semana é sagrado.
- Hahahahahahaha.
- Eles sempre chegam com um sorriso enorme à noite. E eu fazendo o papel do bom menino: “Fecharam a sorveteria tarde, hoje!”.
Você não presta!
- Você queria que eu dissesse o quê: “Como foi a foda? Foi gostosa? Fizeram meia-nove?”
- Ai, que tosco!
- Hahahahahaha. Deixa os velhos serem felizes.
- Se bem que seus pais nem são velhos.
- Pois é. Ainda aguentam!
Foi escurecendo e eu fui me despedindo. Peguei o carro e fui para casa.
Depois desse dia, tudo voltou a ser como era antes. Estava nas nuvens. Mas o Caio ainda continuava estranho. Eu supunha que era por causa do segredo dele, mas eu decidi não me meter. Deixei que ele tentasse resolver.
Outra coisa que mudou nele (na verdade não mudou, mas não prosseguiu) era que ele não era totalmente sincero comigo sobre os seus sentimentos. Aquelas observações gays que ele fez no dia da bermuda. Parecia que ele evitava isso comigo. Eu não gostei. Queria que o Caio fosse livre. Queria que ele me contasse tudo. Eu não ia admitir que ele se limitasse.
- Você não precisa reprimir suas brincadeiras gays porque sou hétero.
- Não estou reprimindo por você. Estou reprimindo por mim mesmo.
- Por quê?
- Porque quero esquecer que sou gay!
Como se esquece de ser gay? Como esquecer que você sente atrações por homens e não por mulheres? Por que o Caio, alguém que parecia ser tão resolvido em relação à sua sexualidade, agora inventa de querer esquecer quem é de fato?
- Posso saber como você pretende fazer isso? - perguntei meio brincalhão.
- Pretendo reprimir tudo o que eu sentir. É simples! - disse ele calmamente.
- Do que você está falando?
- Nada não, Marlon.
- Nada não? Como você me aparece e diz que quer esquecer que é gay e agora me diz “Nada não”?
- Esqueça o que eu disse.
- Você quer que eu esqueça porque você mesmo vai esquecer essa história, ou porque você não quer que eu me meta na sua vida?
- Só esqueça!
Não falamos mais no assunto.
Na minha universidade estava para ter um festival cultural, onde teria palestras, oficina, dança, música, teatro, malabarismo, entre outras coisas. É uma festa organizada pelos alunos do último ano do meu curso. É tradição que, a cada ano, a turma mais velha se encarregue de realizar o festival. Nós, os mais novos, vamos só para nos divertir e ajudar nos lucros da festa, que tem parte revertida para a formatura dos veteranos. Óbvio que não deixaríamos de ir.
- Caio, eu passo na sua casa para te buscar?
- Não, Marlon, eu ainda vou pagar umas contas para o meu pai. Vá na frente, a gente se encontra lá.
- Ok. Não esquece de ligar quando chegar tá?
- Tá bom, tchau!
- Tchau!
Eu cheguei ao festival, encontrei os amigos e fiquei lá bebendo suco, enquanto os outros entornavam o vinho. Eu não poderia beber porque estava de carro. O Caio demorou para chegar.
- Demora do Caio! - reclamei.
- Liga para ele, vê onde ele está - disse a Luiza.
- Tá - o celular chamava e ele não atendia - Não atende. Onde será que esse moleque se meteu?
Entre uma palestra e outra, havia apresentações culturais, performances individuais de dança e interpretação. De repente, o apresentador do evento anuncia:
- A seguir, o estudante Caio do terceiro período declamará a poesia “Nós”, escrita pelo próprio aluno.
Todos nós nos olhamos com cara de quem não entendeu nada.
- Desde quando o Caio recita poesia? - perguntou a Claudinha.
- Gente, o que será que o Caio está aprontando? - disse a Luiza.
Eu não acreditei naquilo, pois se fosse verdade ele teria me contado antes. Liguei para ele.
- Só dá desligado! - resmunguei.
Minutos depois, o Caio sobe ao palanque, ajeita o microfone no pedestal e começa a declamar. Era uma poesia linda, que falava de duas pessoas que se amavam, mas que não se reconheciam. Era como se elas se conhecessem todos os dias, se apaixonassem e, no dia seguinte, teriam que se conhecer de novo.
Ele estava bem tímido, mas se expressou muito bem. Não gaguejou ou falou baixinho. Ficamos boquiabertos. Eu fiquei pasmo. Nem acreditei que o Caio havia escrito aquilo. Era muito bonito.
Quando ele terminou a poesia, ele disse:
- A pessoa que amo sabe o que significa tudo isso!
Ele foi aplaudido e desceu. Veio em nossa direção e fomos abraçando ele.
- Menino, que poeta! - disse o Tom - Estou besta.
- Foi lindo, Caio. Lindo mesmo! - parabenizou a Luiza.
- Mas conta, quem é o seu amor? - perguntou a Claudinha.
- É segredo!
- Ah, para com isso! - disse a Claudinha.
- E você, Marlon, não vai dizer nada? O que você achou da poesia? - ele me perguntou.
Eu ainda estava estranhando tudo aquilo. Não parecia ser real. Eu não sei o porquê da minha surpresa, mas eu estava meio débil naquele momento.
- Ah, foi lindo, Caio.
- Só isso, Marlon?
- Ah, o que você quer que eu diga? - perguntei sem graça.
O telefone dele tocou e ele atendeu.
Falava bem baixinho. De uma hora para outra ele começou a ficar vermelho.
Eu nem dava atenção ao que os outros falavam. Eu não tirava os olhos do Caio e estava muito irado com aquele comportamento dele.
Ele só se despediu e foi saindo.
- Vamos, pegue suas coisas e eu te levo!
- Você é surdo? Eu não vou com você. Tchau! - e foi saindo.
Eu fui atrás e, quando fomos chegando perto do estacionamento, acelerei o passo e o agarrei pelo braço.
- O QUE É? VAI ME BATER? - gritou ele, chorando.
- Odeio quando você faz isso. Não estou me pedindo que me conte o motivo do seu choro, só quero te levar em casa.
- Não vou com você!
- Quem era no telefone?
- Ai, ai. Marlon, vê se eu estou na esquina.
- Era o seu “amor”?
Ele me olhou com muito ódio, como se eu tivesse dito alguma besteira e começou a sair.
- CAIO, VOLTE AQUI! - gritei alto.
Ele se vira e me mostra o dedo. Eu fico mais irado ainda e começo a correr atrás dele. O seguro pelo braço e grito:
- ENTRA NA PORRA DAQUELE CARRO AGORA!
- Está machucando o meu braço. Solta!
- Então entra no carro logo.
- E se eu não entrar?
- Caio, não me provoca...
- Você vai me bater? Vai dar uma de machão?
- Puta, Caio, para de falar merda. Você sabe que eu não vou te bater.
- Não parece. Agora solta a porra do meu braço.
- Não.
- Está agindo como se eu te devesse satisfações...
- Cala a boca, Caio, antes que você fale alguma besteira.
- Que tipo de besteira? Do tipo “Eu não confio em você?”.
Ele sabia ser carinhoso, mas também sabia exatamente como me magoar. Ele sabia da devoção que eu tinha por ele.
- É, desse tipo mesmo! - disse eu em tom baixo.
Soltei o braço dele e fui para o carro. Cheguei em casa, me tranquei no quarto e, mais uma vez, estava eu, um machão hétero e bem resolvido sexualmente, chorando na cama por causa de outro homem.
Depois do choro, caí no sono e só acordei no dia seguinte. Fiquei na cama, pensativo.
Por mais hétero que eu fosse, já sentia algo estranho. Algo diferente. Alguma coisa mudou. Tentei pensar no que poderia ser aquele turbilhão de sentimentos novos, mas não cheguei a nenhuma conclusão plausível.
Mas eu estava chateado com o Caio. Eu não merecia isso. Não merecia essa agressividade com a qual ele me atacou. Não entendi o porquê de ele ter ficado tão bravo.
Resolvi parar de me preocupar com ele. Por mais problemas que ele estivesse passando, eu fingiria não me importar mais.
Mas eu não só fingiria, como tentaria de fato não me importar. Seria frio. Não era frieza que ele me ofertava? Então seria frieza o que ele teria.
Não liguei mais para o Caio. Deixei que o fim de semana passasse.
Na aula seguinte, fiz questão de sentar longe dele. Fiz questão de mostrar que eu estava de saco cheio de ficar paparicando o Caio. Todo mundo notou que eu me afastei. O pessoal perguntou se a briga no estacionamento tinha sido tão feia assim. Eu dizia que não queria falar sobre isso e mudava o assunto.
Na terça, o Caio veio falar comigo.
- Você está com raiva de mim?
- Não.
- Então porque você está “assim” para o meu lado?
- Assim como?
- Me ignorando.
- Falou a palavra certa: ignorar! Eu não estou com raiva de você, eu estou ignorando você. É diferente.
- Ah não, hipocrisia não. Se você está me ignorando é porque você está com raiva de mim.
- Ah, agora eu sou hipócrita também?
- Para com isso, Marlon. Fala direito comigo.
- Caio, vamos fazer o seguinte? Você é cheio de problemas, cheio de frescuras; eu, como bom amigo, só tentei te ajudar esse tempo todo e só levei patada. Por que você não fica dando piti para lá e eu fico na minha aqui?
- Agora eu sou alguém que dá piti?
- Agora não. Desde sempre!
- Isso não é verdade, Marlon. Eu tenho os meus problemas sim, mas eu simplesmente não quero compartilhá-los com você. Você precisa entender isso.
- Eu entendo muito bem, mas mesmo assim você me dá patada. Você não precisa me contar o que é, pois eu só peço para ajudar no máximo que puder. Naquele dia eu só queria te levar para casa porque fiquei preocupado. E o que você fez? Ficou me dando foras.
- Eu estava irritado. Me perdoa.
- Não precisava descontar em mim.
- Eu sei, desculpa!
Como era irresistível fazer as pazes com o Caio. Eu não conseguia ficar bravo com ele. No máximo, eu ficava bravo com a mudez dele. Mas bastava ele pedir com jeitinho que já me ganhavaAs ligações ainda eram presentes. Ora ele ligava, ora alguém ligava para ele. Na maioria das vezes ele só se fechava, mas havia vezes que ele chorava. Eu não interferia mais. Deixava-o quieto. Mas o Caio estava ficando estranho. Parecia que ele não aceitava mais a sua homossexualidade.
Foi quando as ligações pararam de acontecer. Foi muito estranho. O Caio mudou de um jeito... não era mais o Caio.
Um dia, estávamos ele e eu no meu quarto:
- Marlon, faz tempo que você não namora ninguém...
- Está preocupado comigo?
- Escuta: você tem saído para dar uns pegas por aí?
- Que pergunta é essa?
- Sim ou não?
Depois que o Caio perguntou isso, percebi que fazia muito tempo mesmo que eu não ficava com alguém. Desde a Laís. Eu nunca fui de passar mais de duas semanas sem alguém.
- Não, porque?
- A gente bem que poderia sair esse fim de semana para dar uns roles!
- Sair para ficar?
- Aham!
- Impossível, Caio. Você tem que ir caçar em balada GLS. Eu não posso ir nesses lugares.
- Mas eu não estou falando de eu ficar com homens e sim com mulheres.
- Ué, mas você é bi?
- Ai, Marlon... esquece.
- Que foi?
- Esqueça que um dia eu disse que... - ele deu uma pausa longa - enfim, esqueça!
- Esse papo de novo? Você acha que vai deixar de ser quem é do dia para noite?
- Só me ajude; não questione.
- Foi o que eu sempre fiz mesmo, não é? Eu nunca sei de nada, mas sempre faço as suas vontades.
Tá com cara de que não vai terminar bem...