O Garoto e o saxofone [26] ~ e a traição!

- Quem sabe o amigo do seu irmão não te deixa dormir na cama dele, junto com ele?

Continuei calado.

- Aposto que ele iria amar!

- Eu prefiro a nossa cama, mas parece que você não.

- Ué, quem está te impedindo de dormir lá? Quem decidiu dormir aqui foi você.

- Ok, Caio! - e fechei o olho.

- Ok, senhor Marlon.

Eu não aguentava mais. Cobri o meu rosto com o lençol e comecei a chorar em silêncio. Nem lembro quando caí no sono.

Nem vi a hora que o Caio foi para a cama. Depois desse dia nós realmente não nos falamos mais. E quando eu digo que não nos falamos, eu quero dizer que não nos comunicamos de nenhuma forma (olhares, recados, insinuações...). Isso durante todo o dia seguinte.

Para explicar melhor: eu chorei debaixo dos lençóis e quando acordei para ir trabalhar, tomei o meu café “de ontem” com um pão com manteiga. Pelo menos na agência eu me distraía um pouco.

Nesse dia, eu encontrei a Gabriela na rua.

- Cunhadinho! - me abraçou ela carinhosamente por trás.

- Oi Gabi, tudo bem?

- Tudo ótimo. E o Caio?

- Estudando muito para o vestibular.

- Eita, só tensão!

- Pois é...

- Quando vamos sair de novo?

- Ah, eu não sei. Com o Caio nessa maratona... a gente nunca mais saiu para nenhum lugar.

- Nossa! Mas isso não faz bem não.

- É, mas o Caio não ouve ninguém.

- SeiCheguei em casa e dei de cara com o Caio na sala, estudando. Ele só me olhou para saber quem chegava e voltou-se para o livro.

Eu o olhei com tristeza, mas ele com certeza não viu isso. Passei por ele pensando “Como eu queria um “‘Um oi, amor!’ seguido de um beijo!”.

Mas isso estava fora dos planos dele. Deixei as coisas no quarto e fui tomar banho. Fui para o quarto me trocar e fiquei lá pensando no que fazer para passar o tempo. Na sala eu não iria, óbvio. Liguei o computador e fiquei lendo, ouvindo, vendo algumas coisas. Mas a internet estava cansativa. Entrei no MSN e lá estava o amigo do meu irmão online:

- E aí, cara, a nossa saída?

- Não vai rolar.

- Por quê?

- Caio e eu estamos nos estranhando muito. Com certeza ele não vai.

- Mas por que tudo isso?

- Coisas de casal.

- Me conta.

- Prefiro não falar.

- Tudo bem então.

Ficamos “calados” um tempo, até que ele envia:

- O Caio se chatearia se você fosse comigo... só nós dois?

- Não sei.

- Porque eu quero muito ir. Já está na minha hora. Eu sei que eu tenho que fazer isso sozinho, eu só queria uma força, um apoio moral.

Eu me identificava muito com ele. Sentir as dores dele era como sentir de novo as minhas. Eu tive o melhor professor do mundo: o Caio. Ele precisava de uma mão também, mas naquele momento isso não era possível.

- Eu te entendo completamente, mas não vai dar mesmo. Desculpa!

Depois que ele ficou off-line, eu desliguei o computador e fui tentar me distrair de outra forma. Liguei a televisão do quarto, fechei a porta para não incomodar o Caio. Passava um desses filmes chatos do período da tarde.

Quando os pais do Caio chegaram, eu saí do quarto e fui para a sala, pois, sempre que os pais dele chegavam, ele se dirigia ao quarto. No momento em que ele chegava, eu partia. Ele fez questão de mostrar que estava ausente para mim. Quando passamos um pelo outro, ele abaixou a cabeça para tirar os óculos. Uma desculpa que ele já usou com muita gente para fingir que não via.

Magoa isso. Sabe quando você conhece todos os truques de fuga de alguém que você gosta e esses mesmos truques depois são usados contra você? É como ser uma das pessoas a quem o Caio ignora por considerá-las estúpidas. Eu agora era uma dessas pessoas.

Ele entrou no quarto, sentou-se na mesa do computador, abriu o livro e se fechou. Respirei fundo e saí.

Quando chegou a hora dele jantar, ele foi prático: foi à cozinha, pegou o que queria comer e voltou para o quarto. O mesmo esquema: passou por mim olhando para a comida. Depois que ele terminou, passou por mim olhando para o prato, talheres e copo e na volta ao quarto olhou para o relógio. Mesmo eu estando decidido a não falar com ele, era difícil me controlar.

Eu o olhava na esperança de ele ao menos me olhar de volta. Eu também sabia que ele usaria esse truque mais vezes e eu o olhava como um impulso irresistível de saber qual seria a nova artimanha que ele usaria para me ignorar. Os pais do Caio percebiam a movimentação dentro de casa, mas não falavam nada.

Uma vez, sem querer, ouvi a mãe do Caio dizendo ao filho que ele ao menos me deixasse dormir na cama. O Caio se defendia dizendo que não ordenou que eu fosse dormir no sofá.

Quando eu fui dormir, minutos depois eu sinto um tapa na minha cabeça. Eu acordei e me virei para olhar.

- Vamos, deixa de fazer ceninha e vem para a cama! - disse o Caio bravo.

Eu ainda não estava entendendo. Na verdade eu tinha acabado de acordar e as ideias estavam embaralhadas.

- Marlon, para de drama e vamos para o quarto!

- Hã?

- Ai, que retardado!

- O que houve?

- Você aí nesse sofá fazendo cena. Vamos, vem para a cama.

- Você está me perdoando?

- Não, só quero que você venha para a cama.

- Como assim?

O Caio ficou impaciente.

- Meu filho, levante-se desse sofá e remova-se para a cama. Entendeu? Eu vou para a cozinha beber água. Pegue suas coisas e ponha na cama.

Além de entender muito bem, eu ainda me senti ofendido pela forma como o Caio me tratou. Somente o jeito de me acordar foi no mínimo revoltante.

Eu, que não tinha culpa nenhuma, me vi numa briga da qual era acusado de causá-la, me ofereço para ser o culpado em troca do perdão, sou humilhado e ainda precisava atender as vontades do Caio, para que ele não fosse mal visto pelos olhos dos pais.

Pensei “Não!”. Continuei no sofá, só que sentado enquanto refletia sobre toda a situação. Quando ele voltou, pôs a mão na cintura em sinal de repreensão e disse rudemente.

- Ô, asno, pega a porra do lençol e do travesseiro e vem para cama. É difícil de entender isso? Com quantas cores você quer que eu desenhe para você entender?

- É desse jeito que você quer que eu te atenda?

- Me poupe... ainda fazendo charminho?

- Para, Caio, por favor! - despenquei no choro.

- Meu, você ainda vai chorar? Ô, tem um rolo de papel higiênico no banheiro, para você enxugar as lágrimas e não molhar o lençol, senão você passa frio aqui na sala. Boa noite!

E saiu. Não que eu tivesse chorado para tentar comovê-lo, mas quando ele disse isso, eu parei imediatamente de chorar. As lágrimas simplesmente secaram. Passei muito tempo para apreender cada palavra que ele disse. Eu ainda não acreditava. Eu o visualizei saindo da sala e sumindo na escuridão do corredor. Depois eu me voltei para frente e fiquei olhando o meu reflexo na tela da TV. “O que eu fiz de errado?”.

Ainda bem que o dia seguinte era sábado. Não aguentaria trabalhar depois de um golpe como esse. Eu acordei tarde nesse dia. A mãe do Caio me acordou.

- Vá dormir na cama, o Caio já acordou faz tempo. - me disse carinhosamente.

Eu peguei o lençol e o travesseiro, os guardei no guarda roupas e tentei me manter acordado. Deitar na cama eu não faria. Perambulei pela casa morrendo de sono. Eu não poderia sentar que logo-logo eu caía em sono.

Finalmente eu não resisti e dormi na cama. Quando eu acordei, eram umas dezoito horas. O Caio estava no computador. Eu me levantei, sentei na cama e comecei a me espreguiçar. Demorei um pouco para me levantar. O Caio comia bolo enquanto estudava. Eu me levantei para vestir uma camiseta, quando ele deixou o garfo cair. Eu me agachei, peguei o garfo e saí com ele. Fui na cozinha, lavei o garfo e fui devolver. Quando ele pega o garfo, solta:

- Obrigado. Se eu derrubar um pedaço do bolo no chão, você come?

- Por que? - sem entender.

- Ai, esquece. - disse ele rindo.

Depois eu entendi que ele quis me chamar de “cachorrinho”. Foi o cúmulo. Eu saí louco do quarto, peguei o meu celular e liguei para o amigo do meu irmão.

- E aí, vamos na balada hoje?

- Vamos? Mas você disse que não podia.

- Mas agora eu posso. Vamos?

- Vamos!

Fui tomar banho, belisquei alguma coisa na cozinha e, enquanto me perfumava, disse:

- Caso te interesse ainda, vou sair com o amigo do meu irmão. Vamos na XXXX. Tchau!

Peguei um táxi, passei na casa dele e fomos para a balada. Ainda na porta, conversamos um pouco.

- Por que o Caio não veio?

- Está ocupado.

- Que legal que ele te deixou vir.

- É. Olha só, a gente entra e fica no bar. Se você quiser dançar, a gente dança.

- Não gosto muito de eletrônica.

- Você quem sabe. Então, olha só, é muito simples: todo mundo aqui é gay, então você pode dar em cima de quem você quiser. Relaxe, fique calmo. Caso apareça alguém que você não se interesse, basta dizer firmemente que não está afim.

- Ah, mas isso é besteira.

- Não é não. Às vezes a gente diz que não está afim, mas eles continuam insistindo e muito. Então diga firme que não está afim e pronto.

- Tá.

- No mais, a gente vê quando entrar.

Entramos, ficamos no bar. A música estava boa, mas tudo me lembrava o Caio. Pedimos uma bebida e ficamos no bar mesmo. Não demorou e um cara me apareceu.

- E aí, vamos dançar? - disse passando a mão na minha barriga.

- Não. - disse eu tirando a mão dele.

- Ah, por quê? - passando a mão de novo.

- Não é não. - disse enquanto segurava o pulso dele.

- Grosso! - e saiu.

- Entendi. - sussurrou o amigo do meu irmão no meu ouvido.

Quando eu disse “firme” para o amigo do meu irmão, eu não quis dizer para ele ser tão firme quanto eu fui. Na verdade eu estava impaciente e só fui para aquela balada para me rebelar contra o Caio. Mas, apenas cinco minutos naquele local e eu já queria ir embora. Quando terminamos as bebidas, ele me diz:

- Tá, vamos dançar, ver os caras.

- Certo!

Fomos para a pista. Ele começava a ir em direção ao centro. Eu o puxei pelo braço e gritei no ouvido dele:

- NO MEIO NÃO!

- POR QUÊ? - gritou de volta.

- No meio rola muita esfregação, é gente pegando gente e fazendo coisas!

Ele me olhou com uma cara de medo e começou a me seguir. Encontramos um lugar legal, perto do darkroom. Lá as pessoas se pegavam com mais cautela. Ele não dançava muito bem e eu estava achando tudo um saco. Apareceu um cara e me chamou para dançar.

- Você é quente! - gritou no meu ouvido.

- Não! - eu gritei de volta.

- É sim!

- Não estou afim!

Ele olhou para o amigo do meu irmão e me perguntou:

- E ele?

- Está livre!

Ele se aproximou, gritou alguma coisa no ouvido do outro, mas ele também disse não. Quando o cara saiu, eu disse:

- Ele era bonito!

Não gostei!

- Parecia uma companhia legal, não chegou pegando. Esses são raros.

- Mas não gostei.

Todos os caras que se aproximavam, ele rejeitava. O achei meio idiota. Exigente demais. No inicio achei que era medo, mas não era.

Surpreendentemente, alguém tampa os olhos do amigo do meu irmão por trás. De inicio só vi as mãos, mas quando olhei bem era o Vinícius.

- Oi Arthur! - gritou o Vinicius.

- Oi - gritou o Arthur.

- Oi Marlon!

- Vinicíus? Sumiu!

- Pois é... sabe como é... ?

- Sei...

Ficamos conversando aos berros. O Arthur ficou visivelmente incomodado com a presença do Vinícius, por quem já foi apaixonado. Já o Vinícius estava muito animado. Depois de muito tempo, ele grita:

- Marlon, me ajuda a ficar com o Arthur!

O Arthur me olha com os olhos arregalados e balança a cabeça em sinal negativo. O Vinícius não viu. Eu fiquei sem saber o que fazer.

- Ué, fale com ele diretamente.

- Não, o Arthur é cheio de frescuras. - berrou mais uma vez.

- NÃO, VINICIUS, NÃO! - gritou o Arthur.

- Ah, para Arthur! - brincou o Vinicius.

O Vinícius começou a agarrar o Arthur, demonstrando estar terrivelmente bêbado. Depois ele caiu no chão e nós o erguemos.

- Vamos levar o Vinicius em casa! - gritei

- Aí é foda! - com ar de decepção.

Saímos da boate e entramos em um taxi. O Vinícius dormiu no caminho.

- Arthur, você não se importar de eu querer ir para casa depois, né? - disse cansado.

- Não, a noite foi perdida mesmo. - disse triste.

- Poxa, cara, mas você também nem arriscou. - tentando consolar.

- É, eu sou medroso!

- Relaxa, haverá oportunidades.

- É, você é que é feliz, pois tem o Caio!

Com tudo isso eu havia me esquecido do Caio. Bastou ouvir o seu nome e eu fiquei com o coração apertado, com aquela sensação de choro preso. Senti-me abandonado.

O Arthur por sua vez encostou a cabeça no meu ombro e seguimos viajem. Durante todo o percurso eu pensava na minha carência, na minha falta de carinho, nas patadas que o Caio me dava. Depois de um tempo, o Arthur sussurra:

- Às vezes eu só queria um amor, sabia? - levantou-se do meu ombro.

Como eu me surpreendi com essa frase pronunciada muito tempo depois de encerrada a conversa, eu o olhei. Quando virei meu rosto, vi que ele também me olhava. Estávamos muito próximos. Ele inclinou o rosto e me selou, mas continuou perto, esperando uma reação minha. Eu estava tão carente... devolvi o beijo. Começamos a nos beijar com os lábios. Demoramos muito assim. Quando ele enfiou a língua, eu parei.

- Não!

- Por quê? Eu estou tão carente!

Quando ele disse isso, ainda me virei para beijá-lo mais uma vez. Eu também estava carente. Nesse estado, se o Caio me dissesse que estava carente também, eu não pensaria duas vezes. Foi o que me fez pensar em beijar o Arthur de novo. Mas foi só um impulso. Ao ver o rosto do Arthur, percebi que ele era o Arthur e não o Caio.

- Eu amo o Caio.

E seguimos. Quando chegamos à casa do Vinícius, o Arthur pegou outro táxi e foi embora.

- Eita, mas já vem bêbado! - reclamou a mãe do Vinícius.

- Tia, a senhora pode me emprestar uma grana para voltar para casa? Estou sem nenhum.

- Não, menino, eu levo você.

- Obrigado.

Quando cheguei em casa, fui ver se o Caio dormia. Sim, dormia como um bebê. Eu peguei minhas coisas e fui dormir no sofá. Na manhã seguinte acordei disposto a fazer as pazes. Já estava insustentável tudo aquilo.

Tomei banho, tomei o café e fui ao quarto falar com o Caio. Ele estava só de camiseta rosa, com a estampa dos Ursinhos Carinhosos e de meias, sentado na mesa do computador, estudando. Eu entrei, sentei na cama e pensei em iniciar a conversa. Eu diria tudo o que me angustiava e declararia o meu amor da forma mais piegas que fosse possível e necessário.

Estava carente demais para permitir que mais um dia se passasse sem que eu ouvisse o Caio me chamando de Marlonzinho-zinho-zinho.

Mas eu não resisti a tanta graciosidade daquele nerd fofo e comentei sobre a sua roupa:

- Você de meias e de camiseta dos Ursinhos Carinhosos me derrete todo - disse rindo.

Ele não disse nada, não fez nada, não esboçou nada.

- Eu preciso de você a qualquer custo. Eu te amo demais, Caio. Eu não aguento mais chorar por você.

Ele se virou, me olhou e disse:

- Quando você chorava, parecia uma eternidade?

- Parecia.

- É verdade. Quando a gente chora por quem a gente ama, parece uma eternidade de sofrimento.

- Você me entende. - disse sorrindo.

- Às vezes eu entendo. Quando você sente um aperto no peito quando chora, eu também sinto. Eu só não entendo como você pode odiar essa sensação quando é você mesmo quem a provoca.

- Não fiz por mal. Aliás, eu nem mesmo sei o que fiz.

- Mentiroso!

- Não estou mentindo.

- Você vai me dizer que não sabia o que fazia?

- Eu juro, amor!

- Não adianta jurar. Eu duvido que você não sabia o que fazia enquanto beijava o Arthur!

- Hã?

Meu coração saltou dentro do peito.

- Ai, Marlon, por que você quer me fazer de palhaço? - começando a chorar raivosamente.

- Eu... eu... eu não beijei ninguém!

- E ainda continua, eu não acredito. - escondendo o rosto com as mãos.

Era tarde. Eu não ia mentir. Não tem como mentir para o Caio. Não só porque eu não consigo mentir para quem amo, mas também porque ele era esperto demais para se deixar enganar. Levantei-me e me aproximei dele, pus as mãos em suas costas e comecei o desabafo:

- Foi sem querer. Ele me beijou, mas eu admito que permiti. Mas depois eu neguei, não quis mais. Ele insistiu e eu não quis. Foi só um beijo, um único beijo. Mas eu te amo, eu disse para ele. Quando ele me pediu mais, eu disse que te amava.

Ele continuou chorando. Eu não sabia o que fazer e nem conseguia chorar junto. Eu pedia para que ele me olhasse, acariciava as costas dele, pedia desculpas. Eu me ajoelhei, para ficar na mesma altura dele, que estava sentado.

- Caio, me perdoa. - sussurrava - eu nunca quis te magoar, te amo demais para isso.

Mas ele não fazia mais nada além de chorar e esconder o rosto. Pus a minha mão no joelho dele e continuei ajoelhado.

- Caio, como você descobriu que eu beijei o Arthur?

Ele tirou a mão do rosto, ergueu o tronco, levantou a cabeça, enxugou as lágrimas, me olhou de cima para baixo, soltou um sorriso meio maléfico e disse:

- Da próxima vez que você trair alguém, certifique-se de que o bêbado ao lado está realmente apagado!

As lágrimas brilhavam no rosto do Caio, mas parecia que a fonte havia secado. No lugar, surgiu um sorriso maldoso, vingativo. Eu ainda estava de joelhos, na frente dele, com as mãos pousadas em seus joelhos. Quando ele revelou o seu informante, levantei-me subitamente e o encarei de pé. Surgiu uma ponta de revolta e mais duas de ciúmes.

- Foi o Vinicius? - perguntei brutamente.

- Foi o Vinicius o tempo todo!

- Como assim “o tempo todo”?

- Você acha mesmo que eu encuquei com o Arthur à toa, que eu não gostei de ele ter te chamado pelo o meu apelido em vão? Você acha mesmo que o Vinícius encontrou com vocês dois coincidentemente na boate?

Eu tentava prever as próximas revelações do Caio, mas já tinha caído em mim há muito tempo de que eu não era páreo para ele.

- Você o mandou nos seguir. - disse em tom baixo e conformado.

Ele voltou a demonstrar tristeza e raiva em detrimento ao orgulho e vingança que ele demonstrara segundos atrás.

- Não mandei ele vigiar vocês, como você pode estar pensando. O mandei causar constrangimento. Parece que ele conseguiu muito bem.

- Desde quando vocês dois estão de papo? - perguntei enciumado.

- Não tente virar a mesa, Marlon.

Ele se levantou, foi ao banheiro e eu fui atrás.

- Caio...

Ele pegou o papel higiênico, tirou alguns rolos, sentou se no vaso e começou a enxugar as lágrimas.

- Desde quando, Caio?

- No dia em que você e o Arthur foram jogar bola da primeira vez.

- Você disse que foi pegar açúcar... para de chorar, Caio. - pedi carinhosamente.

- Ele me ligou pedindo a câmera de vídeo emprestada, eu disse para ele vir buscar. Ele perguntou de você e eu disse com quem você estava.

- O Vinícius disse que o Arthur já foi apaixonado por ele?

Ele pegou mais um pedaço de papel. Quando eu fiz a pergunta, ele gargalhou, como se estivesse zombando de mim. Levantou-se e voltou para o quarto.

- Você é mesmo a pessoa mais burra e fácil de ser enganada! - dizia enquanto caminhava no corredor.

Eu o segui, não havia nada que eu poderia fazer ou dizer. Alguma coisa tinha de podre em toda essa história e o Caio sabia de tudo.

- Então ele te contou que já foi apaixonado pelo Vinícius? Sei... o Vinícius me contou justamente o contrário: disse que era ele quem estava apaixonado pelo Arthur.

- Não defendo o Arthur, mas o Vinícius pode ser o mentiroso do mesmo jeito que o Arthur.

- Pois é, não é, Marlon? - perguntou irônico - A única diferença é que o Vinícius não tem interesse nenhum nessa história, já o Arthur...

- O Vinicius já gostou de você.

- E que me importa se ele goste agora? Mas os fatos não dizem isso. Aliás, o Vinícius já gostou de mim, do Arthur... do seu irmão! - disse de forma estranha.

- O quê é que tem o meu irmão?

- Impressionante como o seu irmão é cobiçado por homens e mulheres. Eu não sei o que as pessoas veem nele. Prefiro você, mas a torcida do Flamengo prefere o seu irmão.

- O que o meu irmão tem a ver com isso, Caio? - curiosíssimo.

- O Vinícius me contou que, quando ele namorava com o Arthur... sim, na-mo-ra-va... ora vejam só como as coisas se repetem... o Arthur vivia dizendo para o Vinícius que sempre foi apaixonado pelo Ewerton. O Vinícius disse ao Arthur para ele parar de se iludir, pois ele também já tinha seguido esse caminho e tinha se dado mal.

- E eu entro na história como o prêmio de consolação?

- Bravo, Marlon, bravíssimo! Você não é tão burro como eu pensei. Foi justamente isso que aconteceu: já que ele não conseguiu o Ewerton, tentou o irmão mais novo dele, que seria um cara mais possível e mais próximo do tipo que ele queria. Como foi que você disse mesmo um dia? Ah sim, “tipos agradáveis”. Parabéns, querido Marlon, você é o tipo agradável do Arthur!

- Pouco me importa o Arthur. - desdenhei.

- Mas o Vinícius pode ter mentido, vai saber? Você tem o direito de acreditar ou não. Eu já escolhi o meu lado.

Não havia como não me sentir revoltado com as humilhações que o Caio direcionava contra mim, mas agora era uma revolta conformada.

Parecia justa. Tudo fazia sentido, mais uma vez. Mais uma para a galeria de vitórias do Caio. Uma vitória que ele obtinha sem o mínimo de esforço. Ele nem investigou o Arthur. A história do passado foi quem o procurou.

O único esforço do Caio foi atender um telefonema, descer alguns degraus e abrir um portão. Eu precisei ser enganado completamente, me desentender com o meu namorado, perder a paciência, sentir pena de alguém que não merecia, trair a quem eu amava e ouvir a verdade no melhor estilo-Caio para compreender o quanto fui idiota.

Era uma humilhação da qual eu não poderia me revoltar. Eu estava errado.

A única coisa que eu queria era fazer o que já estava fazendo antes: assumir qualquer culpa (agora uma culpa fundamentada) em troca do perdão. Tudo para mim seria sanado se o Caio me perdoasse e tentássemos, juntos, voltar a ser como antes.

Caí em mim enfim. Sentei na cama e comecei a refletir sobre tudo. O Caio foi para a janela. Eu o olhei de costas.

- O que o Vinícius te disse mais sobre ontem à noite? - ele não respondeu - Caio?

- Ele disse o que você disse: vocês se beijaram, mas depois você recuou. Disse ao Arthur que me amava - disse de costas.

- E eu te amo.

- Mas foi capaz de me trair.

- Foi um impulso. Eu estava muito carente, louco, querendo o seu perdão.

- Blablabla...

- Não faça isso, não é justo que você me condene por um errinho. Eu tenho o direito de errar, qualquer um erra. Se fosse você?

Ele se virou, encostou-se na janela com o cotovelo, me olhou com precisão, parecia pensativo.

- Você acha mesmo que eu faria isso?

- Eu sei o quanto você é perfeito, mas você também erra.

- Com você, não!

- Pode errar um dia.

- E esse é o seu pedido egoísta de perdão: você pode errar porque eu também sou passível de erros? Então quantas vezes eu posso errar com você, Marlon? Vejamos: quantas vezes você já errou comigo? Se eu for seguir a sua lógica, então o meu crédito de erros é muito grande, não?

- Eu não sou esperto como você.

- Isso não é desculpa. No mínimo você deve saber se policiar, saber se esquivar. Não é porque você é um gay “recente” que pode errar. Você já foi um hétero experiente e trair por trair, gays, héteros... até assexuados podem fazer.

- Mas o momento não foi o mais feliz para isso.

- O momento, a sua inteligência, a sua carência... o que mais? Vamos, me fala, o que mais você vai usar como desculpa?

- Eu só quero que você entenda o quanto eu sou humano.

- Eu também sou humano.

- É, você é perfeito, magnífico!

- Chega, Marlon!

- Eu te amo e foi esse amor que me fez frear.

- Por que não freou antes? Seu amor não é tão grande? Ele não teve força para fazer isso?

- Você estava me maltratando aqui em casa. Eu chorava todo dia. Foi só um beijo, que acabou em segundos. Apesar da sua perfeição, você também poderia cair.

- Ai, Marlon, se você soubesse quantas vezes já fui cantado...

- Eu imagino. - disse furioso.

- É, mas como o seu irmão... Nossa! Nunca vi homem tão desejado.

- Me perdoa.

- Não consigo.

- Eu já sei onde eu errei. O que você queria me mostrar com aquilo tudo era que o Arthur estava afim de mim e eu não percebia.

- Um pouco tarde, não?

- Não.

- Sim.

- Você me ama?

- Amo.

- Então me perdoe, por favor.

- Não é porque eu amo que devo perdoar. Quem ama também se magoa.

- Eu sei disso... e como sei.

- Mas sempre quem provoca é você.

- Quando você gostava do Vinícius, eu também me magoava.

- Mas eu não era seu, não dizia que gostava de você e sempre deixei claro.

- Mas mesmo assim eu me magoava.

- Mas eu não era o responsável. Agora que estamos juntos um é responsabilidade do outro.

Eu me desesperei, me levantei e fui a todo vapor para cima do Caio:

- Eu estou cansado, sabia? Cansado de amar você. Amar você é muito difícil. Amar você é como estar em frente aos holofotes. Mas sabe quais são os piores holofotes? Os seus olhos! Os seus olhos me vigiam de longe e me seguem aonde quer que eu vá e eu não os vejo. - disse surtando.

O Caio ficou ligeiramente assustado com a minha agressividade e avanço. Mas depois ele recobrou o ânimo triste de antes:

- É mesmo difícil conviver comigo. Eu sei. Você não é a primeira pessoa a me dizer isso e ao que tudo indica não será a última. O meu erro é tentar ser normal, quando na verdade eu sei que eu não sou o tipo de pessoa que se esconde fácil na multidão. A minha timidez, que deveria gerar o desinteresse das pessoas, gera curiosidade e quando elas descobrem quem sou eu e eu fico sabendo disso, faço de tudo para que elas fiquem ao meu lado.

- Só que essas pessoas ficam porque se apaixonam fácil por você. Elas não ficam obrigadas. Você é um poço de iscas. Quanto mais você alimenta, mais eu quero. Se não fosse amor que eu sinto, eu estaria doente.

- Talvez estejamos todos doentes.

- Talvez. É bem possível.

- Então essa pode ser a sua deixa para se ver livre de mim. Você acaba de se desencantar por mim, então aproveite a chance e corra. Corra o mais longe que puder.

Como eu odeio a verdade do Caio. Ele consegue ser tão transparente e verdadeiro. Qualquer pessoa, até mesmo a mais distante, consegue identificar isso nele. E essa é só uma das mil coisas que se tornam iscas de corações. Quanto mais verdadeiro e revelador ele fosse, mais o queria por perto.

Essas últimas palavras do Caio definiam bem quem ele é. E como correr de alguém assim? Quem já correu do Caio um dia, enquanto corria, pensava na besteira que estava fazendo.

Ninguém é igual a ninguém, mas existem pessoas que são diferentes demais. Nós sempre compararemos as pessoas, mas aqueles que correram do Caio com certeza viram que as pessoas que elas avistavam no caminho eram muito iguais.

Diferente mesmo só o Caio. Eu sempre tive uma vida muito igual. Pensei comigo mesmo “Não vou permitir que o Caio se afaste. Não aguentaria voltar a viver como antes, uma vida igual!”.

Balancei a cabeça em sinal negativo, revoltei-me um pouco e comecei a andar pelo quarto.

- Não vou te deixar. - dizia enquanto andava de cabeça baixa.

- Parece que tudo realmente acaba.

- Não vou permitir que acabe! - falei mais alto.

- E que escolha você tem?

Parei, olhei para ele e disse com ódio nos olhos:

- Você. A minha escolha é você. Eu não vou deixar que você me deixe!

- Isso não é decidido por você.

- É sim. Você vai ser meu e ponto!

- Não é assim.

- É assim e ponto.

Sentei na cama, peguei o travesseiro e comecei a torcê-lo nas minhas mãos. Começamos um diálogo mecânico e rápido:

- Você me traiu com o Vinícius?

Ele ficou me olhando um tempo, depois fez uma expressão de dor, caíram algumas lágrimas.

- Não. Nunca.

- Você já me traiu com alguém?

- Não.

- Já teve vontade?

- Uma vez.

- Com quem?

- Não houve quem. Quis te trair quando soube que você me traiu.

- Você acha que eu já te traí antes?

- Sim.

- Com quem?

- Com o Arthur, no primeiro dia em que vocês saíram.

- Mas eu não te traí. Você acredita nisso?

Ele demorou um pouco.

- Agora que você disse, sim.

- Eu não entendo porque você me esconde tanta coisa. Eu fico louco com isso. - eu disse.

- Não te escondo nada. Você é que sempre busca desvendar um mistério meu, quando na verdade ele não existe. Eu sou o que sou. Sempre fui o que sou. Por isso tento me esconder a todo custo, pois, se me revelo, fico totalmente exposto. Mas ninguém nunca acreditará que existe alguém que é sempre 100% ele mesmo e criam segredos escondidos onde não há o que esconder.

- Você não é só a pessoa mais verdadeira, como também é a pessoa que melhor consegue definir a si mesmo.

- Porque eu sou controlador.

- E eu tento ser o seu controlador, mas você se controla sozinho.

- As pessoas sempre fazem isso. Inútil. Almas gêmeas não são metades que formam uma unidade. São inteiros que possuem o doce interesse de viver harmonicamente com outra pessoa.

- Cale a boca. Quanto mais você fala, mais eu me apaixono.

- E quanto mais eu falo, mais triste fico.

- Por quê?

- Porque eu sei sempre de tudo, mas só tenho ciência disso quando falo. Se eu começo a descobrir as coisas, começo a ficar depressivo.

- Então me deixe ficar e calar a sua boca.

- Isso não é um diálogo romancista. Não percebe que quanto mais eu falo, mais sozinho eu quero ficar?

- Então calemos as bocas.

- É tarde. Já falei o suficiente para entender que o que eu quero é ficar sozinho.

- Você sente vontade de ficar sozinho, pois sozinho você não fala. - disse quase me conformando.

- Está aí uma coisa que eu não havia percebido.

- Você não chega a pensar que esses nossos devaneios são pura bobagem?

- Sempre. Mas não estou chorando porque estou filosofando com você. Eu ainda não esqueci que você beijou outra pessoa.

E eu já havia esquecido completamente.

Enquanto o Caio me fazia me apaixonar ainda mais por ele, eu havia me esquecido o motivo para isso tudo. Eu tentava entender o Caio em cada palavra. É como uma das coisas que nos tornam obcecados. Quando nos interessamos por um grande filme, um grande artista, um importante fato histórico, buscamos todo tipo de informações, dados, curiosidades sobre o assunto. Pesquisamos na internet, comparamos revistas, visitamos blogs que dão informações mais específicas, etc.

A minha obsessão era o Caio e a fonte de conhecimento estava nele mesmo. Parar e ouvir o Caio falar era como entrar em êxtase com as notícias da minha obsessão. Eu sei, parece um amor bobo, uma paixão infantil, mas era o que era.

Quando ele me fez retornar aos fatos, eu acordei.

- Eu havia esquecido do motivo da nossa conversa.

- Sabe o que é mais engraçado?

- Há algo engraçado nessa tragédia?

- Eu nunca te imaginei me traindo. Eu também nunca me vi nos braços de outra pessoa. Mas eu dizia para mim mesmo que, se um dia isso acontecesse, quem o faria seria eu.

- Por quê?

- Porque você é mais doce que eu.

- E do que me serviu tanto açúcar?

Ficamos um tempo calados:

- Acabou? Assim... acabou?

- Não nos vejo mais numa relação.

- Você disse que ainda me amava.

- E amo, mas não consigo. Eu sou muito complicado. Não consigo prosseguir. Chame-me de idiota, diga que estou exagerando, mas eu não conseguirei mais te beijar. E se eu te beijar, você vai perceber que eu não gostei do beijo e isso vai te magoar. Você sabe quando estou mentindo.

Lembra quando eu quis que você ficasse afastado de mim? Estou te afastando pelo seu próprio bem, de novo.

- Não... - me interrompeu.

- Eu conseguiria te perdoar. Na verdade já te perdoei e nem me sinto mais traído. Ainda sinto que te amo e sinto que poderíamos continuar juntos. Eu saberia que teria ao meu lado o homem mais apaixonado do mundo. Mas a todo tempo eu sentiria que algo ficou perdido lá atrás e eu te culparia por isso. Você não merece isso.

- Faça o que quiser, Caio!

- Não. Eu sofreria. Você sofreria.

- Caio... - me interrompe de novo.

- Não, Marlon. É minha última palavra.

- A última palavra tem que ser consenso.

- O amor nunca será consensual. Eles podem se dirigir para o mesmo lado, mas nunca ao mesmo tempo e nunca na mesma intensidade. Lembra? Dois inteiros e não duas metades.

- Você acha que conseguirá amar outro cara como você me ama? - já com lágrimas nos olhos.

- Não.

- E então?

- Mas não conseguirei te amar daqui em diante. Quando eu digo que nunca amarei um cara como te amo, entre esses caras, você também está incluído. O Marlon que eu amei não está mais aqui.

- EU ESTOU AQUI COMO SEMPRE ESTIVE E NÃO MUDEI! - gritei alto.

- Viu? Eu sou complicado.

- Não vou embora.

- Não precisa ir, fique aqui se quiser, mas não seremos mais inteiros unidos. Seremos pedaços despedaçados.

O chão havia se aberto debaixo dos meus pés e eu estava caindo sobre os apartamentos abaixo do quarto do Caio. Era como estar embriagado, só que com uma enorme dor no peito. Parecia que eu não conseguiria raciocinar direito, mas eu mesmo me surpreendi.

- Vou arrumar as malas e ir para a casa do meu irmão. - disse mecanicamente enquanto olhava para o chão.

Sim, raciocinei bem. Vi-me um “pedaço despedaçado” se continuasse insistindo. Preferi ir enquanto ainda era um inteiro. Os inteiros são independentes e imprevisíveis. Às vezes eles voltam a serem inteiros, que voltam a gostar de ter o doce interesse de viverem harmonicamente juntos. Eu tinha essa esperança.

- Você acharia ruim se eu te ajudasse? - me perguntou timidamente.

- Não. - sorri.

Quando ele me perguntou isso, me veio uma enorme vontade de beijá-lo. Mas não um beijo intenso. Um selinho. Eu adorava me aproximar dele e roubar beijinhos. Mas ficaria só na vontade.

- Antes, eu vou ligar para o meu irmão.

- Eu vou começando sozinho.

Fui até a sala, peguei o telefone e disquei os números. Eu não tinha notado, mas eu estava tremendo. Os dedos mal tocavam as teclas.

- Alô, Ewerton?

- Oi, Marlon, tudo bem?

Por que ele me fez essa pergunta? Caí no choro. Daqueles choros que a gente sente dor na barriga e fica soluçando.

- N-n-não! - gaguejei.

- O que foi? - perguntou preocupado.

- Eu traí o Ca-io.

- Traiu?

- S-s-sim!

- Vocês brigaram?

- Não, mas vamos termin-n-nar!

- Você quer vir para cá, não é isso?

- É, mas é só por uns dias, eu juro.

- Eu estou de saída, mas vou deixar as chaves com o porteiro. Quando você vier, mostre o RG.

- Tá bom.

- Não chora não, cara. Ele te ama, vai te perdoar depois. Eu tenho que ir, até mais tarde.

- Tchau.

O telefone ficou ensopado de lágrimas. Eu quase não conseguia devolver o telefone para a base. Eu tive que pegar a base com as mãos e encaixar o telefone.

Sentei-me no sofá, escondi o meu rosto entre as minhas mãos e mandei ver no choro. Aposto que toda a vizinhança me ouviu. O Caio não veio me ver, mas eu preferi assim.

Quando fiquei mais calmo, fui para a cozinha tomar um copo de água. Eu estava pegando um de vidro, mas, pelo meu estado, dei preferência a um copo de plástico. Depois voltei para o quarto.

O Caio estava de joelhos no chão, de frente ao guarda roupas. Tinha uma mala aberta no chão e as gavetas estavam abertas. Mais da metade das minhas roupas já estavam dobradas e guardadas.

Pela primeira vez senti frieza no Caio, até me ajoelhar junto com ele e perceber que ele tinha chorado enquanto eu chorei.

As minhas roupas estavam salpicadas por algum líquido. Provavelmente lágrimas.

Ironia.

Quer metáfora melhor que essa? Eu levaria comigo, dentro da mala, as lágrimas do meu amor.

- Se quiser parar...

- Não, tudo bem. Eu estou bem!

Não consegui pegar as minhas roupas, dobrá-las e guardá-las. Fiquei hesitante. Continuei ajoelhado olhando o Caio dobrar delicadamente as minhas roupas. Ele percebeu.

- Te digo o mesmo: se quiser que eu continue, eu continuo no seu lugar.

- Posso te fazer uma pergunta?

- Você nem deveria me fazer uma pergunta dessa.

- Você acha que a gente volta um dia?

Ele parou de dobrar roupas, me olhou:

- É no que você está pensando?

- É a minha esperança.

- Eu te amo. Te amo muito mesmo, como nunca pensei que pudesse amar alguém. Mas não posso te iludir. Não te garanto exatamente nada.

- Mesmo que você diga isso, não arranca a minha esperança.

- Vou ser bem nojentinho agora: que fique claro que é por sua conta e risco.

- Sim, é por minha conta e risco. - ele voltou a dobrar - E não, você não foi nojentinho.

Ele sorriu entre as lágrimas. Eu me levantei, sentei na cama. Em muito pouco tempo, a minha mala estava pronta. Ele se levantou, saiu do quarto e voltou com a minha escova de dentes. Depois ele fechou a mala. O ruído do zíper estava agudo. Era como uma navalha cortando o vento.

Eu “engoli seco”. Depois ele se levantou, ficou de pé olhando a mala, de costas para mim.

- Pronto!

Eu me levantei, passei por ele, peguei a mala e o olhei.

- Qualquer coisa que estiver faltando, você pode vir buscar. - me disse ainda olhando para a mala.

- Meu notebook, meus livros, roupas sujas... tudo isso depois damos um jeito.

Ele finalmente levantou o rosto e me olhou. Os olhos dele estavam inchados. Não resisti. Deixei a mala cair e o beijei. Eu o agarrei pela cintura com uma mão e, com a outra, segurei o seu rosto. Eu sentia o seu corpo junto ao meu e ele tremia no mesmo ritmo. Ele ficava evitando o beijo até conseguir. O descolar dos nossos lábios provocou um estalo. Ele ficou assustado com a minha reação.

- Tchau, Marlon!

E se dirigiu à janela do quarto. Ele pôs os cotovelos no parapeito e escondeu o rosto com as mãos. Só me restaram respirar fundo e descer as escadas.

Eu não preciso descrever os minutos seguintes, não há nada de interessante neles. Apenas um rapaz de vinte anos, com uma mala pesada descendo alguns degraus. Nada me passou pela cabeça.

Quando eu cheguei ao portão, um carro parou ao pé da calçada. Um cara bem vestido e de óculos escuros desceu do carro. Quando eu vi essa cena, não acreditei.

- Vinícius?

Ele desceu do carro e bateu a porta. Arrumou um pouco o casaco com o qual estava vestido e tirou os óculos escuros. Quando eu percebi quem era, o chamei pelo nome.

- Oi - me respondeu sorrindo.

Ele olhou para a mala e desfez o sorriso.

- Então...?

- É, eu e o Caio terminamos.

- É uma pena.

- Você veio ver o que sobrou da festa? - provoquei.

- Não. Mas também vim tentar resolver algumas consequências dessa festa maluca.

Ele estava mais sóbrio que o normal, mais sério que de costume.

- Para onde você está indo?

- Para a casa do meu irmão.

- Entra, eu te dou uma carona.

Ele andou em direção ao carro, me dando as costas. Eu não entendi nada e continuei ali. Quando ele estava quase entrando no carro, ele me viu parado.

- Vem!

Olhei para o alto do prédio, tentando enxergar o Caio na janela. Mas ele já não estava mais. Eu desci minha visão para o chão. Do mais alto lugar ao mais baixo: outra bela metáfora. Respirei fundo e entrei no carro. Antes, abri a porta traseira e pus a minha mala.

- Qual é o bairro do seu irmão?

- XXXX.

- Então vamos.

Ele começou a dirigir. Senti que não tinha raiva dele.

- Eu pensei que essa história acabaria feliz... pelo menos para vocês dois - disse enquanto olhava a estrada.

- O Caio me disse que você e o Arthur...

- É. A vida dá voltas. Eu ouvia o meu avô dizer isso, mas achava bobagem procurar as curvas da vida.

- Pelo menos você não está mais apaixonado pelo meu irmão. - ele riu - não?

- Sim, claro. Pelo menos isso.

- Você disse que veio resolver uma coisa...

- Vim conversar com o Caio. Só ele para me ajudar. Vim pedir conselhos.

- Você ainda gosta do Arthur! - sentenciei.

- É. Mas já caí em mim de que ele não me serve. No fim de tudo eu acabei tendo o que merecia.

- Está arrependido de não ter ficado com o Caio?

- Arrependido de tê-lo feito sofrer. Hoje eu vejo que não poderia pensar em namorar o Caio. Ele é muito especial. Não consigo, com todo respeito, nos imaginar numa cama. É quase incesto. Mas veja pelo lado bom: se isso não tivesse acontecido, você não despertaria para a sua sexualidade. Pelo menos não como aconteceu.

- Em outros tempos eu tentaria te matar.

- Em outros tempos eu riria da sua incapacidade em fazer isso.

- É estranho estar conformado.

- Sim, é verdade. O problema do Caio é que ele é resolvido demais. Ele tem a resposta para tudo, sabe como agir corretamente em todos os momentos, mesmo que discordemos das atitudes dele.

- Poxa, ele sabia o que o Arthur queria. Por que ele não me disse?

- Eu pensei que ele fosse fazer isso assim que você chegasse do jogo. Eu pensei “Agora ele vai pegar o Marlon, sentar com ele e dizer: “Ôh, o Vinícius me disse isso, isso e isso”. E você... eu não queria usar essa palavra, mas... você o obedeceria.

- Está certo. É essa a palavra mesmo. Eu o obedeceria.

- Então tá.

- Viu? Até você concorda.

- Mas o Caio fez a coisa certa. Eu não quero concordar com ele, mas acabo concordando. Essa palavra “obedecer”, está errada, sabe por quê? Porque o Caio tentou fazer com que você descobrisse sozinho o que estava acontecendo. O Caio não é o tipo de pessoa que te dá a coisa pronta, ele te faz ser autossuficiente. Se você descobrisse sozinho, não haveria carência no mundo que te faria beijar o Arthur ou qualquer outro cara. Você estaria convicto do seu amor e da sua escolha. Quer lição melhor que essa? O Caio nada mais estava fazendo do que garantir a segurança do relacionamento de vocês. Você sabe muito bem que ele trabalha pensando em longo prazo, demore o tempo que demorar, mas o primordial para ele é a segurança que isso causa. Ou seja, mais uma vez, mais uma fatídica vez, o Caio estava certo.

Eu estudava as palavras sábias do Vinicius e me surpreendi.

- Você conhece bem o Caio! - concluí.

- Eu fui o Caio por alguns meses e agora estou me tornando ele. É uma sensação estranha, é quase paternal. Quando namoramos alguém aparentemente mais frágil que nós, nós amadurecemos três vezes mais. Nos sentimos responsáveis e ficamos alerta vinte e quatro horas por dia.

- Eu nunca serei como o Caio.

- E nem tente ser. É ruim. Tem que ter um espírito muito forte para aguentar. E outra, você o ama por isso, você o ama porque ele é o máximo e você sabe disso, você sabe que nunca encontrará alguém como ele.

- Sim. - concordei enquanto sentia saudades do Caio.

- Mas não pense que você não ajuda as outras pessoas. O fato de você namorar o Caio ajuda muito. Vocês formam um casal lindo. Quando as pessoas olham para você, elas pensam “Poxa, ele conseguiu, ele está provando que é possível ser feliz mesmo sendo gay!”. Porque você já foi um de nós. O Caio pode ter sofrido muito preconceito sim, mas ele não sofreu como nós dois. Não estou dizendo que sofremos mais e ele menos, mas é que para nós foi diferente.

A maioria de nós vive uma realidade como a gente viveu, teve os amigos que tivemos, a família que tivemos. Mas você foi contra tudo e conseguiu abocanhar um namorado incrível como o Caio. Mesmo que a primeira pessoa que você tenha se sentido responsável tenha sido o Arthur, mas você já ajudou muita gente de muitas maneiras.

Quando chegamos e eu tirei minha mala do carro do Vinícius, eu o perguntei:

- Você acha que a gente ainda volta?

- Eu tenho fé. - disse com um sorriso largo.

- Sério?

- Claro. O Caio te ama, seu otário!

- Mas... - hesitei - às vezes eu acho que eu fui a única pessoa a estar mais próxima do Caio. As nossas discussões sempre foram intensas, cansativas, psicologicamente desgastantes. Essa última me causou um pânico que nunca vi. Não duvido do amor dele, mas temo que seja o fim de verdade.

- Não será. Te ajudarei no que for preciso. Espero que não se importe, mas eu e o Caio começamos a nos aproximar depois que eu desabafei sobre o Arthur com ele. Vou usar essa proximidade a seu favor.

- Toda a ajuda será bem vinda. Obrigado!

- E o que não te faltará é ajuda. O monte de amigos que vocês têm em comum... nossa! Só o Tom e a Claudinha vão acampar no pátio do condomínio do Caio e gritar com cartazes “Caio, volta para o Marlon!” - imitou o som de gritos.

- Hahahahahaha, assim espero.

- Tenho que ir agora, irmão.

- Obrigado por tudo.

E nos abraçamos enfim. Tinha o meu primeiro aliado para voltar com o Caio.

Entrei no prédio do Ewerton. Era um condomínio aparentemente bem caro. Uma arquitetura arrojada, segurança de primeira. Eu não fazia ideia, mas o Ewerton deveria estar se dando bem no emprego. Eu só não enxergava muito bem, porque os meus olhos estavam inchados de tanto chorar.

Mostrei o meu RG ao porteiro, que logo me passou uma chave, me dizendo onde era o andar. Subi pelo elevador, andei pelo corredor, passei a chave e entrei. O apartamento era bem espaçoso, mas poderia ser também pela falta de móveis. Procurei um dos quartos para pôr a minha mala, pois eu já sabia que dormiria no sofá. Mas me surpreendi. O quarto tinha uma cama de solteiro. Eu pensei em tomar um banho, mas já estava muito cansado e acabei dormindo. Só acordei quando o meu irmão chegou.

- Marlon?

Ele estava sentado na cama. Eu acordei.

- Oi.

- Oi. Então... você e o Caio brigaram?

Eu fiquei calado.

- Eu trouxe a Gabi. Ela está na sala.

Eu me levantei, calcei os chinelos e fui ao banheiro lavar o rosto. Nem ousei me olhar no espelho. Se por acaso estivesse muito inchado, a Gabriela entenderia.

- Oi, Marlon! - disse ela meio triste.

- Oi.

- Vocês vão voltar, vocês se amam.

Eu sorri. Ela só era a terceira pessoa a me dizer isso e eu já estava ficando de saco cheio de ouvir a mesma ladainha “Vocês se amam, vocês nasceram um para o outro, vocês serão felizes!”.

A cada vez que alguém me dizia isso, parecia mentira. Ou pior, parecia que aconteceria o contrário. Depois de muito consolo, ela foi embora. Ficamos Ewerton e eu.

- Eu não pretendo ficar muito tempo. - eu disse.

Estávamos na sala. Eu sentado em um sofá e ele na poltrona de terno e gravata.

- Você vai ficar até quando precisar. Se quiser, até mesmo pode vir morar aqui.

- Não vou atrapalhar o seu casamento.

- Não sou um romântico como você. Vi que as coisas, mesmo o lado financeiro indo bem, não são como queremos. Eu e a Gabi não vamos nos casar ainda.

- Por quê?

- Ela não quer.

- Como assim? - perguntei surpreso.

- Não, nada de mais. Ela só não quer agora. Eu estava planejando fazer mil surpresas, fazer o pedido perfeito, morar numa casa só nossa. Mas ela é tão racional quanto eu. Eu ainda vou ter que fazer mais viagens, então eu contei para ela dos meus palnos.

- E estragou a surpresa?

- Foi melhor assim. Quando eu contei para ela, ela disse que tinha sido melhor eu ter contado, pois ela não aceitaria se eu a pedisse. Ou seja, me livrei de um mico.

- Mas por que ela não quer?

- Por nada, porque acha que está nova, que estamos novos, que não devemos ter pressa e tals. Eu concordei.

- É, pelo menos acabou bem para ambos.

- E é por isso que você pode ficar aqui o quanto quiser, vai ser até melhor. Eu vou ficar muito tempo fora e você fica cuidando.

- Obrigado.

- Não agradeça. Eu ainda te devo tanto.

- Porra! O que deu para mudar tanto? - fui direto.

- Eu ainda não te disse, não é? Eu e a mamãe brigamos.

- Por minha causa?

- Também, mas não foi o principal. Ela implica com a Gabi, não gosta dela. Eu tenho a ligeira impressão de que, como o papai está sempre fora nas patrulhas e tals, só restei eu lá em casa. Ela ficou grudando em mim. Quando eu comecei a namorar, ela ficou com ciúmes. O ápice foi quando eu disse que queria casar, ela chamou a Gabi de um monte de coisas e eu não aguentei. Comecei a gritar com ela, e ela ficou fazendo chantagem emocional.

Disse que eu era a única esperança dela, pois você ela já tinha perdido para o mundo. Aí eu comecei a te defender. Ela disse que pessoas como você nunca deveriam ter nascido. Eu só lembrei-me do Augusto nessa hora. Sem o Augusto eu não teria conhecido a Gabi. Fiquei puto e saí de casa. Agora que estou fora, sinto saudades do antes, do antes de você se assumir, pois foi quando tudo aconteceu. Por isso estou tentando preservar o que restou. O papai não criou confusões esse tempo todo, mas está sempre trabalhando. Só tenho você agora.

Eu fiquei calado. Ficamos calados um longo tempo.

- Você ficou triste por eu dizer isso da mamãe?

- Não. Não sinto nenhuma falta dela. A única coisa triste nisso tudo é eu perceber que, em relação a ela, eu estou totalmente indiferente. Quer dizer, a tristeza é concluir que eu sou insensível, ou seja, não tem nada a ver com ela, mas comigo.

- É triste ver como a nossa família se desfez por uma coisa boba.

- Então construa uma e tente não ser como fomos.

- Ah, eu quero ter uns oito filhos. Hahahaha.

- Hahahahaha se for isso tudo, vai ser pior que a nossa!

Ao menos eu tinha um teto para ficar e parecia que também tinha uma parcela da família de volta. Não dormi. Literalmente não dormi. Pensei em cada palavra dita pelo Caio horas antes. “Felizmente” não consegui chorar mais. Perambulei pelo apartamento. Não tínhamos computador, só internet, mas como um não funciona sem o outro... Fique na janela vendo a noite passar. Um desfile de estrelas estúpidas. Elas zombavam da minha desgraça.

Eu imaginava que o Caio também estivesse na janela do nosso ex-quarto.

Às vezes nos perdemos por tão pouco. Era uma agonia.

O Ewerton saiu cedo para trabalhar. Como eu já estava um caco, continuei um caco o resto do dia. Eu pensei em ligar para alguém, mas fiquei com sono o dia todo. Meus olhos ficavam pesados. Eu só saía da cama para comer e ir ao banheiro. Passei o dia todo sem tomar banho. Nem vi quando o Ewerton voltou.

No dia seguinte a esse, percebi que meu celular tinha um bocado de ligações não atendidas. Todas de amigos. Com certeza queriam saber algo. Não respondi, nem atendi as seguintes. Pensei em passar na sorveteria e falar ao menos com a mãe do Caio. Dar-lhe uma satisfação:

- Marlon? Oi, meu filho, como você está? - perguntou ela enquanto me abraçava.

- Não vou mentir para a senhora: estou muito mal.

- Eu imagino.

- E o Caio? - perguntei já curiosíssimo.

- O Caio? - perguntou ela com preocupação.

- Sim, como está?

- O Caio viajou!

- Como viajou?

Talvez o motivo para eu ter me conformado com facilidade tenha sido o fato de eu acreditar que, uma hora ou outra, Caio e eu reataríamos.


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Comentários


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morsolix Comentou em 15/07/2024

Parece que esse tal de Caio não passa de um bom filho da puta




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Ficha do conto

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Nome do conto:
O Garoto e o saxofone [26] ~ e a traição!

Codigo do conto:
216380

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
15/07/2024

Quant.de Votos:
4

Quant.de Fotos:
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