- Vítor, me deixe explicar.
- Eu não quero explicações, nem nada de você.
Seu tom era de agressão e aquilo me feriu profundamente. Segui calado e entrei no carro. Nenhum de nós dois dizia nada.
- Você está bem, Bernardo?
- Estou pai, vamos.
Ele ligou o rádio e partiu com o carro. No rádio tocava uma música antiga, mas muito conhecida:
Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três.
(…)
Era justo aquilo que eu sentia naquele momento? Atrás das brincadeiras de criança estava o cruel mundo dos adultos. A nós só restava aceitar e enfrentar esse novo mundo.
Vítor pediu que meu pai o deixasse na fazenda do Cercadinho e eu não pude protestar. Aliás, nem tinha forças pra isso. Eu não reagi ao silêncio do meu amigo para segurar as aparências pro meu pai, mas por dentro eu estava destruído. Não sentia mais nada, nem dor, nem vergonha, nem nada, eu estava entorpecido.
Entrei em casa, subi para o meu quarto e me deixei cair na cama. Rapidamente adormeci. Eu estava cansado de tudo, do Vítor, da minha homossexualidade, dos meus sentimentos, da vida...
Eu não estava encontrando forças para lutar, tanto que não me levantei quando amanheceu.
Minha mãe bateu na porta perguntando se eu me sentia bem, e respondi que estava ótimo, que era só cansaço da viagem. Continuei dormindo o resto da manhã. Eu não estava com sono, apenas não estava com ânimo.
Mais tarde, como não desci para almoçar, minha mãe veio me trazer comida, mas apenas belisquei. Também não estava com fome. Eu me sentia meio morto, semi vivo.
Quando minha mãe veio recolher o prato e viu que eu quase não havia comido, vi a preocupação em seus olhos. Ela não se aguentou e me perguntou:
- Meu filho, estou ficando preocupada. O que está acontecendo com você?
- Como assim?
- Há dias você vem se comportando de modo estranho. Alguma coisa está acontecendo.
- Não está, não, mãe.
- Não estou perguntando se está acontecendo algo. Eu sei que está. O que eu quero saber é o que é.
- Mãe...
Eu não queria falar. Eu não suportaria ela me virando as costas.
- Bernardo, eu sou sua mãe. Não importa o que esteja se passando com você, eu vou te apoiar. Por favor, se abra comigo.
Eu não consegui resistir ao seu apelo.
- Mãe... - olhei no fundo dos seus olhos - eu sou gay.
Ela me encarou por um instante. Eu não sabia o que esperar. Ela me abraçou forte. Naquele momento eu senti como se um peso fosse tirado das minhas costas. Aquele seu abraço depois do que eu havia dito não tinha preço. Devemos ter ficado abraçados por minutos enquanto eu chorava silenciosamente.
- Mãe, me desculpa...
- Não tem do que se desculpar, meu filho. Eu te aceito como você é.
- Obrigado...
Ainda não tínhamos nos largado e aos poucos fomos nos afastando. Olhando nos seus olhos, perguntei:
- O que eu faço agora?
- Não sei, meu filho. Isso é novo para mim também. Não sei como as coisas serão daqui para frente.
- Mas você me aceita, né?
- Claro. Não posso dizer que estou feliz, afinal eu imagino o quanto você ainda vai sofrer com isso na vida. O que posso te afirmar é que eu vou estar sempre ao seu lado, te ajudando a superar os obstáculos.
- Obrigado mãe, sua compreensão é muito importante para mim.
- De nada, meu filho. Agora, pelo menos por enquanto, não fale nada com seu pai.
- Por quê? Você acha que ele não vai me aceitar?
- Ele vai te aceitar sim, só que ele vai precisar de um tempo pra absorver a ideia antes. É melhor você me deixar falar com ele primeiro, preparar o terreno.
- Certo.
- Bom, agora eu vou esquentar a sua comida e o senhor vai comer tudo desta vez, entendeu?
- Ok, eu vou sim.
Sorri enquanto ela saía do quarto. Me senti bem mais aliviado. Pelo menos uma pessoa estava do meu lado e isso me dava forças para enfrentar as outras, ou pelo menos tentar.
Ela voltou com meu almoço e desta vez me alimentei direito. Conversamos mais um pouco sobre o apoio que ela me daria. Depois passei o resto da tarde lendo, precisava mergulhar um pouco na fantasia para esquecer a realidade.
Faltando pouco para anoitecer, ouvi a campainha da minha casa tocar e logo depois minha mãe me chamou.
Desci a escada despreocupado; não estava esperando por ninguém em especial. Quase caí duro quando vi Vítor e Mariana parados juntos à porta. Vítor estava calado, sério, enquanto Mariana conversava com minha mãe de forma simpática. No momento que me perceberam na escada, todos olharam para mim. Eu não fazia a mínima ideia do que eles vieram fazer aqui.
- Bernardo, eles vieram conversar com você - falou minha mãe.
- Podemos subir pra conversar a sós Bernardo? - Mariana continuava falando com seu enjoativo jeito simpático de ser.
- Claro, vamos para o meu quarto.
Mas o que diabos eles queriam conversar? Me xingar? Dizer que nunca mais falariam comigo? Avisar que espalhariam para a cidade toda? Será que eles tinham percebido meus sentimentos pelo Vítor? E agora?
Chegamos ao meu quarto e eu fechei a porta. Eles se sentaram na minha cama e eu numa cadeira, de frente para eles. Vítor continuava sério com um olhar perdido.
- Bernardo, o Vítor me falou o que viu...
- O que vocês querem?
- Como assim? - ela me perguntou assustada.
- Vocês vão contar para todo mundo? Vão me humilhar pra cidade toda ver?!
- Como você pode pensar isso, eu sou seu amigo, porra!
Vítor tinha finalmente se pronunciado. Eu me assustei com suas palavras e com a expressão de raiva em seu rosto. Aquela conversa estava cada vez mais confusa para mim.
- Hã?
- Lógico que nós não vamos contar para ninguém.
- Viemos aqui para dizer que te apoiamos, Bernardo. Estamos do seu lado. - falou Mariana docemente.
- Então... Então por que você se calou ontem, Vítor?
- Porque eu me assustei! Num momento eu conversava com você, no outro você estava enroscado no pescoço de outro cara. - ele fez uma cara de nojo ao dizer isso que me deixou incomodado.
Ficamos os três em silêncio por um longo momento.
- Me desculpa pelo o que você viu.
- Por que você não me contou?
- Porque eu tinha medo da sua reação.
- Mas nós somos amigos.
- Eu não sabia se seríamos ainda depois de te dizer.
Novamente o silêncio dominou o ambiente.
- Seus pais sabem de você?
- Só minha mãe.
- Você não pretende contar pro seu pai?
- Não sei ainda, minha mãe disse que vai me ajudar com isso.
- Mas como você acha que ele vai reagir?
- Ainda não sei.
O clima ainda era de estranhamento. Eu sentia que o Vítor queria me ajudar, mas ao mesmo tempo aquilo tudo ia de encontro com os valores com que foi criado. A presença de Mariana ali também não ajudava muito. Eu não conseguia me sentir à vontade com a sua presença. Não conseguia me soltar para abrir meu coração para o Vítor.
- Vítor, por que você resolveu me aceitar?
- Ora, você é meu melhor amigo.
- Eu sei, mas nem eu me aceito direito, como você digeriu isso tão rápido?
- A Mariana me ajudou, ela abriu meus olhos, me fez ver que minha amizade por você é maior que qualquer preconceito bobo.
Aquilo me pegou de surpresa. Ele me aceitava por causa da Mariana. Eu devia ser grato a ela. Talvez ela fosse uma boa pessoa e eu estava sendo duro demais por ela estar namorando Vítor.
- Obrigado, Mariana.
- De nada. Eu aceito isso bem, não vejo nenhum problema em você ser gay. Acho que é tudo hipocrisia da sociedade, afinal, há indícios que os próprios homens da caverna praticavam o homossexualismo. Acho mais: caminhamos para um mundo cada vez mais livre de preconceito.
- Disso eu duvido.
- Tenha fé.
Eu estava começando a simpatizar com ela. Ouvimos a porta da frente se abrir no andar de baixo. Era meu pai. Vítor e Mariana se levantaram.
- Bom, já está tarde é melhor nós irmos.
- Amanhã você vai lá pra casa?
- Claro! - respondi com excitação.
Eu nem parecia o mesmo que pela manhã estava em depressão na cama. Minha mãe me aceitava, ia me ajudar com meu pai. O meu amigo me aceitava, e isso era um passo importante para um dia, num futuro próximo, eu abrir meu coração para ele.
Descemos a escada e encontramos meu pai ainda na entrada olhando a correspondência. Quando nos viu já foi sorrindo e cumprimentando Vítor.
- Como vai, meu rapaz?
- Muito bem, seu André.
- E seus pais?
- Ótimos também.
- E quem é essa linda moça que estava fazendo companhia a vocês? - ele falou estendendo a mão para Mariana.
- Prazer, seu André. Sou a Mariana.
- É a namorada do Vítor, pai. - falei sem entusiasmo.
- Ora, muito prazer então Mariana! Cuide bem desse garoto, é meu segundo filho e vale ouro.
- Pode deixar que eu vou cuidar sim.
- E você, Bernardo, cadê a namorada?
Todos prendemos a respiração nervosos. Não sei como consegui, mas respondi rapidamente:
- Quem sabe um dia?
- Em breve eu espero. Agora vamos nos servir.
- Ah, seu André, nós já estávamos de saída.
- Sem chance! Vocês vão jantar com a gente.
- Mas seu André, não queremos incomodar.
- Não é incômodo nenhum. - veio minha mãe da cozinha. – Já coloquei seus pratos na mesa.
- Vamos lá então.
Nos sentamos todos à mesa. Minha mãe cozinhava muito bem, o que era essencial por se tratar de uma cidade no sul de Minas.
A culinária da minha região é reconhecida como a melhor do país e com razão.
A campainha tocou e eu me prontifiquei a ir atender. Quando abri a porta levei um susto: era o Zeca.
- Oi.
- Oi, tudo bem com você?
- Tudo bom, e com você?
- Bem também, só passei por aqui para ver como você estava depois de ontem.
- Ah, bem melhor. Eu contei de mim para a minha mãe e ela me aceitou. O Vítor também acabou me aceitando, mas não sabe mais nada além do beijo. Aliás, ele está jantando com a namorada e meus pais na sala agora.
- Que bom que está tudo se resolvendo para você.
- Quanto ao beijo..
Meu estômago se revirou. Tinha acontecido tanta coisa que eu havia me esquecido do beijo e do quanto foi bom. O problema viria agora, nós teríamos que conversar sobre ele. Mas minha mãe parecia ter um sexto sentido e gritou:
- Bernardo, quem é?!
- Ah, é o Zeca mãe, o rapaz que está hospedado na fazendo do vovô.
- Convide-o para jantar também!
- Acho melhor não, Bernardo. Só passei mesmo para ver como você estava.
- Sem essa. Agora você vai ter que entrar. O jantar aqui em casa é sagrado. Vir na hora da refeição e se recusar a comer é visto como insulto grave.
- Ok, ok, eu janto com vocês... - ele disse rindo.
Eu acabei rindo também. O motivo eu não sabia bem, mas a simples presença do Zeca me fazia bem. Eu o levei para a sala de jantar e minha mãe foi pegar prato e talheres extras. Eu percebi que Vítor fechou a cara com a presença de Zeca. Era visível que os dois não se gostavam muito.
Zeca se sentou conosco e jantamos todos juntos. Ele começou um papo descontraído com meu pai, que queria saber tudo sobre ele. Vítor ficou calado e eu percebia Mariana o cutucando por debaixo da mesa para que ele esboçasse algum sorriso. A noite estava sendo ótima, até meu pai comentar a notícia que ouviu no seu mercado:
- Sabiam que o filho do seu Luís é viado?
Eu engasguei com a comida; minha mãe tomou um grande gole de suco; Zeca arregalou os olhos; Vítor e Mariana se entreolharam.
- É um tristeza para ele, uma desgraça para toda a família. Imagina só, um homem deitando com outro homem. Vai contra tudo!
Ninguém falava nada, só ele. Eu começava a me sentir mal com suas palavras. Me coloquei no lugar do pobre garoto.
- Já é assunto na cidade toda. Estão pensando até em se mudar. Também quem mandou se deitar com outro homem.
- André! Que assunto desagradável para a mesa do jantar.
Minha mãe veio nos socorrer daquele constrangimento. Eu já estava definitivamente passando mal com todo aquele assunto.
- Tem razão, querida. Vamos falar de outras coisas, aliás, estamos em família. Um brinde ao Zeca e Mariana que entraram para a família.
Todos nós erguemos nossos copos em um brinde, ainda desconcertados.
- Uma família feliz! - completou meu pai.
“Sim, e eu sou a ovelha negra...” - pensei comigo mesmo.
Me deitei naquela noite com uma dor no peito...
Eu tinha certeza que meu pai não me aceitaria. Só pela forma como ele falou daquele garoto era possível notar sua opinião sobre o assunto. Chorei a noite toda e dormi por conta da exaustão.
Como prometido ao Vítor, passaria o dia seguinte na casa dele. Quando acordei meu pai já havia ido trabalhar. Minha mãe ainda estava tomando café da manhã e me falou:
- Meu filho, não ligue para o que seu pai disse. Ele estava falando de outra pessoa e você é filho dele. Com certeza ele vai pensar diferente.
- Eu sei mãe. - mas não sabia, não. - Já vou indo pra casa do Vítor.
- Vai com Deus!
Peguei minha bicicleta e saí pedalando em direção à fazenda do Cercadinho.
Sozinho naquela manhã fria, pude ir pensando na minha vida.
Minha mãe, Zeca, Mariana e Vítor já sabiam de mim. Foi relativamente fácil encarar suas reações, já que os sentimentos ruins passaram rápido e foram praticamente esquecidos com a sensação de alívio que se segue após a revelação. Será que seria assim com todos? Pois, uma hora todos saberiam. Eu já tinha me conformado com isso.
Mas e meu pai?
Ficou bem claro o que ele pensa sobre o assunto. Será que ele vai me renegar, me virar as costas?
Será que seria assim com todos ou eu estava apenas tendo sorte com as primeiras pessoas para quem contei?
Sem perceber cruzei os portões da fazenda do Cercadinho. Me dirigi à sede e Vítor já me esperava na varanda.
- Olá.
- Oi.
O clima ainda era de estranhamento entre nós, mas não poderia esperar nada muito diferente tendo em vista os últimos acontecidos.
- O que vamos fazer hoje?
- Não sei, o que você quer fazer?
- Uai, você que me convidou, você decide.
Ele me fitou por um momento e riu. Eu acabei rindo também da estranheza da situação.
- Ok, ok; vamos lá na mangueira.
- Certo, vamos lá.
Fomos em direção à grande mangueira que havia perto do casarão, separando-o da horta e do pasto.
Nos sentamos na sombra da imponente árvore como sempre fazíamos. Aquele lugar era o maior símbolo da nossa amizade. Era ali que aconteciam nossas conversas mais sérias, nossos momentos de maior descontração, nossas lembranças mais felizes.
- Se eu te perguntar uma coisa você não se ofende? - ele me perguntou.
- Não sei, arrisca aí.
- Você tentou não ser gay? - ele perguntou fazendo cara de incômodo.
Percebi que ele ainda não tinha digerido a história toda muito bem.
Pensei um pouco para responder a pergunta dele. Não tinha parado muito para refletir sobre o assunto: desde quando eu era gay?
Começou com a brincadeira em que eu subi em cima do Vítor ou esse foi apenas o despertar para alguma coisa que já estava há muito guardada em mim?
- Não tive tempo, foi tudo muito depressa. Passei muito rápido pela fase da negação, não deu muito tempo de sofrer com isso. Eu estava com outras coisas na cabeça.
- O que haveria de mais importante para ocupar sua cabeça?
“Você”
- Outras coisas, deixa pra lá... - respondi encerrando o assunto.
- Hmm, e desde quando você é gay?
- Não sei. Talvez eu seja há muito tempo. Nos dias que passei na fazenda refleti um pouco sobre o assunto e pude perceber certos sinais que dei na infância que nem eu mesmo tinha percebido. Sabe? Coisinhas bobas, tipo gostar de brincadeiras menos brutas, romances em vez de filmes de ação, etc.
- Bom, e quando você começou a perceber isso? O que te “despertou”? – ele riu quando usou essa expressão.
“Foi você. Me apaixonar por você fez com que eu começasse a olhar para dentro de mim mesmo.”
- Foi o Zeca. - respondi rapidamente com medo que um vacilo na hora da resposta me entregasse.
Sua expressão mudou. Seu rosto, que antes demonstrava uma certa curiosidade e interesse, tornou-se triste. Ele fechou a cara, fitou o horizonte e continuou a conversa sem me olhar.
- O que você sente por esse cara, afinal?
Seu tom era ríspido, como se estivesse me atacando. Aquilo me magoou, mas me lembrei que era fruto do meu próprio joguinho bobo de fazer ciúme nele. Tentei lhe responder com a maior calma possível.
- Eu gosto muito dele. Ele me faz feliz, perto dele eu esqueço dos meus problemas. Ele é uma pessoa muito especial, está sempre disposto a me ajudar a resolver os meus problemas. Eu gosto muito dele, mas ainda não sei dar nome ao que sinto.
Ele continuou com o olhar perdido enquanto eu falava. De repente me olhou sério, no fundo dos meus olhos, como se quisesse ler o que se passava na minha cabeça.
- Você gosta mais dele do que de mim?
- Tá com ciúme? - ri da situação.
Ele tornou a olhar para a paisagem, desta vez não com raiva, mas incomodado. Entendi que ele ainda não estava pronto para brincar com o assunto.
- Desculpa, foi brincadeira. Não quis insinuar nada.
- Eu sei, não foi nada.
O clima ficou estranho entre nós. O silêncio predominou ali, mas eu não podia deixar a conversa acabar. Tinha que aproveitar esse momento para saber tudo o que ele pensava sobre o assunto.
- Vítor, como você aceitou a ideia de eu ser gay, tão rápido?
Ele me olhou surpreso. Acho que ele não esperava por aquela pergunta. Por fim, seu rosto se descontraiu num sorriso tímido e respondeu:
- Ahh, foi a Mariana. Quando eu vi você beijando o Zeca - ele fez cara de nojo – vi toda a nossa amizade de anos ir embora pelo ralo. Tudo que eu sabia sobre você se perdeu naquela cena. Num instante você se tornou um total estranho pra mim. Me senti um pouco vazio, como se uma parte de mim tivesse ido embora.
Fui absorvendo aos poucos suas palavras. Escutar aquilo era muito difícil para mim.
- Fui embora no carro do seu pai sem conseguir tirar aquela cena horrível da cabeça. - Ele não fazia a menor questão de disfarçar que aquilo o incomodava muito. - Naquele momento eu senti que nossa amizade tinha se acabado. Eu estava muito confuso, perdido, não queria te ver nem pintado de ouro. Fui para a minha casa e passei a noite em claro pensando no assunto.
Estava cada vez mais duro ouvir aquilo, mas eu estava disposto a ouvir até o final. Queria entender como Vítor encarava aquilo tudo.
- No outro dia cedo a Mariana foi me visitar e viu pela minha cara que eu não havia dormido bem. Ela insistiu e eu acabei contando a ela tudo o que tinha acontecido. Ela não me pareceu surpresa, disse que já desconfiava. - engoli seco. - Conversando comigo, me fez entender melhor o que estava acontecendo. O sexo da pessoa com que você ia pra cama não mudava meus sentimentos em relação a você. Ela deduziu que você devia estar passando maus bocados com isso tudo na cabeça e me fez perceber que naquele momento você precisava muito de mim, e que não poderia simplesmente lhe virar as costas. Então, nós fomos até a sua casa para mostrar que estávamos ao seu lado apesar de tudo.
Talvez a Mariana não fosse uma má pessoa. Se mostrou compreensiva e não me deixou perder meu melhor amigo. A minha paixão por Vítor tinha me cegado para a pessoa maravilhosa que ela era.
- Ela é realmente uma menina de ouro.
- É, eu sei...
- Entendo porque você se apaixonou por ela. - por mais que aquela constatação me deixasse triste, era verdadeira.
Aquela conversa serviu para que eu entendesse o que se passava na cabeça de Vítor. Ele não gostava nem um pouco do fato de eu ser gay, apenas me aceitava para não perder o seu melhor amigo. Eu ainda não sabia se aquilo era bom ou ruim.
Sua estranheza com o assunto ficou clara ao longo do dia. Quando fazia brincadeiras de duplo sentido, comum entre nós, ele logo se constrangia e se afastava. Quando me tocava de forma mais íntima, rapidamente se recompunha e pedia desculpas.
Aquilo tudo me deixava muito desconfortável. Eu ainda não tinha meu melhor amigo por completo. Ele não era mais o mesmo comigo. Quando ele viu meu beijo com o Zeca, parece ter surgido uma parede invisível entre nós. Não conseguíamos mais nos aproximar como antes.
Definitivamente não era aquilo que eu tinha em mente ao ficar feliz por ele ter me aceitado, mas ainda era melhor que seu total desprezo. Por isso, tentei me acostumar com essa nova situação.
Ficamos o resto do dia juntos e fui para casa depois. A mãe dele, a dona Rosa, insistiu para que eu dormisse lá, mas recusei, apesar de ter ficado tentado com a proposta. Dormi aquela noite ainda com a nossa conversa na cabeça. Eu via cada vez mais distante o dia que eu abriria meu coração para o Vítor.
No outro dia cedo minha mãe pediu para que eu fosse no mercado do meu pai comprar ingredientes para que ela fizesse um doce que havia prometido à minha avó.
Caminhando pela rua, distraído, nem percebi aquela picape estacionando ao meu lado.
- Ei, Bernardo!
Só o som daquela voz fez meu corpo tremer. Me virei e vi o Zeca.
Era incrível como ele parecia mais bonito cada vez que eu o via. Ele veio caminhando em minha direção para me cumprimentar.
- Oi, Zeca, o que você está fazendo aqui na cidade?
- Ah, sua avó pediu para que eu buscasse umas coisas para ela no mercado.
- Ah, legal...
Mais uma vez o silêncio constrangedor tomou conta da nossa conversa. Ele me olhava nos olhos com carinho e eu correspondia da mesma forma. Era impossível olhar para aquele rapaz de outra forma; ele me transmitia uma paz de espírito e um conforto imensos.
- Bernardo, eu queria conversar com você, tem jeito?
- Claro, vamos ali na pracinha.
Nos dirigimos à praça central da cidade, em frente à igreja Matriz. Nos sentamos num dos banquinhos brancos, sob a sombra de uma frondosa árvore.
- O que foi Zeca?
Ele parecia meio sem jeito com a situação. Não parecia estar confortável com aquela conversa.