- Por que não? Você tem uma ótima voz, não precisa ser nada profissional.
- Ah, Lipe, não sei.
- Vamos, Bê. O nosso trabalho vai ser diferente de todos, vamos fazer o maior sucesso.
- Eu não vou me sentir confortável com isso.
- Bernardo, qual é o seu problema com a música? - ele me perguntou perdendo a paciência.
Qual era o meu problema com a música? Não valia a pena relembrar. Mas já não era hora de deixar isso para trás e novamente soltar a minha voz para me sentir completo. E também era uma apresentação pequena, só para a turma, que mal poderia fazer?
- Ok, Lipe, eu canto. - falei ainda não muito certo daquilo.
- Eba! Esse é meu garoto! - falou animado. - Vou até deixar você escolher a música, mas avisa para que eu possa treinar antes.
- Pode deixar.
- Isso aí, nosso dueto vai entrar para a história!
Ele disse aquilo e pulou em cima de mim me beijando. Começou como um beijo carinhoso, mas sua língua foi ficando veloz. Ele estava deitado em cima de mim, fazendo movimentos leves com a cintura contra mim. Eu estava completamente entregue àquele momento, não pensava em mais nada. Suas mãos foram descendo e quando chegaram na minha bunda, senti um apertão que me fez parar.
- Desculpa, Bê. - disse preocupado.
- Você prometeu ir devagar.
- Eu sei, desculpa, me empolguei demais.
- Ok, desculpado.
Ficou aquele clima chato no quarto. Então fui logo tratando de quebrá-lo.
- Você marcou hora para chegar em casa?
- Não, por quê?
- Porque a gente não fazer nada não significa que a gente não possa tirar um cochilo agarradinhos.
Ele abriu aquele seu lindo sorriso e novamente se deitou ao meu lado. Tiramos nossos sapatos e ele colocou minha cabeça no seu peito. Abracei sua cintura e ele começou a fazer cafuné em mim. Seu perfume entrava forte pelo meu nariz. Eu parecia estar no céu. Ali, deitado nos seus braços eu me dei conta da jornada que percorri até ali. Eu senti que tinha achado meu lugar no mundo, um lugar onde ninguém poderia me atingir, um lugar onde eu sempre estaria protegido: no colo do Felipe. Tudo o que eu passei, de bom e de ruim, tinha me levado até ali. Era como o vento de maio, o fim da viagem, o meu destino final.
Mal sabia eu que ainda não havia chegado à metade da minha jornada.
No começo de junho, minha vida e meu namoro iam muito bem mesmo.
Eu e Lipe trocávamos carícias cada vez mais audaciosas, mas não passava disso. Apesar de sermos adolescentes normais, com todos os hormônios à flor da pele, queríamos levar nossa relação com calma e cuidado. Definitivamente não tínhamos pressa.
O Felipe se tornou visita frequente lá em casa.
Minha tia e minha mãe já consideravam ele parte da família. Apresentei ele a Zeca também. Os dois não se deram muito bem por causa do ciúme mútuo em relação a mim, o que descobri bem depois, mas foram educados e gentis um com o outro. Ele então se sentiu na obrigação de me apresentar à sua família. Confesso que fiquei bastante de nervoso e entendi o que ele sentiu quando eu fui apresentá-lo à minha mãe. Era muita responsabilidade, e ainda tinha um agravante: ninguém da família dele sabia da gente, éramos como dois mentirosos ali, o que não me fazia sentir muito melhor.
Lipe havia me explicado que a família dele era muito preconceituosa e tals e que não nos aceitaria.
Eu entendia o seu lado, mas aquilo me deixava triste, e eu não tinha o direito de reclamar de nada porque ainda não havia conseguido falar para ele que eu o amava. Eu até acho que àquela altura do campeonato eu já sentia por ele mais do que apenas uma paixãozinha, mas os segredos que eu escondia dele não deixavam eu dizer aquelas palavrinhas mágicas.
Não, eu ainda não tinha contado nada para ele; me faltava coragem. E olha que já tinha se passado mais de um mês desde que eu tinha decido contar.
Enfim, lá fomos nós, com a desculpa de ensaiarmos nossa apresentação para o trabalho de sociologia, almoçar com a família dele.
Aquela casa aonde ele havia comemorado seu aniversário era do seus avós. Ele morava mesmo num prédio a poucas quadras do meu. Com aquele típico frio na barriga, entramos no seu apartamento. Era um lugar bem bonito, elegante.
Diferente do elegante-espalhafatoso do apartamento de tia Marta, era um estilo elegante-clean que dominava o apartamento da família dele. Logo uma mulher alta, loira, de olhos bem azuis como os de Felipe, parecida com ele, poucas rugas no rosto, mas um semblante triste veio nos receber:
- Olá garotos. Você deve ser o famoso Bernardo, não? Felipe fala muito de você.
- Sou sim, prazer.
- Prazer, sou Estela, a mãe dele.
Dava para ver de onde Felipe tinha puxado sua beleza.
Sua mãe era realmente muito bonita. Aliás, não aparentava ter idade o suficiente para ser sua mãe. Mas aquela expressão triste, apesar do largo sorriso, me chamava a atenção e me intrigava. Que tipo de coisa conseguiria deixar uma mulher tão bela quanto aquela, triste? Decidi guardar minhas dúvidas para mim mesmo.
Nós três nos dirigimos à mesa, onde o resto da família nos aguardava. Fui apresentado a todos. Felipe era o filho do meio daquela família. Tinha um irmão mais velho, Fábio, um rapaz de 20 anos, rosto quadrado e sério, corpo forte, muito bonito, com cabelos cortados bem curtos.
Já Flávio era um loirinho lindo de 11. Parecia uma máquina de tanto que falava. E todos os dois com olhos muito azuis, como os da mãe. Era a marca da família. Já Paulo me deu medo. O pai de Felipe era um homem de meia idade, com cabelos acinzentados, olhos pretos, rosto quadrado e olhar que parecia estar lendo cada ínfima parte da sua mente. A presença dele me incomodava muito, me dava arrepios. Percebi que todos aparentavam estar travados ali. Era como se não se soltassem, não fossem eles mesmo, mesmo estando num ambiente familiar. Até Felipe pareceu outra pessoa, bem mais séria e contida na presença deles. Eu me sentia assistindo a uma peça de teatro.
Apesar das minhas primeiras impressões, o almoço seguiu tranquilo. Depois eu e Lipe fomos para seu quarto ensaiarmos.
Lógico que assim que entramos ele me jogou contra a parede e me deu um beijo daqueles. Ele parecia praticar porque a cada vez que fazia aquilo se superava. Ficamos naquelas brincadeiras por algum tempo e finalmente começamos nosso ensaio. Eu tinha escolhido uma música do Chico Buarque, que abordava de forma bastante clara os tempos de ditadura. Ele começou a tocar com seu violão, e na hora combinada, comecei com a voz. Ele então parou e ficou me olhando.
- O que foi?
- Mentiroso!
- Hã? - me assustei.
- Você canta muito bem!
- Ah, bobo. - relaxei rindo.
- Sério, eu já tinha percebido que sua voz era bonita, mas não sabia que você era tão afinado assim.
- Obrigado.
- Nossa, até perdi o rumo da música com a surpresa. - riu.
- Para de bobagem e vamos continuar. - falei rindo também.
O ensaio seguiu a tarde toda. Eu era sempre interrompido por suas pausas seguidas por sorrisos bobos de admiração. Confesso que aquilo fez muito bem para a minha vaidade, eu gostava de impressionar bem meu namorado.
Depois do nosso ensaio ficamos namorando um pouco deitado juntos na cama. A porta do quarto estava trancada, obviamente.
- Adorei seu quarto. - comentei.
- Obrigado, mantenho a mesma decoração desde que eu era criança. Faz eu me sentir eternamente jovem. - falou brincando.
- Bobo. - ri também. - Se hoje você já é bonito desse jeito, imagino o sucesso que você fazia com as coleguinhas quando era criança...
- Verdade, eu era uma criança linda.
- Convencido! - bati no seu peito rindo.
- Sério! Deixa eu te mostrar.
Ele se levantou, subiu numa cadeira e pegou uma caixa no alto de uma estante. Ele colocou a caixa na cama e eu sentei para ver. Eram fotos. Fomos olhando e ele ia me contando das situações, das viagens e das pessoas de cada foto. Ele realmente foi uma criança muito bonita, inacreditavelmente loira.
Peguei um álbum com fotos um pouco mais recentes. Ele não devia ter mais do que treze ou quatorze naquelas fotos. Parecia uma festa de família, pois tinha gente parecida de todas as idades. Foi então que eu vi: ao seu lado, jogados no meio do gramado, estavam aqueles inconfundíveis cabelos ruivos como fogo. Ela estava mais nova, ainda mais sardenta, porém linda. Sua pele branca brilhava no Sol e seu sorriso parecia nos cegar. Um anjo que me assombrava.
- Linda não? - comentou ao me ver olhando aquela menina.
- Aham. - falei disfarçando meu mal-estar.
- É minha prima, Mariana. Morava aqui em BH e éramos melhores amigos, mas agora ela se mudou com o pai para uma cidade do interior. Aliás, ela deve vir me visitar um dia desses, não sei bem quando. Queria te apresentar a ela, sem contar tudo, lógico.
- Pode ser. Eu tenho que ir, Lipe. - falei apressado para sair dali.
- Mas já?
- Sim, esqueci que combinei com minha mãe de sair com ela.
- Ok, então. - falou com uma carinha triste. - Eu te levo até a portaria.
Me despedi rapidamente da sua mãe e dos seus irmãos e saí. Devo até ter sido um pouco frio com ele, mas minha cabeça estava a mil.
Meu maior pesadelo e meu melhor sonho eram parentes, de sangue.
Mariana e Felipe eram primos.
Não pude acreditar naquela coincidência incrível. O passado parecia me perseguir. Quando eu pensava que tudo ia se encaminhando para aquela história ficar para trás, ela retornava com toda a força. Ou o destino gostava de piadas de gosto duvidoso ou alguém lá em cima realmente não ia com minha cara.
Fiquei sem chão com aquela descoberta. E para completar ela viria visitá-lo e ele ia querer nos apresentar. Eu teria que inventar uma desculpa para que isso não acontecesse, pois só Deus sabe o que ela faria quando descobrisse. Minha cabeça ficava cheia de possibilidades, uma mais assustadora que a outra.
Quando percebi já estava subindo o elevador do meu prédio. Nem falei com ninguém, apenas fui para o meu quarto e me joguei na cama. Acabei dormindo devido ao cansaço gerado por aquele novo estresse psicológico. Ainda tive que encarar Mariana nos meus sonhos, pois até neles seus cabelos de fogo me perseguiamAcordei duplamente nervoso: além da constatação de que a qualquer momento Mariana estaria na mesma cidade que eu, havia chegado o dia em que eu finalmente cantaria em público novamente.
Me arrumei tentando me acalmar repetindo como uma mantra que tudo daria certo.
No café da manhã minha tia e minha mãe também me incentivaram. Zeca me ligou antes da aula para me desejar boa sorte. Nenhum deles conseguiu aplacar totalmente minha ansiedade, mas ajudaram um pouco.
Quando cheguei na escola, Lipe me esperava escorado no muro com seu violão ao lado. Como de costume, nos cumprimentamos como se fôssemos apenas amigos e entramos. Ele percebeu minha ansiedade:
- Isso tudo é nervosismo?
- É...
- Ah, que isso Bê, você canta muito bem, vai arrasar.
- Obrigado.
- E outra, cantar em público não é um bicho de sete cabeças, te digo por experiência própria.
“Ah, se você soubesse...”
- Pois é... - ri sem graça.
Ele olhou rapidamente em volta, viu que não estava vindo ninguém e me puxou para dentro do banheiro. Ele me abraçou forte e disse me encarando com aqueles hipnotizantes olhos azuis:
- Não precisa ter medo de nada, eu vou te proteger de tudo e de todos.
Ele então me beijou. Foi um beijo diferente. Sempre que ele fazia isso pelas manhãs comigo, me beijava afoito, como se quisesse afogar com nossa saliva a saudade que ele sentiu de mim.
Aquele beijo foi lento, carinhoso, despreocupado. Eu sentia todo o calor do seu corpo, assim como ele sentia o do meu. Estávamos em sincronia. Não existia mais nada no universo a não ser nós dois.
Naquele momento eu percebi o óbvio, o que estava na minha frente o tempo todo e eu não via: eu o amava. Eu o amava demais! Ali eu percebi que era com ele que eu queria permanecer o resto da vida.
Não queria mais ninguém. Ele me soltou e ficou me olhando sorrindo. Senti que era aquele o momento que ele tanto esperava, eu tinha que me declarar para ele. Tudo certo que no banheiro não era o melhor lugar para isso, mas seria até um pouco poético se pensarmos que foi ali que aconteceu nosso primeiro beijo.
- Felipe, eu...
No momento que eu ia me declarar o sinal tocou. E ele saiu me puxando.
- Vamos, quero que sejamos os primeiros a apresentar.
- Então tá, né?
Ficou para outra hora.
Pensando bem seria melhor, assim eu poderia criar toda uma situação antes para que fosse um momento inesquecível para nós dois. Eu também teria chance de contar para ele toda a verdade, para que pudéssemos viver sem medo do passado. Quando tomei consciência daquele sentimento, perdi todo o receio em contar para ele.
Chegamos na sala e quase todos já haviam chegado. Logo entrou nossa professora de sociologia perguntando quem seria a primeira dupla a se apresentar.
O Felipe já foi levantando a mão para se oferecer e fui obrigado a me dirigir para a frente da sala. Ele pegou uma cadeira e se sentou com o violão. Ele fez um sinal para que eu nos apresentasse.
Respirei fundo e falei:
- Bom, resolvemos apresentar esse trabalho em forma de música. Durante a ditadura militar no Brasil, surgiram grandes artistas que usaram toda a sua genialidade para combatê-la. Escolhemos Chico Buarque porque ele foi um dos que mais atuaram nesse campo. Poderíamos ter escolhido inúmeras músicas dele que usam de metáforas e entrelinhas para criticar o regime ditatorial, mas escolhemos uma música bem clara, sem rodeios. Até hoje ninguém sabe como a censura da época liberou a música, mas reza a lenda que o censor responsável por deixá-la passar foi assassinado pouco tempo depois.
Todos olharam intrigados. Resolvi contar a historinha da música antes para prender a atenção dos meus colegas. Deu certo.
- A música se chama “Apesar de Você”. Vamos? - perguntei ao Felipe que assentiu com a cabeça e começou a tocar.
Respirei fundo. Ali novamente senti aquela sensação de que não havia mais nada, que ali era o meu lugar no mundo. Essa sensação mandou todo o resto do meu nervosismo embora. Comecei então a cantar:
“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal “
(Apesar de Você – Chico Buarque)
Quando acordei do meu transe, todos me olhavam meio assustados. Aquela situação perdurou por poucos segundos até a professora puxar os aplausos. Todos aplaudiram, até mesmo Pedro, meio a contra gosto.
Seguiu-se também cochichos de admiração entre os presentes. Minha vaidade foi lá em cima e sorri feliz. Realmente aquele era meu dom, eu tinha que aceitar ele.
- Parabéns garotos, foi uma ótima forma de se exibirem sem fugir do tema do trabalho. - todos riram do comentário da professora.
- Obrigado. - respondemos ainda meio bobos com os aplausos.
- Você canta muito bem, Bernardo. - completou ela.
- Isso porque essa música não exige muito da técnica vocal, ele cantando pra valer é de cair o queixo. - falou Felipe.
Fiquei meio constrangido com seu comentário, mas também feliz porque era verdade e porque vinha dele.
Eu estava no céu, naquele momento nada podia me atingir. Nada a não ser o que estava por vir.
Enquanto as outras duplas se apresentavam, a secretária da escola trouxe um pequeno bilhete para Felipe. Ele leu e pareceu estranhamente feliz.
- O que foi? - perguntei baixinho curioso.
- Minha prima Mariana! Chegou de surpresa hoje lá em casa, minha mãe mandou me avisar.
Gelei.
Mariana estava a poucos quarteirões de distância de mim. Minha vontade foi de chorar, de tristeza e desespero, mas permaneci atônito, sem expressão facial. Felipe, tamanha a empolgação, pareceu não notar e continuou:
- Hoje você vai almoçar lá em casa, quero te apresentar a ela. Vocês são as pessoas a quem eu mais amo no mundo!
E agora? Apesar da Mariana, eu conseguiria ser feliz com Felipe?
Nem sei como consegui inventar uma desculpa tão rápido para não ter que ir almoçar na casa do Felipe naquele dia. O problema é que eu tinha prometido a ele que almoçaria lá no dia seguinte, sem falta.
E agora, como eu ia sair dessa? Como sempre, fui pedir ajuda ao Zeca. Liguei e em poucos minutos ele já estava lá em casa.
- O que foi, Bernardo? Você me parecia tão aflito no telefone. - ele perguntou entrando.
Fiz ele me seguir até meu quarto, sentamos na cama e comecei a desabafar:
- Aconteceu uma coisa terrível! - falei já começando a chorar.
- O que foi? - perguntou preocupado.
- Ela está aqui, Zeca!
- Ela quem?!
- Mariana!
- Como assim? Se acalma e me explica essa história direito.
- A Mariana está aqui em Belo Horizonte. - falei tentando me acalmar.
- Como você sabe, você a viu?
- Não, graças a Deus!
- Então?
- Essa é a pior parte. Descobri que ela é prima do Felipe.
- Puta que pariu!
Ele, óbvio, se assustou com aquela coincidência. Ficou algum tempo analisando a informação.
- Ela deve estar só o visitando, logo quando for embora volta tudo ao normal.
- Eu sei, estou contando com isso, mas o Felipe faz questão de nos apresentar. Eles são muito próximos.
Ele ficou um tempo em silêncio refletindo sobre aquela situação.
- Mas ela ainda te assusta tanto assim?
- Não é essa a questão, quando me vir ela com certeza vai contar tudo pro Felipe.
- Como assim contar tudo? - ele começou, mas rapidamente entendeu - Você ainda não contou pra ele?!
- Não. Eu enrolei esse tempo todo, e hoje, quando eu finalmente decidi contar pra ele, isso acontece.
- Bernardo, você acabou criando essa situação. Vai ser difícil sair dela agora.
- Eu sei... - completei triste.
- Você vai ter que evitá-los a todo custo. Quanto tempo ela vai ficar?
- Não sei, mas não deve ser muito, as férias ainda não começaram.
Eu permanecia muito aflito com aquele assunto, apesar de não chorar mais. Como eu evitaria Lipe por tempo indeterminado? Nós estudávamos juntos... Além do quê, eu o amava e passar um tempo indeterminado longe dele não me agradava.
- Bernardo, você está com esse medo todo por quê? Ele deve ficar bravo por você esconder isso dele, claro, mas não deve atingir maiores proporções, e Mariana não pode mais te fazer mal.
- Não é o mal que ela pode fazer a mim que me preocupa... - falei olhando nos seus olhos.
Ele pareceu entender tudo e abriu um sincero sorriso.
- Você o ama, né?!
- Muito, me dei conta hoje. Eu tenho medo dela contar sobre o Felipe pra família dele como forma de me atingir.
- Será que ela chegaria a esse ponto?
- Não sei, mas não me surpreenderia.
- Mas você mesmo me disse que eles são próximos, ela não teria coragem de fazer uma coisa assim com alguém de quem gosta.
- Bom, ela também gostava muito do Vítor, mas não pensou duas vezes antes de expô-lo junto comigo.
Ele concordou em silêncio. Eu conhecia Zeca muito bem. Ele devia estar tentando achar alguma forma de me ajudar, mas acho que era impossível. Minha única esperança era Mariana ir embora rapidamente, pois eu não conseguiria ficar evitando Felipe por muito tempo. Alguns minutos se passaram com nós dois em silêncio, cada um perdido nos próprios pensamentos. Ele enfim se levantando falou:
- Venha, já que a única coisa que podemos fazer é esperar, vamos ao cinema. Não vou deixar você aqui pensando em coisas tristes, vamos nos distrair.
- Ah, Zeca, não estou com muita vonta...
- Sem discussão. Você vai! - falou me interrompendo.
Como eu já sabia que seria inútil protestar, cedi e deixei que ele me levasse ao cinema. Avisamos minha mãe, e fomos de carro para um shopping mais afastado de casa. No caminho ele tentava me distrair com brincadeiras e piadas, o que ajudou a aliviar um pouco a tensão e esquecer por alguns minutos meus problemas.
Chovia fino, o que era bastante incomum naquela época do ano. Seria um presságio de tempos ruins?
Nós dois assistíamos um filme leve, acho que era uma comédia bobinha. Tivemos sorte porque o cinema estava vazio, assim o Zeca passou o filme todo fazendo piadinhas para me distrair e deu certo. Ri muito com ele naquela tarde. O pesadelo começou quando saímos. Continuávamos rindo ao ir andando para praça de alimentação quando senti uma mão segurando meu ombro.
- Ei!
Me virei rapidamente e senti como se meu estômago despencasse quando vi Felipe.
- Oi... - respondi surpreso - O que você está fazendo aqui tão longe de casa?
- Eu que pergunto, você não tinha que sair com sua mãe hoje?
Ele falava calmamente, mas seu tom era de acusação. Eu vi nos seus olhos ciúme, por ter me visto sair do cinema rindo com Zeca.
É que dona Luiza ficou muito ocupada, então vim com o Bernardo comprar o que ela precisava. - falou Zeca.
- O que ela queria estava no cinema?
- Não, mas já que estávamos aqui de bobeira, resolvemos assistir alguma coisa.
Ainda bem que ele interveio, o susto não me deixaria pensar numa desculpa muito boa rapidamente.
Lipe desviou seu olhar, ainda mais raivoso, para Zeca, mas não disse nada. Eu tinha certeza que quando estivéssemos a sós teria que ouvir muito. Resolvi tentar reparar um pouco daquele clima ruim.
- E você, Lipe, o que faz por aqui? Não ia almoçar com sua prima? - perguntei carinhosamente.
- Eu vim por isso mesmo, ela só foi ao banheiro, já volta. - seu tom ainda era pesado.
Senti meus pesadelos ali se realizando. Mariana estava a poucos metros de mim, no mesmo ambiente que eu. Me senti tonto com aquilo e cheguei a dar um passo pra trás. Lipe me olhou preocupado.
- Tudo bem.
- Aham, só uma pequena queda de pressão. Me leva embora Zeca?
- Claro, vamos.
- Não! - Felipe nos parou. - Já que está aqui, vou te apresentar para a Mariana.
- Melhor deixar para outro dia, Lipe.
- É, não vê como ele está pálido. - tentou ajudar Zeca.
- Espera um pouco, olha lá ela já está vindo.
Não tive coragem de olhar para a direção que ele apontou. Senti sua presença se aproximar. Ela era uma dessas raras pessoas que emanam energia e quando chegava num lugar rapidamente era notada.
- Mariana, vem cá, deixa eu te apresentar para alguém.
Vi de relance seus cabelos de fogo ao meu lado.
- Esse é Bernardo, meu...
- Colega de turma. - completei lhe estendendo minha mão.
Lá estava a razão dos meus pesadelos. A antagonista da história da minha, então, curta vida.
Mariana não havia mudado nada. Seus olhos continuavam intensamente verdes, suas sardas perigosamente sedutoras e seus cabelos incrivelmente hipnotizantes.
Sua expressão caiu quando me viu. Ele pareceu tão surpresa com aquilo quanto eu quando vi sua foto no quarto de Felipe. Mas logo ela entrou no jogo que criei e pareceu se divertir com aquilo.
- Prazer, Mariana.
- Bernardo.
Desgrudei nossas mãos rapidamente. Não deixei transparecer nenhuma emoção, não queria dar a ela o gostinho de me ver amedrontado.
- Já que você está aqui, passa a tarde com a gente Bernardo. - falou Felipe.
- Não, é melhor outro dia. Nos vemos na escola.
Falei friamente na esperança de que Mariana não percebesse a profundidade dos meus sentimentos em relação a Felipe.
Se ele soubesse, com certeza usaria ele para me atingir, mas se pensasse que é apenas um colega de classe, deixaria passar em branco.
Obviamente Felipe estranhou minha atitude, que combinada com o fato de eu estar junto do Zeca no cinema, devia estar deixando-o com raiva e mágoa.
Mas era o melhor a se fazer no momento. Quem sabe, com um pouco de sorte nosso namoro escaparia ileso daquela tarde no shopping.
- Tem certeza? A gente iria se divertir tanto. - falou Mariana com uma voz forçadamente carinhosa.
- Não faltarão oportunidades de nos conhecermos melhor.
- Com certeza.
- Tchau, bom divertimento para vocês.
- Tchau. - responderam.
Não sei como tive forças para fazer aquilo, mas quando eles se viraram para ir embora senti meu corpo ceder. Ainda bem que Zeca estava ao lado e me segurou.
- Venha, Fê, lembrei de umas historinhas ótimas da cidadezinha onde estou morando. Você vai adorar.
Pude ouvir Mariana falando isso para Felipe, já afastados de nós.
Por reflexo me virei para ela com uma expressão de medo e vi seu sorriso desdenhoso.