TRAVESSIA [27/28] ~ Fama!

Três anos depois.

Eu estava no camarim do Palácio das Artes e nervoso.

Nunca consegui deixar de ficar nervoso antes de uma apresentação.

Era um show mais formal, fora da minha turnê e de repertório mais sério do que o habitual.

Pesava ainda mais por ser em Belo Horizonte, a minha Belo Horizonte.

Talvez o fato que mais me incomodava na carreira de cantor fosse ser obrigado a morar numa cidade grande como o Rio de Janeiro, e não em BH, a cidade com a qual eu tinha acostumado a chamar de lar.

Isso tudo pesava na hora de me apresentar lá, ainda mais na maior e mais prestigiada casa de shows da cidade.

Mas o que me aliviava um pouco era saber que na primeira fila estariam todos os meus familiares e amigos de outras épocas me dando apoio.

Mas me faltava o meu anjo de olhos azuis. E isso estava me fazendo tanta falta ali...

- Bernardo, está na hora. - Caio veio me avisar no camarim.

- Certo, já estou indo.

Antes de ir me olhei no espelho. Eu havia crescido, era um rapaz de vinte e um anos.

Tinha acumulado fama, dinheiro e credibilidade por ser um artista num mar de celebridades.

Eu estava orgulhoso da pessoa que havia me tornado.

Ali, de frente para o espelho, de smoking e cabelos perfeitamente alinhados, me lembrei do sonho que tive há sete anos antes de me apresentar naquela fatídica noite em Morro Velho.

Aquilo não tinha sido apenas um sonho, e sim uma visão do futuro. Sorri bobo de pensar naquilo.

Saí do camarim, caminhei pelos corredores e me posicionei no centro do palco, ainda com as cortinas fechadas. Os assistentes foram deixando o palco e fiz um sinal positivo para que subissem as cortinas.

Enquanto o público me aplaudia, identifiquei na primeira fila minha mãe, Zeca, Bruno, minha tia, Pedro, Renata e seu noivo. Eram os meus convidados de honra. Fiz uma pequena reverência ao público e então comecei a cantar.

“Os sonhos mais lindos, sonhei

De quimeras mil, um castelo ergui

E no teu olhar tonto de emoção

Com sofreguidão mil venturas previ

O teu corpo é luz, sedução

Poema divino cheio de esplendor

Teu sorriso prende, inebria, entontece

És fascinação amor

Os sonhos mais lindos, sonhei

De quimeras mil, um castelo ergui

E no teu olhar tonto de emoção

Com sofreguidão mil venturas previ

O teu corpo é luz, sedução

Poema divino cheio de esplendor

Teu sorriso prende, inebria, entontece

És fascinação amor.”

(Fascinação – F. D. Marchetti/M. de Feraudy vers. A. Louzada)

E mais aplausos.

Eu consegui. Realizei meu sonho, me tornei um cantor de verdadebrinde ao maior cantor do Brasil! - bradou Zeca, levantando sua taça.

- Um brinde! - responderam todos, repetindo o gesto.

- Não é para tanto, vocês inflam demais meu ego.

Estávamos eu, Zeca, Bruno, minha mãe, minha tia, Pedro, Renata e seu noivo, sentados em uma mesa num canto reservado de um restaurante que eu gostava muito, na zona sul de Belo Horizonte, logo depois do show.

Um dos motivos de eu adorar voltar a BH, além de gostar da cidade, é revê-los. Conversávamos sobre futilidades e boas lembranças. Uma noite bem agradável.

Antes de continuar, é bom informar algumas coisas que mudaram nesses últimos três anos que se passaram:

Partindo de uma ideia que eu tive, Bruno, Zeca e tia Marta juntaram suas formações e montaram uma produtora que cuida da minha carreira. Misturar família e trabalho poderia ter dado errado, mas deu super certo no meu caso. Eu preferia assim, gente que realmente se importava comigo cuidando dos meus negócios.

Minha mãe estava novamente solteira e, segundo ela mesma, feliz.

Titia estava namorando um empresário de BH e ia caminhando para um casamento.

Bruno e Zeca estavam morando juntos e passavam muito bem. Só não eram casados porque a lei não permitia, mas eles diziam que isso era o de menos. Caio continuava exercendo as funções de pianista, diretor musical, arranjador e amigo nas horas vagas. Estava namorando um escritor famoso, e os dois formavam um bonito casal.

Beatriz virou uma famosa atriz e morava no Rio de Janeiro, bem próxima a mim. Por causa disso nos relacionávamos ainda melhor do que nos anos do ensino médio.

Renata e Pedro estavam bem também, cada um deles tocando sua vida em frente, em Belo Horizonte.

Eu continuava solteiro. Desde a morte do meu Felipe, nunca dormi mais do que duas ou três vezes com o mesmo cara.

A imprensa vivia inventando namoradas e namorados para mim, mas eu aprendi a não me importar.

Sim, era explícito que eu era gay.

Minha gravadora e minha empresária, dona Irene, queriam que eu me fingisse de hétero a todo custo porque diziam aumentar o impacto no público feminino, mas não era uma opção.

Além de eu não ter a mínima vontade de voltar para dentro do armário, ia ser impossível calar todos que sabiam a verdade, afinal, eram muitos: toda Morro Velho, boa parte da alta sociedade belo-horizontina, meus colegas de escola, meus colegas de faculdade, além da minha família e dos meus amigos.

Eu nunca precisei ir para a capa de uma revista confessar que eu era gay, apenas me recusei a disfarçar.

Eu não tinha o menor pudor de beijar outros homens em boates ou desmentir boatos sobre o assunto.

O público entendeu o recado.

Como foi uma coisa gradual, não teve o impacto da surpresa, portanto eles não se chocaram com isso.

Além do mais, meu público já era acostumado, era o mesmo público de cantores e cantoras gays e bissexuais assumidos.

Lógico que eu sempre via uma piada ou outra na internet sobre o assunto, mas se eu não ligava na época de escola, agora menos ainda vindo de terceiros.

Enfim, minha sexualidade nunca se tornou um problema real para a minha carreira.

Voltando ao pós-show, foi uma noite muito agradável. Fazia muito tempo que não conseguia reunir todas aquelas pessoas tão queridas.

Como sempre acontecia quando ia a Belo Horizonte, dormi no apartamento da minha tia, no meu antigo quarto.

Deitar naquela cama me lembrava Felipe. As nossas noites de amor, nossos planos de fazermos sucesso juntos.

Lembrar dele me fazia perceber que minha vida não estava completa, só estava tão agitada que eu não tinha tempo de sentir a falta de alguém ao meu lado.

Diante das câmeras ou em cima de um palco, eu sempre passava a impressão de ser uma pessoa forte, mas naquela cama eu deixava meu lado inseguro e melancólico vir à tona em forma de lágrimas.

Ao deitar naquela cama eu me perguntava se realmente era feliz como achei que seria quando realizasse meu maior sonho.

Quando acordei no outro dia, minha mãe e minha tia já me esperavam para o café da manhã com a mesa posta.

- Bom dia, flores do dia! - saudei me sentando.

- Olha só, alguém acordou de ótimo humor. - falou titia.

- É o cheiro de pão de queijo caseiro que me enche de bom humor!

- Animado para o show de hoje?

O show era duplo. Devido à grande procura de ingressos, concordei em me apresentar duas noites seguidas e passar um tempinho a mais em Belo Horizonte.

- Sempre. Nunca estou desanimado para um show. Teve uma vez que eu estava gripado, mas subi no palco e passou!

- É o prazer de fazer o que se gosta. - comentou minha mãe.

- Deve ser mesmo.

- Mas você parece meio tristinho, meu filho! - Ela falou mas já sabendo o que era.

- Não estou conseguindo ser feliz sem ele, mãe! Eu preciso demais dele. Ele era o meu coração e eu não tenho como viver sem um coração.

- Ele está aqui, meu querido! - disse minha tia.

Eu desabei em choro.

O meu anjo de olhos azuis! O amor da minha vida! O meu Lipe!

Passei o resto da manhã com elas, almocei com Zeca e Bruno e à tarde passei o som no teatro. À noite, horas antes do show, eu fui chegando ao Palácio das Artes e, pelo vidro do carro, vi um garoto loirinho, branquinho, aparentando não mais do que quatorze, magro, escorado na entrada, esperando a hora do show.

Não havia razão para isso, já que tinha lugares marcados, ou seja, não precisava ficar na fila para ficar na frente do palco.

O garoto se virou para o vidro do carro, e mesmo o vidro sendo muito escuro, ele pareceu ter me reconhecido.

Ele abriu um sorriso largo e infantil, que combinava com o brilho dos seus olhos verdes. Sem saber o porquê, ou se ele veria, sorri de volta, enquanto o carro se dirigia aos bastidores. Aquele garoto me lembrava alguém, mas eu não conseguia me lembrar quem; como se fosse o habitante de um passado remoto.

Quem era aquele garoto?

O show ocorreu maravilhosamente bem.

Como já devo ter dito, em cima do palco todo o resto fica para depois. É como estar chapado, você entra numa viagem. É uma sensação única.

Depois do show, mesmo cansado, me sinto na obrigação de receber os fãs que esperam do lado de fora do camarim. Apesar de não ser realmente obrigado a fazer isso, acho legal essa forma de retribuir seu carinho.

Lá estava eu, mais uma vez híper cansado depois de um show, mas já vestido com roupas mais confortáveis, conversando, tirando fotos e dando autógrafos aos fãs.

Não era uma coisa que eu amava fazer, mas fazia sem reclamar.

Quando eu achei que já tinha me despedido de todos eles, entra o garoto que eu vi na entrada com meu último CD nas mãos.

Não que ele estivesse mal vestido, mas seu jeito basicão e amarrotado destoava do resto do público, que normalmente ia muito bem vestido a shows no Palácio das Artes.

Ele usava uma calça jeans clara, uma camisa de malha preta e um par de tênis All-Star que pareciam ser bem velhos.

Parecia ter vindo de uma longa viagem, pois estava um pouco amarrotado e com uma mochila nas costas.

Mas nada disso tirava a sua beleza.

Parecia um anjo com seus olhos verdes e os cabelos loiros caindo pelo rosto e chegando às sobrancelhas, quase aos olhos.

Novamente me veio a impressão de conhecê-lo de algum lugar, mas minha memória trabalhava em vão.

Por causa desse menino ser branquinho, dos seus cabelos loirinhos e da franjinha reta descendo até os olhos eu não tive como deixar de lembrar do meu Felipe.

E como desejei ele ali comigo

- Oi, quer que eu autografe? - perguntei.

Ele tremia um pouco, mas não era uma coisa tão incomum para mim, já tinha visto muitos fãs assim.

Ele acenou com a cabeça, veio até mim visivelmente nervoso e me entregou o CD. Tirei o encarte e peguei a caneta para autografar.

- Qual o seu nome para eu por no autógrafo?

- Você realmente não se lembra de mim?

Ele tinha uma voz suave e doce, mas tinha nela uma certa urgência, possivelmente relacionada à sua pergunta.

Eu não me lembrava dele, mas alguma coisa dentro de mim dizia que ele era alguém muito importante.

- Não, me desculpe, minha memória é meio falha. Me relaciono com tantas pessoas nessa profissão que acabo misturando nomes e rostos. - falei tentando ganhar tempo enquanto minha mente trabalhava tentando me lembrar de onde eu o conhecia.

- Meu nome é Rafael.

- Rafael...

Autografei com seu nome enquanto tentava me lembrar de onde eu conhecia um Rafael. Mas eu não conhecia nenhum Rafael!

- Rafael, me desculpe, mas realmente não...

- Me chame de Rafinha. Você sempre me chamou assim. - ele falou sorrindo com lágrimas nos olhos.

Ele estava simplesmente lindo!

Rafinha... O irmão do Vítor!

Como eu pude me esquecer do Rafinha, aquela criança tão doce que vinha sempre me receber de braços e sorriso abertos.

Aquela criança tão cativante por quem eu sentia uma imensa simpatia e que divertia a todos simplesmente com sua presença.

Aquela criança que sempre procurava estar perto de mim, apesar das implicâncias do seu irmão mais velho.

Rafinha tinha crescido, não era mais uma criança, mas parecia preservar todas aquelas características.

- Ah... - perdi a voz tamanha a surpresa.

- Já faz muito tempo, né Bernardo? Sete anos... - as lágrimas já começavam a rolar pelos seus olhos. - Eu senti tanta saudade sua.

- Rafinha... - falei já começando a chorar de emoção também.

- Você cresceu Bernardo, ficou famoso, mas ainda desperta em mim o mesmo fascínio. Posso te pedir uma coisa, se não for muito?

- C... - engasguei com as lágrimas. - Claro.

- Posso te dar uma abraço?

Não aguentei. Me desmanchei em lágrimas com seu pedido.

Apenas balancei positivamente a cabeça. Ele cruzou seus braços em volta da minha cintura com força. Retribui o abraço também com força. Não sei quanto tempo ficamos ali abraçados, mas com certeza não foi pouco.

Sete anos de saudade num abraço.

- Eu não acredito que te encontrei. - falei enfim me separando dele e enxugando as lágrimas.

- E eu? Estar aqui com você é o dobro de emoção. Além da saudade, sou um fã conhecendo meu maior ídolo!

- Você é meu fã?

- Claro! Tem como não ser? Acho que sou seu fã desde que ouvia você cantar ao som do violão do meu pai quando eu era pequeno.

Por um instante deixei minha mente viajar até minha infância e a emoção bateu ainda mais forte.

- E por que você está aqui? Está morando em Belo Horizonte?

- Não, não. Ainda moro em Morro Velho com meus pais.

- E como você veio parar aqui?

- Falei pra todo mundo que eu ia dormir na casa de um colega.

- Rafinha! - briguei com ele. - Isso não se faz!

- Eu sei! Mas eles nunca me deixariam vir se eu contasse a verdade. - A expressão dele se fechou. - Seu nome não é bem-vindo na minha casa...

Era de se imaginar.

Depois da fatídica noite no palco da minha escola em Morro Velho, onde Mariana me tirou do armário e jogou Vítor na berlinda, era de se esperar que não gostassem mais de mim.

Não dá para negar que doeu ouvir aquilo. Por mais que eu já supusesse aquilo, ouvir que aqueles que sempre tive como segundos pais não queriam nem mesmo ouvir meu nome era difícil.

- Mesmo assim. Isso não justifica o que você fez. E você veio sozinho?

- Sim, não queria colocar ninguém em perigo.

- Mas se colocou em perigo! Você tem quantos anos? Quatorze? – Ele era bem novinho de rosto e miudinho de corpo.

- Quinze.

- Quinze! Como você pega um ônibus e viaja horas até Belo Horizonte?

- Eu vim de carona com um caminhoneiro que presta serviços na fazenda.

- De carona? Você é louco?

Me desesperei com sua inocência e falta de noção de perigo, mas ele riu. Fiquei sem entender nada enquanto ele ria na minha frente.

- O que foi? - perguntei.

- Você.

- O que tem?

- Ainda se comporta como meu irmão mais velho, todo cheio de amor e preocupação. Queria que meu irmão de sangue fosse assim também.

Ele se arrependeu do que disse no mesmo instante. Ele convocou para conversa aquele de quem nós dois não queríamos falar de jeito nenhum. Fazia tempo que eu não pensava em Vítor. Depois de tantos anos, acho que ergui uma proteção natural e involuntária que me impedia de pensar nele. Sem nem mesmo falarmos seu nome, o clima no camarim pesou.

- Eu não devia ter dito isso. - Rafinha se desculpou.

- Tudo bem, passado é passado.

- Sim...

- Mas e agora, como você vai voltar?

- Não sei, pedindo carona. - ele falou na maior inocência.

- Você não pode fazer isso, Rafinha, é muito perigoso!

- Então...

- Você dorme lá em casa hoje e amanhã eu te ponho dentro do ônibus de volta pra Morro Velho, ok?

- Dormir com você? - ele falou em meio a um sorriso infantil que me fez rir.

- É, Rafinha, comigo. Aceita?

- Claro! - respondeu com uma visível animação.

- Ok, então vamos, já está tarde.

O carro nos levou ao apartamento da minha tia.

Minha mãe ficou muito surpresa de reencontrar Rafinha e também brigou com ele quando contei sobre como ele veio parar em Belo Horizonte. Como não havia cama extra no apartamento, ele teve que dormir comigo na cama de casal. Ele pareceu ainda mais feliz, mas não tinha nada de sexual nisso.

Para ele, além de estar reencontrando um irmão mais velho que ele sempre admirou, estava conhecendo também um ídolo, nas palavras dele. Era normal que ele sentisse animado assim ao menor sinal de uma proximidade maior entre nós.

Tomamos banho e nos deitamos na cama.

Ele estava só de cuequinha branca e todo cheiroso...

Mas não conseguimos dormir devido às grandes emoções do nosso reencontro, então ficamos conversando.

- Você ainda não me contou por que veio. - falei.

Estávamos meio que no escuro, mas eu consegui perceber sua expressão se fechar.

- Eu precisava te encontrar agora, Bernardo, porque eu estou muito confuso.

Como eu já disse, você é meu ídolo, mas não apenas por cantar bem. Você não teve medo de ser quem você é, enfrentou todo mundo e conseguiu realizar seu sonho. - ele fez uma pausa. - Bernardo, eu sou gay.

- O quê? - olhei para ele assustado.

- Você ouviu...

Por aquela eu não esperava. Nunca que simplesmente por ser uma criança carinhosa eu desconfiava que Rafinha viria a se descobrir gay mais tarde.

- Quem sabe disso?

- Ninguém. Nem sei se contarei um dia.

- Rafinha...

- Estou tão perdido, Bernardo. - pela sua voz eu percebi que ele estava chorando - Eu não sei o que vai ser de mim! A única coisa que sei é que meu futuro não está em Morro Velho.

Você é meu herói, Bernardo, saiu daquele buraco e se tornou uma estrela. Eu quero que você me guie pelo mesmo caminho.

Me emocionei com suas palavras. Aquilo atravessava qualquer sentimento de fã.

Ele não me tinha como ídolo, mas como a única esperança de uma vida feliz.

Eu nunca que poderia maltratar aquele menino lindo.

- Rafinha, eu não sei como ainda, mas prometo que vou te ajudar.

- Obrigado. - ele falou engolindo o choro, mas ainda com voz triste. - Eu queria tanto que esse momento durasse para sempre.

- Para sempre é meio difícil, mas dá para prolongar. Eu só tenho que estar no Rio de Janeiro à noite, então acho que podemos passar o dia juntos.

- Sério? Posso passar o dia todo com você? - Ele perguntou bem mais animado.

- Bom, o mal já está feito mesmo, não custa nada você passar mais algumas horas aqui.

- Obrigado! Obrigado! Obrigado! - ele falou me abraçando e me fazendo rir de seu jeito infantil e me deu um beijo carinhoso no rosto.

- Ok, ok, agora vamos dormir senão vamos perder o dia todo.

Dormimos juntos e no meio da noite senti sua cabeça pousando sobre meu peito. Não havia nada de sexual ali, mas um amor fraternal muito forte.

Ele veio por cima de mim e me abraçou. Logo ele estava dormindo novamente.

Na minha agitada vida de solteiro, eu raramente dormia sozinho, mas pela primeira vez em muito tempo eu dormia sem me sentir solitário.

Eu sentia o seu cheiro de garoto e não teve jeito: chorei de saudades do meu lindo Felipe. Daqueles olhos cor de céu. Daquele carinho que me fazia a pessoa mais feliz do mundo.

Rafinha e eu acordamos cedo no dia seguinte e ficamos deitados conversando. Ele me contava sobre seus sonhos:

- Eu quero ser músico!

- Sério?

- Seríssimo! Você me inspira mais do que imagina. - riu divertido.

- É sempre bom saber disso. E o que você toca?

- Violão, mas quero mesmo é ser guitarrista.

Isso explicava aquele jeito roqueiro de ser, o que em outras pessoas podia até ser feio, mas nele só o deixava mais sexy e mais gatinho.

- Legal, é difícil arranjar um bom guitarrista hoje em dia.

- Deve ser mesmo, ouço falar que você nunca se contenta com seu guitarrista e o demite depois de uma turnê.

- Verdade, mas nesse caso o problema é comigo e não com eles.

- Por quê?

Por quê? Porque meu grande amor era um guitarrista.

Mas será que eu realmente queria conversar sobre Felipe? Eu evitava isso ao máximo por sempre me lembrar da saudade que eu sinto dele.

Outro fator que me levava a não falar sobre ele com ninguém é não querer demonstrar fraqueza, pois eu nunca conseguiria falar sobre Lipe e continuar impassível.

Mas ali estava Rafinha, com seus bondosos olhos verdes curiosos.

Ele me transmitia confiança, como se eu soubesse que poderia chorar ali e isso nunca sairia daquele quarto. Talvez ainda sobre influência da emoção do nosso reencontro, resolvi abrir meu coração para ele.

- Porque uma vez me apaixonei por um. Seu nome era Felipe. - coloquei minhas mãos atrás da cabeça e fiquei admirando o teto enquanto lhe contava. E ele subiu em mim e ficou me olhando com atenção. Eu senti o seu pintinho duro igual uma pedra dentro daquela cuequinha minúscula dele. Ele estava sentado em cima do meu pau. - Era o garoto mais lindo de Belo Horizonte e tinha os olhos mais azuis que alguém já ousou ter.

Rafinha, me escutava admirado e sorrindo, como se eu estivesse narrando a mais fantástica aventura.

- Nós nos amamos de verdade. Poucos nesse mundo podem encher o peito e dizer com sinceridade que amou como nós.

Os anos em que eu estive ao seu lado foram de longe os mais felizes da minha vida.

- E o que aconteceu?

- Uma noite, ele estava voltando de uma festa com o irmão. - nesse momento eu já chorava relembrando aquele momento terrível. - Houve uma tentativa de assalto seguida de um tiro que atravessou seu peito. Tentaram salvá-lo, mas ele morreu na mesa de cirurgia.

Rafinha começou a chorar, em silêncio também, ouvindo aquilo.

- Por isso troco tanto de guitarrista, porque vejo um pouco de Lipe em cada um deles e isso me perturba. Sei que é bobagem, mas...

- Não, não é. - ele falou me interrompendo. - É amor de verdade!

Até me espantei com a sua sensibilidade.

Comecei a limpar minhas lágrimas com as mãos enquanto me levantava.

- Me desculpe por acabar com a ilusão de que sou de ferro. Fãs normalmente não gostam de ver seus ídolos como meros mortais.

- Te admiro mais ainda.

Olhei para ele, curioso. Para mim, demonstrar fraqueza para ele desta forma, era ir de encontro com a imagem que eu tinha criado de mim mesmo para o público, por todos esses anos.

- Como assim?

- Você não é meu ídolo, é meu herói! Saber que você já passou por uma coisa tão ruim assim e ainda conseguir se levantar da cama todo dia só me faz te admirar ainda mais.

Não há nada de errado em chorar de vez em quando.

Além do mais, não sou um fã qualquer, te conheço antes de tudo isso te acontecer. Eu conheço o verdadeiro Bernardo, por isso não me assusto quando ele aparece para te visitar.

Mais leve, sorri para ele, que correspondeu do mesmo jeito.

- Como você consegue se lembrar? Quando fui embora você era tão novo.

- Tem pessoas que marcam de um jeito, que a gente nunca esquece.

Voltei a me jogar na cama e o olhei ainda sorrindo.

- Obrigado por vir me visitar. Me fez muito bem.

- Então fez muito bem a nós dois.

Dei um beijo carinhoso na sua bochecha, como um irmão mais velho faria e fui para o banheiro tomar banho. Lá de dentro gritei para ele:

- Se arruma, vou te levar para almoçar num lugar incrível!

No extremo sul de Belo Horizonte havia um restaurante ótimo escondido no alto da serra. A comida era muito boa, mas o diferencial do lugar era mesmo sua vista particular, a mesma que eu e Rafinha admirávamos enquanto nossa refeição não era servida.

- É lindo aqui! - ele falou ainda admirando a paisagem.

- Eu sei, se pudesse morava aqui.

- No alto da serra?

- Não, em BH.

- E por que não mora?

- Fica difícil ir daqui para outros lugares fazer shows. Rio e São Paulo têm aviões para tudo quanto é lugar.

- Ahh...

Percebi que ele estava muito calado, mas parecia inquieto.

- O que foi?

- O que foi o quê?

- Você está todo inquieto, o que foi?

- Ahh, é que eu quero te perguntar uma coisa, mas não sei se devo... - ele falou meio receoso.

- Pode perguntar sem medo.

Estava na cara o que ele ir perguntar, acho que ele estava esperando para me perguntar isso há muito tempo.

- Bom, lá vai: o que aconteceu naquela noite em que você foi embora de Morro Velho?

Respirei fundo e pensei por onde começar. Eu já imaginava sua curiosidade por Vítor ter, provavelmente, mentido sobre o que aconteceu todo esse tempo.

Eu não tinha porque esconder nada de Rafinha, então lhe contei toda a história.

Ao terminar, a reação dele foi dentro do esperado:

- Aquele mentiroso! Você acredita que ele te colocou como o vilão da história esse tempo todo?

- Não duvido...

- Mas isso demonstra bem como é o caráter dele, sempre covarde e hipócrita, aquele duas caras! - ele xingava com bastante sentimento, o que contrastava com seu rosto pacífico e angelical. - Eu tenho vergonha de ser irmão de uma pessoa como ele!

Permaneci calado. Não era do meu interesse ofender, nem muito menos defender Vítor. Conhecendo bem a forma como ele tratava o irmão caçula, Rafinha devia ter muita mágoa guardada dele, então o deixei falar.

Mas uma coisa ainda me incomodava muito naquela história. Uma coisa que sempre atiçou minha curiosidade, e eu não podia perder a oportunidade de perguntar a Rafinha:

- Rafinha, qual é a versão dele da história?

A expressão dele se transformou da raiva para a tristeza.

- Bernardo, eu...

- Pode contar, eu aguento.

Ele suspirou e começou:

- Naquela noite do show, ele e meus pais chegaram em casa bastante alterados. Papai gritava muito e Vítor chorava.

Me escondi em um canto da sala e fiquei ouvindo a conversa. Quando perguntado se aquilo tudo era verdade, Vítor acabou confirmando. Contou que descobriu que você era gay e apaixonado por ele.

Tentou a todo custo te mudar, mas você parecia enfeitiçado. Chegou até a brigar com Mariana porque ela o alertou do perigo, mas ele viu que você não tinha conserto quando te flagrou à noite tentando abusar sexualmente dele.

- Filho da pu... Desculpe.

- Sem problemas.

Eu não estava surpreso, era mais ou menos aquilo que eu esperava mesmo. Ele era covarde, lógico que ia confirmar a história da Mariana, era o caminho mais fácil para ele.

- Depois disso ele reatou com Mariana e os dois estão noivos atualmente...

- O quê?!

Aquela sim era uma surpresa. Noivos! Quem diria que aquela mentira iria durar tanto tempo assim.

- Vítor passou alguns anos estudando no exterior e quando voltou, Mariana tratou logo de segurá-lo num noivado cheio de pompa. - Rafinha continuou. - O mais engraçado era ver a cara de “onde fui amarrar minha égua” que meu amado irmão exibia no dia da festa de noivado.

- Imagino...

- As fotos ficaram ótimas! - ele brincou irônico e eu fui obrigado a rir.

Ou Mariana era muito obstinada, ou muito louca de querer se casar sabendo da verdade. Estava na cara que o casamento deles nunca iria dar certo.

- Posso te fazer outra pergunta indiscreta, Bernardo?

- Claro, manda.

- O que você sente pelo meu irmão?

Aquela era uma pergunta bastante complexa que eu evitei durante anos. O que eu sentia por Vítor afinal?

- Não sei, mas com certeza não é amor. Amor eu só tive com Felipe. Com Vítor foi uma ilusão, um alerta da vida para que eu abrisse meus olhos para as pessoas que me cercavam. O que eu sinto por ele hoje é pena. Pena do quanto ele ainda vai sofrer negando quem é de verdade.

Rafinha não comentou mais nada. Seguiu comendo em silêncio.

Eu já havia ligado para Zeca e explicado toda situação. Ele nos esperava no apartamento da minha tia. De lá ele levaria Rafinha até a rodoviária e eu pegaria um táxi até o aeroporto. Rafinha tinha lágrimas nos olhos na hora da despedida, mas fui mais rápido para atenuar um pouco. Peguei um papel, anotei um número e entreguei a ele.

- O que é isso? - ele perguntou curioso olhando o número.

- Meu celular; guarde bem isso, viu? Praticamente ninguém tem esse número. Pode me ligar quando quiser, não importa o horário. E se não tiver créditos, pode me ligar a cobrar.

- Obrigado! - ele falou me abraçando emocionado.

- Não tem porque agradecer. E eu prometo dar um jeito de nos vermos, certo?

- Isso eu acho difícil. Você não gosta que eu fuja, e meus pais nunca deixariam eu viajar para te encontrar.

- Por você, eu mesmo ligo e tento convencê-los.

- Sério? - ele perguntou sorrindo e limpando as lágrimas.

- Juro. E me promete uma coisa?

- Claro, qualquer coisa!

- Conte aos seus pais a verdade sobre onde você estava.

- Mas eles vão brigar muito comigo.

- Independente disso. São seus pais, têm o direito de saber onde você estava. Promete?

- Prometo. - ele falou meio contrariado.

Nos abraçamos mais uma vez. Ele me deu um beijo e eu retribuí. Ele foi se despedir da minha mãe.

Zeca chegou perto de mim e falou baixinho para que só eu ouvisse:

- É, meu amigo, mais uma verdade da vida que se confirma...

- Qual?

- O passado sempre volta para acertar as contas...

- Cala a boca, Zeca! - falei rindo e batendo nele de leveAlguns meses mais tarde, no início de dezembro daquele mesmo ano.

Eu estava em São Paulo para um show, mas antes tinha uma reunião marcada com o diretor da minha gravadora.

Isso não era bom sinal, toda vez que chamavam lá, me diziam algo que não gostava.

- Então, o que você acha? - perguntou o presidente.

- Ah, não sei. Uma temporada internacional de um ano? Isso é mesmo necessário?

- Claro, Bernardo! Você vai ser um astro internacional. Você tem potencial de sobra para isso. Pensa: o mundo todo vai saber quem você é e cairá aos seus pés quando te ouvir cantar.

- Olha... Eu preciso de um tempo para pensar. Não é fácil para eu abandonar todos os meus familiares e amigos por um ano inteiro.

- Ok, mas me dê a resposta rápido.

Fiquei com a sua proposta na cabeça. Era aquilo mesmo que eu queria? Foi para aquilo que lutei tanto? Aquela seria a minha grande chance ou o meu grande erro?

Fui fazer meu show à noite com aquilo na cabeça. Quando saí da casa de shows, entrei no carro em direção ao hotel.

Normalmente depois do show eu me sinto cansado e com uma vontade louca de dormir, mas aquela noite era diferente, sem saber exatamente o porquê, minha mente trabalhava sem parar pensando em várias coisas.

Pouco me lembro daquela noite fatídica. Lembro de uma luz muito forte dos faróis de um outro carro vindo em nossa direção, do motorista gritando de pavor, de um impacto muito forte e do barulho ensurdecedor que o seguiu.

A última coisa de que me lembro foi da dor tomando conta de cada osso e músculo do meu corpo.

De repente a imagem do rosto de Felipe veio à minha mente sem que eu requisitasse, como se ele mesmo estivesse ali tentando me proteger com seus olhos lindos de anjo, o meu anjo.

Depois disso, não me lembro de mais nada.


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Ficha do conto

Foto Perfil contosdelukas
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Nome do conto:
TRAVESSIA [27/28] ~ Fama!

Codigo do conto:
216924

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
26/07/2024

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3

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