TRAVESSIA [34] ~ Saindo do armario

Apesar de cheio de perguntas sem respostas, o almoço transcorreu tranquilo.

Rafinha ainda estava conosco e era um dos mais curiosos sobre o que tinha acontecido, afinal, o carro do seu irmão ainda estava na porta da casa da minha avó e nem sinal do dono.

Ele chegou a me perguntar se eu havia matado Vítor e enterrado numa vala qualquer, o que explicaria a barra da minha calça suja de lama.

Todos tivemos um ataque de riso por vários minutos. Um pouco depois de acabarmos de comer, ainda estávamos à mesa, a campainha tocou e minha avó foi atender.

- Entre, Vítor! Acabamos de almoçar, mas você pode se servir.

Todos, curiosos, levantaram da mesa para vê-lo e eu ri não me segurando.

- Obrigado, dona Maria, mas vou almoçar em casa. Só passei para pegar minha caminhonete e meu irmão.

Os dois chegaram à sala de jantar, onde estávamos, e ele cumprimentou a todos.

- Olá!

- Oi. - Responderam em uníssono.

Ele estava muito suado e com as calças sujas de lama, mas tinha um sorriso largo no rosto. Todos olhavam curiosos esperando uma explicação dele que nunca veio.

- O que diabos aconteceu com você? - Perguntei ao vê-lo naquele estado.

- Uai, eu não tinha te dito que ia resolver umas coisas lá por perto para amanhã? Então, tudo resolvido.

- Que coisas? - Perguntei curioso e todos os presentes assistiam ainda mais curiosos.

- Você vai saber amanhã. Te pego às oito da manhã e leva roupa de banho.

- Aonde vocês vão? - Perguntou Rafinha.

- Digamos que eu e Bernardo temos um acordo, certo? - Vítor respondeu sorrindo para mim.

- Certo. - Respondi sorrindo também.

- Bom, vamos embora porque mamãe já deve estar querendo nos matar por nos atrasarmos para o almoço.

Rafinha olhava desconfiado para seu irmão mais velho por ele não ter dito nada agressivamente para ele.

Ele olhou para mim em busca de respostas e eu sorri para ele.

- Vítor, no caminho conte tudo ao seu irmão, esse menino lindo aqui ó, senão ele vai ficar louco.

- Pode deixar! - Ele respondeu abraçando o irmão por cima dos ombros, gerando ainda mais estranheza para Rafinha.

- E aproveitem o caminho até a fazenda para colocarem a conversa em dia. Os dois estão precisando desabafar um pouco. Sempre me trataram como o irmão de vocês, mas esqueciam que tinham um ao outro. Não é tarde demais para recuperar a relação de vocês.

Os dois concordaram constrangidos e se despediram de nós.

Rafinha veio correndo, pulou em mim e me abraçou forte. Beijou meu rosto e eu retribuí o seu beijo.

Foram embora.

Bruno e Zeca não demoraram nem três segundos para começarem o interrogatório. Levei os dois para o quarto e contei tudo o que aconteceu.

- Uau! - Comentou Zeca.

- Eu sei...

- Ele se declarou para você? - Perguntou Bruno.

- Sim.

- E afirmou que vai te reconquistar?

- Sim.

- E vocês vão passar o dia juntos amanhã?

- Provavelmente sim.

- Uau! - Voltou a comentar Zeca.

- Mas eu disse olhando fundo nos olhos dele que eu amo o Felipe e que ele não espere de mim esse sentimento em sua forma pura e verdadeira porque isso nunca mais vai acontecer comigo.

Eles não falaram nada.

Continuamos a conversar sobre como seria agora entre mim e Vítor por algum tempo, mas eu percebia alguma coisa diferente no olhar deles, uma certa tristeza. Me perguntando o que teria acontecido, me lembrei que eles tinham ido visitar os pais de Zeca no dia anterior. Quando perguntei para eles se era isso, os dois se olharam e abaixaram a cabeça.

- Como foi?

- Não foi legal... - Começou Zeca.

- Foi horrível. - Completou Bruno.

- O que aconteceu?

- Eu acho que eles desconfiaram de nós.

- Sério? E aí?

- Bom, eles estavam claramente insatisfeitos e ficavam soltando indiretas o tempo todo. Perguntavam sobre namoradas, casamento e netos.

- E vocês?

- E nós nada, ficamos calados escutando tudo.

- Ai, gente...

- Eles sabem, Bernardo. - Falou Zeca choramingando. - Eles vão virar as costas para mim.

- Não fica assim, Zeca. - Falei consolando-o, sem muito sucesso.

- O que é que vou fazer agora?

- Bom, só estou vendo um jeito: se assumir de vez.

- É o que estou falando. - falou Bruno, que até então tinha permanecido calado.

- Não! - Gritou Zeca que sempre odiou a ideia de se assumir para os pais.

- Mas eles já sabem Zeca, ficou claro isso.

- Não... - Ele teimava.

- Bom, vocês devem resolver isso em conjunto, o meu conselho está dado.

Zeca me olhou conformado e Bruno ainda tristeMal consegui dormir aquela noite tamanha era a ansiedade sobre o que Vítor estava armando para o dia seguinte.

Só fui conseguir pregar os olhos altas horas da madrugada.

Acordei com alguém me sacudindo. Abri os olhos devagar e vi Vítor, ainda sorrindo largo e com uma roupa mais leve. Olhei o relógio com medo de estar atrasado, mas ainda eram sete da manhã.

- O que você está fazendo aqui? Não combinamos às oito?

- É, mas eu não aguentei de ansiedade.

- Ótimo, agora me deixa dormir.

- Sem chance, já está acordado, agora é só se levantar.

- Ah, Vítor... - Falei reclamando como uma criança que não queria ir para a aula.

- Sem chatice, vem, levanta. - Falou me puxando para fora da cama.

Me lembrei que eu estava pelado e puxei o edredom junto para me cobrir. Ele percebeu o que eu estava fazendo.

- Por que está se escondendo? Já cansei de te ver pelado.

- Isso já faz anos.

- O que é que tem? Em breve tudo isso vai ser meu mesmo. - Ele falou desdenhando e eu ri.

- Você é bem confiante, né?

- Demais.

- Acho que não deveria ser tanto assim!

Eu estava gostando do novo Vítor, mais brincalhão e alegre.

Ele conseguiu driblar meu mau humor matinal e me fez rir, merecia crédito.

- Anda, sai e deixa eu me vestir.

- Por que sair?

- Porque sim. Não vou ficar pelado na sua frente.

- Mas até o Rafael já te viu pelado.

- E eu o vi também. Agora sai.

- Mas isso é besteira.

- Já te falei sobre meus sentimentos. Eu já tenho dono. Agora sai, ok?

- Não demora, hein? - Falou meio triste e fechando a porta do quarto.

Desci e minha avó já tinha preparado o café da manhã. Tomei rapidamente porque Vítor insistia em me apressar,

A rua estava tranquila e não tive muitos problemas para conseguir entrar na sua caminhonete.

Quando íamos saindo da cidade, ele parou o carro e me deu uma venda.

- Para que isso?

- Porque o lugar para onde vou te levar é surpresa, você tem que tapar os olhos.

- Sem chance.

- Vai Bernardo, não avacalha meus planos.

- Ok, ok. - Falei me dando por vencido e colocando a venda. - Olha lá para onde você está me levando. E por favor, não faça nenhum tipo de gracinha!

- Não confia em mim?

- Não mesmo. E estou falando sério sobre gracinhas para o meu lado. Nem tente!

Ele dirigiu por mais uns dez ou quinze minutos até parar. Ele falou com alguém do lado de fora e ouvi o barulho de uma porteira de madeira se abrindo. O carro voltou a ficar em movimento para parar logo adiante.

- Não olha ainda.

Pelos sons, percebi que desceu do carro, veio até meu lado, abriu a minha porta e me ajudou a descer. Me guiou até um lugar e enfim me deixou tirar a venda.

Curioso, a arranquei com ferocidade e senti meu coração se acelerar. Estávamos na antiga fazenda dos meus avós! Aquele lugar mágico onde crescemos.

As lembranças vinham à minha mente rapidamente se atropelando, e as lágrimas começaram a cair.

- Gostou da surpresa?

- Mas como você... - Falei meio bobo.

- Aluguei dos atuais donos que estão de férias no litoral. A fazenda é toda nossa hoje.

- Como você conseguiu isso?

- Pedi o telefone deles ao caseiro e devo admitir que a menção do seu nome facilitou bastante o processo.

- Eu... - Fiquei sem palavras.

- Eu sei o quanto esse lugar é importante para você, imaginei que você quisesse dar uma olhada. Vamos?

Ele me ofereceu sua mão. O certo seria eu recuar, mas a emoção de estar de volta àquele lugar bloqueou o lado racional do meu cérebro.

Peguei na sua mão e ele apertou com força.

Ele sorria tanto que me fazia sorrir também.

Saímos andando pelos campos da fazenda de mãos dadas, como um casal apaixonado. Surpreendentemente, estava tudo igual. Era como se toda Morro Velho tivesse crescido, menos a fazenda, que havia parado no tempo.

O casarão ainda mantinha sua imagem de antigo e acolhedor. A água da cachoeira continuava tão fria quanto me lembrava, como pude comprovar quando Vítor me jogou lá.

Do alto da árvore mais alta ainda era possível ver toda a cidade, embora essa tivesse mudado tanto...

Nós dois nos comportamos como as duas crianças que sempre fomos, brincando e correndo pelos campos ou nadando na cachoeira.

O tempo passou correndo e quando nos demos conta já era mais de duas tarde.

Paramos para lanchar alguma coisa que Vítor havia trazido no carro. Ele teve o cuidado de trazer comidas caseiras que eu sempre amei: pão de queijo, broa de fubá, pastel de angu, e outros quitutes

Na primeira mordida eu sabia que foi tia Rosa quem tinha preparado e continuava uma excelente cozinheira. Nos sentamos à sombra de uma grande árvore para escaparmos do Sol enquanto comíamos.

- Você realmente pensou em tudo, né? - Falei entre uma bocada e outra no lanche.

- Claro! Estou empenhado em atingir meu objetivo: você.

- Você vai acabar me deixando sem jeito assim.

- Não tem nada que se envergonhar. O que eu sinto por você é lindo.

Ele sabia muito bem o que falar para me deixar de quatro por ele. É claro que eu não estava apaixonado por ele de novo, mas já sentia aquele encantamento e a aquela felicidade sem motivo que nos invade sem pedir permissão.

- Eu não sei o que fazer pare te agradecer. - Falei ainda um pouco encabulado.

- Já sei! Canta pra mim.

Fui pego de surpresa. Esperava algum favor sexual ou um beijo no mínimo, Mas isso nunca iria acontecer ali.

- Bom... O que você quer que eu cante?

- Não sei, alguma coisa que tenha a ver com esse momento. A gente fugindo do mundo e tirando um momento só para nós.

Pensei um pouco e me lembrei de uma antiga música que se encaixava perfeitamente na sua definição. Limpei a garganta, fechei os olhos e cantei:

“Se me der na telha sou capaz

De enlouquecer

E mandar tudo pr’aquele lugar

E fugir com você pra Shangrilá

E me deixar levar

Por um beijo eterno

Por seu corpo envolvente

Mais quente que o inferno”

(Shangrilá – Rita Lee/ Roberto de Carvalho)

Abri os olhos e encontrei seus olhos verdes brilhantes, me admirando encantado.

- É isso. Esse lugar é a nossa Shangrilá, o nosso lugar mágico para fugir dos problemas e termos um tempo só para nós. - Falei.

- Sim... Eu sempre te imaginei cantando para mim, mas confesso que ao vivo é bem melhor. Eu...- Ele parecia perdido nas suas palavras - eu não sei o que te dizer agora. Só que te amo.

Toda vez que ele falava aquilo meu coração palpitava rápido, mas eu sabia que aquele sentimento não era realmente amor, mas só felicidade por ouvir aquelas três palavrinhas depois de tanto tempo.

- Vítor se eu te dissesse a mesma coisa, não passaria de palavras vazias com o único intuito de te agradar. Eu não te amo. Eu já tive o meu amor e sei que nunca mais vou tê-lo de novo. Mas eu sou do meu Lipe. O meu menino de olhos azuis. Dê tempo ao tempo.

- Isso é você considerando a ideia de voltar a me amar? - Ele perguntou com um semblante meio triste e também esperançoso no rosto.

- Ah... - Ele, esperto, tentou me pegar desprevenido. - Não! Mas o futuro a Deus pertence.

- Isso já é um grande passo! - Ele avançou sobre mim, mas quando vi o que ele ia fazer, virei o rosto e ele beijou minha bochecha.

- E esse é um maior ainda. - Falei o repreendendo seriamente.

Ele não pareceu se importar nem com minha fuga do seu beijo ou com minha reprovação. Ele sorria ainda mais, como uma criança feliz por ter acabado de ganhar um grande presente.

Vendo ele assim, me lembrei de perguntar uma coisa que me incomodava.

- Vítor?

- Oi?

- Por que você não me procurou esses anos todos? Eu morava a duas horas daqui. Ou pelo menos ligar.

Ele abaixou a cabeça, aparentemente constrangido com minha pergunta, mas a respondeu.

- Eu sempre arrumava um jeito de saber notícias suas pelos seus avós. Enquanto você estava em Belo Horizonte, você era feliz com Felipe. Depois você se mudou para o Rio de Janeiro, e me contaram que você estava se empenhando muito para se tornar um grande cantor. Eu tinha medo de te procurar e te atrapalhar de algum jeito. Eu disfarçava esse medo na forma de raiva por você ter ido embora, mas sempre foi isso, medo de te prejudicar.

Mais uma vez ele me surpreendia. Ele, mesmo longe, queria me proteger. Me proteger dele mesmo e da influência que ele tinha sobre mim.

Na minha concepção, abrir mão da sua própria felicidade em prol da felicidade alheia era uma das maiores provas de amor que alguém poderia dar.

Se restava alguma dúvida que ele me amava, tinha se evaporado agora. Meio receoso, me aproximei dele lentamente e lhe dei um beijo demorado no rosto e muito carinhoso.

Quando me afastei ele me olhava com o rosto transbordando felicidade.

- Isso quer dizer... - Ele falou, mas eu o interrompi.

- Isso quer dizer muito obrigado por continuar sendo meu amigo, mesmo que longe.

- Ahh... - Ele pareceu bem decepcionado pelo real significado do meu gesto, mas se recompôs rapidamente. - De nada!

O clima estava tão agradável e eu havia comido tanto, que deitei sob a árvore e adormeci. Quando acordei, o céu estava colorido de laranja devido ao pôr do Sol. Eu estava deitado ao lado do Vítor, que acariciava carinhosamente meus cabelos. Ele estava grudado em mim.

Sem revelar que já tinha acordado, aproveitei aquele momento especial. Respirei lentamente seu perfume natural tão bom e senti a maciez da sua pele.

Antes de escurecer, nos levantamos, arrumamos as coisas e fomos embora. No caminho ainda conversávamos divertidos sobre o dia que havíamos tido.

- E o que você preparou para amanhã? - Perguntei.

- Uma coisa muito importante, mas você não vai participar.

- Como assim?

- Amanhã vou contar aos meus pais que sou gay.

- O quê? - Gritei mais alto do que pretendia e ele se assustou.

- O que tem de mais? Já estava na hora.

- Você tem certeza disso? Eu não disse que vou ficar com você. Aliás...

Ele me interrompeu.

- Eu preciso fazer isso por mim mesmo e não por você. - Ele falou sério, sem me olhar, concentrado na estrada. - Além do mais, Mariana chega de viagem depois de amanhã e vou terminar com ela o mais rápido possível. Não quero correr o risco dela querer se vingar contando aos meus pais. Pretendo agir antes dela.

- É o mais certo a se fazer... - Falei analisando aquela complicada situação. - Vai mesmo terminar com ela?

- Claro, não posso ser bígamo. - Falou rindo. - Já passou da hora de fazer isso e há muito tempo.

- E como você acha que ela e seus pais vão reagir?

- Não vai ser fácil, mas é necessário.

- Tem certeza que não precisa de mim lá com você?

- Não, tenho medo que eles te ofendam ao perceberem sua participação nisso.

- Eu sou forte o bastante para encarar isso.

- Eu sei, mas não é seu dever fazer isso. Eu preciso fazer sozinho.

Me dei por vencido e concordei com a cabeça. Pouco tempo depois estacionamos em frente à casa da minha avó.

- Está entregue. - Ele me falou.

- Obrigado pelo ótimo dia.

- Eu que tenho que agradecer.

- Até amanhã. Me mande notícias.

- Até.

- Vítor, quero deixar bem claro, mais uma vez, aqui e agora, que eu não tenho intenção alguma de amar quem quer que seja. Estou sendo bem claro com você.

- Pode deixar. Tchau.

- Tchau.

Desci do carro, mas ele não partiu. Senti que eu estava esquecendo algo. Fui até a sua porta da caminhonete e lhe dei um aperto de mão.

Ele ficou claramente decepcionado.

Assim que cheguei na casa da minha avó aquela noite, já fui sendo levado para o quarto por Bruno e Zeca que queriam todos os detalhes. Pacientemente, contei a eles tudo o que tinha acontecido.

- Você acha que está se apaixonando por ele? - Perguntou Zeca.

- Não mesmo.

- Mas você falou que ele te faz se sentir ótimo, não? - Falou Bruno.

- Demais. Era como reviver as passagens mais felizes da nossa infância. Sabe aquele sentimento bom que não tem nome? É isso que estou sentindo.

- É, você vai se apaixonar por ele. - Eu negava com a cabeça e com o coração também. - O melhor é que você já conhece o pior dele. - Concluiu meu primo.

- Como assim?

- Bom, eu tenho uma amiga que diz que só se envolve mais profundamente com alguém quando se conhece seu pior lado, pois esse é o sinal que você pode confiar na pessoa a partir de agora.

É assim com você e Vítor.

Você já viu o pior dele, não há nada o que temer. Se jogue de cabeça nesse romance.

- Não existe romance! O que existe são saudades da minha infância e pré-adolescência. Junto com ele, é claro.

- Mas o sentimento de antes vai voltar sim.

- Vocês acham?

- Claro. - Respondeu Zeca. - Você está tendo uma raríssima segunda chance no amor, não a desperdice.

Fiquei refletindo sobre suas palavras.

Quantas pessoas na vida podiam bater no peito e dizer que tiveram uma segunda chance no amor?

A maioria das pessoas ou nunca encontram sua alma gêmea, ou a deixam escapar por bobagens.

Eu vivi o verdadeiro amor com Felipe, mas ele me foi tirado muito cedo e injustamente.

Agora eu estava sendo recompensado com um possível segundo amor. Será que recusar aquilo seria um erro?

- E quanto ao problema de vocês? - Perguntei despertando dos meus pensamentos.

- Bom, chegamos a uma decisão. - Falou Bruno.

- Qual?

- Vamos nos assumir para os meus pais. - Respondeu Zeca.

- É o melhor que podem fazer agora. Torço muito para que dê tudo certo.

- Obrigado.

- Quando vai ser?

- Amanhã. Quanto mais cedo, melhor.

Fui dormir aquela noite com uma coisa me incomodando muito.

No dia seguinte Vítor e Zeca se assumiriam para os pais.

Aquilo não era um sinal de que eu devia colocar meu pai contra a parede em relação à minha sexualidade?

Até quando ele ia continuar fingindo que eu era heterossexual e que um belo dia viria apresentar a ele uma linda mulher como minha esposa?

Eu vinha adiando aquele confronto desde o nosso reencontro, mas agora eu tinha que resolver isso. Não queria reconstruir nossa relação em cima de uma mentira.

Me decidi: no dia seguinte, a exemplo de Zeca e Vítor, eu teria uma conversa séria com meu pai a respeito da minha sexualidade.

Ao acordar no dia seguinte, fui criando coragem aos poucos enquanto me arrumava. Por mais que a pior parte, falar que eu era gay, já tivesse sido feita há anos, eu estava muito nervoso em relação à minha conversa com meu pai.

Contei a Zeca e Bruno sobre minhas intenções e eles me desejaram boa sorte.

Tomei café da manhã e saí de carro em direção ao restaurante do meu pai, onde ele já devia estar trabalhando.

As pessoas pareciam já ter se acostumado à minha presença na cidade e o assédio tinha diminuído, o que eu agradecia bastante.

Estacionei na porta do restaurante, completamente nervoso.

Entrei no estabelecimento ainda completamente vazio e vi meu pai sentando em uma das mesas, olhando alguns papéis. Quando me viu, ele sorriu e veio me abraçar.

- Oi, pai.

- Que surpresa boa, meu filho!

Foi aí que me toquei que eu não fazia a mínima ideia de como falar para ele o que eu pretendia. Eu devia ter ao menos planejado o início da conversa!

- E qual a razão de você vir me ver? - Ele perguntou ainda sorrindo e me fazendo sentar numa mesa vazia com ele.

- Pai...

Como eu falaria disso com ele? “Pai, para de fingir que está tudo bem, eu gosto é de macho, porra”?

Não podia ser assim. Eu tinha que ser suave, falar agressivamente com ele não ajudaria em nada, pelo contrário, só atrapalharia.

- Pai, eu sou gay.

Eu pretendia começar mais suave, mas foi mais forte que eu. Ele pareceu atordoado, como se aquela fosse realmente a primeira vez que ele ouvia aquilo de mim.

Ele se virou para o outro lado, evitando me encarar e meus olhos se encheram de lágrimas. Aquela seria uma conversa bem difícil.

- Por que você está me falando isso? - Sua voz falhava.

- Porque você parece se incomodar muito com isso. Toda vez que o assunto surge você deixa claro sua desaprovação.

- E o que você queria? Que eu ficasse feliz com isso? - Falou elevando o tom de voz.

- Não! Eu queria você ficasse feliz por mim como um todo.

Eu queria que você me enxergasse como o seu filho que você ama acima de qualquer coisa. Eu queria que você me amasse sem ligar para um mínimo detalhe sobre quem eu sou.

Nós dois já chorávamos e falávamos alto um com o outro.

- Mas eu te amo!

- Então demonstre isso! Desde que eu cheguei aqui a única coisa que você tem feito é me ferir com seus olhares reprovadores! Você acha que eu não percebo? Você acha que isso não machuca?

- Não é uma coisa com a qual eu me acostumei!

- E quanto tempo você vai precisar para se acostumar? Sete anos não foram o bastante? Talvez eu deva ir embora e esperar mais sete pra ver se alguma coisa muda!

A simples menção a ir embora novamente e ficar sem vê-lo, fez com ele se afetasse.

- Não, por favor, não faça isso de novo, meu filho. - Falou mais calmo.

- Como não faço, pai? E continuar aqui sendo atacado? Isso não é vida.

- Mas...

- Por que você pediu para me ver? Não venha dizer que achou que eu tinha mudado porque isso é mentira. Duvido que você nunca tenha visto falando sobre minha sexualidade na televisão ou na internet. Se você não me aceita, por que quis me ver?

- Porque eu estava louco de saudade sua! Você é meu único filho e eu passei sete anos sem te ver. Sabe o quanto isso é doloroso para um pai?

- Você foi um dos principais culpados por isso!

- Eu?

- Claro! Quem me expulsou de casa?!

- Ora, se você não fosse... - Ele parou a frase na hora, mas percebi sua intenção.

- Ah, então a culpa foi minha por ser gay? - Falei irônico.

- Não foi isso que eu quis dizer.

- Foi sim. Você me culpa por isso? Eu não acredito! O que eu estou fazendo aqui? - Falei transtornado mais para mim mesmo do que para ele.

- Bernardo... - Ele tentava amenizar a situação.

- Você tem ideia do quanto eu senti sua falta?! Tem ideia de quantos momentos difíceis eu passei sem você estar ao meu lado para me falar que ficaria tudo bem? Tem ideia de como eu me senti ao ver todos quem eu amava na primeira fila do meu primeiro show e você não estava lá? Não, você não tem a mínima ideia! Você não estava lá, pai, e isso dói demais. Mas eu decidi esquecer isso tudo e voltar a Morro Velho com uma proposta de paz. E o que eu recebi?

- Meu filho... - Ele chorava.

- Escuta aqui, só vou falar uma vez. - Falei sério e nervoso olhando nos fundos dos seus olhos - Eu sou gay. Nasci assim e provavelmente vou morrer assim, entendeu? Você não pode amar só a parte que lhe convém de mim. Se quiser me amar, me ame por inteiro, ame todos os meus defeitos, as minhas qualidades, as minhas características pessoais e a minha trajetória até aqui. Não estou te pedindo uma resposta agora, mas eu não posso esperar por ela a vida inteira. Você tem até o natal, uma semana exatamente. Pense bem sobre o que vai fazer.

Dei as costas e fui saindo do restaurante, mas resolvi falar uma última coisa.

- Sabe, não tive a oportunidade de contar. Quando morava em Belo Horizonte, me apaixonei por um garoto chamado Felipe, o primo da Mariana, que você até chegou a conhecer. Um menino de olhos azuis mais lindo que o universo.

Seus olhar se perdeu como se agora ele ligasse as coisas e descobrisse que conheceu Felipe sem saber quem ele era de verdade.

- Ele me contou sobre a breve conversa de vocês, mas isso não vem ao caso. O que eu quero te contar é o que aconteceu depois dele morrer, o que, aliás, é uma daquelas situações em que eu precisei muito de um pai.

Enfim, a família dele nunca aceitou o fato dele ser gay, só descobriram que amavam ele acima disso quando ele morreu. Não é triste? Ele nunca soube que a família o amava, morreu sem saber. Eu espero que isso não aconteça com nós dois.

Encarei seus olhos vermelhos e molhados uma última vez e fui embora. Aquela conversa tinha acabado comigo. Tinha falado com ele tudo o que guardei nos últimos anos e não me senti aliviado com aquilo, me senti destroçado por reviver tantos sentimentos ruins.

Fiquei rodando com o carro, pelas estradas próximas à cidade, por horas, perdido nos meus pensamentos.

Quando cheguei à casa da minha avó, já devia ser quase cinco da tarde e eu estava faminto. Comi alguma coisa para enganar o estômago até o jantar e subi para o quarto.

Ao entrar, vi Zeca sentado no chão e escorado na parede segurando uma garrafa de vinho. Pelo visto a conversa dele também não havia sido muito boa. Me sentei ao lado dele, pedi a garrafa e dei um longo gole.

- E aí? - Perguntei.

- Eles disseram que preferiam ter um filho morto a um filho gay. - Zeca respondeu sem emoção na voz.

- Clichê.

- Eu sei.

- Cadê o Bruno?

- Saiu para fazer compras com sua mãe e sua avó. Pedi a ele para me deixar um tempo sozinho.

- Quer que eu saia também?

- Não, fica aí e bebe comigo. Como foi a sua conversa?

- Nada boa, gritei com ele e falei tudo o que estava preso na garganta.

- Isso é bom.

- Acho que sim.

A porta do quarto se abriu e Vítor entrou.

- Desculpa, achei que não tinha problema entrar.

- Não tem mesmo. - Falei - Senta aí.

- Por que vocês estão bebendo?

- Conversamos com nossos pais sobre nossa sexualidade e não foi muito legal. - Respondi.

- Então vou beber também. - Falou, pegando a garrafa de vinho e dando um gole generoso.

- Como foi?

- Minha mãe ficou calada, meu pai gritou muito, quase não dava para entender o que ele falava. Aí gritei mais alto ainda, contando a história toda. Aproveitei e contei que sou apaixonado por você. - Ele falava calmo, também sem muita emoção na voz.

- Nossa, ele vai me odiar mais ainda agora.

- Possivelmente. Ele quebrou a cristaleira, chutou as mesinhas e destruiu um monte de coisas na sala. Xingava cada coisa para mim, que nem consigo contar. Disse que eu não era do seu sangue e mais um monte de desaforos. Antes de sair pela porta ele disse que estava por isso para quebrar a minha cara e ao ver que ele ia partir para cima de mim, minha mãe entrou na frente e o enfrentou. Falou do que aconteceu com sua família anos atrás, da separação dos seus pais e tudo. Ele foi ficando menos agressivo na hora que ela falou que já sabia, que já imaginava que isso era o fato da minha vida e não aquele que eu estava tendo com a Mariana. Ele saiu chutando a porta. Minha mãe me disse que deixasse ele sozinho para que ele se desse conta da situação.

Nós três ficamos bebendo em silêncio, lado a lado, sentados no chão do quarto. Bruno e minha mãe ficaram umas feras quando nos viram naquele estado. Devido ao clima das conversas, o jantar foi silencioso e desanimado.

- Posso dormir aqui hoje? - Perguntou Vítor.

- Claro, desde que não seja na mesma cama que eu. - Respondi.

Arrumei a cama dele ao lado da minha, já que Zeca e Bruno dormiriam na casa do meu pai. Vítor ficou só de cueca na minha frente e se deitou. Eu quase podia afirmar que ele estava fazendo de propósito para me provocar, mas podia ser a bebida também. Felizmente, eu estava sóbrio o bastante para não fazer besteiras.

- Vamos dormir porque amanhã vai ser um grande dia. - Ele falou, já com as luzes apagadas.

- Vai?

- Vai. Mariana volta amanhã e eu vou terminar com ela.

- Posso assistir?

- O quê?

- Ah, deixa! Eu esperei por isso por muito tempo.

Ele riu gostoso com meu jeito infantil de falar. Mas era sério. Eu não queria participar da conversa, mas queria ver a cara da Mariana se quebrando. Seria meu deleite.

- Tem certeza?

- Sim! Eu fico escondido.

- Já que você insiste... Vou chama-la na fazenda amanhã quando meus pais estiverem fora.

- Vai ser legal.

- Só para você. Enfim, vamos dormir porque o dia vai ser cheio.

- Boa noite.

- Boa noite, e Bernardo...

- Oi?

- Eu te amo.

- Boa noite, Vítor, mas meu amor é todo de um outro menino.

- Mas Bernardo... - Eu o interrompi.

- Boa noite, Vitor!


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Ficha do conto

Foto Perfil contosdelukas
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Nome do conto:
TRAVESSIA [34] ~ Saindo do armario

Codigo do conto:
217011

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
27/07/2024

Quant.de Votos:
4

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