Todo o período que se estende da minha expulsão de Morro Velho à minha chegada em Nova York.
Analisando friamente hoje, foi o período em que vivi minha adolescência.
Se no momento em que Mariana subiu naquele palco foi a hora em que deixei de ser criança para ser adolescente, o momento em que tive que escolher entre Vítor e a música foi a hora em que me tornei adulto.
Afinal, não é isso que difere o adulto de um adolescente?
A hora em que se é obrigado a parar de deixar os outros (ou a própria vida) tomar decisões por ele e passar a arcar com as consequências de suas escolhas?
Pois bem, agora eu era um adulto.
A travessia estava completa.
Isso tudo foi o que passou pela minha cabeça enquanto observava Beatriz e Henrique patinando.
O resto do dia foi tranquilo, bom, com todo aquele clima de natal.
Não deixei que eles conseguissem ler meus pensamentos. Deixamos Bia no seu hotel, fui para meu apartamento com Henrique, tomamos banho, e por último desejei feliz natal para meus amigos e familiares pelo telefone.
Para não correr o risco de Vítor atender ao telefone, liguei para o celular de Rafinha, lhe desejei feliz natal e ele chorou de saudades de mim. Ele era meu grande amigo para sempre...
Também falei com tia Rosa, que brigou por eu não ter tempo para visitá-laComo combinado, nós três jantamos juntos no restaurante que Beatriz queria, onde passamos a noite conversando e rindo. Não foi um natal tradicional, mas dentro das possibilidades, foi um natal feliz.
Só que tudo aquilo continuava na minha cabeça. Embalado um pouco pelo vinho que bebi, assim que cheguei no meu apartamento me sentei e comecei a escrever uma resposta para a carta de Vítor. É o tipo de coisa que não se deve fazer quando se bebeu um pouco, mas não me segurei.
“New York, 25 de dezembro de 2009
Olá, Vítor!
Como foi seu natal? Espero que tenha sido bom, como o meu foi. Passei o dia patinando, andando e comendo com Beatriz e Henrique.
Nunca cheguei a te contar sobre a existência de Henrique, né?
Bom, é o cara com quem me relaciono aqui. Nesse momento você pode se perguntar se eu já deixei de gostar de você e me apaixonei por outro, e a resposta é não.
Você ainda é o único que eu gosto assim.
Henrique é uma aventura, uma distração, um remédio para a minha solidão. Hoje, vendo ele patinar tão levemente no gelo, fiquei me analisando.
Eu queria ser leve, me preocupar menos com meus problemas, com as implicações de cada escolha minha, com o futuro... Eu queria ser mais leve... Agora, te escrevendo, me lembrei dessa música:
‘Alguém que vi de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa...
Alguém sorriu de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou o riso que eu tinha
E esqueci entre os dentes...’
Vendo Henrique, me lembrei dos sonhos que tinha, dos sonhos de ser feliz. Ver seu sorriso alegre e honesto, me fez refletir sobre a quanto tempo eu não dou um sorriso daquele.
Acho que foi naquela nossa última noite de natal da casa da minha avó com nossas famílias reunidas. Eu esqueci meu sorriso em uma mesa qualquer da vida, mas não me lembro qual para ir lá buscá-lo.
Talvez se eu pudesse saber como ter esse sorriso de volta, se eu reaprendesse a ser mais leve, estaríamos juntos agora, tentando superar juntos nossas diferenças.
Eu sinto tanto a sua falta...
Não sei quando volto. Nova York me faz bem, anestesia minha dor de um modo eficiente. Sinto muito.
Eu te gosto muito.
Bernardo.”
Terminei a carta derramando lágrimas sobre aquele papel. Derramei sobre o papel também todas as palavras que vinha racionando desde que começamos a nos corresponder...
Fui dormir e consegui isso fácil devido ao cansaço, mas assim que acordei enviei a carta, sem dar tempo para reflexões se deveria ou não.
Depois daquela carta, Vítor eu nunca mais trocamos nenhumaEsperança, essa a palavra-chave.
Esperança é só com o que podemos contar quando tudo está perdido.
A esperança é o que nós move quando não há nada em que se apoiar. Quando você está no fundo do poço, esperança é única coisa que te impede de se jogar do alto de um edifício.
Eu tenho esperança de um futuro melhor para mim, para meus entes queridos, para meus semelhantes, mesmo sabendo que esse futuro melhor possa nunca chegar.
Terei esperança que tudo melhore até meu coração bater pela última vez.
Mas sinto tanta saudade de Felipede janeiro de 2010
Quando a multidão em volta de mim na Times Square começou a comemorar a chegada do novo ano, não pude deixar de pensar que aquela era uma data especial. Naquele momento fazia exatos dez anos desde que tinha me apaixonado por Vítor. Dez anos do evento que mudou totalmente o rumo da minha vida.
Beatriz passou o braço pela minha cintura, me puxou e me desejou feliz ano novo no meu ouvido.
Henrique foi bem mais ousado, me puxou com tudo e me beijou no meio daquele mar de gente.
Ninguém que estava em volta ligou, estavam todos muito absortos na festa. Quando nos soltamos, ele me olhava sorrindo e eu retribuí do mesmo jeito.
- Feliz ano novo! - Ele gritou no meu ouvido por causa do barulho que as pessoas faziam.
- Obrigado por tudo! - Respondi.
- Pelo quê?
- Por estar ao meu lado.
Ele sorriu e voltou a me beijar carinhosamente. Ele era um garoto de ouroVítor fala)
- Vem Vítor, já deu meia-noite. - Falou meu irmão me chamando na porta do quarto.
- Já desço.
Ouvi ele soltando um suspiro de insatisfação com a minha resposta, mas ignorei e ele fechou a porta. Eu queria ficar sozinho. Da janela do meu quarto eu observava os fogos queimarem no céu, o ponto alto da festa de réveillon que meus pais davam todo ano.
Como será que ele estava agora? Será que estava pensando em mim? Será que estava feliz ao lado do seu novo rapaz?
Tateei o bolso da minha calça e peguei a sua última carta que eu havia recebido mais cedo naquele mesmo dia. Era raro elas chegarem tão rápido, em uma semana, e em outra ocasião qualquer eu estaria comemorando isso, mas não agora, não com aquela carta.
Nunca lhe escrevi sobre meus sentimentos com medo de estar fazendo algum tipo de chantagem emocional com ele assim, então eu desabafava com músicas.
Ele parecia estar fazendo a mesma coisa também, pisando com cuidado naquele terreno perigoso que era a nossa relação, mas essa carta jogou tudo por terra.
De todas as informações que ele despejou em mim, acho que a que mais doía era o fato dele estar com esse tal Henrique.
Não posso mentir falando que estivesse casto pelos últimos dois anos esperando por ele, mas eram casos diferentes.
Quando eu tinha vontade de ficar com um cara, eu dirigia até Belo Horizonte e lá encontrava um. Mas era só sexo, nunca mais do que uma noite, nenhum envolvimento emocional.
Mas e esse Henrique?
Bernardo deu a entender que os dois já estão juntos a algum tempo, mas quanto tempo? Eles têm um relacionamento mesmo? Me senti traído.
Eu sabia que eu e Bernardo não tínhamos nenhum compromisso, muito menos jurado fidelidade, mas ciúme não é racional.
Por outro lado, era uma carta tão sincera, mais honesta e aberta do que qualquer conversa que eu pudesse ter tido pessoalmente com Bernardo. Ele falar que gostava muito de mim não era nenhuma novidade.
Mas eu nunca reclamei e disfarcei minha tristeza ao máximo para ele não perceber o quanto eu sofria ao dizer que o amava e ele não dizer o mesmo para mim. Ele nunca disse. Ele falava que gostava demais de mim, mas amar ele nunca falou.
Acho que só um menino teve essa felicidade e foi o Felipe. O seu anjo lindo de olhos azuis, como ele dizia.
E eu sei que ele esteve em Belo Horizonte no aniversário do Felipe. E sei que ele passou o dia no cemitério, na sua sepultura, conversando a sós com ele.
Meu Bernardo não contou que veio ao Brasil nem para seus pais, nem para ninguém, mas eu o vi lá conversando com Felipe nos dois aniversários, nesses dois anos.
Rafael também estava com ele nessas duas vezes que eu fui até lá e fiquei escondido. Mas Rafael também nunca me falou nada.
Não tive coragem de me deixar ser visto e Bernardo nunca saberá disso.
Quanto à carta, o jeito que ele escreveu aquilo, como um desabafo, mexeu muito comigo. Ele gostava mesmo de mim e sentia a minha falta, o que era bom, mas não sabia quando voltava, o que era um mal sinal. Sim, ele não tinha planos de voltar, de ter um futuro comigo. Ele não tinha planos para nós dois.
Ele estava ao lado desse Henrique em Nova York tentando superar tudo. Sempre tive esperança que um dia nossa situação seria resolvida magicamente.
Eu fingia que o nosso problema era a distância entre Morro Velho e Nova York, que quando ele voltasse ficaríamos juntos, mas eu estava me enganando. O problema era a distância entre nossas vidas.
Quando ele voltasse cairíamos na mesma situação.
Ele já tinha entendido isso a muito tempo e tentava seguir em frente, mesmo me amando. Sem admitir e sem nunca dizer, mas eu sentia isso.
Será então que eu estava sendo egoísta, prendendo Bernardo através das nossas cartas para alimentar a esperança que ficaríamos juntos um dia?
Peguei um papel na minha escrivaninha, me sentei numa cadeira e comecei a escrever uma resposta para a sua carta:
“Morro Velho, 1 de janeiro de 2010
Oi. Essa não vai ser uma carta muito longa é só uma resposta à sua última carta.
Eu tenho que pedir desculpas, pedir desculpas por, através dessa troca de cartas, estar te mantendo preso junto a mim. Você merece mais, merece seguir em frente... Eu entendo agora que preciso te deixar ir.
Ainda te amo demais, não duvide, é só por isso que estou fazendo isso. Desejo do fundo do meu coração que seja feliz com esse novo cara em Nova York. Você realmente merece.
E para não perder o hábito, lembrei dessa música enquanto escrevia essa carta:
‘O que foi feito amigo
De tudo que a gente sonhou?
O que foi feito da vida?
O que foi feito do amor?
Adeus, meu amor.’ “
Nunca cheguei a enviar aquela carta, ficou guardada na gaveta da escrivaninha. Acho que no fundo, mesmo o libertando de mim, eu ainda tinha esperanças de que um dia ficaríamos juntos