Bernardo [37] ~ by Eric

Meu nome é Eric Hansson Barros e eu estou morrendo. Eu queria que tivesse alguém aqui para escutar a minha história...

Sou filho de mãe sueca e pai brasileiro, e nasci na Bahia. Meus pais se conheceram trabalhando juntos numa grande multinacional com operações no Brasil. Foi amor à primeira vista. Se tem uma coisa que eu possa afirmar sobre eles, é que eles se amam. Nunca duvidei disso. Eles nutrem um pelo outro aquele amor avassalador no qual um depende do outro pra viver. Os dois não sabem viver separados. Eles não sabem amar ninguém mais do que amam um ao outro. Nem mesmo o seu filho único. Assim, assumindo altos cargos na empresa, eles conseguiram manipular seus empregos de modo que fizessem parte da mesma equipe, sempre trabalhando juntos. Por causa disso, estavam sempre viajando por toda a América Latina a trabalho.

Como minha mãe bem me disse uma vez depois de ter bebido um pouco, nunca foi o plano deles engravidar. Eles sempre foram péssimos com crianças, não sabiam como lidar com elas. Aconteceu num descuido de ambos. Eles sempre contavam rindo que o tempo que minha mãe passou de licença maternidade, sem poder viajar, foi o maior tempo que já ficaram separados, e também o mais sofrível. Eles não conseguiam viver um sem o outro. Então, com poucos meses de vida, eu já viajava com eles por todo o continente, mesmo que pouco aconselhável para minha saúde. Quando já tinha IV anos, aquilo se tornou inviável, pois eu precisava começar a frequentar uma escola. Mas eles não tinham a opção de começar a trabalhar num local fixo, pois aquilo seria um retrocesso nas suas carreiras. Tampouco um deles poderia fixar residência comigo. Assim eu fui preso num apartamento em Curitiba com uma equipe de babá, empregada e motorista. Curitiba já é uma cidade de natureza fria, e isso só era agravado pela decoração daquele apartamento: gélido, excessivamente branco e sem vida, como se deixasse claro que nenhuma família vivia ali.

“Pobre menino rico” vocês podem pensar. Talvez eu fosse mesmo. Não tem como sentir falta de alguma coisa que eu nunca tive. Meus pais nunca estiveram lá para brincar comigo, para me ensinar a lição de casa ou para me levarem ao médico. Então, não senti falta deles enquanto crescia. Eu aprendi a chamar aquilo de realidade. Lógico que enquanto eu fazia presentes de dias dos pais e das mães com meus coleguinhas na escola, eu pensava nos meus pais. Não era como se eu fosse órfão. Eu sempre os via em intervalos de duas ou três semanas, ainda que não por mais do que dois ou três dias. Eu não sentia falta deles, eu sentia falta da família dos outros. Quando eu ia brincar na casa de um coleguinha, eu sentia inveja do carinho da mãe deles ao preparar nosso lanche. Eu sempre dava jeito de dormir por lá, assim eu conseguia me iludir por mais algum tempo. Eu não pude nem mesmo me prender aos empregados que me criaram, pois eles sempre acabavam arranjando empregos melhores em no máximo dois anos e me deixavam. Mesmo pequeno, eu conseguia ver no olhar deles pena de mim. Pena do pobre menino rico.

Eu nem mesmo conseguia me apegar aos meus colegas de escola porque estava sempre mudando de cidade. Apenas a localização geográfica, porque eu sempre acabava me mudando para o mesmo apartamento gélido, branco e sem vida de sempre. Ficando mais velho, meus pais acharam melhor e mais cômodo me mandar para um colégio interno. Assim, acabei preso no interior da Inglaterra cercado apenas por garotos num regime extremamente rígido. Por um momento, eu achei que poderia fazer amigos e realmente começar uma vida, começar a me relacionar com as pessoas, mas não. Não importa se eu era muito branco ou se eu era muito loiro, eu ainda era brasileiro. Por mais que isso soe irrelevante num mundo cada vez mais globalizado, pode se tornar um peso quando se está cercado por adolescentes ingleses de classe média alta. Não me xingavam ou me batiam, apenas me ignoravam. Eu não era ninguém para eles, apenas uma sombra ali dentro.

Foi nesse período que eu conheci o sexo. Eu sempre soube que gostava de meninos. Meninas nunca habitaram as minhas fantasias, nem mesmo por um breve momento. Eu era um pouco afeminado. Não quebrava a mão, rebolava ou usava expressões femininas. Eu apenas era o que era, eu não sabia fingir. Os meninos perceberam isso e, por mais que quisessem negar, me achavam bonito. E eu tinha uma bunda firme, redonda e lisa. E não havia nenhuma mulher por perto... Assim, me entreguei ao meu primeiro colega. E teve o segundo, o terceiro, o quarto... Eu sempre me encontrava com eles pelos cantos desertos do colégio. Apesar de não ter me apaixonado por algum deles, eu sentia que me entregava mais do que deveria. Eles não queriam ser meus amigos, eles queriam apenas gozar. Mas me deixavam ser parte das suas rodinhas de conversa e isso bastava para que eu não enlouquecesse naquele lugar. Mas, obviamente, aquilo foi me ressentindo aos poucos e me marcando. Mais uma página de tristeza no livro da vida do pobre menino rico.

Foi naquela época também que eu conheci a cocaína. Não teve estágios, como muitas pessoas que começam por drogas leves até chegar lá. Eu fui apresentado à cocaína antes mesmo de ser apresentado ao álcool. Alguém arranjava fora da escola e nos revendia. Eu não me tornei um viciado. Eu gostava do efeito de fuga que a droga me proporcionava, mas ela atrapalhava meu rendimento nos estudos, então eu aprendi a dosar. Eu podia passar semanas ou até meses sem usar.

Então, quando fui me formar, a realidade caiu na minha cabeça de uma só vez. Eu me vi com dezessete anos e ainda não havia vivido nada. Eu era infeliz e miserável, como uma alma penada a vagar sem rumo. Eu não vivia, eu apenas esperava pacientemente pelo dia da minha morte. Eu queria amar! Eu queria o calor e fogo que eu nunca conheci! Num dos únicos lampejos de mudança de vida que tive, peguei meu diploma e avisei meus pais que estava voltando para o Brasil. Eles achavam melhor que eu cursasse uma universidade americana ou europeia, mas eu não ligava mais para isso. Eu já tinha tido uma péssima experiência sendo descriminado pela minha nacionalidade. E eu estava cansado de lugares frios, tanto de clima quanto de pessoas.

Eu peguei o mapa do Brasil e procurei analisar onde eu queria morar. Meus pais pagariam por um apartamento onde eu quisesse. Acho que eles sabiam que tinham cometido muitos erros da forma que fui criado e tentavam compensar isso com bens materiais. Não era a mesma coisa, mas eu tirava o máximo proveito que pude dessa situação. Eu escolhi Belo Horizonte pela fama dos mineiros de serem um povo simpático. Eu pensei que lá eu encontraria pessoas com quem me relacionar. Lá eu começaria a viver. E isso meio que aconteceu.

Em Belo Horizonte, quando entrei na faculdade de engenharia, eu queria desesperadamente fazer amigos, mas não consegui. Às vezes eu me enganava dizendo que a culpa era deles, que eram preconceituosos, mas no fundo, a culpa era minha. Eu queria muito mais do que eles estavam dispostos a me dar, e isso os assustava. Eu poderia mudar, mas não havia mais necessidade, pois, de repente, havia Rafael e Bernardo. Eu não amava Rafael, nunca o amei de verdade, mas eu amava a forma como ele me tratava. Ele era a personificação do “calor”, do “fogo”. Ele sabia preencher meus dias com amor. Foi a primeira vez que eu me senti amado. E teve Bernardo, o ponto principal da minha história. Bernardo podia não me amar, mas eu o amava. Bernardo foi a única pessoa que amei na vida. Não digo nem mesmo no sentido romântico, mas no geral. Eu não consegui amar nem mesmo os meus pais. Bernardo foi como o Sol na minha vida. Ele me iluminou e me aqueceu.

O maior erro da minha vida foi não ter conseguido lidar com minha relação com os dois. Eu amava Bernardo, e isso era tudo o que mais desejei na vida, mas ele não me amava e Rafael sim. Rafael era capaz de me dar o amor que eu nunca tive. Então, eu me vi dividido: quem eu deveria escolher, a quem amo ou a quem me ama? E antes que eu tivesse coragem de fazer minha escolha, eles descobriram e meu mundo caiu. Cada um com suas palavras cortantes como a mais afiada das facas, me lembrou da pessoa que eu era de verdade. Eu não tinha nascido para amar e ser amado. Eu era apenas um ser frio e sem vida. Um fantasma.

E a derradeira punição: Rafael e Bernardo descobriram que se amavam! Eu não sei como expressar a dor que eu senti ao encontrá-los aos beijos. Mais do que a visão por si só, me doeu ainda mais a constatação que eles se completavam. Eles estavam destinados a ficar juntos e nada sobrava para mim.

No meio da minha dor, eu reencontrei a cocaína. Fazia alguns meses que eu não fazia uso, mas ela se mostrou como a única forma que eu tinha de aliviar a minha dor. Eu comecei a sair com garotos de programa para saciar meus desejos e eles traziam a droga. Ali, eu acho que me viciei de verdade. Eu passei a fazer uso contínuo. Eu queria estancar a minha dor, mas ela só fazia crescer.

E como se fosse minha tábua de salvação, Bernardo voltou. Ele era bom demais para deixar que eu me afogasse sozinho em minha própria agonia silenciosa. Não era à toa que eu me apaixonei por ele. Por mais que eu não pudesse beijá-lo ou tocá-lo intimamente, sua presença me bastava. Afinal, o Sol continuava a nos aquecer e nos iluminar mesmo num dia nublado, não?

Quando ele e Rafael terminaram o namoro, eu me enchi de esperanças novamente. Ele voltou de vez para mim! Ele voltou para os meus abraços, para meus beijos e para a minha cama. E como eu o desejava! Eu o agarrei e o beijei com toda a intensidade que pude. Bernardo era o meu amor. Mais: ele era a minha boia de salvação. Sem ele, eu me afogaria no meu mar de agonia. Ele transava com meninas, sim, mas o que me importava? Eu não tinha ciúme. Eu não tinha direito de ter ciúme. Ter uma noite com Bernardo era mais do que já tinha tido na vida, então, como eu não poderia estar agradecido? Ele continuava não me amando, mas eu o queria mesmo assim, porque era melhor que nada. Era melhor do que voltar para o escuro. E mesmo não me amando como os romances diziam que deveria ser, Bernardo me amava do jeito dele. Ele não se declarava para mim ou me lançava olhares apaixonados. Mas eu via que ele gostava da minha presença, do meu corpo, dos meus beijos. Bernardo não fazia sexo no automático, como os garotos do colégio interno ou os michês. Não, ele fazia sexo com amor e paixão, mesmo não me amando.

Só que naquele ponto, mesmo com a volta de Bernardo à minha vida, a cocaína já ia consumindo a minha saúde. Minha pele ganhou um aspecto pior, meus olhos pareciam mais fundos e meu nariz sangrava com frequência. Eu, no meu limite, cheguei a usar até mesmo na presença de Bernardo. Eu ia para o banheiro e cheirava. Claro, ele não poderia saber. E se ele fosse embora de novo?

Parecia que previmos que aquele tinha sido nosso último encontro. Eu me agarrei a ele com força. Eu o abracei como se tentasse mostrar para ele o quanto ele era importante para mim. Eu não tinha palavras para contar a ele como a presença dele era essencial. Ele era o meu Sol. E eu chorei. Eu chorei por toda a minha dor. Ali, eu me abri com alguém de um modo como ninguém nunca tinha me visto. Era uma despedida. E ele sabia que era nossa despedida, porque ele também chorou. No seu abraço, eu tive a certeza que ele me amava também.

_Você vai passar o Natal com seus pais?_ ele me perguntou quando nos soltamos.

_Não, eles só chegarão no dia 26.

_Então, com quem?

_Com ninguém.

Eu vi nos seus olhos o sentimento com o qual eu tinha me acostumado: pena. Eu vi que ele queria me convidar para alguma coisa, mas ele não podia, pois era arriscado demais para ele.

_Não precisa se preocupar, eu vou ficar bem.

_Tem certeza?

_Absoluta.

_Eu posso te ligar na noite de Natal?

_Deve._ respondi rindo.

Ele riu também. Ele veio até mim e me deu um beijo cheio de paixão.

_Tchau, Eric.

_Adeus, Bernardo.

E ele fechou a porta sorrindo.

Agora, é dia 24 de dezembro. Já anoiteceu. Eu acho que exagerei na dose desta vez. Ou talvez o meu corpo esteja cansado da cocaína. Ou talvez eu esteja cansado de viver e esteja me entregando. Ali, deitado nu no chão da sala do meu apartamento, eu sinto o meu coração parando aos poucos. A minha consciência vai se perdendo também...

Do meu quarto, ouço o barulho do celular vibrando em cima da escrivaninha. O barulho é insistente. Eu sorrio. É Bernardo. Ele se lembrou de me ligar. Só Bernardo me ligaria agora, mais ninguém. Meu último desejo seria ter forças para me levantar e atender. Eu queria lhe falar tudo o que tinha pra lhe falar.

Eu queria dizer para Bernardo que ele foi mais do que meu amor. Ele foi tudo. Ele foi a luz do meu viver. Ele me mostrou que há uma vida para se viver lá fora. Ele me mostrou que eu era capaz de amar e ser amado. Ele me mostrou que a vida é mais do que andar por aí esperando pela hora da morte.

Bernardo me ensinou que os livros e filmes estavam certos o tempo todo, que o amor existe e vale a pena, seja ele como for. Ele pode nem mesmo ser completo, mas ainda assim é tão essencial. Eu tenho dezenove anos, mas quantos não vivem até os 80 como fantasmas também? Eu estava destinado a ser mais um dos fantasmas os quais encontramos todos os dias na vida, mas Bernardo me deixou amá-lo e isso mudou tudo. Eu vivi. Por alguns poucos meses, mas vivi. Meio pela metade, mas vivi.

Eu só queria que tivesse alguém aqui para ouvir minha história. Eu queria que Bernardo tivesse aqui para eu lhe contar a minha história. Eu queria ao menos poder atender o telefone e lhe dizer tudo. Eu queria fazê-lo entender como ele foi importante para mim. Eu queria lhe dizer que sempre que estiver triste e caminhando rumo à escuridão, que ele se lembre que salvou uma vida. Eu queria dizer a Bernardo que o amei, que deixei minha marca nele e que isso valeu por toda uma vida.

O telefone parou de tocar e eu sorri triste. Uma lágrima desceu dos meus olhos. Eu não senti pena de mim por morrer sozinho. Era apenas condizente com a vida que eu vivi. Não levo mágoas de ninguém.

No meu último suspiro, sorri triste com a ironia. No dia seguinte, a empregada, mais uma entre tantas, chegaria e me encontraria morto naquele chão. Ela chamaria a ambulância, em vão. Enquanto espera, ela olharia para o meu corpo sem vida e falaria consigo mesma:

_Pobre menino rico, morreu sozinho no seu apartamento gélido, branco e sem vida...

____

Gente por hj chega, pq assim como vocês estou lendo tudo de novo e essa parte meche muito cmg de vdd! Um capítulo mto triste porém necessário para mostrar o lado de Eric!

Apesar que nunca fui muito ligado a ele, as palavras são muito forte! Enfim, sigo chorando :(


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Ficha do conto

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Nome do conto:
Bernardo [37] ~ by Eric

Codigo do conto:
217911

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
12/08/2024

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