Bernardo [38/39/40] ~ Luto!

31 de dezembro de 2006

Sozinho no meu quarto na mais completa escuridão, eu assistia da minha janela a cidade amanhecer aos poucos. Todos ainda dormiam lá embaixo. Logo acordariam para o último dia do ano. E como acontece em todo último dia do ano, o clima de renovação tomaria conta das pessoas. De todos, menos de mim. Não havia renovação para mim. O clima para mim era de final da jornada.

Eu passei a noite toda em claro. Pelo telefone, a mãe de Eric só conseguiu falar que ele tinha morrido. Chegando da viagem, eu corri para o apartamento deles.

_O que aconteceu?_ perguntei.

Eu não conseguia acreditar no que tinha acontecido. Era tudo tão surreal! A impressão que tinha era que Eric sairia a qualquer momento do seu quarto e viria me receber só de cueca. Mas esperei por isso em vão.

_Overdose de cocaína._ respondeu o pai dele _A empregada encontrou ele caído aqui na manhã do dia 25.

_Overdose?_ eu perguntei incrédulo _Ele usava cocaína?

O pai dele deu um longo e doloroso suspiro.

_Pelo jeito... Eu esperava que você nos pudesse responder isso, afinal, ele era mais próximo a você.

Uma sombra passou pelos olhos daquele homem quando ele disse aquilo. Por mais ausente que ele tivesse sido, não deve ter sido fácil admitir em voz alta que um completo estranho era tão mais próximo do filho do que ele próprio.

_Não... Eu nunca soube._ e então eu fui lembrando os sinais, juntando os fatos _Nas últimas semanas ele estava mais magro, com olhos mais fundos. Talvez com o comportamento mais agitado. Mas eu nunca poderia imaginar que...

E então, a hipótese de suicídio passou pela minha cabeça, e com ela um novo golpe. Se Eric tivesse feito aquilo de propósito, eu era o principal culpado, pois eu o submeti a uma relação miserável.

_O que a perícia falou?_ perguntei já temendo a resposta.

_A quantidade era muito pouca para suicídio. Foi uma overdose acidental.

Ele pareceu ler a minha mente ao falar aquilo. Ou talvez ele só tivesse se perguntado aquilo também, afinal, ele e a esposa tinham uma parcela de culpa pelo constante estado de tristeza que Eric vivia.

_Só ontem, ao recolhermos as coisas deles, encontramos o celular dele e as suas mensagens. Sinto muito ter demorado tanto, você não pôde estar lá para o enterro dele. Ele parecia realmente gostar muito de você...

Ele olhou para mim intensamente quando falou aquilo. Ele sabia o que eu representava para Eric. Mas não tinha julgamento ou raiva no seu olhar. A hora desses sentimentos já tinha passado. Ele não estava mais aqui.

_Essa foi a cidade que ele escolheu para morar, então achamos que o melhor seria enterrá-lo aqui. Eu vou te passar o cemitério e número da cova para você visitá-lo, se você quiser.

Fiz que sim com a cabeça, meio que funcionando no automático. A minha ficha ainda não havia caído. Eric tinha morrido...

Chegando em casa, contei aos meus pais por alto o que tinha acontecido e, antes que eles fizessem mais perguntas, pedi que me deixassem em paz no meu quarto. Passei a noite chorando silenciosamente ao olhar pela janela. Quando amanheceu, eu consegui dormir um pouco, mas apenas por algumas horas. Foi um sono conturbado e inquieto, não me deu a paz que eu queria. Ao acordar, comi alguma coisa de má vontade e deixei claro que ainda não queria falar sobre aquilo.

Eu tinha tanta coisa para perguntar a ele ainda... E ele tinha tanto o que viver! Eu precisava falar com ele. Vesti a primeira roupa que encontrei e me dirigi ao cemitério. Era um imenso campo gramado com placas cravadas no chão. Não foi difícil encontrar a sua sepultura com o número que o pai dele tinha me dado. A terra ainda estava fofa e revirada no lugar, contrastando com a grama em volta. Na placa, se lia cravado na pedra o seu nome, a data de nascimento e a data da morte.

Acho que só então a minha ficha caiu. Ele estava morto. Se foi. Para sempre. Eu nunca mais o veria.

Certo, eu não amava Eric, mas ele sem dúvidas foi uma pessoa muito importante para mim. Ele deixou a sua marca em mim. Afinal, foi com ele que perdi a virgindade. Ele foi a primeira pessoa que me amou ao me conhecer por completo. E como isso é especial!

Quando uma pessoa morre, não pensaremos nunca na sensação de missão cumprida na Terra. Pensaremos no quanto aquela pessoa ainda tinha para realizar. E era essa a minha maior dor. Eu não amei Eric! Eu tinha que tê-lo amado! Ele merecia! Eu não devia ter escondido ele do mundo, fingindo que não éramos mais do que colegas de sala. Eu não devia ter dado a ele apenas as migalhas que dei. Eu não devia ter fugido toda vez que ele se aproximava de mim. Eu devia ter sido pelo menos um amigo para ele e tentado livrá-lo de toda aquela dor que ele sentia.

Naquele momento, tudo o que eu queria era colocar Eric no meu colo, passar a mão na sua cabeça e dizer que ficaria tudo bem...

Quando a noite começou a cair e eu voltei para casa, eu estava um caco. Eu estava sujo e com fome, mas não tinha vontade de tomar banho ou de comer. Eu só queria alguma coisa para me anestesiar da pior dor que eu poderia sentir naquele momento: a dor do arrependimento. Assim, meus pais não discutiram quando eu disse que não iria na festa de Reveillon na casa dos amigos deles. Eles não podiam imaginar o quanto eu estava destruído por dentro. Para eles, era apenas o choque de perder um colega de faculdade. Então, eles não se importaram em me deixar sozinho na virada do ano. Eles saíram com meus irmãos a tiracolo prometendo voltar quando o dia amanhecesse. Só que eu não queria ficar sozinho! Não naquele momento. Então, eu liguei para as duas únicas pessoas do mundo que poderiam me confortar: Alice e Rafael.

Em não mais do que meia hora, os dois bateram a campainha e entraram no meu apartamento desesperados. No rosto, os dois sustentavam a expressão da incredulidade.

_O que aconteceu?_ perguntou Alice.

_Ele morreu!_ gritei soltando tudo o que estava entalado na minha garganta junto com uma tempestade de lágrimas _Eu deixei que ele se matasse! Eu não o ajudei!

Os dois correram para me abraçar, mas nada conseguia parar o que eu estava sentindo. Os dois estavam muito assustados, nunca tinham me visto naquele estado. Eu costumava ser calmo e centrado, totalmente avesso à ideia de deixarem que me vejam chorar.

_Calma, Bernardo. Conta com calma o que aconteceu._ pediu Rafael.

E, entre lágrimas e soluços, eu contei tudo o que aconteceu. A ficha deles também não caiu. Eles se contentaram a chorar em silêncio ao meu lado, tentando me confortar. No limite do meu campo de visão, vi aquele embrulho encostado na árvore de Natal da minha sala. Eu corri até lá e o agarrei. Alice e Rafael me olharam assustados.

_Sabem o que é isso?!_ perguntei transtornado sacudindo o embrulho na mão _O presente que eu comprei para ele

Os dois mudaram o seu olhar para tristeza. Eu rasguei com fúria o papel do embrulho, revelando o porta-retratos com nossa foto. E nos fitei naquela fotografia. Nós dois estávamos no sofá da casa dele assistindo um filme. Tinha sido uma tarde relaxante depois de uma terrível semana de provas. Ele pegou sua câmera e pediu um foto nossa. Eu concordei com alguma ressalva. Na imagem, eu saí com um sorriso sério e discreto. E ele estava mais do que feliz. Ele estava radiante com aquela migalha de amor. Aquele era um retrato da nossa relação. E era torturante para mim. Eu atirei o porta-retratos na parede com a maior força que consegui encontrar em mim, quebrando-o em mil pedaços, como se aquilo pudesse dissipar um pouco da raiva que eu sentia de mim mesmo. Alice e Rafael pularam com o susto e vieram na minha direção. Um caco de vidro tinha voado até o meu rosto e produzido um pequeno corte.

Rafael me pegou nos braços e perguntou:

_Você já tomou banho? Já comeu?

Respondi que não com a cabeça, abatido.

_Então, vamos tomar um banho, eu te ajudo.

_E eu vou preparar alguma coisa pra gente comer._ completou Alice.

Rafael me guiou até o banheiro do meu quarto com cuidado. Ele me ajudou a tirar a roupa e a entrar no box. Era uma cena tão diferente de quando estávamos juntos e ele entrava no banheiro comigo. Não tinha nenhum romantismo ou erotismo ali. Eu me sentei no chão do box e deixei a água cair sobre mim. Ele, vestido, se ajoelhou do lado de fora e começou a lavar meus cabelos e minhas costas. Depois, me ajudou a secar o corpo e vestir uma roupa confortável. Durante todo esse ritual, nenhum de nós disse uma palavra sequer. Não havia necessidade disso.

Quando voltamos para a sala, Alice acabava de nos preparar um macarrão com molho. Sentamos os três no sofá para comer. Já eram quase dez da noite e me lembrei que aquela era uma noite especial.

_Desculpe ter estragado o Reveillon de vocês._ falei envergonhado.

_Você teria feito o mesmo por nós._ respondeu Alice.

Rafael sorriu em concordância. Eu desejei ter os dois para sempre na minha vida. Eu não podia perdê-los como eu perdi o Eric.

O meu celular começou a tocar e o peguei para ver quem era. Pedro. Só então me lembrei que tinha combinado de ir com ele a uma festa de Reveillon.

_Eu não estou com cabeça para ele._ falei.

_Deixa tocar._ respondeu Alice.

_Ele vai insistir.

Ela suspirou, pegou o celular e atendeu.

_Alô?... Não, é Alice... Sim, Pedro... Não, o Bernardo não pode te atender... Porque não... Ele não está no clima para festa... Não adianta insistir... Ah, Pedro, quer saber? Tchau._ e desligou.

Pedro deve ter ficado puto de raiva. Não chegou a ser surpresa para mim quando a campainha tocou alguns minutos depois.

_É o Pedro._ falou Rafael ao atender o telefone.

Eu e Alice suspiramos juntos. Eu não estava com cabeça para o papo machoalfa-homofóbico de Pedro naquele dia. Ele entrou no apartamento feito um furacão. Ele estava muito bem arrumado, todo vestido de branco e com uma camisa marcando seus braços e seu peito. A primeira pessoa para quem ele olhou foi Alice, que se limitou a cruzar os braços e ir para cozinha. Eu estava de cabeça baixa.

_Nós marcamos de ir na festa juntos, tá lembrado? Tá me trocando por eles?

Pedro sempre teve muito ciúme na minha “amizade” com Rafael. Soma-se a isso a dor que ainda sentia pela rejeição de Alice, a frieza dela ao telefone e a sua imaginação fértil, e consegue-se ter uma ideia do seu estado de espírito. Só então eu levantei a cabeça. Ele se assustou com ao perceber o estado em que eu me encontrava.

_O que aconteceu?_ ele perguntou num tom bem mais brando.

Eu não sabia bem como responder a sua pergunta, mas não me importei quando Rafael lhe respondeu a verdade.

_Eric morreu.

Ele piscou e demorou alguns segundos para digerir a notícia.

_Como isso aconteceu?

_Overdose de cocaína_ continuou Rafael _Ele morreu no dia 25, mas nós só descobrimos hoje.

Alice veio e se sentou ao meu lado. Ela passou o braço sobre os meus ombros e fez um carinho nos meus cabelos. Não sei se aquilo despertou ciúme em Pedro, mas ele se inflamou novamente.

_E o que tem isso? Por que vocês estão assim? Parece que é o Bernardo quem está morrendo!

O encarei com raiva e ele sentiu aquilo e recuou um pouco. Alice não se aguentou:

_Você é idiota? Uma pessoa morreu! Você conhecia, era seu colega de sala!

_E daí? Pessoas morrem todos os dias.

_Cala a boca!

_Olha, não desejo a morte de ninguém. Sinto muito pela família, mas nós não temos nada a ver com aquela bichinha.

Aquilo foi estopim. Foi como se alguma coisa dentro de mim explodisse. Eu já tinha passado o dia inteiro represando a raiva de mim mesmo que eu estava sentindo, e aí chega Pedro e fala aquilo. Foi como gota d’água que faz o copo transbordar. Me levantei num só pulo e o encarei com os olhos inflamados. Ele recuou assustado, mas eu não. Rafael tentou me segurar, mas me desvencilhei dele. Naquele momento, não me importei com nada.

_Ele não era um bichinha. Ele era um cara maravilhoso que sofreu mais do que alguém é capaz de suportar de sofrimento na vida. E ele me amava!

_Bernardo..._ pediu Alice, mas não lhe dei atenção.

Pedro me olhava confuso. Ele certamente nunca tinha me visto naquele estado. Eu falava com sangue nos olhos e dentes cerrados, imprimindo raiva em cada sílaba.

_Por meses eu escutei Alice e Rafael dizerem “Pedro é um idiota” e eu dizia que não, que você não era._ eu ri sem graça _Mas você é, você é um idiota!

Seus olhos começaram a brilhar como se lágrimas estivessem prestes a se formarem. Mas eu não liguei. Eu estava com raiva.

_Idiota e burro! Meu Deus!_ dei uma gargalhada raivosa _Você é muito burro! Como você conseguiu passar meses ao meu lado sem desconfiar que eu era gay?!

Os olhos dele se arregalaram como eu nunca tinha visto alguém fazer. Atrás de mim, ouvi Alice e Rafael prenderem a respiração.

_Eu me despedia de você na faculdade e meia hora depois estava na cama com Eric! Percebe como você é burro? Eu me encontrava com ele nos banheiros do prédio, a poucos metros de você, e você nunca desconfiava. Nós nos olhávamos e você nem via! E quando você bateu no pobre do João no dia da nossa calourada?_ voltei a gargalhar maldosamente _Ele não me levou para lá obrigado, Pedro. Eu quis! Eu lhe dei o primeiro beijo. E aquelas meninas todas que eu pegava na sua frente? Tudo mentira!

Ele ouvia tudo com uma expressão de incredulidade.

_E a cereja do bolo: eu namorei com Rafael durante seis meses! Percebe o tamanho da sua burrice? Nós saíamos juntos como se fosse um programa de casais e você nem percebia! Nós corríamos e nos beijávamos escondidos a poucos passos de distância de você. E você morria de ciúme dele! Você nem imaginava! Você é muito burro, Pedro!_ completei rindo.

Ninguém disse nada por alguns segundos. A expressão de Pedro era um misto de surpresa, dor e nojo.

_Você é..._ ele começou, mas não o deixei continuar.

_Sim, eu sou uma BICHINHA!_ gritei _E você é uma pessoa horrível. Um pobre coitado que só sabe destilar suas frases de machismo e homofobia esperando que os outros riam delas. Você é um pobre coitado. Eu devia ter me afastado de você há muito tempo, como me recomendarem, pois evitaria eu ter que ouvir você mal dizer um morto simplesmente porque ele era gay. Quer saber do que mais? Você não é mais bem vindo aqui. FORA DA MINHA CASA!_ gritei com toda a força dos meus pulmões.

Ele não disse nada, apenas se virou e saiu. Eu também não disse mais nada. Eu não queria nem mesmo pensar nas consequências no que eu tinha feito. Eu apenas não aguentava mais. Caminhei até a varanda que havia na sala, me sentei no chão e fiquei observando a cidade. Não demorou muito, Alice e Rafael se juntaram a mim. E assim passamos a virada do ano de 2006 para 2007, calados e sentados juntos observando a cidade.


O ano de 2007 começou estranho para mim. Tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.

Na primeira semana de janeiro, eu viajei com minha família para uma praia pernambucana, mas eu não aproveitei direito. Enquanto eu os via aproveitar o céu aberto e o mar azul, eu me deitava numa espreguiçadeira e ficava refletindo sobre tudo o que estava acontecendo comigo.

Em primeiro lugar, a morte de Eric continuava a assombrar meus pensamentos, mesmo já passado quinze dias. Eram duas dores diferentes: saudade e arrependimento. A saudade não era só do corpo dele, mas dele e da fuga da realidade que ele me proporcionava. Por outro lado, o arrependimento era de ter dado a ele tão pouco em troca. Por mais que eu quisesse expulsar aquela ideia da cabeça, eu não conseguia parar de pensar que eu poderia ter salvado ele. Eu poderia ter me apaixonado por ele, ou ao menos ter lhe oferecido uma amizade plena. Talvez assim eu teria descoberto mais cedo sobre o seu problema e o teria ajudado. Ah, se eu pudesse voltar no tempo...

Em segundo lugar, havia Pedro. Eu continuava com raiva dele por ter mal dito Eric, mas essa raiva começou a dar lugar a paranoia. E se ele contasse para o resto dos nossos amigos? E se eu virasse a nova piada da turma? Isso foi me criando um medo imenso sobre o que aconteceria quando as aulas voltassem. Porém, eu não estava arrependido de ter dado um basta naquela situação. Eu não conseguia mais aguentar mais suas piadinhas homofóbicas, por mais que eu o considerasse um amigo no fundo. Contudo, eu deveria ter dosado minhas palavras, com certeza. Ah, se eu pudesse voltar no tempo...

Em terceiro lugar, havia Rafael. O luto é engraçado. Se pela própria definição ele é uma coisa ruim, ele tem o lado bom de unir as pessoas. Eric, indiretamente, tinha nos unido uma vez, e agora a sua morte nos unira novamente. Não, não voltamos a namorar, isso nem mesmo entrou em discussão, mas voltamos aos tempos de amigos como éramos antes de começarmos a namorar. Nós andávamos conversando bastante por celular e MSN nos últimos dias. O motivo disso é que tínhamos uma dor parecida que só nós dois podíamos entender: o arrependimento de não ter ajudado Eric quando ele precisou. Rafael já tinha me contado que tinha visitado Eric dias antes e percebeu que ele não estava muito bem. Não sei qual de nós dois carregava o maior peso nas costas neste sentido, mas era reconfortante não ter que carregá-lo sozinho.

Alice não aprovava o que estava acontecendo. Quando voltei de viagem, nos sentamos numa praça para conversar.

_Isso não é saudável, Bernardo.

_O que exatamente não é saudável?

_O relacionamento que você e Rafael estão criando. Vocês não são amigos, vocês são apaixonados um pelo outro. Vocês estão carregando um ao outro sem perceber que vão acabar ficando juntos de novo.

_E isso é ruim?

_Uai, me diga você. Você já resolveu os problemas que ele te apontou?

Abaixei a cabeça em resposta. Não, eu ainda era o mesmo, com meus medos e minhas mentiras. Em vez de ajudar, a morte de Eric só fez agravar o problema. Era como se eu tivesse perdido a única pessoa que realmente me entendia. Ele era a minha muleta. Ele, de um jeito torto, era quem me ajudava a caminhar pelo meu caminho tortuoso cheio de erros.

_Então,_ ela continuou _vocês vão cair no mesmo erro.

_Não é bem assim. Não acho que vai acontecer da gente ficar junto de novo. Pelo menos, não agora.

_Por que?

_Sei lá. Com a morte do Eric, é como se alguma coisa entre nós tivesse quebrado, sabe? Nós dois tratamos ele mal, cada um do seu jeito, e agora o fantasma dele paira sobre nós.

_Isso é bobagem.

_Não, não é. Não ria, mas eu não consigo pensar em Rafael como namorado agora porque eu vejo como uma traição ao Eric.

_Bernardo..._ ela falou me reprovando.

_Eu sei, não é um pensamento saudável, mas é o que eu sinto agora. Não dá pra ficar com o Rafael. E posso estar muito enganado, mas acho que ele sente a mesma coisa

Ela deu um longo suspiro e desviou o olhar de mim.

_Vou dizer isso como amiga, não se ofenda.

_O que?

_Você tem uma doença, Bernardo. Não é saudável o modo como você se vê e leva a vida. Você deveria pensar seriamente na possibilidade de começar a se consultar com um psicanalista.

Eu já tinha pensado na hipótese. Eu cheguei a um ponto onde eu precisava de ajuda profissional, mas não era o momento para isso.

_Eu sei, eu já pensei nisso. Mas não agora.

_Por que?

_Tem muita coisa acontecendo. Eu preciso por minha cabeça no lugar pra conseguir conversar com alguém sobre isso. No momento, está tudo uma bagunça aqui dentro._ falei apontando a cabeça.

_Se você diz...

[...]

Eu e Rafa jogávamos conversa fora sentados no chão do meu quarto. Não tinha ninguém na minha casa, mas eu não me preocupava com isso. Acho que por ter a noção que não aconteceria nada entre nós, eu perdi o medo de alguém encontrá-lo ali comigo, pois não teria nada para ser flagrado. Era como se eu levasse Alice ou Pedro lá. Lógico, não esperava que minha irmã entrasse no meu quarto sem bater:

_Bernardo, cadê a câme...

Eu e Rafael nos assustamos e demos um pulo de onde estávamos sentados.

_Eu já falei pra você não entrar aqui sem bater!_ falei bravo.

_Ai, que tudo!_ ela falou animada me ignorando _Vocês voltaram?

Rafael ficou corado de vergonha e eu devo ter ficado também.

_Não, Laura. Nós somos apenas amigos._ falei rapidamente _Não vê que estamos vestidos dessa vez?

Nós rimos e relaxamos.

_Que desperdício. Você tem que dar um jeito no Bernardo, Rafa. Ele anda todo cabisbaixo pelos cantos ultimamente.

_Bom, eu posso ajudá-lo como amigo._ ele respondeu rapidamente.

_Vocês quem sabem._ respondeu _Só vim pegar a câmera com as fotos da viagem.

Ela logo encontrou a câmera e saiu do quarto mais rápido do que entrou. Depois que ela se foi, eu e Rafa passamos um bom tempo em silêncio. Era o constrangimento pelo fato da minha irmã ter comentado sobre a nossa proximidade. É lógico que pensávamos naquilo, mas nunca tínhamos tido uma conversa sobre o assunto.

_Alice acha que estamos cometendo um erro por querermos sermos amigos depois de tudo._ comecei.

A gente não se olhava. Estávamos encostados na parede lado a lado.

_Talvez..._ ele falou _Como isso aconteceu?

_Eric nos uniu de novo.

Nós dois rimos por instante, antes de mais um longo silêncio.

_Nós não mudamos..._ ele comentou.

_Sim... Eu achava que eventos extremos, como a morte de alguém próximo, mudava a gente, mas tô vendo que não é bem assim.

_Muda sim, só não podemos esperar uma coisa muito repentina. Acho que a morte do Eric está mudando a gente sim, mas é um processo lento.

_Estamos mudando para melhor ou para pior?

_Não sei._ respondeu pensativo.

Eu ainda amava Rafael. Muito. A presença dele me causava cócegas no estômago, a ausência dele me causava aflição e o cheiro dele era como uma droga para o meu cérebro. Mas agora era diferente. Tinha alguma coisa entre a gente. Não nos tocávamos. Não trocávamos olhares apaixonados, por mais que ainda fossemos apaixonados um pelo outro. Éramos como um velho casal que se acostumou a presença um do outro e se aquietou. Perdemos a chama.

_Rafa...

_Diga.

_Não ria. Você sente, de vez em quando, como se o Eric ainda estivesse aqui...

_Entre nós._ ele completou rindo _Sim, eu sinto.

_É estranho._ falei rindo também.

_A última travessura do Eric: ele nos separou.

_Ele sabia das coisas._ respondi rindo.

Ríamos, mas não havia alegria ali. Estávamos tristes, estávamos de luto. Nos prendemos àquela amizade inesperada porque não havia no que mais nos segurar. Tínhamos que nos abraçar para não deixar que nos afogássemos num mar de agonia silenciosa como Eric.

E foi assim que o meu ano começou. Quando Rafael terminou comigo, eu tinha dito que aquele não tinha sido o fundo do poço, apenas o começo de uma longa descida. A morte de Eric tinha sido só mais um capítulo. O afastamento simbólico de Rafa era mais um. Quando Alice comentou sobre o psicanalista, ela pensou em depressão. Eu não pensei, mas talvez ela tivesse razão. Muitas coisas começaram a ser tiradas de mim e eu não tinha ninguém a quem culpar, com quem gritar para extravasar minhas frustrações. Não sei em que momento aquilo começou a tomar conta de mim, mas acho que foi mais ou menos por ali, após a morte de Eric. Por fora, eu ainda estava bem, praticava todas as minhas atividades escolares e sociais normalmente. Mas por dentro, alguma coisa estava mudando, como bem observou Rafael. E para pior. Por mais calmo e centrado que eu possa parecer, minha cabeça sempre foi um turbilhão de coisas. Meus pensamentos estavam sempre a mil, seja na forma de paranoia ou felicidade. Eu tinha essa coisa muito particular de me autoanalisar e me autoquestionar sobre as minhas atitudes, mas eu fui perdendo isso. Por dentro, minha cabeça começava a se acalmar e a apatia começava a tomar conta de mim. Como eu disse, foi uma coisa muito sutil, que começou como um pequeno cansaço mental. Mas aquilo ia se apoderar de mim...

Eu acho que posso classificar o ano de 2007 como o pior da minha vida. E ele foi também, sem dúvida, um dos mais cruciais para eu me tornar a pessoa que sou hoje.

[...]

Quando as aulas retornaram, em março, eu ainda estava com medo de como seria reencontrar Pedro. Eu tinha muito medo do que ele ia contar para as pessoas. Para adiar um pouco mais o meu sofrimento, ele faltou ao primeiro dia de aula. Rafael, apesar de mais próximo de mim novamente, se sentou com seus novos amigos, Marcos e Carolina, mas não me ressenti. Sentei ao lado de Alice e encarei a cadeira de Pedro vazia.

_Você vai ter que conversar com ele._ ela falou ao me pegar olhando.

_Eu sei, mas não sei se ele vai querer me ouvir.

_Uai, faça ele te ouvir na marra.

_Eu nem mesmo sei o que dizer. Eu não estou exatamente arrependido. Eu só queria que ele não dissesse nada pra ninguém._ falei sussurrando a última parte.

_Ei, vocês dois, prestem atenção aqui, é importante._ falou o professor.

Era o Heitor, coordenador do curso. Eu e Alice viramos para ele constrangidos. Ele começou a falar da importância do nosso terceiro período, que deveríamos a começar a pensar em estágios e intercâmbios, mas eu me desliguei. Minha cabeça estava longe. Eu pensava no quão estranha era aquela sala sem Eric. Todo mundo já sabia o que tinha acontecido, e ouvi algumas pessoas comentando. Mas todos seguiram com a vida. Foi como se um desconhecido tivesse morrido no outro lado do mundo. Aquilo soava tão mal para mim...

[...]

_Vem, vamos conhecer nossos calouros!_ falou Rafael.

Nosso curso só tinha uma entrada por ano, no início do ano. Assim, aqueles eram nossos primeiros calouros. Eu não estava muito animado para passar trote nos outros, apesar de aquele dia não ser do trote propriamente dito. Era só um primeiro contato. Mas eu também não estava no clima para conhecer gente nova. Deixei que Rafael e Alice me levassem.

Chegando na sala deles, me deparei com versões mais novas de nós mesmos. Apesar de, na média, só um ano mais novos que a gente, o que era quase imperceptível, a cara deles entregava que eram calouros. Eu via medo nos olhos deles, eles se encolhiam com nossa presença, mesmo que nós não prendêssemos fazer mal algum a eles. Nós, por outro lado, tínhamos o peito arfado e um ar de confiança que se adquire após se acostumar com algum lugar, após tornar aquele lugar seu habitat natural.

Nenhum daqueles calouros me chamou a atenção de alguma forma, a não ser um. À primeira vista, não reparei em ninguém em especial, mas depois, observando cada um separadamente, meus olhos pararam naquele garoto. Foi magnético. Ele era baixinho, muito branco, rosto magro e tinha pelos bem lisos no braço. Seu cabelo era castanho escuro e liso, apesar de bem bagunçado. Ele me atraiu sexualmente. Eu quis muito ter aquele menino. Acho que eu o encarei por tanto tempo, que ele olhou para mim de volta. Ele entendeu o que eu queria. E ele também queria, pois abriu um sorriso muito discreto com o canto da boca. E ele tinha aqueles olhos... Eram tão verdes, tão vivos! Mas tinha alguma coisa especial neles, como se fosse um fogo, um brilho diferente. Eu não conseguia ler seus olhos, mas se conseguisse, eles diriam:

“Eu vou fazer da sua vida um inferno.”


Aquele menino não saiu da minha cabeça pelo resto do dia. Quando voltamos para aula, não consegui prestar atenção em nada do que estava sendo dito. Não, não era paixão à primeira vista, ou muito menos amor. Era tesão. Eu queria demais aquele menino. Desde a morte de Eric, ele tinha sido o primeiro cara que tinha despertado alguma coisa em mim. A melhor definição que eu tenho para ele é “fofo”. Diferente de Eric e Rafael, aquele garoto não exalava uma sensualidade nata. O fato dele ser baixinho, magrinho, branquinho, olhos verdes e tal lhe dava um aspecto quase infantil, no bom sentido. A vontade que ele dava era de colocar ele no colo e morder ele todo. Não sei explicar bem, ele não era o meu “tipo”, mas alguma coisa nele me arrebatou. Só que eu não sabia nem seu nome. Presumi que eu teria que esperar até o trote para descobrir.

[...]

No dia seguinte, além do tal garoto, quem dominava meus pensamentos era Pedro. Ele não iria faltar dois dias seguidos. Com certeza eu teria que encará-lo e ter uma conversa séria com ele. Eu não sabia o que falar e muito menos o que ele ia falar. A ansiedade me corria vivo.

Eu tinha todo um plano para chamá-lo para conversar na hora do intervalo, mas o destino não gostava quando eu fazia planos. Ao chegar à faculdade, senti vontade de usar o banheiro. Entrei, usei a cabine e quando saí, Pedro tinha acabado de entrar. Nós dois nos encaramos sem reação. Meu coração pareceu ter parado por alguns segundos. Ele me olhava com olhos indecisos. Por fim, se virou para sair, mas eu o chamei:

_Espera.

Ele esperou, mas não se virou para mim. Como ele não pareceu que ia fazer isso, eu decidi que ia ser melhor começar a falar, mesmo sem ter um discurso ensaiado.

_Eu quero te pedir desculpas, Pedro.

Eu não tinha mentido sobre uma vírgula do que tinha dito a ele na noite de ano novo. Aliás, eu ainda não tinha engolido sua ofensa a Eric. Mas alguém tinha que dar o braço a torcer primeiro.

_Eu não devia ter mentido pra você e não devia ter falado com você daquele jeito.

Ele não me respondeu, apenas saiu do banheiro como se nada tivesse acontecido. Eu conhecia Pedro. Ele estava com muita raiva. Ele é falante, elétrico e passional, se ele ficou em silêncio, é porque ele estava com raiva de mim. E não posso dizer que aquilo não me machucou. Apesar de todos os defeitos que ele tinha, e eu tinha consciência da gravidade deles, eu gostava dele. Ele era uma boa pessoa, só que andou com as companhias erradas por boa parte da vida e acabou formando uma mente muito estreita. Ele só precisava de alguém ao seu lado para mostrá-lo um novo mundo. E é por isso que eu sempre insisti no seu caso com Alice, porque ela era a pessoa ideal para essa tarefa.

Quando cheguei na sala, ele estava sentado no canto oposto ao meu, em vez de perto de mim. Ali eu percebi que não tinha mais volta. Nossa amizade sempre foi muito frágil devido à rede de mentiras que eu nos envolvi. Era como um vaso da mais deliciada porcelana que caiu no chão e se dissolveu em mil pedaços. Apesar de tudo, eu o considerava um amigo. Só que ele não me considerava mais um amigo.

[...]

Na sexta-feira daquela semana, aconteceu o nosso trote. Eu não estava muito animado para aquele tipo de coisa por vários motivos. Primeiro, eu tinha péssimas lembranças do meu trote. Segundo, eu acho uma tradição idiota. E, terceiro, eu ainda não estava no clima. Certo, eu não estava mais de luto pelo Eric, mas tampouco eu tinha superado tudo o que aconteceu. Estava longe disso. Acho até que nunca superei totalmente. Enfim, só tinha uma coisa que me animava no trote: me aproximar daquele garoto que tanto mexia comigo.

Alice achava que era uma tradição idiota também, por isso preferiu ficar de fora. Assim, eu acompanhei Rafael, Pedro e outros colegas nossos na tarefa. Obviamente, Pedro não me dirigia à palavra ou mesmo chegava perto de mim. Enquanto arrumávamos as coisas que íamos usar, Rafael sentiu o clima pesado.

_Relaxa, ele precisa de um tempo pra digerir tudo. Você soltou muita informação de uma vez._ ele falou.

_Eu sei. Mas acho que não vai ter tempo que basta para ele digerir tudo. Eu não apenas contei tudo pra ele, Rafa, eu o chamei de idiota com todas as letras. Eu o expulsei da minha casa.

_Você não sabe. Talvez ele esteja tentando analisar tudo o que está acontecendo.

_Duvido muito. Eu conheço ele, ele não está fazendo birra. Ele está muito puto da vida comigo.

_Então, não tem nada o que você possa fazer, você já pediu desculpa. Forçar uma conversa agora só iria piorar as coisas. Tenta seguir em frente.

Ele deu um daqueles sorrisos motivadores que ele sempre me dava após um conselho, e eu sorri em resposta. Durante todo esse papo, ele manteve a mão no meu ombro. Era uma coisa que ele fazia com todo mundo, então nunca liguei que alguém fosse fazer uma conexão estranha com aquele gesto seu. Contudo, Pedro agora sabia tudo o que tinha acontecido entre nós dois. Quando eu desviei o olhar para ele, ele nos olhava com uma inconfundível expressão de nojo na cara. Aquilo me machucou de um jeito novo e muito mais doloroso do que qualquer outra vez. Até aquele momento, todas as pessoas que haviam descoberto sobre mim, Alice, Rafael, Eric e minha irmã, tinham se mostrado compreensíveis, no mínimo. Era a primeira vez que eu encontrava o nojo e a repreensão no olhar de alguém por eu ser gay. E era alguém que eu gostava muito. Por reflexo, agitei meu ombro e soltei a mão de Rafael. Ele me olhou confuso e acompanhou o meu olhar até encontrar o de Pedro. Rafa não se intimidou, estufou o peito e o encarou de volta. Os dois não se gostavam, e agora é que não se suportariam mesmo. Pedro saiu da sala como um foguete.

Eu fiz força para segurar o nó que se formou em minha garganta. Era aquilo que eu mais temia. A visão das pessoas sobre mim mudando ao descobrir que eu era gay. Era o meu pior pesadelo se tornando realidade.

_Deixa ele pra lá._ falou Rafael percebendo meu estado _Vamos achar nossos calouros.

E assim eu fiz. Não que por um segundo sequer eu tivesse esquecido o que vi em seus olhos, mas eu não poderia deixar que as pessoas percebessem. Se alguém chegasse a perguntar a Pedro porque eu e ele nos afastamos, eu duvido que ele mentiria pra me proteger. Eu teria que ser extra cuidadoso.

[...]

Antônio. Era esse o nome do menino que dominou meus pensamentos no dia anterior. Como esperado, ele aguardava com o resto da turma pelo seu trote. Assim que eu entrei na sala, nossos olhares se cruzaram e eu senti uma corrente elétrica percorrer meu corpo. Só de vê-lo, eu senti meus pelos se arrepiarem e meu pau dar uma pequena fisgada dentro da calça.

Rafael era quem fazia as honras de escrever apelidos pejorativos na testa de cada um deles. Ironicamente, ele pediu a minha opinião quando chegou a vez do tal Antônio. Confesso que me senti um pouco estranho de ver os dois tão perto. Não tinha lógica, mas o sentimento era um pouco de trair Rafael. Não tínhamos mais nenhum relacionamento romântico e concordamos que não havia espaço para aquele tipo de coisa entre a gente no momento, então eu poderia muito bem me envolver com outras pessoas. Mas a minha cabeça não é tão preto no branco assim. Tive que fazer um esforço redobrado para parecer tranquilo e esperto ao escolher um apelido para ele.

_Hum... Não sei. Ele é baixinho e tem esse cabelo liso. Parece um playmobil.

Rafael riu e não hesitou em escrever “playmobil” na testa do menino. Nós três rimos. Rafael passou para o próximo da fila, e, antes de segui-lo, troquei mais um olhar com aquele garoto. Só que dessa vez, ele sorriu para mim. Ele não mostrava os dentes quando sorria, mas seu sorriso era largo e seus olhos chegavam a se fechar completamente no movimento. Estava claro para mim que ele queria o que eu queria.

[...]

A calourada aconteceu no prédio em que estudávamos no dia seguinte. Eu acabava de contar para Alice o que tinha acontecido com Pedro.

_Eu quero ouvir um pedido de desculpas sincero seu por ter me empurrado para esse cara._ ela falou.

_Me desculpa, mas..._ ela me interrompeu.

_Nem ouse tentar arranjar desculpas pelo comportamento dele. Aconteceu o que eu sempre te disse que aconteceria, não? Ele não gosta mais de você.

_Mas o modo como eu falei...

_Sim, você poderia ter escolhido um melhor momento e melhores palavras, mas o resultado seria o mesmo. Ele é homofóbico, Bernardo, ele não gosta de gente como você. Ele te quer morto, eliminado da face da Terra pelo bem dos olhos dele.

_É, eu sei...

Eu tentei me divertir naquela festa, até troquei um olhares com Antônio, mas nada conseguia tirar Pedro da minha cabeça. O modo como ele me olhou, o modo como ele estava me tratando era uma tortura psicológica para mim. Por mais que se pudesse supor que ele reagiria assim ao examinarmos sua personalidade, dentro de mim sempre houve esperança que podia ser esperança. Eu achava que ele gostava tanto de mim, que passado o choque inicial, ele saberia lidar com a questão. Juntos, encontraríamos um equilíbrio para nossa amizade. Mas não, nossa amizade estava acabada.

Aquela noite estava sendo um fracasso para mim. Rafael estava numa roda de conversa com seus novos amigos e não me dava atenção, e eu não podia culpá-lo, porque eu não estava sendo a melhor das companhias aqueles dias. Toda hora meu olhar encontrava o de Pedro, que estava sempre cheio de raiva e nojo. Eu tinha perdido Antônio de vista. Alice conversava animadamente com Marcos, o novo amigo de Rafa, e assim tinha me abandonado. E para coroar a noite, eu não estava bebendo por estar com o carro da minha mãe. Para mim, a festa tinha chegado ao fim.

Sem me despedir de ninguém, fui saindo do prédio, mas acabei esbarrando em Antônio. Sorri para ele, que também sorriu em resposta.

_Antônio, né?_ falei me fingindo de desentendido.

_Pode me chamar de Tom.

_Eu gosto de Tom._ respondi.

Era visível que ele já estava um pouquinho bêbado. Vi ele como um replay do que tinha sido eu na calourada do ano anterior.

_Bernardo._ completei.

_Eu sei, eu perguntei por aí.

Ele sorriu malicioso quando falou isso e eu me enchi de tesão. Naquele momento, Pedro magicamente sumiu da minha cabeça e eu me senti muito bem com aquilo.

_Então, já vai embora?_ perguntou.

_Sim. Tá muito desanimado aqui.

_É, também tava pensando em ir embora.

_Bom, eu tô de carro, você quer uma carona?

Eu não sei como tive coragem de falar aquilo, ainda mais sem nenhuma ajuda do álcool. Foi impossível não lembrar de Eric, e de como tudo tinha começado com a carona que ele me deu no dia do trote. Mas ele pareceu ter gostado do que ouviu, pois voltou a sorrir.

_Eu não vou te atrapalhar?

_De jeito nenhum.

_Então vamos.

Caminhamos lado a lado até o estacionamento enquanto íamos conversando banalidades sobre o curso, as disciplinas e os professores. O estacionamento estava muito escuro, e Tom viu uma oportunidade ali. A sua cara de inocente enganava muito bem. Ele me puxou pela camisa, me jogou contra um o porta-malas de um carro, se agarrou em mim e prendeu sua boca com a minha. Sua língua invadiu a minha boca com pressa e tesão. Passado o susto, eu comecei a corresponder seu beijo. Eu agarrei a sua cintura e nossos paus começaram a se esfregar dentro das nossas calças. Não sei quanto tempo perdemos ali, mal parando para respirar. Eu também não sei quanto da cena Pedro tinha assistido.

_Que merda é essa?!

Eu e Tom nos soltamos imediatamente e olhamos para o dono da voz. Pedro nos encarava com um olhar de raiva e as mãos cerradas. Estava escuro, mas eu conseguia ver que a expressão em seu rosto era de pura raiva e nojo.

_Olha, cara, não é nada disso que você está pensando. A gente só tava..._ Tom começou a falar, atropelando palavras no desespero.

_Deixa que eu cuido disso, vai embora._ falei.

Ele não pensou duas vezes e sumiu na escuridão. Eu e Pedro nos encaramos no escuro. Eu estava com muito medo, mas tentava não deixa transparecer.

_Você não vai contar sobre isso pra ninguém._ falei reunindo coragem.

Naquele momento, meu maior medo era que ele saísse por aí espalhando que eu era gay. Eu achava que passaria a ser desprezado e ignorado pelos meus colegas, assim como fizeram com Eric, embora hoje saiba que tratavam ele assim não por causa da sua sexualidade, mas da sua personalidade. Eu não sabia se aguentaria se isso acontecesse.

_Por que eu não deveria?_ ele perguntou com raiva na voz.

_Porque se você contar, você vai ter que se explicar como nós dois éramos tão próximos durante um ano. As pessoas vão fazer conexões...

Ameaçá-lo assim não era a melhor estratégia, mas era tudo o que vinha a minha mente para me proteger. Ele não reagiu nada bem, partiu pra cima de mim e eu recuei com medo. Eu parei espremido entre um carro e ele a poucos centímetros.

_Você tem coragem de me ameaçar?!

_Eu faço o possível para me proteger.

_Sua bicha nojenta!

Eu só vi o momento em que ele levantou o braço e punho desceu com força em minha direção. Só deu tempo de desviar um pouco do soco endereçado ao meu rosto, que acabou pegando no meu ombro. Com o impacto, eu bati as costas num carro e caí sentado no chão. Doeu muito, ele era bem forte, mas era a surpresa do seu ataque que me tirava o ar. Eu nunca imaginei que Pedro chegaria àquele ponto, de me bater. Ele realmente não era a boa pessoa que eu achava que ele era. Meus olhos se encheram de lágrimas ao pensar naquilo. Mesmo no escuro, eu pude notar que seu olhar vacilou, como se só então ele tivesse se dado conta do que tinha feito.

_Eu menti pra você sobre muita coisa, Pedro._ eu falei com a voz embargada _Mas sobre uma coisa eu sempre fui sincero: eu sempre te considerei um amigo. Eu te ajudei em todas as vezes que pude. Eu coloquei você na frente de muita gente que me queria muito melhor, como o Eric. Eu briguei quando as pessoas falavam mal de você pelas costas. Por mais que Alice e Rafael me falassem para me afastar de você, porque você reagiria muito mal quando descobrisse, eu temei e insistia que você era uma boa pessoa. Mas eu estava errado, Pedro. Você não é uma boa pessoa. E você não é meu amigo. Vai embora, por favor.

Ele esperou por mais alguns segundos. Naquele ângulo que eu estava, com ele acima de mim, eu não conseguia ver seu rosto no escuro, então não sei exatamente como ele reagiu àquilo. Só consegui ver seus ombros abaixarem, como se desfizessem a guarda. Ele se virou e foi embora, enfim.

Eu fiquei por mais algum tempo ali, caído naquele estacionamento escuro e chorando baixinho. Mais do que por Pedro, eu chorava por mim mesmo. Pedro tinha nojo de mim, do que eu era, e eu tinha também. Minutos antes, eu me agarrava com um cara que tinha acabado de conhecer num local público, onde qualquer um poderia nos pegar. Eu me senti imundo, do mesmo jeito que me senti na primeira vez que transei com Eric. O soco de Pedro doía na minha alma. Era o soco de um amigo. Aquilo era tão forte, tão pesado para mim.

E assim foi mais uma porrada que a vida me dava, me arrastando cada vez para mais fundo daquele poço sem fim.


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Ficha do conto

Foto Perfil contosdelukas
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Nome do conto:
Bernardo [38/39/40] ~ Luto!

Codigo do conto:
217912

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
12/08/2024

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1

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