Eu continuei com minha rotina normalmente. Eu ia pra faculdade, voltava pra casa, vagabundeava na internet e ia dormir. Todo santo dia, inclusive fins de semana. Minha vida social simplesmente deixou de existir. Eu vivia mais recluso do que costumava ser até nos meus primeiros anos de adolescência.
Eu ainda não tinha tido a conversa com a minha mãe, e essa era a única coisa que me sacudia daquela apatia. Mas o que pensar nessa conversa me causava era puramente aflição e medo, então não era uma coisa boa. Minha mãe pirou quando chegou de viagem e viu meus ferimentos. Ela acreditou quando falei que tinha sido assaltado. O meu pai somente abaixou os olhos enquanto eu contava, se limitando a simplesmente não negar. Ele não falou nada, mas eu sabia que o tempo que ele me deu estava correndo. Eu logo teria que contar à minha mãe que era gay.
No que diz respeito a Alice, Rafael e Pedro, as coisas estavam um tanto quanto nebulosas. Cada um deles reagiu de um jeito diferente ao meu ataque de raiva no hospital.
Alice começou a forçar uma reaproximação. Ela deixou Marcos um pouco de lado e passou a ficar comigo durante todo o intervalo. Ela conversava comigo, mas eu respondia apenas monossilabicamente. Eu não estava no clima pra jogar conversa fora, ou muito menos dar conselhos. Era triste, ela conversava praticamente sozinha durante todo o intervalo, enquanto o namorado a olhava com cara de desaprovação. De vez em quando, nossos olhares se cruzavam. Eu sabia que ele não gostava de mim. Ele não gostava de como eu passei a tratar Alice ou de como magoei Rafael. Isso não me afetava tanto, nunca gostei dele, seja como namorado de Alice ou amigo de Rafael.
Pedro queria se aproximar, mas não sabia como. Chegava a ser cômico a sua falta de jeito para lidar com a questão. Ele chegava e me dava bom dia, o que eu nem sempre respondia. Ele não voltou a sentar-se ao meu lado, mas se aproximou mais do que onde vinha se sentando nos últimos meses. Nós não conversávamos, mas ele se dirigia a mim se estávamos na mesma roda de conversa, o que eu também nem sempre respondia. Às vezes eu o pegava me olhando. Quando eu o olhava de volta, ele rapidamente disfarçava.
Eu entendia Pedro. Ele sentia a minha falta, afinal, eu era seu melhor amigo. Ele se acostumou com a minha presença. Ainda mais nos últimos meses do ano anterior, quando saíamos pra baladas juntos. Então, veio o choque de descobrir que eu era gay. Ele ainda me tinha como seu melhor amigo, mas eu lhe causava repulsa. Era uma situação limite, onde sentimentos conflitantes atormentavam a sua cabeça. O seu afastamento, eu penso, não foi nem tanto em razão de descobrir a verdade por si só, mas por ele não saber como agir ou o que pensar de mim. Só que a partir da minha queda na escada, alguma coisa acordou nele. Ele não tinha mudado da noite pro dia. Ele não me olhava no hospital como quem queria voltar a ser o meu melhor amigo naquele exato instante. Mas alguma coisa começava a mudar na sua cabeça, os sentimentos bons que ele tinha por mim começavam a pesar mais do que os maus na sua balança. Sim, eu poderia ter facilitado bastante as coisas. Pra começo de conversa, eu poderia ter lhe contado tudo de uma maneira mais digerível e não ficar provocando como fiz. Mesmo esse mal já estando feito, eu poderia ter sido mais compreensível e deixado que ele se aproximasse de mim novamente. Eu poderia ter lhe dado abertura para que ele voltasse a ser meu amigo. Mas eu não quis. Naquele momento, nem mesmo uma possível volta da minha amizade com Pedro era capaz de me arrancar do estado de apatia em que me encontrava.
Rafael era o caso mais complicado dos três. Sim, ele ainda me amava. Sim, ele ainda se preocupava comigo. Mas ele cansou. Eu consegui fazer Rafael se cansar de mim. Ele não tinha mais ânimo pra correr atrás de mim, pra saber se eu estava bem, pra saber se eu já estava emocionalmente bem resolvido pra amá-lo de volta. Hoje, olhando pra trás, eu percebo o quanto aquele meu ataque de raiva no hospital tinha sido injusto com ele em particular. Eu tinha motivos pra ficar com raiva de Pedro e eu tinha motivos pra me magoar com o afastamento brusco de Alice. Mas Rafael não me fez nada. Ele simplesmente seguiu em frente. Quem era eu pra impedi-lo de seguir com a vida? Ele se afastou, ok, mas era tão injusto assim que a namorada dele não quisesse seu ex-namorado por perto? São coisas que penso hoje. Na época, o mesmo ressentimento que eu tinha de Alice, eu tinha dele também.
Se antes Rafael ao menos era educado e amigável comigo, tudo mudou a partir daquele dia no hospital. Eu não era nem mais um colega pra ele, eu era um fantasma, uma sombra. Ele passava por mim sem nem mesmo me olhar. Nas rodas de conversa, ele fazia questão de me ignorar completamente. E ele ficou bem mais carinhoso com Carolina. Não, ele não estava fazendo um joguinho de ciúme pra me atingir. O que eu percebi era que, por respeito a mim, ele sempre se conteve com ela quando eu estava presente. Claro, eles se sentavam juntos, conversam ao pé do ouvido, riam juntos, esse tipo de coisa. E elas sempre foram o bastante pra me causar ciúme. Eu o amava ainda, apesar de tudo, então era mais que compreensível sentir ciúme. O que passou a acontecer foi a troca de beijos apaixonados, os abraços por trás na hora do intervalo, ir embora de mãos dadas. Era o tipo de coisa que ele sempre quis fazer comigo, mas eu nunca permiti. Carolina era como namorada, o que eu nunca pude ser como namorado, e essa era uma conclusão dolorosa. Então, claro, com essa nova situação veio o ciúme elevado à enésima potência, mas veio também todo o peso do arrependimento. Não o arrependimento de querer voltar no passado e fazer tudo diferente, mas o arrependimento de quem sabe que as coisas estão como estão por minha culpa unicamente. Rafael me amava, mas eu o magoei. Como era previsto por qualquer um que visse nossa relação por fora, ele chegou ao ponto de esgotamento. Rafael cansou de me amar.
_Tudo certo, então, né, Bernardo?_ perguntou Paulinho.
_Ah, cara, não sei.
Era a semana anterior ao feriado prolongado do primeiro de maio. A turma tinha organizado a ida a um sítio nas margens do lago de Furnas. A sala toda ia. Paulinho era o responsável. Paulinho era a mistura meio a meio de Rafael e Pedro. Ele era falante, expansivo, alegre, mas também meio bobo, chegado às piadas sem graça de Pedro, ainda que eu não visse traços homofóbicos fortes nele. Ele só fazia piadas com o assunto como se não houvesse nenhum problema.
_Mas você já pagou.
_Eu sei...
Tudo estava sendo organizado há meses, e pagamos tudo no início do ano, numa época onde a minha vida ainda não estava tão bagunçada e eu me animava para esse tipo de plano. Mas agora? No meu estado de espírito? Alguma dúvida que seria uma péssima ideia?
_Faz o seguinte._ ele falou _Vai com seu carro, se você não curtir, você volta antes. Que tal?
_Pode ser.
Confirmei minha presença, mas já pensava num jeito de vir embora mais cedo. Na sexta-feira à noite, peguei a estrada rumo ao sul de Minas com mais dois colegas, que disseram que dariam um jeito caso eu quisesse voltar antes. Alice e Pedro me convidaram para ir com eles, mas eu recusei. Eu passei a imaginar um jeito também de passar o fim de semana prolongado o mais afastado deles o possível.
Era uma casa enorme com oito quartos na margem de um dos braços da represa. Mal se via o outro lado da margem. Era uma vista de tirar o fôlego. Todos nós nos dividimos em quartos para mulheres e homens. A cozinha da casa só tinha o básico do café da manhã, o resto era só bebidas, material pra churrasco e acompanhamento pra churrasco. A ideia do passeio era justamente e beber e ficar muito louco. E a beira de uma represa é o local ideal pra um grupo de jovens bêbado? Lógico que não, mas não tínhamos nem vinte anos ainda e éramos inconsequentes. Queríamos nos divertir, ou melhor, eles queriam se divertir, porque eu...
Quando chegamos no início da madrugada de sexta, estávamos todos cansados pela viagem de algumas horas e concordamos em irmos dormir. Me acomodei num colchão no chão e apaguei. Quando acordei no sábado pela manhã, me surpreendi ao ver que era Pedro que estava ao meu lado. Pra quem era homofóbico até pouco tempo atrás, dormir ao lado meu lado era um grande avanço. Mas eu encarei como ele forçando uma reaproximação, não exatamente aceitando minha homossexualidade. Me levantei com cuidado pra não acordar mais ninguém e saí do quarto. Aparentemente, eu era o único que tinha levantado, pois não havia ninguém na cozinha ou na sala. Peguei alguma coisa pra comer e fui pra beira do lago. Fiquei lá por não sei quanto tempo, admirando a vista e pensando na minha vida.
Eu tinha me tornado uma pessoa completamente diferente de quem eu era. Eu não me reconhecia mais. Isso era como tirar meu chão. Eu sempre fui um tanto quanto centrado e metódico, eu gostava de saber pra onde estava indo e como. Por isso, eu fiz inúmeros planos de como a minha vida seria. Só que quando você muda, seus planos mudam também. Mas eu estava perdido, eu não tinha planos. Certo, fazer faculdade, arranjar um emprego, me aposentar e mais o que? A única pessoa que eu amei, Rafael, não me queria mais. A pessoa que mais me amou, Eric, estava morta. Eu me provei um fracasso na arte de fazer e manter amizades. Eu tinha provado pra mim mesmo que eu não conseguia ficar com mulheres. Minha experiência com Tom tinha me deixado claro que eu não conseguiria encontrar novas versões de Rafael ou Eric pra me amarem. E eu estava prestes a desfazer minha família, pois seria isso que aconteceria quando minha mãe descobrisse sobre mim e meu pai decidisse enfrentá-la por mim.
_Oi.
Eu demorei um tempo até despertar dos meus próprios pensamentos e tentar localizar a voz. Surpresa: Carolina.
_Oi._ falei sem jeito.
_Posso me sentar?
_Claro.
Ela se sentou ao meu lado na grama de frente para o lago. Era estranho. Ela sabia sobre mim e Rafael. Contudo, eu percebi que não a odiava. Eu tinha inveja dela, inveja por ela ter conseguido ser pra Rafael o que eu não consegui.
_Não tem mais ninguém acordado._ ela falou.
_Eu vi.
Eu não pretendia ser tão curto na resposta, mas eu simplesmente não sabia como falar com ela. Ela, por outro lado, não parecia ter problemas com isso.
_Eu sinto muito por você e Rafael._ falou.
Eu estranhei aquela frase, mas evitei olhar pra ela.
_Como assim?
_Vocês se afastaram. E foi por minha culpa.
_Não foi sua culpa. Você fez o que qualquer pessoa faria.
_Mas a ideia é ser uma pessoa melhor do que média, não?
Eu ri da sua resposta.
_Sim, mas isso não é fácil._ rebati _Além do mais, a culpa é mais nossa do que sua. Eu e Rafael não servimos pra ser amigos. Tem muito sentimento mal resolvido entre nós.
Só quando aquilo saiu, eu percebi como poderia ter soado.
_Mas eu não quero dizer que a gente..._ corri pra completar, mas ela me interrompeu.
_Vocês se amam. Não tem como negar isso.
Fiquei novamente em silêncio, sem ter como responder.
_Ele te ama. Ele me falou._ falei tentando melhorar.
_Eu sei. É possível amar duas pessoas com a mesma intensidade?
_Não sei._ tentei ser o mais sincero possível _Mas mesmo correndo o risco de isso soar muito frio e errado: o amor importa tanto assim?
Ela me olhou confusa.
_A gente se amou, mas não deu certo. Não faltou amor, mas faltou tanta coisa. Lembra do Eric? Ele me amou, mas também não deu certo. Minha culpa os dois casos, devo dizer._ fiz uma pausa pra respirar _O que eu quero dizer é que mesmo que o Rafael ainda sinta alguma coisa por mim, isso não significa nada. Eu consegui fazê-lo reduzir tanto esse sentimento, que ele talvez nem exista mais. Nós não vamos voltar, hoje eu sei disso. Você pode ficar tranquila.
_Eu estou tranquila. Eu não te vejo como um rival, são só ciúmes mesmo, é desconfortável o jeito que ele te olha. O que tenho medo é um dia ele acordar e perceber que é um erro, que ele gosta mesmo é de meninos._ ela deu um longo suspiro _Eu estou me apaixonando por ele.
_Por que você não me vê como rival?_ perguntei curioso.
_Porque você não parece minimamente interessado em lutar por ele.
Era a mais pura verdade. Eu não lutei por Rafael. E o pior: eu não estava interessado em lutar por Rafael. Apesar de eu já ter aquela noção, aquilo me nocauteou de um jeito diferente. Eu lembrei das palavras do meu pai:
“Você é fraco, Bernardo, e eu não poderia estar mais decepcionado com você do que estou agora.”
Meu pai estava certo, eu era fraco. Eu fui fraco por não lutar por Rafael, fui fraco por não ficar ao lado de Eric, fui fraco pra não enfrentar Pedro ou minha mãe. Era isso que eu era, um fraco, um covarde. Eu nunca faria nada da minha vida. Eu estava condenado a ser infeliz porque eu não tinha coragem de ir atrás das coisas que poderiam me fazer feliz. Era essa a minha sina.
Se eu já estava me sentindo apático naqueles dias, eu só piorei com aquele pensamento. Eu percebi que minha apatia não seria passageira, ela era meu destino. Minha vida estava destinada a ser um filme sem cor e sem graça, onde eu não era nada mais do que um figurante. Por que estou vivo ainda então?
Aquilo ficou na minha cabeça durante todo o dia. Meus colegas, Alice e Pedro inclusos, se esforçavam pra me encaixar nas rodas de conversa e nas brincadeiras, mas era inútil. Eu prestava atenção nos primeiros minutos, mas logo a minha mente já estava longe, tendo os pensamentos mais sombrios os possíveis. E era ainda pior quando eu via Rafael e Carolina juntos, pois aquele era um lembrete da minha fraqueza. Eu era incapaz de ser feliz. Eu perdi todas as minhas esperanças de um dia ser feliz.
Então, eu cometi o pior erro da minha vida.
Era final de tarde, o Sol já ameaçava se por. Eu participava, ainda com a mente longe, de uma roda de conversa qualquer. A maioria dos meus colegas já estava bastante bêbada. Num dos lados da casa, o lago era mais profundo. Na verdade, era um pequeno penhasco de uns quatro metros. Depois disso, a água afundava mais uns quatro ou cinco metros. O dono da casa tinha limpado o fundo do lago e colocado barragens para que o barranco não cedesse. Assim, aquele era o local ideal para pulos. A brincadeira começou dessa maneira, com as pessoas pulando e dando cambalhotas no ar antes de cair na água. Era uma péssima ideia ter gente bêbado pulando na água, mas ninguém parecia muito preocupado com esse risco distante. Afinal, tínhamos vinte anos, éramos imortais! Quando se cansaram da brincadeira de pulo, a brincadeira passou a ser jogar os colegas secos na água. Eu não vi quando Paulinho me pegou e me colocou nas costas. Eu pedia pra parar, que não estava no clima, mas era tudo uma diversão. Ainda com bermuda e camiseta, eu fui atirado do penhasco e mergulhei fundo nas águas do lago de Furnas. Com a força do impacto do pulo, eu senti meus pés batendo no fundo do lago.
Que preguiça de nadar até lá em cima!” pensei.
E antes de dar meu primeiro impulso pra subir, um pensamento sombrio me veio à cabeça:
“Subir pra quê?”
O que me esperava lá em cima? Uma vida miserável e infeliz? O homem que eu amava nos braços de outra pessoa? A destruição da minha família? Eu era um peso para o mundo lá de cima, isso sim. Sem mim, Rafael conseguiria amar Carolina como se devia e ser feliz com ela. Alice e Pedro conseguiriam seguir com suas vidas sem que os atrapalhasse. O meu pai jamais contaria a verdade à minha mãe, e eles viveriam em paz se consolando. Lógico, eles sofreriam e sentiriam a minha falta, todos eles. Mas eles estariam bem melhor sem mim. Então, subir pra quê?
É o tipo de decisão que se toma num milésimo de segundo, uma decisão da qual você vai se arrepender pro resto da vida. Eu não pensei em mais nada, nem no antes, nem do depois. Eu lembro de ter pensado em Eric, em como ele devia estar em paz agora. Embaixo da água, no momento mais sombrio da minha vida, eu tomei a minha decisão: eu abri a boca e o nariz e deixei que a água invadisse meus pulmões.
Sabiam que é impossível cometer suicídio por afogamento? Tipo, ninguém consegue se matar enfiando a cabeça dentro de uma panela cheia de água. Não importa o quanto você queira fazer aquilo, o seu corpo não vai deixar. O seu corpo é programado pra se proteger de tudo, inclusive da sua mente. Assim, em perigo, ele dispara vários impulsos como reflexo pra te tirar da situação de perigo.
Quando eu senti a água entrar e queimar minha garganta, alguma coisa se acendeu dentro de mim. Eu abri os olhos assustados e tudo o que vi foi uma imensidão turva na minha frente. Eu olhei pra cima e a luz do dia parecia distante, muito acima de mim. Um desespero silencioso tomou conta de mim. Eu comecei a sacudir os braços e pernas pra subir, mas eu era muito lento. A água que eu tinha engolido me queimava por dentro e me impedia de pensar direito. O oxigênio foi acabando, e com ele eu senti minha consciência indo embora. Eu não ia conseguir. Eu ia morrer. Eu olhei pra cima e fiquei admirando a luz do sol que penetrava preguiçosamente na água. Seria minha última visão. A última coisa que lembro antes de desmaiar é pessoas mergulhando e nadando na minha direção.
Eu não sei se eu realmente queria morrer. Eu não parei pra pensar se eu queria por um fim definitivo naquilo. O que acontecia é que eu estava cansado de tudo. O que eu fui atrás no fundo daquele lago era o descanso que a morte me proporcionaria. Mas eu me arrependi. Não era assim que era pra acontecer. Aquilo tudo era muito extremo.
Eu acordei com um forte impacto no peito. Antes mesmo de abrir os olhos, eu senti a água que estava nos meus pulmões fazendo o caminho inverso pra fora, o que não foi menos doloroso. Eu abri os olhos e vi várias sombras sobre mim. Voltei a fechar meus olhos. Só então fui retomando consciência do que eu tinha feito, de até aonde eu tinha chegado. Eu senti uma imensa vergonha dos meus colegas. Eles estavam preocupados comigo, eu tinha estragado seu passeio, e tudo porque eu fui fraco demais até pra encarar meus problemas.
O que aconteceu?_ escutei a voz de alguém perto e entendi que a pergunta era pra mim.
_Não sei..._ eu tentava pensar em como explicar o que aconteceu _Eu acho que não consegui nadar de volta...
_Ainda precisa chamar a ambulância?_ perguntou alguém.
_Não, ele vai ficar bem._ respondeu uma voz ainda mais perto que reconheci como o namorado estudante de medicina de uma colega. _Ele só precisa descansar, ficou algum tempo sem oxigênio. Me ajudem a levar ele lá pra dentro.
Em nenhum momento eu abri os olhos. Não por cansaço pelo quase afogamento, mas por vergonha do que tinha feito. Vários braços apareceram pra me ajudar a me levantar. Abri os olhos e vi Pedro e Paulinho me escoltando lado a lado. Eu já me recuperava e podia muito bem andar sozinho, mas eles permaneceram me segurando firme. Antes de entrar na casa, meus olhos se cruzaram com o de Rafael e eu senti uma pontada de dor. Seus olhos estavam cheio de lágrimas. O que eu não o fiz passar? Onde eu estava com a cabeça? Mas havia um brilho diferente nos seus olhos quando nossos olhares se cruzaram. Voltei a fechar os meus olhos e deixei que me guiassem até um banheiro. Pedro e Paulinho me ajudaram a tirar a roupa e entrar embaixo do chuveiro quente. Ninguém disse nada. Eu mal conseguia olhá-los. Eu queria dizer que poderia fazer aquilo sozinho, mas eles não me deixariam. Quando terminei, alguém apareceu com uma roupa quente e eles me ajudaram a me vestir. Eu fui guiado até um quarto e deitei numa cama. Eu já caminhava sozinho, mas Pedro e Paulinho me seguiam de perto em silêncio. Tudo o que eu queria era dormir e esquecer que aquele dia aconteceu. Nem com todas as noites de sono da minha vida eu esqueceria daquele dia. Ele era a marca definitiva da longa ladeira que eu desci nos últimos seis meses.
Quando abri os olhos, já deitado, me deparei com o quarto cheio de colegas me olhando preocupados. Como eu sentia vergonha!
_Eu vou ficar bem._ falei _Eu só preciso descansar um pouco.
Eles me desejaram melhoras e foram saindo. Paulinho ficou, ele tinha os olhos vermelhos.
_Me desculpa, cara! Eu não devia ter feito isso! A gente empolgou e..._ ele falava desesperado, quase chorando _Você quase morreu. Eu não sei o que dizer...
_Não foi sua culpa, Paulinho._ falei tentando descansar _Vocês já tinham jogado outras pessoas e ninguém se afogou. Fui eu que não consegui nadar de volta.
Foram precisos pelo menos uns dez minutos até que ele se acalmasse e saísse do quarto. Eu realmente precisava descansar. Mas isso estava longe de acontecer: as últimas pessoas foram saindo do quarto, só restando Pedro, Alice e Rafael. Fechei novamente os olhos pensando se eles me deixariam em paz.
_Você está realmente bem?_ perguntou Alice com uma voz doce e pegando na minha mão.
Eu ouvia o medo e a preocupação na sua voz. Eu acariciei sua mão para acalmá-la.
_Estou. E vou ficar melhor depois de dormir.
_Fecha a porta, por favor, Pedro._ falou Rafael de algum ponto do quarto.
Eu abri os olhos curioso com sua ordem e o encontrei o seu olhar ferido e raivoso. Pedro, sem entender muito bem, fez o que ele pediu. Assim que o trinco da porta fez barulho, Rafael veio com uma velocidade impressionante pra cima de mim. Eu nem soube como reagir. Vi a mão dele se erguer no ar e descer com toda a velocidade na forma de um tapa na minha cara. Eu caí de lado na cama surpreso.
_Rafael!_ gritou Alice assustada.
_Você faz natação há quinze anos!_ falou Rafael me encarando com raiva _Você acha mesmo que eu vou acreditar que você não conseguiu nadar de volta?!
Meus olhos se encheram de lágrimas. Ele sabia o que eu fiz! E Alice e Pedro me olharam assustados com a descoberta.
_Oh, Bernardo!_ falou Alice começando a chorar.
_Seu imbecil!_ gritou Rafael que subiu em cima da cama descontrolado e começou a me dar tapas na cabeça.
Eu me protegi como pude, mas por surpresa. Em pleno estado de consciência, eu teria deixado que ele me batesse. Eu merecia.
_Seu egoísta de merda! Você tem ideia do que estava fazendo! O que diabos você tem na cabeça?!
Eu comecei a chorar de arrependimento, vergonha, dor, de tudo o que estava preso na garganta.
_Para. Vem, para._ falou Pedro puxando Rafael pra longe de mim.
_Me diz que você não fez isso!_ falou Alice chorando e segurando meu rosto.
Mas eu não conseguia responder, eu apenas chorava. Ela subiu na cama, me colocou no seu colo e me apertou com força nos seus braços. Ficamos os dois ali, deitados juntos e chorando, sem dizer nada. Abri os olhos devagar e vi Rafael sentado no chão abraçando os joelhos com força e Pedro olhando pela janela com o olhar perdido.
Aqueles eram meus amigos. Eles me amavam, cada um do seu jeito, e tudo o que fiz foi magoá-los. Até mesmo Pedro, pois fui eu que comecei com a mentira em primeiro lugar. Eles não mereciam o que eu tinha feito. Sim, eu estava prestes a fazer um mal irreversível a mim mesmo, mas também estava prestes a dar a cada um deles uma ferida pro resto da vida. Que tipo de amigo faz isso? Que tipo de pessoa eu me tornei?
Se eu não podia voltar no tempo e desfazer tudo, eles mereciam ao menos um pedido de desculpas. Eu me endireitei na cama e sequei as lágrimas. Eles tinham que me ver forte e firme. Os três me encararam.
_Me desculpem. Por tudo, pela pessoa que eu me tornei.
Eu dei um longo suspiro. Eu mal sabia como encará-los e dizer tudo o que tinha pra dizer.
_Eu nunca devia ter chegado a esse ponto. Eu não sei onde estava com a cabeça. Eu não planejei nada. O que aconteceu foi que ao chegar lá embaixo, eu não vi motivos pra subir de volta.
_Como não viu motivos?_ perguntou Alice voltando a chorar _Eu preciso enumerá-los?!
_Calma, por favor. Foi uma coisa de momento, não vai acontecer de novo.
_Como podemos confiar que você não vai fazer isso de novo?!_ perguntou Rafael novamente com raiva _Como vamos poder olhar pra você sem medo de você fazer isso de novo?!
Era uma pergunta muito justa.
_Vocês não têm garantia, nunca vão ter. Vocês vão ter que aprender a viver com a dúvida. E eu sinto muito por isso, eu não tenho palavras pra fazer vocês entenderem isso.
_Por que você fez isso?_ perguntou Pedro _Fui eu?
Ele estava prestes a chorar e meu coração se apertou. Eu o chamei e ele caminhou lentamente até a cama e sentou ao meu lado. Alice ainda estava abraçada a mim. Sem me importar com o que ele pensaria ou como reagiria, eu peguei na mão de Pedro. Ele não fez nenhuma menção de tirá-la.
_Não foi você Pedro, fui eu._ falei lutando pra não voltar a chorar _Tudo o que me aconteceu me atingiu em cheio, mas isso não é desculpa. Quantas pessoas não passam por coisas muito piores todos os dias e ainda seguem em frente? Eu que fui fraco demais pra enfrentar meus problemas.
_Mesmo assim, me desculpa._ ele falou.
Eu tentei o interromper, mas ele não deixou.
_Me desculpa pelo amigo de merda que eu fui. Eu não sou assim, cara. Eu não odeio gays. Por mim vocês podem fazer o que quiserem. O que eu sempre fiz foi piadas deles porque todo mundo ria e eu gostava de fazer as pessoas rirem. Só que você veio com isso de uma só vez, jogou na minha cara e eu não consegui respirar direito. E você ainda disse muitas palavras feias pra me ferir. Eu fiquei com muita raiva, muita mesmo. Eu queria te odiar. Eu queria te odiar por ter fingindo ser uma pessoa que não era, por mentir pra mim durante um ano.
Eu ouvia tudo aquilo atento. Eram coisa que eu sabia, mas era importante ouvir dele. Mais ainda: era importante que ele se ouvisse falando aquilo em voz alta. Eu percebi que Alice ouvia atenta abraçada em mim.
_Eu não queria gays perto de mim. Eles me incomodam. E de repente eu tinha um cara gay que andou comigo pra cima e pra baixo durante um ano inteiro. Isso foi muito pra mim, eu fiquei pilhado. Mas quando eu parei pra pensar direito, não era um gay do meu lado, era você. Você pode ter mentido quanto à sua vida sexual, mas ainda era você, o meu amigo Bernardo.
Eu sorri com ele falando isso. Eu abri meu braço como um sinal e ele se reencostou em mim. Eu passei o meu braço sobre seu ombro e ele deixou a cabeça descansar na parede atrás de nós. Eu senti os seus músculos se relaxarem.
_Eu ainda não estou pronto pra te ver se agarrando com outro cara_ ele continuou _Mas eu estou aqui agora, saiba disso.
_Eu sei, obrigado. Desculpa pelas coisas que eu te disse. Você é sim um ótimo amigo. Juntos, a gente vai descobrir como lidar com essa nossa nova relação._ respondi sorrindo pra ele.
Alice fungou no meu outro lado.
_E você, mocinha...
Ela não se virou pra mim.
_Você não tem nada do que se desculpar._ falei _Só eu que tenho. Você tem direito a ter uma vida, a ter um namorado, a ter outros amigos além de mim. É até muito saudável. Não tem explicação pro nível de egoísmo que eu atingi quando te disse aquelas coisas horríveis no hospital. Você é minha melhor amiga. Eu sei que você só quer meu bem. Me desculpe por não escutá-la mais vezes.
_Desculpado._ ela respondeu depois de um tempo.
Ficamos ali por um tempo, com Alice e Pedro abraçados a mim, mas sem se tocarem. Se não fosse tudo tão trágico e nós três não estivéssemos com os olhos vermelhos de lágrimas, seria cômico. Aqueles dois eram os meus melhores amigos. Onde eu estava com a cabeça ao tentar machucá-los? Eles eram as melhores pessoas que eu tinha conquistado, eram parte do meu tesouro. Ali, eu senti um vislumbre de paz. Mas para a paz, ainda faltava uma pessoa com quem me entender.
Desviei minha atenção de Pedro e Alice e encarei Rafael. Sua expressão estava mais calma, mas ainda havia raiva nela. Eu me preparei pra começar a falar, mas ele falou primeiro.
_Deixa eu me adiantar._ ele falou com um sorriso fraco e pouco sincero no rosto _Eu te desculpo pelo que você disse no hospital. Você estava ferido e queria nos ferir, é compreensível.
_Obrigado...
_Mas eu não te perdoo por ter tentado se matar.
Ninguém ainda tinha dito aquilo com todas as letras. A minha ficha caiu. Eu tentei me matar! Eu ia sumir, deixar de existir! Eu nunca mais veria meus amigos ou minha família. Eu nunca mais veria Rafael.
_Eu não retiro o que disse. Você é um egoísta de merda. Você não pensou em nenhum de nós._ ele começou a chorar _Você não pensou em mim, porra!
Inevitavelmente, comecei a chorar também. Uma das coisas que mais me feriam no mundo era ver Rafael em dor. Ironicamente, era eu quem mais causava dor nele ultimamente.
_Eu te amo! Você entende isso? Eu te amo! Mas não dá mais, sabe. Eu sempre tive esperança que um dia você acordaria e veria que nós dois nascemos pra ficarmos juntos, mas essa esperança morreu hoje. Você não vai melhorar, Bernardo. Nós nunca vamos ficar juntos.
Ele saiu do quarto sem esperar resposta. E eu fiquei lá, remoendo suas palavras e chorando silenciosamente. Sim, eu sabia que não ficaríamos juntos porque, como disse Carolina, eu não estava nem mesmo tentando. Alice e Pedro me abraçaram em consolo e nós ficamos assim, os três em silêncio naquela cama por muito tempo...
[...]
Depois de tudo aquilo, eu só queria ir embora, mas eu não podia. Se eu fosse, eu deixaria todos preocupados comigo e aí eu estragaria de vez a viagem da turma. Eu fiquei por eles, tentando ser uma pessoa mais divertida do que tinha sido nos últimos dias. Mas, novamente, minha cabeça estava longe.
A morte é uma coisa interessante. A morte por si só pode significar o fim. Mas quase morrer, chegar às beiras da morte, significa renascimento. Foi lhe dado uma nova oportunidade pra fazer tudo diferente.
Eu sempre achei que, se eu viesse a mudar, seria por Rafael, mas não foi. Foi por mim. A partir daquele dia, do dia em que eu renasci, eu passei a ver as coisas diferentes. Eu não era mais imortal. Eu ia morrer e eu não sabia quando. É uma coisa que você já nasce sabendo, mas você nunca para pra pensar, ainda mais quando você não tem mais do que vinte anos de idade. Eu só tenho uma vida, uma oportunidade de fazer as coisas certas. E eu precisava fazer as coisas certas, mas não por Rafael, e sim por mim. Se eu tivesse morrido naquele lago, o que teria sido minha vida? Quem se lembraria de mim e como? Que legado eu deixei? Se me foi dada uma nova oportunidade eu tinha que fazê-la valer a pena.
Às vezes, meus amigos, é preciso descer ao ponto mais fundo do poço pra só então começar a escalá-lo.
Mas como fazer isso? Como começar a fazer as coisas certas? Como fazer a vida valer a pena ser vivida? E de repente eu soube: o que eu precisava era recomeçar. E eu sabia exatamente como.
Na segunda-feira pela manhã, assim que cheguei na faculdade, antes mesmo de ir pra sala, fui bater na sala do Heitor, o coordenador do curso.
_Pois não?_ ele perguntou surpreso.
Eu não sei se a surpresa era por não costumar encontrar alunos esperando ele chegar pela manhã na sala dele ou pela minha cara de quem estava estranhamente excitado.
_Oi, Heitor._ falei tentando manter a voz o mais tranquila possível _Eu gostaria de saber mais sobre o programa de intercâmbio da faculdade.
Era hora de recomeçar a minha vida.
Junho estava chegando ao final e com ele o meu semestre letivo. Além das provas finais e trabalhos, eu vivia numa correria pra minha viagem. Eu consegui a vaga no intercâmbio. Eu iria morar e estudar em Paris durante um ano. Eu mal acreditei quando o meu coordenador me deu a notícia, esse tipo de coisa é tão difícil de se conseguir. Ainda mais estudar em uma cidade grande como Paris. Eu sentia que, após tantos tombos, a vida começava a me colocar no caminho certo.
Eu não sei explicar direito, mas eu simplesmente sabia que precisava daquela viagem. Eu precisava começar de novo. Era um país novo, um idioma novo, pessoas novas, cultura nova. Eu estava incrivelmente animado, o que me era estranho. Eu sempre fui meio fechado ao novo, mais retraído e pouco à vontade com mudanças. Mas agora eu queria aquilo. Eu sabia que seria bom pra mim. Eu sabia que em Paris estava a chave pra que eu pudesse enfim melhorar. Não tinha explicação, eu apenas sabia.
Logicamente, nem todos ficaram felizes com meus planos. Eu tive um certo trabalho pra convencer todos que era o melhor pra mim.
_Um ano?!_ ela gritou.
_É, mãe, um ano, mas...
_Um ano!_ ela nem parecia estar me ouvindo.
_Sim...
Eu tive que esperar ela se acalmar antes de conseguir usar meus argumentos.
_Vai ser bom pra mim, mãe. Eu vou crescer muito como profissional e como pessoa.
_Mas é outro país! Do outro lado do Atlântico!
_Eu sei, e isso é bom. Eu vou poder ser independente, me virar sozinho um pouco.
Do canto da sala, meu pai me olhava em silêncio. Eu sabia muito bem o que ele estava pensando. Eu não tinha tido a conversa com a minha mãe ainda. Eu enrolava meu pai há quase dois meses e meio, e ele estava ficando sem paciência.
_Quando você vai falar com ela?_ ele perguntou um dia em que estávamos a sós em casa.
_Eu posso esperar voltar da França?_ perguntei receoso.
Ele me deu um olhar recriminador.
_Como é que eu fico escondendo isso da sua mãe?
_Eu sei, pai, mas me dá esse tempo. Eu acho que essa viagem vai me fazer muito bem.
Ele me olhou sem dar muito crédito.
_É sério._ eu fiquei envergonhado pela próxima coisa que eu ia dizer _Eu acho que vou me encontrar lá.
Ele sacudiu a cabeça em sinal de cansaço. Eu tinha convencido ele.
_Ok, você vai. Mas estou te avisando: assim que você pisar no Brasil, conversar com sua mãe vai ser a primeira coisa que você vai fazer.
_Eu sei. Eu juro.
E assim seria...
[...]
Alice também não estava encarando bem a questão da minha viagem.
_Não acho que você deva ficar sozinho
Ela não falou com todas as letras, mas ela se referia à minha (patética) tentativa de suicídio. Já tinha se passado quase dois meses desde aquela viagem, mas aquele assunto ainda era uma sombra pairando sobre nós. E sempre seria. Como eu disse, aquele dia deixou uma marca em mim e em meus amigos que nem o tempo poderia apagar. Só nós quatro sabíamos o que tinha acontecido. Meus pais nunca souberam nem do afogamento.
_Não há esse perigo, Alice._ respondi envergonhado.
_Quem me garante?
_Não há garantias.
Ela me olhou ressabiada. Eu entendia o medo que ela sentia por mim. Eu sabia sobre o ponto que a minha cabeça chegou para eu tomar a atitude que tomei naquele dia, e sabia também que não aconteceria de novo. Só que eu não tinha como passar essa sabedoria pra Alice.
_Você precisa confiar em mim que não vai acontecer de novo._ completei.
Ela suspirou fundo.
_Você acha que vai te fazer bem mesmo?_ perguntou.
_Sim, eu acho que essa viagem é justamente o que eu preciso. Eu não sei como te explicar, Alice, mas eu sinto eu preciso ir, sabe? Eu me vejo lá.
_E eu? E Pedro? A amizade de vocês tá engrenando agora.
_Nós vamos estar sempre nos falando. E vocês ainda vão estar aqui quando eu voltar, não?
_Claro.
Ela deixou os ombros caírem em sinal de derrota.
_Se você fizer uma bobagem, eu juro que vou até Paris terminar o serviço, tá me ouvindo?
Eu ri. Era aquela Alice que eu conhecia e amava. Desde o dia do lago, por mais que ela tentasse disfarçar, havia sempre uma preocupação em seus olhos quando conversava comigo. Era como se ela temesse que a qualquer momento eu desmoronasse novamente. Eu entendia esse sentimento, mas ele me incomodava. Eu queria a minha amizade com ela de volta por completo. Mas, inocência a minha, nós nunca somos quem éramos ontem, então, por que nossa amizade teria que ser? Eu tinha esperança que esse tempo afastados, por mais que impossível de ser apagado, ao menos sufocasse um pouco os temores de Alice. Eu precisava mostrar pra ela que eu podia ser emocionalmente independente dos outros e viver uma vida plena. E eu precisava provar isso pra mim também.
Pedro também não estava aceitando muito bem a minha viagem. E ele era consideravelmente mais carente que Alice.
_Um ano, velho!_ ele falou.
Todas as vezes que eu contava sobre a viagem pra alguém, era como se a mesma conversa estivesse se repetindo.
_Vai passar rápido, Pedro.
_Mas um ano?
_Sim. Se põe no meu lugar e pensa: “um ano morando em Paris”!
_Tá, mas justo agora, que a gente..._ ele falou meio constrangido.
Pedro e eu não viramos super amigos da noite por dia, foi um processo lento de reaproximação. A lembrança do que aconteceu aquele dia ainda era visível no modo como ele me tratava, mas de uma forma diferente da de Alice. Ele foi o responsável por me distrair, por me levar pra sair e me divertir. A minha homossexualidade ainda era um assunto delicado. Só fui conseguir falar sobre isso com ele depois de semanas, e mesmo assim com muito cuidado. Tomando o cuidado pra evitar as partes sexuais, lhe contei sobre as minhas relações com Eric e Rafael. Ele fez algumas caras estranhas, mas tentou soltar os comentários mais corretos possíveis. Ele ainda se espantava com ele mesmo por não ter percebido o que acontecia embaixo do seu nariz. Mas íamos evoluindo. Ele já tinha liberdade o bastante até pra torcer por reconciliação minha com Rafael.
_Mas você vai embora agora? E Rafael?
Suspirei fundo. Nós ainda estávamos na mesma. Ele pareceu falar sério aquele dia no lago. Ele não falou mais comigo e mal me olhava. Ele estava decidido a me deixar no passado. Eu não valia mais a pena pra ele.
_O Rafael está namorando. Não há nada que eu possa fazer.
_Mas vocês...
Ele ia falar se amam, mas isso ainda era um passo que ele precisava dar. Tudo ao seu tempo.
_Eu não sei de mais nada, Pedro._ respondi triste.
Mas eu precisava fazer uma última tentativa.
[...]
Já estávamos quase na metade de julho e faltavam poucos dias pra minha viagem. Eu não via Rafael desde o fim das aulas, o que foi o nosso maior tempo sem se ver. Eu estava ansioso. Rafael pareceu desconfiado e receoso quando eu lhe liguei pedindo pra conversar. Demorou alguns torturantes segundos até ele me convidar para ir em sua casa. A saudade bateu forte quando entrei na sua casa. Eu não ia lá desde os nossos tempos de namoro. Olhando para a sua sala, eu me lembrava das nossas tardes de amor, das nossas declarações bobas, dos nossos corpos suados e esbaforidos caídos sobre o tapete. Eu amava Rafael, não deixei de amar por um mísero segundo em todo esse tempo. Eu simplesmente não podia deixá-lo partir.
_O Rafael já vem._ falou uma senhora que se parecia muito com ele.
A mãe dele. Eu nunca a tinha conhecido, eu nunca permiti a Rafael que nos apresentasse. Mas ela parecia ser uma pessoa tão legal que agora eu me sentia arrependido.
_A senhora deve ser a mãe do Rafael._ falei.
_Senhora não, por favor. Joana.
_Prazer, eu sou o Bernardo.
Um brilho estranho passou pelos seus olhos e eu podia jurar que vi seu sorriso simpático perder a sinceridade. Eu me perguntei se ela sabia quem eu era e o que eu representava. Felizmente, Rafael chegou na sala antes que um de nós dois precisasse dizer mais alguma coisa.
Ele estava só de bermuda e regata, mas estava lindo. Ele sempre foi lindo pra dizer a verdade, mas eu acho que fazia algum tempo que eu não reparava nele. Só que sua expressão era dura, ele não me recebeu com um dos seus habituais sorrisos.
_Vamos conversar lá no quarto.
Eu obedeci e fui caminhando em direção ao seu quarto. Mesmo de costas, pude ver que ele e a mãe trocaram um olhar significativo, o que fez eu me sentir mal.
Ao entrar no seu quarto, sentei no parapeito da janela. Analisei com cuidado o lugar onde nos amamos tantas vezes e que parecia o mesmo. Rafael fechou a porta, sentou-se na cadeira do computador e ficou me olhando de braços cruzados.
_Então?_ ele falou.
_Sua mãe sabe sobre nós?
A dúvida estava me consumindo, eu tinha que perguntar.
_Sim._ ele falou suspirando _Algum problema com isso?
_Não, é só que...
_Você não tem mais o direito de me dizer o que e com quem eu posso falar.
Ele foi ríspido e isso me atingiu. Tentei me manter firme porque tínhamos uma conversa séria pela frente.
_Claro, eu sei. Era só por curiosidade._ respondi _Mas não foi sobre isso que quis vim conversar.
_E sobre o que seria?
Ele não abaixava a guarda por um segundo, sempre de braços cruzados e expressão séria.
_Você sabe que eu estou viajando pra Paris semana que vem, não sabe?
Ele se levantou e começou a caminhar pelo quarto impaciente. Ele tinha perdido a sua calma.
_Sei. Você tem noção do que está fazendo? Indo pra um lugar onde não teria ninguém pra te ajudar?
Novamente, a tarde no lago vinha à tona. Todos eles tinham o mesmo medo, e eu não tinha meios de fazê-los entender o motivo de eu ter certeza que não aconteceria de novo.
_Eu sei o que estou fazendo. E eu não vou precisar de ajuda.
_Se você diz.
Ele queria se mostrar indiferente, mas não conseguia. Rafael e eu ainda mexíamos muito um com o outro.
_Você sabe porque eu estou indo pra lá?_ perguntei.
_Sei. Porque você é um covarde. Ainda não aprendeu a lidar com seus problemas e agora está fugindo deles.
_Muito pelo contrário. Eu estou indo resolvê-los.
Ele deu um sorrisinho irônico. Eu precisava ganhá-lo na conversa.
_Eu estou indo por você.
Ele me olhou curioso. Nos fundos dos seus olhos, eu pude ver um resquício de sentimento bom. Era só mencionar nós dois que ele se mostrava incapaz de esconder isso.
_Você me disse pra mudar e depois me disse que não achava mais que eu pudesse mudar._ eu o olhei firmemente pra ele entender que eu falava seriamente _Eu posso, Rafa! Eu vou mudar! Eu não quero mais ser a pessoa que eu sou. E é por isso que estou indo. Eu vou passar um ano numa cidade estrangeira onde ninguém me conhece e ninguém me recriminará pelo que eu sou. Lá, eu vou descobrir quem eu sou.
Ele pareceu atordoado com minhas palavras. Ele não esperava por aquilo.
Você acha que é simples assim?_ perguntou ainda tentando se localizar.
_Não, mas eu vou conseguir. Eu vou lutar, mas não por você ou pelo nosso amor. Eu vou lutar por mim, Rafa. Eu quase me matei naquele dia. Vê a que ponto eu cheguei? Eu me odiava tanto a vida que eu moldei em volta do personagem que eu criei, que por alguns segundos eu cogitei seriamente a hipótese de deixar de existir. Isso não pode acontecer de novo. E não vai. Eu vou mudar. Eu vou melhorar._ fiz uma pequena pausa para ele absorver _E quando isso acontecer, eu vou estar pronto pra ser o namorado que você merece.
Essa última parte o atingiu em cheio. Ele parecia muito atordoado, mas de um jeito bom.
_Bernardo, eu não...
_Já está decidido: no dia em que eu pisar de volta no Brasil, daqui a um ano, toda a minha família e meus amigos saberão que eu sou gay.
Ele sorriu e eu sorri o acompanhando. Meu coração se aqueceu. Mas tinha uma certa tristeza em seu olhar.
_Era o que eu mais queria escutar a um ano atrás. Eu mataria pra escutar você dizendo isso tudo. Mas não agora. Eu encontrei alguém, Bernardo. Eu me apaixonei pela Carol.
Não tive como não me abater com suas palavras, mas me recompus rapidamente. Eu não desistiria tão fácil assim.
_Mas você me ama._ele foi responder, mas eu não deixei _Eu não estou pedindo que você abandone a Carolina e corra pros meus braços. O que estou te pedindo é pra ter o coração aberto e confiar em mim.
Eu cheguei bem perto dele, mas não o suficiente pra fazermos uma bobagem e estragar tudo.
_Eu vou te reconquistar, Rafa.
Sem esperar uma resposta, pois tinha medo de qual seria, me dirigi à saída. Mas antes virei pra ele, que ainda parecia atordoado e pensativo.
_Você vai se despedir de mim no aeroporto?_ perguntei.
Ele demorou alguns segundos pra pensar na resposta.
_Não.
Não era a resposta que eu queria ouvir, mas não me deixei abater.
_Boa viagem._ ele falou.
_Obrigado. Até a volta._ e saí.
[...]
No aeroporto, muitas lágrimas da minha mãe. Parecia que ela estava mandando um filho pra guerra. Me despedi de todos um a um. Meus irmãos ainda estranhavam passar tanto tempo sem mim, nunca havíamos nos separados por mais de uma semana. Ainda não tinham se acostumado com a ideia. O meu pai me abraçou e me desejou juízo. Minha mãe fez mil recomendações e prometeu ir passar o Natal comigo. Alice se fazia de forte, mas estava quase derramando lágrimas.
_Lembra do que eu te falei._ ela falou enquanto me abraçava _Eu vou lá terminar o serviço.
_Não vai ser preciso, pode deixar._ respondi rindo _E me faz um favor?
_Qual?_ perguntou já se soltando.
_Cuida do Pedro e do Rafa pra mim?
Ela respondeu revirando os olhos, o que me arrancou outro sorriso. Pedro foi o próximo. Também estava se fazendo de forte quando me abraçou desejando boa viagem.
_Posso te confessar uma coisa, Pedro?_ perguntei baixo o bastante pra que ninguém nos ouvisse.
_O que?_ perguntou curioso.
_Nunca gostei do Marcos. Ele não combina com a Alice.
Ele sorriu e seu rosto ficou vermelho.
_Bernardo, Bernardo...
_Por que ela nunca quis te namorar?_ perguntei.
_Porque eu era um idiota?_ respondeu.
_Sim. E você melhorou nos últimos três meses?
Ele sorriu em resposta. Pedro tinha um longo caminho a percorrer ainda antes de se ver livre dos seus preconceitos, mas ele já era uma pessoa bem melhor do que a que conheci.
_Eu estou correndo atrás da minha felicidade,_ falei _você deveria correr atrás da sua.
Ele não me respondeu, apenas continuou sorrindo, mas eu tenho certeza que minhas palavras ficaram ecoando na sua cabeça.
Quando não houve mais como evitar o embarque, entrei na sala de embarque com muito choro por parte da minha mãe. Confesso que eu olhava pra trás durante o tempo todo, na esperança que Rafael apareceria correndo esbaforido e me pedindo pra ficar. Talvez eu ficasse. Mas ele nunca foi lá se despedir.
Sem mágoas, me ajeitei no avião e fiquei olhando a cidade se afastando. Fechei os olhos e vislumbrei um futuro comigo e Rafael juntos. Eu sorri sozinho. Dia 22 de julho de 2007 e eu estava partindo pra Paris. Mais ainda: eu estava partindo pro futuro. Eu estava partindo pra encontrar meu destino e a pessoa que eu sempre procurei em mim. Eu partia rumo ao recomeço.