Os pais de Ricardo vieram pra passar o feriado com ele. Por mais que eu insistisse que não era preciso, eles fizeram questão de me convidar para passar o Natal com eles. Assim, na noite de Natal, jantamos os quatro num restaurante mais refinado, do tipo que eu e Ricardo não estávamos acostumados a frequentar. Linda e Inácio eram um casal de meia idade muito simpático. Os dois estavam sempre rindo, embora pudesse ser efeito da grande quantidade de vinho que os dois consumiam. Era um casal que a gente via que se amava, pois estava sempre de mãos dadas ou abraçados, mesmo após anos de casamento. Eu não duvidava que meus pais se amassem, mas nunca os tinha visto trocando aquele tipo de carícias. Aquilo explicava bastante a personalidade alegre e amorosa de Ricardo, pois ele foi criado num ambiente que lhe permitia isso. Lógico que ninguém é perfeito, eles possivelmente já tiveram brigas, ameaças de separação e solavancos pelos quais já passaram qualquer casal que tenha um relacionamento de muito tempo, mas o saldo era positivo. Afinal, estavam os dois ali, em Paris, curtindo uma segunda lua de mel.
E o mais importante sobre eles é que aceitavam a sexualidade de Ricardo. Ricardo tinha me confidenciado que nem tudo foram rosas. Houve muito choro (por parte da mãe) e longas conversas (por parte do pai), mas aos poucos os três souberam se adaptar àquela nova realidade.
Sendo assim, não houve problemas para Ricardo me apresentar para seus pais como seu namorado. E é lógico que eu fiquei pilhado. Não tanto em relação à sexualidade, eu estava bastante tranquilo em relação àquilo. Afinal, eu não seria o primeiro namorado que Ricardo apresentava a eles. Mas era a primeira vez que eu seria apresentado a alguém como seu genro. O resultado é que passei boa parte do jantar travado e nervoso, só indo me soltar aos poucos com o decorrer da noite (e do álcool).
Em um certo ponto do jantar, Ricardo falava sobre algum lugar que tínhamos conhecidos e por reflexo pousou sua mão em cima da minha sobre a mesa. Confesso que o meu primeiro reflexo foi o tirar a mão, mas me contive. Pra quê? Eles já sabiam, não iam nos discriminar. Seus pais olharam de relance, mas logo desviaram os olhos, não dando muita atenção. Eu sorri discretamente pra mim mesmo. Olhem a que ponto eu tinha chegado. Eu podia jantar num lugar público com meus sogros segurando a mão do meu namorado sem surtar porque ninguém ia falar nada. Era como se eu fosse outra pessoa! Eu não me reconhecia, e isso era maravilhoso pra mim. Pela primeira vez na minha vida, eu me sentia mudando pra melhor.
Foi impossível não pensar em Rafael por um instante. O quanto ele não tinha desejado por aquela cena? O quanto ele não sofreu por eu negar esses pequenos prazeres a ele? O que ele faria se visse aquilo, que tinha outra pessoa no seu lugar na linda fotografia que ele imaginou para nós? Não pude deixar de me ressentir um pouco, como se estivesse traindo Rafael de algum modo. Deveria ser ele ali. Mas logo o afastei da cabeça, eu estava com Ricardo agora. Não era o tempo ainda de pensar nisso.
Saindo do restaurante, nós quatro já estávamos um pouco alegres por causa do vinho. Ricardo pegou o pai pelo braço e saiu lhe contando a história de cada lugar pelo qual passávamos, deixando eu e sua mãe para trás. Por educação, já que as ruas estavam escorregadias devido a chuva fina que caía quase constantemente na cidade, dei o braço à minha sogra que aceitou. Caminhamos juntos apenas ouvindo os nossos companheiros poucos metros a frente antes dela começar a falar:
_Bernardo...
_Sim?
_Eu percebi você um pouco distante no jantar. Algum problema?
Eu não poderia lhe contar que estava pensando no meu ex-namorado, então tentei ser o mais sincero possível.
_Não._ respondi _É que no começo eu estava um pouco nervoso. Nunca fui apresentado aos pais de ninguém.
_E depois que o nervosismo passou?
_Eu pensei nos meus pais.
_Como assim?
_Eu os imaginei numa cena assim, eu, eles e meu namorado num restaurante._ falei sorrindo um pouco triste _Não sei, pareceu muito distante.
Linda diminuiu o passo um pouco, fazendo com que nos afastássemos um pouco de Ricardo e Inácio. A sua voz ficou mais doce.
_Eles não te aceitam?_ perguntou.
_O meu pai sabe e aceita. Nós não chegamos realmente a conversar seriamente sobre tudo isso, mas ele deixou claro que não tem problemas. Mas eu não sei se está tudo realmente bem. Eu não sei se ele trataria da mesma forma o meu namorado e o namorado da minha irmã, por exemplo.
_Essas coisas se aprendem com o tempo. Lógico que tem gente de cabeça muito aberta que vê tudo muito naturalmente, mas poucos são assim. Eu e meu marido aprendemos aos poucos sobre o mundo de Ricardo. Nós três demoramos um tempo até ajustarmos a nossa visão. Dê esse tempo ao seu pai. E se esconder num armário não ajuda, você tem que mostrar o seu mundo pra ele, só assim ele passará a vê-lo de forma natural.
Eu fiquei um tempo pensando nas suas palavras. Ela estava certa. Meu pai não era homofóbico, mas também não tinha uma cabeça super aberta para a questão. Ele precisava de tempo e eu precisava ajudá-lo.
_E a sua mãe?_ ela perguntou.
_Ela não sabe._ respondi triste _Mas vai saber assim que eu voltar ao Brasil. Foi uma promessa que fiz ao meu pai. Ele me disse ser injusto como pai guardar um segredo desses da minha mãe.
_E ele está certo.
_Eu sei...
Voltamos a caminhar em silêncio por mais alguns metros antes dela continuar.
_E por que ele sabe e ela não? Normalmente são as mães que aceitam melhor.
_Meu pai descobriu por acaso. Eu que contei, mas não foi nada planejado.
_Entendo.
_Mas existe sim uma razão pela qual minha mãe ainda não sabe. Ela não vai aceitar.
_Ela pode te surpreender...
_Não, não vai._ respondi rindo _Até meu pai sabe disso. Ele não está guardando segredo à toa. Ela teve um irmão gay e a história não acabou bem.
Linda suspirou fundo.
_Cada história é uma história, Bernardo. Você não pode julgar a reação da sua mãe em relação a você pela que ela teve em relação ao seu irmão. O sentimento maternal é mais forte que o fraternal. Se ela já tem um histórico ruim, é claro que você precisa pisar no terreno com mais cuidado. Mas não significa que ela não vai te aceitar.
_É, talvez você tenha razão...
Eu não acho que estava errado, eu acreditava que a reação da minha mãe seria a pior possível, mas eu teria que pagar pra ver.
[...]
No dia seguinte ao Natal, ainda aproveitando o nosso recesso de fim de ano, Ricardo saiu com seus pais pra conhecer a cidade. Eles até insistiram pra eu ir junto, mas achei melhor não, com a desculpa que os deixaria ter um momento em família. Na verdade, eu tinha outros planos, mas não queria contar pra Ricardo até depois, pois ele poderia me fazer mudar de ideia.
Eu tinha um encontro marcado. Foi um pouco difícil encontrar o café que marcamos de nos encontrar, pois era numa área da cidade que eu não conhecia tão bem. Ao entrar, tirei meu sobretudo, minha toca e meu cachecol, e procurei por ele com os olhos. Ele parecia tão diferente daquela foto. Ele tinha ganhado alguns quilos, tinha perdido um pouco de cabelo, mas o resto parecia igual. Menos os olhos, eles estavam mais vivos, menos tristes do que na foto. O mesmo pode-se dizer da sua postura, que pude ver ser muito correta quando ele se levantou pra me cumprimentar.
_Você deve ser o Bernardo._ falou apertando a minha mão.
_E você deve ser Aurélio.
_Mais respeito: tio Aurélio._ respondeu com bom humor e eu ri.
Desde que eu cheguei a Paris, uma certa inquietação tomou conta de mim. A única informação sobre o paradeiro do meu tio que minha mãe tinha me dado era que ele morava na Alemanha. Uma parte da minha história estava a poucos quilômetros de distância. Sabendo seu nome e sobrenome, e com os endereços da União Europeia padronizados, não foi difícil encontrá-lo. No entanto, até ter coragem de lhe telefonar foi um bom tempo. E se ele não quisesse me ver? E se ele tivesse mágoa da minha mãe e quisesse descontar em mim? E se minha mãe descobrisse que eu me comunicava com ele? Além disso, uma questão importante era o que eu queria falar para ele. O que eu queria? Entender? Ele pareceu muito surpreso quando eu enfim liguei no começo de dezembro, mas pareceu animado ao concordar em pegar um avião até a França pra me ver.
Tio Aurélio era um homem beirando os sessenta anos. Seus cabelos estavam bem cinza, e uma ligeira calvície se anunciava nas laterais. Ele já tinha algumas rugas, mas podia passar muito bem por um homem de quarenta e alguns anos. Seu rosto trazia uma expressão pesada. Era como uma tristeza de anos. Não era como se o seu cachorro tivesse acabado de morrer, era a tristeza de uma vida toda o que ele trazia em seu rosto.
_Quer pedir alguma coisa?_ ele perguntou quando eu me sentei.
_Um achocolatado, por favor
Ele fez o pedido num francês impecável. Ficamos nos encarando por um tempo até ele sorrir e mostrar as rugas em volta dos olhos. Sorri de volta envergonhado. Eu não tinha uma conversa planejada na minha cabeça.
_Então, como vão as coisas?_ ele perguntou.
_Bem, estou na metade do meu intercâmbio aqui.
_Intercâmbio em Paris é um sonho, não?
_Sim._ eu sorri _Todos dizem isso, mas foi difícil convencer eles a me deixarem vir.
Uma sombra passou sobre seus olhos.
_Como estão todos?
_Bom..._ eu dei um longo suspiro de coragem antes da próxima frase _Seu pai morreu em abril. Suponha que você não saiba.
Seu olhar se abateu um pouco. Ele ficou um tempo admirando a rua pela janela e só pareceu despertar quando o garçom voltou com nossos pedidos. Eu lhe dei o tempo que ele achasse necessário para digerir a notícia.
_Como foi?_ ele perguntou.
_Um infarto. Ele já estava com idade avançada, os médicos não conseguiram salvá-lo.
_Hm.
Mais um longo tempo em silêncio antes dele voltar a falar.
_Você vai fazer uma má ideia de mim se eu te falar que não estou triste?
_Claro que não. Ele fez muitas coisas com você, te bateu, te expulsou de casa._ respondi _É natural que você deixasse de vê-lo como pai.
_Não foi isso._ ele tomou um longo gole de café antes de continuar _Eu poderia ter perdoado ele por tudo isso. Era o seu jeito de encarar a vida. Mas eu nunca vou perdoá-lo por ter mandado matar o meu namorado.
Eu arregalei os olhos com a informação. Não era exatamente novidade, minha mãe tinha deixado aquilo subentendido quando me contou a história. Mas era impactante ouvir aquilo com todas as letras.
_Qual a história que te contaram?_ ele perguntou
Com calma, contei tudo o que minha mãe tinha me contado, tomando o cuidado de não mencionar como ela se sentia em relação a tudo. Ele ouviu atentamente, como se fosse a história de uma outra pessoa qualquer.
_Sim, e eu vim pra cá. Eu cheguei na Alemanha em 1975 no meio da Guerra Fria. Eu era idealista, sabe? Sonhava em ajudar a construir um mundo mais igualitário. Mas foi um choque quando cheguei. Nem tanto pela Alemanha socialista, mas pelos países socialistas do Leste Europeu e seus conflitos. Todos falavam uma língua que eu conhecia pouco, o que por si só já é uma coisa pesada pra qualquer um encarar, mas ainda tinha o lance de encarar a realidade. Eu não encontrei o que esperava encontrar no lado de lá do Muro de Berlim. Eu só encontrei mais pobreza e sofrimento. E eu me iludi por anos, dizendo que era só um estágio até chegarmos onde queríamos. Comecei a trabalhar num jornal de médio porte e cobri profissionalmente a queda do meu sonho. Quando o Muro veio abaixo, eu estava lá, chorando e assistindo o meu sonho se despedaçar a marretadas.
Eu ouvia o seu relato atentamente. Ele contava com o olhar perdido, como se fosse outra vida.
_Vocês, jovens de hoje, podem achar isso estúpido, mas não era. Eu fugi do meu país, uma ditadura de direita, e de uma casa onde a moral era como um deus que tudo via e recriminava em busca de um mundo melhor pra mim. Eu vim procurar um mundo onde as pessoas se tratassem como iguais. Quando eu não encontrei esse mundo, eu tentei construí-lo, mas era tudo frágil demais. Eu tinha quarenta anos e parecia que tudo o que eu tinha vivido tinha sido em vão. Toda uma vida jogada no lixo.
Ele fez uma longa pausa, que eu não tive coragem de interromper. Ele me deu um breve sorriso antes de continuar.
_Eu senti que era hora de voltar ao Brasil. Mas eu não podia bater na porta dos meus pais. Eles tinham sido bem claros comigo. Meus irmãos tampouco queriam me ver, então tinha a sua mãe. Amigos me falaram que ela vivia em Belo Horizonte, então foi pra lá que fui e bati em sua porta. Ela parecia que tinha visto um fantasma.
Eu me assustei. Minha mãe não havia me dito que eles tinham voltado a se ver anos depois. Eu ouvia ainda mais atentamente a sua história.
_Lembro como se fosse hoje._ ele continuou _Você estava no colo dela, encolhidinho num pano. Quando ela me deixou entrar, mais pelo susto do que pela saudade, a primeira coisa que pedi foi que me deixasse te segurar. Eu tinha tido parceiros ao longo dos anos, mas nunca cheguei a formar família ou ter filhos. Minha família era meus amigos. Então, era emocionante segurar aquela miniatura de gente que tinha meu sangue. Você sorriu pra mim, Bernardo, e eu me vi refletido nos seus olhos.
Eu sorri sem jeito pela sua memória. Então eu tinha o conhecido?
_Sua mãe, ao recobrar a consciência, logo veio e tomou você de mim. Disse que você precisava dormir e te levou pro quarto. Não gosto de falar isso, mas acho que ela pensou que eu tivesse algum tipo de pensamento por ser gay..._ ele falou com alguma dor na voz _Enfim, ela me perguntou o que eu queria. Eu lhe contei tudo o que tinha acontecido comigo e que eu estava de volta. E ela soltou todas as mágoas pra cima de mim, que eu tinha destruído a nossa família, que eu tinha nos jogado na lama, e tudo isso. Eu saí de lá atordoado, chorando pela família como não chorava há anos. Eu não poderia nem mesmo ver meus sobrinhos crescerem.
Ele me olhou com carinho, mas um carinho paternal e isso me comoveu.
_Um amigo que eu tinha me ofereceu um emprego como correspondente internacional de um jornal. Eu voltei a Berlim, conheci o cara com quem estou junto há vinte anos e adotamos um casal: Lukas e Lea. Eles vão gostar de te conhecer.
Eu sorri. Eu tinha dois primos! Quem sabe desses eu ia gostar.
_Essa é minha história._ ele falou terminando seu café _Agora é sua vez de me contar porque me chamou aqui. Foi só curiosidade?
_Não...
Eu não sabia bem como começar aquele assunto, mas eu senti que podia confiar nele.
_Eu não sei bem._ confessei _Eu acho que eu queria a sua ajuda pra entender a minha mãe.
_Por que você quer entender a sua mãe?
_Porque eu tenho que contar a ela que sou gay assim que voltar ao Brasil.
Ele não pareceu se surpreender.
_O que você espera dessa conversa com ela?_ perguntou.
_O pior possível.
Ele deu um longo suspiro.
_Certo, eu posso te ajudar um pouco com sua mãe. Pelo menos, eu posso te contar o que eu sei sobre ela.
_Obrigado.
_Mas não hoje._ ele completou _É uma longa história e eu não trouxe nenhuma bagagem pra ficar. Faça o seguinte, venha me visitar. Já conhece Berlim?
_Não.
_Que tal vir em fevereiro? Berlim é linda quando o gelo começa a derreter.
_Pode ser.
Eu estava satisfeito com a conversa. Não tinha conseguido tudo o que eu queria, mas pelo menos eu ouvi uma grande história. A história de um homem que passou por mal bocados por causa da sua sexualidade, mas soube continuar vivendo. E ele estava disposto a me ajudar a colocar um final feliz na minha própria história.
_Tio..._ falei quando nos despedimos na porta do café.
_Sim?
_Eu caminhei de mãos dadas e beijei o meu namorado na rua aqui em Paris. Ninguém nos bateu ou xingou._ falei _Talvez sua luta não tenha sido em vão. Sua geração deu à minha um mundo mais igual.
Ele sorriu, o sorriso mais aberto que ele tinha me dado.
_Talvez você tenha razão...
_E mais uma coisa...
_O que é?
_Agora que vovô morreu, você devia ligar pra vovó. Ela é sua mãe.
Ele não respondeu. Apenas deu mais um sorriso, se despediu e caminhou na direção oposta a minha.
Eu realmente acreditava que minha avó gostaria da sua ligação. Foi como a mãe de Ricardo disse, só era preciso um tempo até que as mães aceitassem a sexualidade dos filhos. O amor materno se sobressairia. Era o que eu esperava da minha própria mãe.