Os pais de Ricardo ainda estavam em Paris e iam embora no dia seguinte. Assim, decidimos passar a virada do ano aos pés da Torre Eiffel. Todo ano milhares pessoas se reuniam ali pra assistir o show de fogos e celebrar a entrada de um novo ano, sem se importar com o frio.
_Feliz ano novo!_ falou Ricardo quando deu a hora.
_Feliz ano novo!_ respondi.
Trocamos um longo e carinhoso beijo. Cumprimentei meus sogros e mais alguns desconhecidos à nossa volta. Ricardo me abraçou por trás e ficamos assim assistindo a queima de fogos. Era um lindo espetáculo, sem dúvida, mas minha cabeça estava longe. Sozinho comigo mesmo, eu fazia uma retrospectiva do meu ano.
Foi, sem sombra de dúvida, o pior ano da minha vida, ainda que coisas boas tivessem acontecido também. Primeiramente, me lembrei de Eric. Apesar dele ter morrido oficialmente no Natal, fora a exatamente um ano que eu estava na varanda da minha casa com Rafael e Alice remoendo o fato. Eu pensei menos em Eric nos últimos meses, mas ele nunca realmente saiu da minha cabeça. Ainda era uma dor que ficava me remoendo. Eu podia superar todas as coisas que aconteceram de ruim comigo naquele ano, mas não a sua morte. A dor do arrependimento era forte demais.
Me lembrei de toda a sequência de porradas que levei nos primeiros meses do ano. Pedro me renegando, Alice se afastando, Rafael namorando. Tinha o pai de Tom. Tinha o meu pai. Lembrando assim, parecia como se fosse outra pessoa que tivesse vivido aquela história e eu fosse apenas um espectador. Mas não, eu lembrava de cada dor física e psicológica daquela surra. Eu me lembrava de cada palavra de tudo o que meu pai me disse.
E eu me lembrava da minha maior marca: o dia em que eu quase me matei. Até hoje eu não consigo entender bem como cheguei àquele ponto. Claro, eu podia reconstituir os fatos e encarar aquele momento como um segundo de fraqueza, mas ainda sim era difícil de compreender. Felizmente, aquele também foi o momento que eu acordei. Era preciso ir atrás de tudo o que perdi. E era por isso que eu estava em Paris, para me encontrar.
_Um doce pelos seus pensamentos._ falou Ricardo no meu ouvido, ainda me abraçando.
Eu sorri do seu carinho.
_Estou pensando emEle sabia tudo o que tinha acontecido comigo, então sabia muito bem sobre o que eu estava falando.
_Isso é perda de tempo._ falou apertando o abraço _2007 já passou. Pense em 2008.
_Tem razão._ respondi rindo.
E o que 2008 me reservava?
Primeiramente, ele me reservava mais seis meses em Paris, o que era a única coisa certa na minha vida no momento. E assim que aquele período de sonhos acabasse, assim que pisasse no Brasil, eu teria que confrontar todos os meus conhecidos com a minha sexualidade. Minha mãe em especial. Se essa ideia me aterrorizava antes, hoje ela não me amedrontava tanto. Claro que ainda era uma coisa enorme e que podia acabar muito mal, mas agora eu tinha certeza que não havia como pular aquela etapa. Eu nunca poderia ser quem eu queria ser se continuasse a fingir ser outra pessoa. Eu não podia continuar naquele personagem, porque o que o aguardava não era um final feliz.
Pela primeira vez, eu pensei no fim do meu namoro com Ricardo. Como seria? Não havia como manter nosso relacionamento quando voltássemos. Se não porque vivíamos a quase seiscentos quilômetros de distância um do outro, era por eu ainda amar Rafael. Analisando friamente, Ricardo ainda amava seu ex-namorado também, o que nos deixava quites. Mas era diferente, porque Ricardo tentava superá-lo, enquanto eu pretendia lutar por Rafael.
Quando já tarde da madrugada decidimos em ir embora, foi a hora das despedidas. Os pais de Ricardo iam embora assim que acordassem no dia seguinte e insistiram que não havia necessidade de nós levarmos eles no aeroporto. Assim, nos despedimos na porta do seu hotel. Houve muito choro por parte dos três e eu os observei com carinho.
_Cuida bem do meu menino, viu Bernardo?_ falou o pai de Ricardo ao se despedir de mim.
_Pode deixar, seu Inácio.
Depois foi a vez da minha sogra. Ela esperou que Ricardo e o pai estivessem entretidos na sua despedida pra me falar:
_Você é bom garoto, Bernardo.
_Obrigado._ falei sem jeito e sem saber como responder.
_Eu vejo nos seus olhos que você é um bom menino e tem um bom coração, só a cabeça meio confusa às vezes._ ela sorriu carinhosamente _Mas está tudo bem, porque todos nós temos a cabeça bagunçada quando temos vinte anos de idade.
_Obrigado, dona Linda.
_Meu filho me preocupa um pouco...
Ela falou aquilo pensativa e eu desconfiei dos caminhos daquele papo.
_Ele se apaixona fácil..._ falou me olhando.
_Eu estou apaixonado pelo seu filho._ falei meio na defensiva.
_Eu sei, me desculpe pelo tom._ ela falou parecendo sincera _O problema é que ele te ama. E você não o ama.
Eu não tive como responder. Era a verdade inevitável. Para Ricardo, aquilo já era maior do que uma paixão de intercâmbio. Eu era seu namorado de fato. Mas Rafael ainda estava fincado muito forte no meu coração. E eu não conseguia amar os dois igualmente.
_Não é a sua culpa._ ela completou _Há outra pessoa, Ricardo me contou.
_Linda, eu...
_Aonde eu quero chegar é um conselho. Eu realmente gostei de você, então me sinto na obrigação de te dar esse conselho.
Eu ouvia atentamente suas palavras.
_Vocês não têm nem vinte anos ainda, o amor é lindo! Mas no mundo dos adultos, o amor é um sentimento complicado. Eu não me casei com Inácio amando ele. Eu amava outro. Mas esse outro só sabia me magoar e eu o magoava também quando ele notava o que tinha feito, o que foi se transformando numa relação doentia. Então, casei com Inácio. Ele me amava e eu estava apaixonado por ele. Eu aprendi a amá-lo com os anos.
Eu ouvi tudo com os olhos arregalados. Aquela era uma baita revelação. Mas ela pareceu ignorar meu susto e continuou falando.
_O que eu quero dizer, o meu conselho pra você é: na dúvida, fique com aquele que te ama. São suas maiores chances de felicidade. Eu nunca me arrependi da minha escolha. Tchau, Bernardo. Eu espero lhe rever um dia no Brasil.
E assim ela foi embora me deixando com aquilo na cabeça. Eu e Ricardo voltamos pro apartamento andando de mãos dadas. Ele julgou o meu silêncio como cansaço, mas não, eu estava apenas pensativo.
Valia a pena lutar por Rafael? Eu o amava e ele me amava, mas isso seria o bastante para sermos felizes juntos? A questão de eu recusar a me assumir e assumi-lo sempre foi um problema no nosso namoro, mas não era a única coisa que nos distanciava. Eu já disse aqui e vou dizer de novo que Rafael e eu tínhamos visões diferentes do mundo. Nossas personalidades também eram um tanto quanto conflitantes.
Ricardo combinava mais comigo. Nós tínhamos um encaixe melhor, digamos assim. Logo, nossa relação era mais calma e constante. Mas faltava alguma coisa. Tínhamos a paixão, tínhamos o tesão, tínhamos o fogo, tínhamos Paris! Mas faltava alguma coisa: faltava eu lhe amar de volta.
Então, pela primeira vez me veio à cabeça a dúvida que viria a me afligir muitas vezes ainda: Rafael ou Ricardo?
_Meu namorado está tão avoado hoje..._ falou Ricardo.
Ele me abraçou quando entramos no nosso quarto e começou a me dar beijinhos na nuca. Ele foi descendo com pequenas mordidas pela minha clavícula enquanto tirava meu casaco. Em poucos segundos ele tinha me deixado nu no meio do quarto. Eu o olhava atentamente enquanto deixava ele fazer o que quisesse comigo. Ele beijava cada parte do meu corpo com muito cuidado e sem parar de me olhar nos olhos. Ele colocou o meu pau na boca e começou um boquete bem lento, como se aproveitasse cada segundo daquilo. Era muito bom. Tinha amor em cada gesto seu. Cada beijo era uma declaração.
_Senta aqui._ ele falou me colocando sentado na beirada da cama.
Ele começou um lento striptease que me excitou. Não tinha música, nem era uma coisa apelativa. Ele tirava cada peça de roupa enquanto me sorria safado. Aquilo era muito sexy, como um convite ao prazer em cada peça de roupa que ele se livrava. Ele enfim ficou nu. Com muito cuidado, ele se sentou no meu colo e começou a roçar sua bunda no meu pau. Aquilo me deixou louco de prazer. Eu agarrei sua cintura e o beijei com desejo. Ele guiou meu pau com a mão para dentro de si. Assim que ele se acostumou, começou a pular em cima de mim com vontade. Nós gozamos enquanto olhávamos no fundo dos olhos um do outro.
Depois de tomar banho, nós nos deitamos na minha cama. Ele se deitou atrás de mim e me abraçou. Estávamos ambos só de cueca e embaixo de cobertas. A neve se depositava preguiçosamente na janela. Não consegui pensar em nada que pudesse melhorar aquele momento.
Eu sei que você passou por muita coisa esse ano._ ele falou no meu ouvido _Deixa pra lá. O que interessa é o que vem. Olhe pra frente. Eu estou aqui com você agora.
Ele terminou com um beijo demorado na minha nuca. Respondi apertando sua mão no meu peito e me ajeitando pra ficar ainda mais próximo a ele. Tudo o que eu consegui pensar foi:
“Eu posso amar esse cara!”
[...]
Quando acordei, o dia já tinha amanhecido, mas ainda era muito cedo. Tinha dormido poucas horas e não consegui pegar no sono novamente. Rafael e Ricardo assombravam a minha cabeça. O que fazer? Me prender a um velho amor ou me jogar de cabeça em um novo? Sim, eu amava mais Rafael, mas isso era o bastante? Conseguiríamos superar nossas diferenças? Não era melhor dar uma chance de Ricardo me conquistar? Que amor poderia ser o mais forte, aquele une os opostos ou o que nasce das semelhanças entre duas pessoas?
Não era tempo de responder aquelas perguntas ainda. Um dia eu teria que responder, mas ainda não. Eu estava em Paris com Ricardo. Rafael estava em Belo Horizonte com Carolina. Eu não sabia o que o futuro me guardava, então eu tinha que me concentrar no presente. E meu presente era Ricardo. Pelo menos até a hora de voltar, era tempo de deixar Rafael ir. Eu tinha que dar uma chance de Ricardo me conquistar.
Me levantei da cama com dificuldade de escapar dos braços de Ricardo, mas consegui não acordá-lo. Liguei meu notebook e acessei meu Orkut. Primeiro, entrei no perfil dos meus amigos. Tudo parecia na mesma. Alice continuava com Marcos, embora Pedro continuasse em cima fazendo pressão. Rafael continuava com Carolina.
Eu tinha que mostrar que eu estava seguindo em frente. Não era fazer ciúme em Rafael, mas provar pra mim mesmo que eu estava seguindo em frente. Era uma prova de confiança que eu estava me dando. Eu peguei a nossa câmera, passei as fotos para o computador e escolhi com cuidado. No álbum que eu tinha reservado para a França no meu Orkut, postei uma foto que tirei na noite anterior. Eu e Ricardo abraçados e seus pais nos cercando. Nós quatro sorríamos com a Torre Eiffel atrás e uma multidão que esperava pela virada do ano. Nessa foto, coloquei a seguinte legenda:
“Linda família. Obrigado por me receberem tão bem!”
Não dizia muita coisa, mas para bom entendedouro, meia palavra bastava. Mas era pouco. Eu tinha que dar um passo além. Se eu ia realmente me assumir assim que voltasse, não faria mal dar um passo perigoso agora. Não havia nenhum foto minha sozinho com Ricardo no álbum, apenas com mais amigos. Assim, escolhi uma muito bonita. Nós dois estávamos com nossas roupas de frio e, à beira do Sena, tiramos um foto nossa, uma selfie. Não estávamos abraçados, só aparecia do nosso peito pra cima. Aquela foto não dizia muito sobre nada. Apenas uma pessoa muito desconfiada poderia tirar alguma conclusão sobre aquela foto. Isso é se que não tivesse colocado ela como a foto do meu perfil. Que hétero coloca uma foto sua sorrindo junto com outro cara no seu perfil? Mas não liguei, esses tempos ficaram pra trás. E Ricardo representava um novo tempo.
Eu me fiz uma pergunta sobre como seria o ano de 2008 pra mim. Se 2007 foi o ano da mudança, o que seria de 2008? E eu respondo: seria o ano do recomeço. Tudo novo dali pra frente. Parece uma daquelas promessas de ano novo onde prometemos um “novo eu”. Mas não foi uma promessa vazia. Não mudei de uma hora pra outra. Eu vinha mudando há meses, mas eu sentia que era hora de começar a mostrar ao mundo essa mudança. Eu já tinha encontrado a pessoa que eu queria ser quando parti pra França, agora eu deveria decidir por quais caminhos ela iria seguir. Eu não sabia o que o futuro me reservava, mas eu estava disposto a pagar pra ver.
Uma pequena amostra do que eu poderia esperar veio na forma de uma simples mensagem de Alice mais tarde naquele mesmo dia:
“Rafael está puto com você.”
Eu não posso pensar em Rafael agora, Alice. Ele vai ter que esperar eu voltar.
_Que confusão, meu Deus!
Eu estava conversando com Alice pela webcam do computador. Ela parecia a mesma, fisicamente ela não tinha mudado nada. Mas fazia tanto tempo que não a via, que parecia muito mais bonita. Ela solicitou a conversa assim que me viu online poucas horas depois de me mandar aquela mensagem sobre Rafael. Por causa do teor do assunto, eu escolhi um momento onde Ricardo não estivesse no apartamento pra conversar.
_Não tem nenhuma confusão. Eu estou com Ricardo. Quando eu voltar pro Brasil, converso com Rafael.
_E você jura que ele vai te esperar assim bonitinho?
_Eu não quero que ele me espere. Nunca pedi isso. Ele ainda está com Carolina, certo?
_Sim.
_Pois é. Não adianta nada conversarmos agora.
_Discordo._ falou fazendo cara de descrente _Acho que você devia conversar com ele e explicar seu ponto de vista.
_Nós estamos juntos, eu não devo explicações para ele sobre a minha vida amorosa.
_O mundo não é preto e branco assim, Bernardo.
_Eu sei que não é. O que estou tentando te fazer entender é que não temos nada pra conversar.
Ela deu um longo suspiro.
_Ele me ligou quando viu a sua nova foto de perfil, Bernardo._ ela falou _Ele ficou magoado.
Foi impossível não me sentir mal por Rafael, mas eu não tinha como pular aquela etapa. Eu não podia esconder Ricardo das suas vistas para protegê-lo.
_Não fiz com essa intenção._ falei.
_Eu sei e ele sabe, mas mesmo assim. Você se declarou e disse que vai lutar por ele quando voltar, mas assim que desembarcou já arranjou um namorado? O que você acha que ele está pensando?
_Eu entendo, Alice. Eu entendo o ponto de vista dele. Só que eu não posso fazer nada agora. Eu não vou ficar me guardando pra ele por um futuro que talvez nem exista. Eu não vou me privar de um cara maravilhoso como o Ricardo sendo que ele ainda está namorando a Carol._ foi a minha vez de suspirar profundamente _Ele vai ter que esperar eu voltar pra podermos conversar cara a cara.
_Se é assim que você quer...
Neste momento, ouvi a voz de Ricardo no apartamento. Ele tinha acabado de chegar da rua. Assim que ele entrou no quarto, tratei de puxá-lo e apresentá-lo a Alice. Os dois se deram bem.
_E como vão as coisas com Pedro? Você já cedeu?_ perguntou Ricardo me fazendo cair na gargalhada.
Mesmo com a pouca qualidade da câmera, pude que o rosto de Alice ficou vermelho de vergonha. Como sempre acontece nessas situações, ela adotou a defensiva.
_Eu te conheço por acaso? Te dei essa liberdade?_ falou.
Ricardo perdeu um pouco da graça, mas continuou rindo ao me ver gargalhando com situação. Ele entendeu que era apenas o jeito de ser de Alice, que ela não estava brava com ele.
_Agora sou eu que estou perguntando._ falei _E Pedro?
_Ah, vai tomar no cu._ falou desligando e saindo da conversa.
Eu e Ricardo continuamos rindo por mais algum tempo.
_Ela parece ser um amor de pessoa._ ele comentou.
_E é mesmo.
Ele começou a passar a mão sobre minha pele e tirar a minha camisa. Eu já ia ceder, mas antes tínhamos um assunto a tratar.
_Antes disso, tenho que conversar com você.
Ele me olhou preocupado.
_O que foi?
_Lembra do meu tio Aurélio que te contei a história?
_Sim.
_Pois é. Eu encontrei com ele semana passada e ele me convidou pra ir visitá-lo em Berlim.
_Você se encontrou com ele? Por que não me falou?
_Porque eu precisava fazer isso sozinho. Talvez ele não se abrisse com você por perto. E você estava curtindo os seus pais, não queria te roubar deles.
_Mas eu queria estar ao seu lado para o caso de você precisar.
_Bom, agora eu vou precisar de você.
_Como assim?
_Eu não quero ir pra Berlim sozinho. Além de não falar o idioma, tenho medo de ficar muito isolado._ acariciei sua mão entre as minhas _Você vai comigo?
Meu namorado sorriu e deu de ombros.
_Eu sempre quis conhecer Berlim!
[...]
No começo de fevereiro, eu parti com Ricardo pra Berlim. Fomos na sexta-feira à noite com a intenção de voltar no domingo à noite. Ficaríamos na casa do meu tio. Eram quase duas horas de voo. Tio Aurélio nos buscou no aeroporto. Ele foi muito simpático com Ricardo. Mas eu ainda não tinha muita intimidade com ele, então fiquei meio retraído. Ainda bem que tinha levado meu namorado.
Se Paris é uma cidade que parece ter parado no tempo no início do século 20, Berlim parece ter parado no tempo nas décadas de 70 e 80. Toda a cidade era envolvida por uma aura indie e underground. E combinava muito bem. Era uma cidade bonita. Meu tio morava no coração de Berlim, no bairro de Tiergarten. Era um apartamento de quatro quartos num prédio de três andares. Logo fomos apresentados ao restante da família. O marido do meu tio era um senhor que aparentava ser a simpatia em pessoa. Ele tinha um sorriso bem largo. Era mais baixo que eu e um pouco acima do peso, com os cabelos completamente grisalhos, apesar das rugas acusarem apenas alguns anos a mais de cinquenta. Se chamava Klaus. Ele era alemão, mas falava um pouco de português e eu falava um pouco de alemão, então nos entendíamos. Logo, apareceram os gêmeos. Lukas e Lea tinham treze anos. Eram irmãos de sangue que meu tio adotou junto do marido ainda bebês. Eles tinham traços fortes e pesados, combinando com seus cabelos negros. Mas apesar da aparência séria, eles foram muito simpáticos comigo e com Ricardo. Naquela noite, quando meu tio nos acomodou no quarto de hóspedes, meus primos ficaram até tarde da noite nos fazendo mil perguntas sobre o Brasil. Apesar de falarem bem português, apesar do sotaque, eles nunca tinham ido ao país e morriam de curiosidade de conhecer a terra de seu pai.
No dia seguinte, os quatro fizeram questão de sair conosco e fazer um passeio pelos principais pontos turísticos da capital alemã. Fazia muito frio ainda, mas a neve começava a derreter, o que nos permitiu ver belas paisagens de inverno pela cidade. Ricardo se afastou um pouco com Klaus e os gêmeos. Entendi que ele estava me dando um tempo com tio Aurélio. Meu tio entendeu o recado também.
_Tem conversado com sua mãe?_ ele perguntou.
_Sim, toda semana.
_E você já contou?
_Não, essas coisas têm que ser feitas pessoalmente.
_Talvez.
Caminhamos juntos por um tempo antes de ele recomeçar a falar.
_Eu não tenho muito o que te contar sobre sua mãe. O que eu posso te contar é sobre o modo pelo qual fomos criados. Talvez isso te ajude de algum modo a entender como ela pensa.
Fiquei em silêncio e ele começou a contar.
_Meu pai era um homem muito rígido, mais do que o homem que você conheceu já envelhecido. Ele já veio de uma família muito dura, sabe? A mãe morreu muito cedo e o pai, um velho fazendeiro, criou ele e os irmãos com a ajuda da madrasta, uma mulher cruel. Quando eram crianças, ela os punia deixando-os sem comida ou batendo com uma vara. Não quero defender ele, de jeito nenhum, só estou dizendo que essa era a família que ele conhecia. Ele não sabia que exista alguma coisa melhor ou diferente lá fora, então foi com essa mentalidade que ele formou nossa família.
Meu tio não me olhava, olhava pra frente enquanto caminhava, se limitando a abaixar a cabeça quando vinha um vento mais frio em nossa direção.
_Ele não tinha estudado, mal sabia ler e escrever, então só havia dois caminhos para ele: a roça ou o exército. No exército, tudo o que ele encontrou foi mais rigidez. Foi nessa época que ele conheceu sua avó e seu casou. Coitada dela, se apaixonou pelo homem errado._ comentou meu tio num suspiro sem graça _Ela também vinha de uma família pobre, mas urbana. Ela nunca tinha tido um namorado, apenas podia sonhar com o amor que via nos livros e filmes. E apareceu aquele homem, alto, com porte, com uma profissão respeitadíssima e disposto a se casar com ela. Ela achou que fosse amor, mas não era. Ela se apaixonou sim, casou apaixonada, mas cedo ela descobriu que paixão não é amor. Paixão acaba.
Nós ficamos um tempo observando e rindo de um desajeitado Ricardo tentando ensinar Klaus, Lea e Lukas a sambar.
_Enfim, crescemos nessa casa. Diferente do meu pai, criado isolado de outras famílias, vivíamos na cidade, então tínhamos amigos e vizinhos, e podíamos ver com eram as famílias deles. Desde cedo entendemos que havia alguma coisa de errado com a nossa. Meu pai era rígido, tratava-nos como se fossemos parte do seu pelotão. Ele nunca nos chamou de filho, ou nos tratou com tais. Talvez nos amasse como filhos, mas ele não sabia como amar um filho, ele não viu isso quando estava crescendo._ ele fez mais uma longa pausa _E tinha a minha mãe. Logo nos primeiros anos ela percebeu a vida a qual estava condenada e se ressentiu. Ela se fechou, se enfeiou, ganhou traços muito mais profundos que eram esperados para a sua idade. Era como se tivesse morrido em vida. O único brilho que tinha restado na sua vida eram seus filhos, mas até eles tinham se tornado um doloroso lembrete da sua vida infeliz. Eles eram a corrente que a prendiam àquele homem e àquela casa.
Ele olhou pra mim pela primeira vez durante aquela conversa.
_Entende? Foi esse ambiente em que crescemos. Cada um lidou com ele à sua maneira. Seus tios resolveram serem cópias do seu avô, afinal, era o modelo de homem respeitável que eles tinham. Eu não tive essa opção. Eu não era igual a meu pai. Eu sempre tive uma coisa muito forte dentro de mim. Era muito mais que a homossexualidade reprimida, era uma vontade de explodir, chutar a porta daquela casa, conhecer o mundo. A vida tinha que ser mais do que aquilo. Quando eu era pequeno, eu não sabia lidar com esse sentimento muito bem, então eu me trancava no meu mundo da imaginação e sonhava com outros países e outros povos. Mas à medida que fui crescendo, fui conhecendo outras pessoas com visões parecidas com a minha e isso me desabrochou. A sua mãe falou que foi Marcos que me mudou, mas não. Eu nunca tive problemas com minha sexualidade. Quando eu fui sentir atração pelo meu primeiro garoto, Marcos, eu já estava inserido em um grupo de amigos que via aquilo com naturalidade. Além do que, era apenas mais uma coisa que me diferenciava do meu pai, e eu me agarrava a qualquer cosia que me provasse ser diferente dele. O resto da minha história você já sabe._completou com num tom triste.
Sim, eu sabia. Ele enfim explodiu, foi mandado pro Recife, voltou pra casa, descobriu que o namorado fora morto por ordem do meu avô e se autoexilou na Alemanha Oriental.
_Com a sua mãe foi diferente._ ele falou _Sua mãe era a princesa da família. Ela sempre foi a mais bonita, a mais alegre, a única de nós que realmente sorria. Como ainda era nova, ela não entendia muito bem o mundo que nos cercava. Para ela, meu pai era o ideal do homem: sério, com postura, o provedor do lar. E mamãe era a dona de casa perfeita, sempre serviente ao marido e aos caprichos dos filhos. Ela não entendia que tinha alguma coisa errada na nossa casa e na nossa família. Para ela, aquilo era o ideal, a perfeição. E como você bem sabe, sua mãe não gosta de ser contrariada.
Nas palavras dele, foi impossível não associar minha mãe e minha irmã. Era uma descrição que cabia às duas perfeitamente. A genética era realmente uma coisa poderosa.
_Ela acha que fui eu que destruí nossa família, mas ela estava destruída há muito tempo. Talvez ela soubesse e eu lhe contei sobre o grande elefante branco que tínhamos na sala. Ela nunca me perdoaria por isso. Ela nunca vai me perdoar por estourar a bolha da perfeição._ meu tio sentenciou _Eu mantive alguns amigos no Brasil, e alguns em comum com ela, por isso, sempre pude acompanhar seus passos de longe. E uma conclusão muito importante: tudo o que ela fez na vida depois que fui embora foi trabalhar pra ter a família perfeita. Se ela não podia restaurar a perfeição na nossa família, ela procurou construir a sua própria assim. Logo, ela entrou pra medicina, porque uma mulher da sua geração que não trabalhasse podia ser mal vista e médica era uma profissão respeitável. Mas ela se especializou em dermatologia, pois isso não acarretaria em perder a sua feminilidade aos olhos da sociedade. Ela se casou com o ideal do homem perfeito atual: bonito, profissão respeitável, capaz de protegê-la física e financeiramente, carinhoso com os filhos sem ser necessário perder a sua masculinidade pra isso, etc. E ela se desdobrou entre sua casa e seu trabalho, porque a mulher perfeita da sua geração dava conta do recado. E ela teve muitos filhos, porque é o que sempre se espera de uma mulher. Entre outras coisas. Tenho certeza que você pode pensar em muito mais coisas do que eu.
Eu ouvi tudo atento. Não era exatamente um susto ouvir aquilo, não estavam me contando nada exatamente novo. Mas era uma interpretação diferente da minha mãe, era um ângulo da sua personalidade que eu nunca tinha prestado muita atenção. A minha cabeça começou a se abrir. Eu comecei a pensar em todos os pequenos gestos e atitudes da minha mãe, e percebi que tudo se encaixava ao que tio Aurélio estava falando.
_Então, preste bastante atenção, Bernardo. Esse é o conselho que te dou._ ele parou pela primeira vez desde o início da conversa e falou com a mão no meu ombro _Sua mãe é inteligente, ela não acha que homossexualidade é uma doença ou um pecado mortal. O que ela não suporta é que quebrem a imagem de perfeição que criou pra sua família. Não adianta querer mudar esse traço da sua personalidade, agora já é tarde. O que você precisa fazê-la entender é que você ainda é o mesmo, e que sua família é a mesma ainda. É sua única chance.
Sacudi a cabeça afirmativamente. Como fazer aquilo? Como fazê-la entender aquilo se até pouco tempo nem eu mesmo entendia? Era uma questão a se pensar, pois em menos de quatro meses eu teria que encará-la com a verdade.
_E adivinhe?_ falou tio Aurélio com uma inesperada expressão de excitação.
_O que?
_Segui seu conselho e liguei pra sua avó.
Meu rosto se iluminou com a notícia.
_Ela se emocionou e disse que estava feliz por eu ter ligado.
_Mas essa é uma notícia maravilhosa!
_Sim! E ela quer muito conhecer seus primos. Ela não pareceu tão animada assim em conhecer Klaus, mas também não pôs objeções.
Ele ria de pura alegria com a situação e eu o acompanhei. Eu podia entender seu sentimento. Fazia quase quarenta anos que eles não se falavam.
_E eu devo ir a Porto Alegre com Klaus e os meninos em julho. Seria ótimo se você aparecesse também.
_Seria ótimo e...
Me lembrei de um pequeno detalhe.
_O que foi?_ ele perguntou.
_É que julho é o mês em que minha mãe nos leva pra visitar Porto Alegre.
Tio Aurélio ficou pensativo por alguns instantes, mas depois soltou num riso contido:
_Bom, acho que está na hora de uma reunião de família.
O que esperar dessa reunião em família? O que esperar da reação da minha mãe? O que esperar dela quando eu lhe contasse a verdade? O que aconteceria com a minha família? Seria eu a estourar a bolha?
Em menos de seis meses, eu teria todas aquelas respostas...
Paris é conhecida por ser belíssima na primavera. Sendo assim, quando abril chegou, vimos a cidade ser inundada de turistas. Lógico que se tratava de uma cidade que recebia milhões de turistas o ano todo, mas a primavera era especial. O céu se abria, a temperatura se estabilizava em torno dos vinte graus, e o verde voltava a colorir os parques e boulevards da Cidade-Luz.
Eu e Ricardo aproveitávamos aquela bela época deitados nos jardins de Luxemburgo. Ele sentado na grama e eu deitado no seu colo. De vez em quando trocávamos selinhos rápidos, mas na maior parte do tempo nos contentávamos em ficar naquela posição trocando carícias. Ninguém ligava para o que estávamos fazendo, afinal, tinha tantos outros casais de diversas sexualidades, idades e nacionalidades ali. Parecia um sonho.
Um sonho que estava prestes a acabar. Em menos de três meses, estaríamos de volta ao Brasil. Eu seguiria para Belo Horizonte e Ricardo seguiria para São Paulo. Não tínhamos ideia de como seria nos separar depois de todo aquele ano juntos. Eu tinha que lidar com Rafael ainda. Assim, fizemos uma opção silenciosa por não conversar sobre o futuro. Tudo o que faríamos era aproveitar o momento. Planos? Só a curto prazo.
_Como quer comemorar seu aniversário semana que vem?_ ele perguntou.
_Ah, não sei. Alguma chance de você deixar a data passar em branco?
_Nenhuma! Por que faria isso?
_Ah, sei lá. Estou ficando velho.
_Você vai fazer vinte anos, para de drama!
_Estou entrando na terceira década da minha vida!
A gente ria com aquele papo. Por mais que fosse brincadeira, eu realmente me sentia ficando mais velho. Não era como os outros anos. Agora havia uma mudança de década. Era estranho, era como se aquela leve sensação de imortalidade fosse nos deixando
A gente podia passar só nós dois, no quarto, sem roupa..._ falei passando o dedo de leve pelas suas pernas.
_Ah, vai rolar isso, com certeza, mas vai haver um antes também.
Suspirei desanimado. Não era desânimo com Ricardo, era um desânimo de pura preguiça de comemorar meu aniversário. Meu namorado ignorou meu protesto silencioso e continuou:
_Eu fiz uma reserva pra dois num restaurante Deuxième Arrondissement e...
_Mas os restaurantes lá são caros, não precisa disso tudo...
_Tem uma banda de jazz que toca no salão principal._ continuou sem se importar com minha interferência _Você vai adorar!
_Se você diz...
_Você VAI adorar!_ falou me dando um beliscão que me arrancou risos.
[...]
Ele marcou o jantar pra noite anterior ao meu aniversário. Ele falou que assim seria o primeiro a me dar feliz aniversário quando virasse meia-noite. Sabendo que ele estava me levando a um restaurante mais chique, eu fiz questão de sair pra comprar roupas mais apresentáveis, afinal, não poderia ir com meu habitual uniforme: jeans, camiseta e casaco. Comprei uma calça mais séria de brim preta e uma camisa em tom cinza escuro. Ainda passei numa barbearia e fiz a barba e cortei cabelo. Meu cabelo estava mais cheio, apesar de não tão grande. Não houve surpresa pra Ricardo porque nos trocávamos no mesmo quarto, mas ele parou um minuto pra me admirar, o que me constrangeu.
_Tudo pra mim?
_Só depois da meia-noite._ respondi.
Ele também estava elegante. Usava um jeans bem escuro com camisa social branca. O que em outro pareceria sem graça, nele caía incrivelmente bem.
_Vamos?
E nós saímos de mãos dadas pela noite parisiense. A noite estava quente, então havia vários casais nos fazendo companhia no metrô. Em poucos minutos chegamos a uma das regiões mais ricas da cidade, conhecida pelos seus restaurantes caros, pelos antigos palácios que agora serviam como órgãos de governo e pelo famoso museu do Louvre.
O restaurante que Ricardo tinha escolhido tinha aparência de caro, o que me constrangeu um pouco no início, mas ele soube guiar bem a situação e me deixou mais à vontade. Uma banda de jazz e uma cantora negra de meia idade tocavam e cantavam em tom bem baixo, de modo que não atrapalhava as conversas nas mesas. Estávamos sentados num canto do salão e percebi algumas pessoas nos olhando, mas logo desviaram a atenção. Um casal gay jantando juntos não era mais uma novidade digna de nota. Então, deu-se início a todo aquele ritual ao qual nunca me acostumei: primeiro a entrada, então salada, um caldo ou sopa, e só então a refeição principal. Era alguma coisa de cordeiro, não me lembro muito bem, mas estava delicioso e combinava muito bem com o vinho que o garçom tinha nos recomendado.
Alegres pelas circunstâncias e pelo álcool, conversávamos animados.
_Sabe qual a grande novidade do dia?_ perguntei.
_Qual?
_Alice terminou o namoro.
_Não!
_Sim!
_Pedro?
_Ela não confessou, mas com certeza tem uma mão dele nessa história. E ela proibiu ele de me dar detalhes, porque ele estava todo inquieto quando conversamos mais cedo no MSN.
_Você enfim conseguiu, hein? Está juntando os dois!
_Você tem que ver a química entre eles. Me daria razão na hora!
O garçom se aproximou da mesa.
_Dessert? (Sobremesa)
_Oui.(Sim)_ respondeu Ricardo _Mais j’ai un commande à les musiciens. (Mas eu tenho um pedido aos músicos)
Olhei desconfiado pra Ricardo. O garçom lhe emprestou caneta e papel, onde ele escreveu alguma coisa e o garçom levou para a banda.
_O que você está aprontando, seu Ricardo?
_A noite tem que ser perfeita._ falou sorrindo e me fazendo cócegas nas costas da mão por cima da mesa.
Reconheci a música nos primeiros acordes e sorri para o meu namorado. Não havia música que se encaixava melhor para aquele momento delicioso das nossas vidas que estávamos passando.
Sem nenhuma vergonha ou medo de represálias, me inclinei sobre a mesa e dei um selinho demorado em Ricardo. Ele era o cara perfeito. Ele era aquela cara com quem meninos e meninas sonham acordados na esperança que apareça em suas vidas. Ele era um verdadeiro príncipe encantado. Ele é aquela pessoa que apenas um idiota deixaria escapar. Se eu pudesse ao menos amá-lo o quanto amava Rafael... Mas eu não podia pensar naquilo! Não naquele momento. Aquele era o nosso momento, o nosso presente, e era tudo o que importava.
Assim que acabamos a sobremesa, pedimos a conta. Ricardo pagou e não quis nem mesmo me deixar ver o valor. Ele alegava que era um presente dele e não teve como eu argumentar muito. Eu pensei em recompensá-lo no seu aniversário, mas me lembrei que seu aniversário era em julho e que já estaríamos no Brasil a quase seiscentos quilômetros de distância. Isso me entristeceu um pouco, mas não deixei que ele percebesse.
Decidimos voltar pra casa a pé, numa caminhada que não devia dar mais do que uma hora. Eu deixava ele me guiar, então não percebi de cara que ele estava desviando um pouco do caminho. Só entendi quando chegamos à mais famosa ponte que cruzava o Sena: a Pont des Arts. Mais conhecida pelos brasileiros como ponte dos amantes, era uma ponte no centro geográfico de Paris que atravessava o rio Sena. A grande fama da ponte se dava pelos infinitos cadeados que estavam presos nas suas grades de metal. Reza a lenda, que ao colocar um cadeado em nome do seu amor, um casal jamais deixaria de se amar.
_O que estamos fazendo aqui, Ricardo?_ perguntei desconfiado.
Ele sorriu travesso e do seu bolso de trás tirou uma caixinha. Ele abriu e me mostrou: um cadeado pequeno, mas muito bonito, com detalhes em prata e dourado, trazia nossos nomes lado a lado. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu não tinha palavras. Sem me dizer mais nada, ele foi até a ponte e prendeu nosso cadeado na grade. Ele se voltou até mim e me abraçou pela cintura.
_Pronto. Agora você tem a obrigação de me amar pra sempre!
Eu não tinha palavras para lhe responder, tudo o que pude fazer foi beijá-lo com toda força a pude e ele correspondeu. Ricardo não estava nos meus planos. Me apaixonar novamente nunca esteve nos meus planos. Eu sempre tive Rafael na cabeça. Mas quando eu vou aprender a não fazer planos? E que direito eu tinha de reclamar da vida que me deu Ricardo?
_Eu te amo._ ele sussurrou no meu ouvido.
Foi a primeira vez que ele me disse isso, mas eu já sabia. Estava em cada gesto seu, em cada beijo, em cada olhar. Ele me amava. E eu o amava. Sem dúvidas eu o amava. Só que eu não o amava como deveria. O lugar que ele queria no meu coração já estava ocupado. Mais uma vez, alguém me amava e eu não podia amar de volta na mesma intensidade. Me lembrei de Eric e de como a sua história terminou. Mas eu não podia cometer o mesmo erro novamente.
Eu olhei no fundo dos seus olhos e, com algumas lágrimas de emoção ainda descendo, resolvi que eu tinha que ser sincero com ele. Era o mínimo que eu devia àquele cara.
_Se algum dia eu tivesse tido escolha, a minha escolha seria você. Para sempre.
Ele sorriu triste com a minha resposta, mas não me soltou. Ele tinha esperança de ouvir um “eu te amo também”, mas não seria de todo sincero, ainda que não fosse de todo mentira também.
_Ai, esse Rafael..._ ele comentou bem humorado.
_Eu te amo, Ricardo._ falei passando a mão sobre seus cabelos _Foi só uma questão de ordem de chegada. Se eu tivesse te conhecido primeiro, eu nunca teria olhado pra outro cara na minha vida.
Ele sorriu com minha resposta, ainda que não fosse a que ele quisesse ouvir. Eu realmente acreditava na verdade daquelas palavras. Se eu conhecesse Ricardo, eu nunca teria ido até onde cheguei com Eric ou mesmo Rafael.
“Ah, mas você ama Rafael! Você teria o amado de qualquer jeito!”, vocês podem dizer. Não sei. Sem dúvidas, tanto Rafael e Eric mexeram comigo na primeira vez que os vi, ainda que eu não compreendesse bem a natureza dos meus sentimentos. Mas o amor que eu tenho por Rafael, foi construído aos poucos, com a nossa convivência. Se eu já estivesse com Ricardo, eu nunca deixaria ter chegado a esse ponto. Então, sim, eu acho que posso dizer que foi tudo uma questão de ordem de chegada.
Ricardo olhou para o relógio de rua atrás de mim e me sorriu:
_Feliz aniversário, meu amor!
Trocamos mais um beijo apaixonado e continuamos nosso caminho para casa de mãos dadas. Mas o nosso cadeado ficou lá e talvez fique lá para sempre. Talvez esse seja o motivo pelo qual eu continuei amando Ricardo por toda minha vida, longe ou perto.
[...]
Durante o dia seguinte, recebi ligações e mensagens de toda a minha família e amigos me desejando feliz aniversário. Ainda tentei tirar alguma informação de Pedro e Alice sobre o fim de namoro dela, mas ambos usaram a desculpa do preço da ligação internacional como desculpa para me cortar e desligar.
Estávamos cansados ainda pela noite anterior, então eu e Ricardo fomos dormir cedo. Ele dormia comigo na minha cama, apesar de não fazermos aquilo todo dia, afinal, era uma cama de solteiro. Tínhamos acabado de pegar no sono, não devia ser mais do que onze da noite quando meu celular tocou. Nós dois abrimos os olhos atordoados com o barulho.
_Eles não sabem calcular fuso horário? São cinco horas de diferença!_ reclamou Ricardo cobrindo a cabeça.
Peguei o celular e vi um número desconhecido, mas com prefixo brasileiro. Se eu não tivesse atordoado pelo sono, eu teria reconhecido aquele número tão familiar, e se tivesse reconhecido, não teria atendido. Ao menos perto de Ricardo.
_Alô?_ falei.
_Bernardo?_ chamou a voz tão familiar.
_Rafael?
As palavras me faltaram. Borboletas pareceram tomar conta do meu estômago. Há quanto tempo eu não ouvia aquela voz! Em compensação, senti o corpo de Ricardo se endurecer de tensão ao meu lado na cama.
_Oi._ Rafael falou, claramente sem jeito.
_Oi.
_Tudo bem?
_Tudo. E com você?
_Bem também.
Claramente incomodado com a situação, Ricardo se levantou num pulo e saiu do quarto. Ouvi a porta bater quando ele entrou no banheiro. Fechei os olhos amaldiçoando o péssimo timing de Rafael. Teve um ano pra ligar, tinha que ligar justo agora? Mas eu não podia ficar bravo com ele. Era o primeiro contato que tínhamos em meses.
_Eu só queria te desejar um feliz aniversário.
_Muito obrigado, Rafa.
_E como vão as coisas aí?
_Muito bem, obrigado.
_Se divertindo?_ talvez tivesse um cutucão discreto na sua pergunta, mas não percebi de primeira.
_Sim. Paris é uma cidade fantástica. Você iria adorar isso aqui.
_Sim..._ ele respondeu sem jeito _Um dia, quem sabe.
_Um dia...
Ficamos em silêncio durante um bom tempo, apenas ouvindo a respiração um do outro. Tinha tanta coisa pra ser dita, explicada e discutida. Mas não tínhamos coragem de fazer aquilo. Nossa relação, desde aquela viagem ao lago, passou a ser uma linha muito fina, que qualquer solavanco poderia romper de vez.
_Então, tchau._ falou enfim.
_Tchau.
_Até a volta.
_Até.
Eu desliguei e fiquei encarando a meia luz que entrava pela janela. Talvez eu tenha sido covarde, talvez aquela fosse a hora de conversar com ele sobre Ricardo. Mas não, de algum jeito eu sabia que era o tipo de conversa que se deveria ter cara a cara. E, sem dúvidas, sem Ricardo por perto.
Meu namorado entrou no quarto depois de alguns minutos, fechou a porta com cuidado e se deitou na sua própria cama.
_Estou meio cansando hoje, vou dormir por aqui mesmo. Boa noite, amor.
_Boa noite._ respondi sem jeito.
Não havia agressividade na sua voz, mas tampouco parecíamos tão bem quanto o dia anterior. Eu dormia no mesmo quarto que Ricardo a tempo o suficiente para reconhecer a respiração que ele tinha quando dormia. Ele poderia até estar mesmo cansado, mas não dormiu de imediato. Ficou horas em silêncio rolando pela cama e com seus pensamento secretos, assim como eu.
Três meses. Chegava a hora de dizer adeus. E de partir o coração de Ricardo.