_Como você consegue continuar criando essas armadilhas pra você mesmo?_ perguntou Alice do outro lado da webcam.
_Não sei..._ respondi sem jeito.
_Burro!
_Para.
_Burro! Burro! Burro!
_O que eu faço agora?_ perguntei aflito _A última coisa que quero é machucar Ricardo.
_Sinto muito, isso está fora da sua jurisdição. Você já o magoou e vai magoá-lo mais um pouco neste pouco tempo que lhes resta.
_Mas...
_Sem choro. A vida é assim, pessoas se machucam._ ela falou _Em sua defesa, o menino sabia onde estava se metendo.
_É...
Saber disso não aplacava um pouco da minha dor. E como doía saber que eu estava machucando um cara tão incrível quanto Ricardo. Ele não merecia nem um pouco daquilo. Estar ciente dos meus sentimentos por Rafael desde o começo, não o tornava corresponsável pela sua própria dor.
Vocês têm que conversar._ falou Alice _Antes de voltarem. Leve ele pra longe do apartamento e tenha uma conversa definitiva. Deixe tudo em pratos limpos. Fazendo isso, talvez, muito talvez, vocês possam passar seus últimos dias juntos em paz.
_Eu sei, eu já pensei nisso. Só falta a coragem.
Ela suspirou do outro lado. Ela estava inquieta. Eu a conhecia bem o suficiente pra saber que ela queria me contar alguma coisa, mas estava sem jeito.
_O que foi Alice?
_Hã?
_Você está inquieta._ fiquei um pouco preocupado _Aconteceu alguma coisa séria com alguém?
_Não, não...
_Pedro?_ chutei.
Ela ficou sem jeito. Na mosca.
_O que está acontecendo entre vocês dois? Sério._ falei.
Ela deu um longo suspiro e jogou a cabeça pra trás. Ela demorou um tempo pra criar coragem de começar a falar.
_Eu não sei o que está acontecendo! Está tudo uma bagunça!
_Vamos por partes. Como começou?
_Ele vinha insistindo por meses.
_Eu sei, ele me contou.
_E eu estava resistindo._ ela mordeu os lábios _Mas alguma coisa mudou.
_Ele mudou. Ele não é mais o idiota que você abominava. Pode não ser o cara perfeito, mas já melhorou muito em comparação com o que era.
_Sim...
_O que vocês fizeram?
Ela fechou os olhos.
_Eu traí Marcos com Pedro.
Certo, aquela era uma revelação, mas não uma completa surpresa. Eu já imaginava que alguma coisa assim pudesse ter acontecido para os dois estarem tão invasivos nas nossas conversas nas últimas semanas.
_Não precisa ficar com vergonha disso._ falei _Eu não estou te julgando.
_Eu estou me julgando! Eu estou com vergonha de mim mesma!_ ela respondeu desabafando _Eu não sou esse tipo de mulher.
_Calma, não precisa desesperar. O que vocês fizeram não foi certo com Marcos, de jeito nenhum. Mas esse namoro nunca foi pra valer desde o início. Você gostava dele como amigo no máximo, se tanto.
_Eu sei, mas...
_Você não é uma pessoa pior por ter feito isso._ falei _Marcos descobriu?
_Eu contei. Não me aguentei de culpa.
_E como foi?
_Ele chorou.
_Chorou? Só isso? Sem brigas?
_Sem brigas!_ ela respondeu com a mesma indignação que eu.
_Ele nem lutou por você?
_Não! Só me senti pior.
_Você só ganhou em sair dessa. Se ele nem mesmo brigou por você foi porque a perda nem foi tão grande pra ele.
_Eu sei, eu entendi isso.
_E como está sendo a convivência de vocês na sala todo dia?
_Péssima. Ele e Carolina sentam o mais longe possível de mim, e Rafael só pode conversar comigo se for escondido._ ela falou suspirando _O pior é que um deles vazou a história, e agora eu sou a vadia da faculdade!
_Não! Sério? Por que eles vazariam isso?
_Por revanchismo!
_Eu sempre tive razão em não gostar daqueles dois!
_Sem esse papo de “eu te avisei”, Bernardo, por favor.
_Desculpa.
Passamos um tempo em silêncio antes de entrar no tópico mais importante daquela conversa.
_E Pedro?
_Imbecil._ ela bufou _O idiota anda por aí com o peito estufado, como se fosse o herói que me salvou do monstro.
_É a cara dele!_ respondi rindo.
_Não é pra rir!
_Desculpa._ falei me contendo _E como estão vocês dois?
Ela ficou vermelha e eu ri.
_Vocês continuam se encontrando, né?
_Só sexualmente._ ela falou envergonhada _Todo dia.
_Todo dia?!_ repeti surpreso _Vocês devem estar todo esfolados!
_Bernardo!
_Mas é!
Ela ainda parecia incomodada e eu desconfiei.
_Ainda tem mais alguma coisa pra contar, dona Alice?
_Ai..._ ela deu mais um longo suspiro _Ele me convidou pra jantar amanhã.
_Não!_ falei rindo _Você sabe que ele vai te pedir em namoro, não sabe?
_Sei...
_E você vai aceitar, não vai?
Ela sorriu envergonhada.
_Alice, vou te devolver o conselho que você me deu várias vezes: se deixe levar. Pedro pode te fazer feliz.
Ela respondeu com um meio sorriso que ela tentava em vão segurar.
[...]
_Posso saber para onde o senhor está me levando?_ perguntou Ricardo.
_Que menino ansioso e desconfiado.
Era um sábado de noite quente, típico da primavera parisiense. Eu levei meu namorado até um restaurante brasileiro do qual tinham me falado algumas vezes. Eu estava com muita saudade da comida brasileira, e Ricardo também, pois comemos até mal conseguirmos andar.
_Você vai continuar me querendo gordo assim?_ ele perguntou bem humorado quando saímos.
_Sempre!_ falei lhe dando um beijo na bochecha.
Ele deu um sorriso triste. Era complicado falar de “pra sempre” entre nós dois. Parecia uma mentira, uma ilusão. Decidi que já era hora de termos a tão temida conversa.
Peguei na sua mão e segui caminhando a seu lado em silêncio por algum tempo até ter coragem de começar o assunto.
_Temos que conversar._ falei.
_Eu sei..._ ele respondeu com a voz triste.
A gente não se olhava. Apenas continuávamos a caminhar de mãos dadas.
_A gente sabia que não seria pra sempre._ falei.
_Eu sei disso. Mas não torna a coisa toda menos dolorosa.
_Não está sendo fácil pra mim também.
_Mas você tem Rafael, não? E eu?
_Eu não tenho se certeza se ainda tenho Rafael._ respondi _Você vai achar alguém que te ame como se deve.
_De que adianta se não vou conseguir amar esse cara como se deve. Só tem lugar pra você nos meus pensamentos.
Me causava um tremendo aperto no peito vendo ele falar assim. Eu me sentia o último homem da Terra ao lhe causar aquela dor.
_Esse Rafael te merece mesmo?_ ele falou.
Enfim, paramos e ele me olhava. Existia um certo desespero em sua voz e lágrimas represadas em seus olhos. Eu nunca o tinha visto assim, ele sempre foi a alegria em pessoa.
_Não faz assim, Ricardo.
_Ele te abandonou, Bernardo!_ ele falou _Ele não ficou ao seu lado pra te ajudar. Ele deixou você enfrentar seus demônios sozinhos.
_Mas era uma batalha só minha.
_Mas você precisava de alguém ao seu lado pra te falar que ficaria tudo bem. Ele não foi essa pessoa! Se ele tivesse ficado ao seu lado, você não teria chegado ao ponto de...
_Não foi culpa dele._ falei o interrompendo _Não foi culpa de ninguém além de mim. Mesmo quando eles me ofereceram a mão, eu recusei. Não o culpe por isso.
Ficou aquele clima estranho no ar. Não era bem uma briga. Era um desabafo.
_Eu não teria te abandonado._ ele falou.
_Quem te garante isso? Você não me conheceu naquela época. Você também não teria paciência pros meus medos e paranoias.
_Eu te conheci quando você chegou aqui. E eu te amei mesmo assim e fiquei ao seu lado. Eu te amei ainda mais pela sua trajetória até aqui.
_Não é a mesma coisa, Ricardo. Eu não era a mesma pessoa.
Seus ombros caíram. As primeiras lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto. Eu logo comecei a chorar também.
_E se ele não conseguir te amar de novo?
_Eu pelo menos preciso tentar.
_E se não der certo?
_Eu não conseguiria viver com a dúvida.
_E se ele te magoar?
_Eu vou aprender a me levantar.
Ricardo me pegou pelos ombros e me apertou com força.
_Me ame!
_Eu amo!
_Então!
_Eu amo ele mais.
Ali estava a verdade. Ali estavam as palavras que eu tanto lutei pra não dizer. As mais duras palavras. E elas entraram como uma espada fria no coração de Ricardo, fazendo-o em mil pedaços. Ele colocou as mãos sobre o rosto para que eu não visse sua expressão de dor. Mas era tarde demais. A lâmina tinha dois gumes e cortava meu coração à medida que cortava o de Ricardo também. Eu tentava pegar em suas mãos e tirá-las do seu rosto, mas ele me afastava.
_Não é justo, sabe?_ ele falou enfim mostrando seu rosto vermelho e molhado _Eu demorei tanto tempo pra te achar. Não é justo ter que abrir mão de você.
_Se eu tivesse uma escolha...
_Você tem! Me escolha!
_Não é uma escolha. Eu não posso controlar isso. Me desculpe.
_Bernardo...
_Me desculpe, me desculpe, me desculpe...
Ele se debatia, mas eu consegui prendê-lo no meu abraço. Ele enfim cedeu e deitou sua cabeça no meu ombro. Nós dois chorávamos e a madrugada quente era a nossa única testemunha.
_Eu vou te amar até meu último suspiro, Ricardo, eu te juro. Você é uma das pessoas mais importantes da minha vida e foi o protagonista dos meus dias mais felizes. Eu não sei o que teria sido de mim se não fosse por você. Você me pegou pela mão e me apresentou Paris, me apresentou aos seus pais, me apresentou a uma forma de amor que eu não conhecia, um amor tranquilo e pacífico. Eu tenho muita sorte de ter conhecido você. E espero que você tenha a sorte de conhecer alguém que seja tão especial pra você como você é pra mim, e que esse cara possa te dar o amor que eu não pude.
Nós dois continuávamos a chorar ali, parados no meio da noite.
_Mas nós temos uma última escolha pra fazer.
Eu levantei seu rosto e fiz ele me encarar. Seu rosto estava vermelho, molhado e amassado.
_Como nós queremos passar nossas últimas semanas em Paris?_ perguntei.
Ele me olhou por um longo tempo, mas não respondeu. Eu mesmo respondi.
_Eu proponho uma coisa: que esses dois meses sejam apenas sobre nós. Eu prometo não pensar em Rafael e você promete não pensar no futuro. Vamos fazer dessas últimas semanas as mais especiais das nossas vidas. O que você acha?
Ele soltou um sorriso fraco, mas verdadeiro e eu encarei aquilo como um sim. Eu lhe dei um selinho longo e carinhoso. Eu teria tempo pra Rafael mais tarde. Agora era a vez de Ricardo. Eu não cometeria o mesmo erro que cometi com Eric. Eu daria ao meu namorado todo o amor que eu podia lhe dar sem reservas. Eu o faria feliz, nem que fosse por apenas dois meses.
Maio é um mês histórico para Paris.
Em maio de 1968, a França foi tomada por uma greve geral. Não só dois terços dos trabalhadores do país, mas também os estudantes do país foram às ruas. É um momento sem igual na história do ocidente porque pela primeira vez não era o protesto de uma classe social ou uma minoria. Um país inteiro ia pras ruas em busca de mudanças. Eles queriam mudar o sistema no qual estavam inseridos. E por mais que o movimento tenha tido um fim tão breve, as sementes da mudança haviam sido plantadas.
_Você sabe que devemos tudo a eles, não sabe?_ perguntou Ricardo enquanto andávamos de mãos dadas.
Por mais que não haja um feriado nacional para comemorar a data, os parisienses lembram-se da Primavera de 1968 e enfeitam suas casas em comemoração. Eu e Ricardo andávamos admirando o cenário.
_Sem eles isso não seria possível._ continuou Ricardo mostrando nossas mãos unidas _Há quarenta anos eles foram pras ruas contra o sistema. E é por isso que hoje podemos andar de mãos dadas por aí sem medo de sermos atacados.
_Eu sei.
_Fico imaginando se um dia isso aconteceria no Brasil também.
_Sonhar é de graça, né?
Eu e meu namorado levamos muito a sério a promessa que fizemos naquela noite. Aproveitaríamos aqueles últimos dois meses juntos da melhor forma possível, sem não nos preocuparmos com mais nada. Até mesmo pedi a Alice e Pedro que não tocassem no nome de Rafael comigo. Eu realmente queria deixá-lo guardado num armário das minhas lembranças pelas próximas semanas
Alice aceitou mesmo o pedido de namoro de Pedro?_ perguntou Ricardo.
_Sim! Finalmente!
_Você deve estar se sentindo ótimo com isso.
_A vontade que eu tenho é de encomendar uma faixa de “eu te avisei” e mandar pra casa da Alice._ respondi fazendo meu namorado rir.
Alice enfim cedeu e virou oficialmente a namorada de Pedro. Ele estava vivendo seu sonho dourado. Ela, por mais que relutasse em admitir, estava se apaixonando seriamente por ele. Eles combinam por ter personalidades opostas, mas isso também gerava comportamentos opostos no namoro. Pedro queria pegar a mão de Alice e ir a exibindo por aí. Ela via um pouco de machismo misturado ao amor quando ele fazia isso e não gostava. Ela preferia transar e passar horas jogando papo fora deitada nua em cima do peito dele. Só Deus sabe que papo os dois tinham em comum. Hoje, eu imagino que eles estavam se conhecendo. Eles tinham apenas um esboço do que era o outro, mas namorar exigia muito mais do que isso. Era preciso entender o olhar e a vontade secreta do outro. Era preciso prever cada ação e pensamento. Era preciso conhecer o outro melhor do você mesmo. Isso não é amor, isso é estar num relacionamento.
E era assim comigo e com Ricardo. Nós não apenas namorávamos como morávamos no mesmo quarto. Eu sabia interpretar cada pequeno gesto ou discreto olhar seu. Era como estar dentro da sua cabeça. E nós tínhamos ideias parecidas. Nossas mentes seguiam para o mesmo lugar, ainda que não funcionassem de maneira igual. Era diferente do que aconteceu com Rafael. Nem melhor, nem pior, apenas diferente. Eu e Rafael tínhamos cabeças muito diferentes e personalidades contrastantes, quase como uma versão gay e mais branda de Alice e Pedro. Por essa razão, com Ricardo era tudo mais fácil e, até certo ponto, mais prazeroso.
Na comparação com Ricardo, Rafael perdia em muitos quesitos. Além das diferenças, a personalidade explosiva de Rafael me assustava às vezes. O jeito como ele agia com certas coisas, como no caso de Eric, por exemplo, não me agradava. Ele é de extremos, sendo uma pessoa mais difícil de se negociar. E a maior desvantagem de todas: Paris. Poder andar de mãos dadas, nos beijarmos na rua e deixar que nossos amigos nos vissem juntos por aí fazia toda a diferença.
Por mais cruel que isso possa soar, tenho que admitir: Ricardo era o melhor namorado. O único problema é que eu amava mais Rafael e isso pesava tanto ou mais do que todas as maravilhosas qualidades de Ricardo. Não era uma disputa justa, nunca foi. Desde o momento zero, Rafael foi vencedor.
Ao voltarmos pro apartamento, o encontramos vazio. Ricardo não perdeu tempo.
_Aqui, agora._ falou com uma voz imperativa.
Ele passou seus braços por baixos dos meus e me prendeu num abraço por trás. Ele começou a morder meus ombros e meu pescoço, o que já me despertou. Eu deitava a cabeça pra trás e deixava o caminho livre para ele fazer o que quiser.
_Vem!_ falou e me puxou pro nosso quarto.
Mal tive tempo de trancar a porta e ele já foi arrancando minhas roupas com ferocidade, me deixando até tonto de tesão. O jeito que ele fazia aquilo, a pressa, o desejo, me extasiava. Ver nos seus olhos o quanto ele queria meu corpo me deixava louco, afinal, não existe maior prazer do que dar prazer.
_Encosta aqui._ ele falou.
Ele me guiou pra uma das paredes e me deixou os braços apoiados na janela.
_Eu quero que você olhe Paris enquanto eu te fodo.
Estranhamente, aquilo me deu ainda mais tesão. O fato de alguém poder nos ver lá de fora era ainda mais excitante. Eu já estava nu e ele não demorou muito até ficar também. Não houve preliminares.
_Você confia em mim?_ ele perguntou.
_Sim..._ respondi num sussurro já sabendo o que ele estava perguntando.
Eu nunca tinha feito sexo sem camisinha. Nem mesmo com Rafael. Era uma baita prova de confiança. E eu confiava em Ricardo, eu tinha certeza que ele nunca me faria mal. Eu senti seu pênis entrar em mim lambuzado de lubrificante. Doeu um pouco, mas nada significante já que tínhamos uma vida sexual bem ativa.
E lá estava eu, sendo fodido enquanto olhava as pessoas passando despreocupadas e distraídas pela rua. E era tudo tão bucólico. Paris era o cenário ideal. Era a minha fantasia. E Ricardo estava a realizando.
Quando gozamos, corremos pro banheiro pra tomar banho juntos. Nunca fazíamos aquilo por termos medo de que algum dos meninos nos pegasse, mas resolvemos nos arriscar nessa vez. Era um fim de tarde, os raios solares entravam preguiçosos pela janela. Ele se deitou comigo na minha cama e eu adormeci rapidamente em seus braços. E eu dormi feliz, porque eu tinha certeza que ele ainda estaria lá quando eu acordasse.
[...]
Maio e junho passaram como os meses mais doces da minha vida. Sim, foi meio intenso com as provas finais e a cidade lotada de turistas, mas Ricardo compensava tudo. Se todo aquele ano em Paris já tinha sido especial pra mim, aquelas últimas semanas conseguiram ser o auge. De repente, eu me vi feliz.
Eu comecei essa história falando sobre a minha busca pela felicidade. Eu queria desesperadamente ser feliz, mas não sabia como. Ao longo da minha jornada até então, eu achei muitas respostas. Eu descobri que eu tinha que fazer as pazes comigo mesmo e com minha sexualidade. Eu tinha que me entender e me aceitar, porque senão os outros não fariam isso. Eu descobri as raízes dos meus medos na agonia de deixar que os outros não gostem de mim. Eu aprendi importantes lições sobre amizade, sobre amor... E eu aprendi muito sobre mim mesmo e meus limites.
Só que essa não é uma história sobre aprendizado, é uma história sobre a busca pela felicidade. É o gatilho da minha história. Mais: é o gatilho da minha vida. Eu levei dezenove anos aprendendo sobre os entraves à minha felicidade e foi mais um ano, em Paris, para eu começar a derrubar esses entraves.
Então, num belo dia no fim da primavera eu percebi que estava feliz. Não alegre, não extasiado. Feliz. Pela primeira vez na vida, eu estava realmente feliz.
“Pela primeira vez? E Rafael?!” vocês podem pensar.
Amo Rafael, sempre amei. Vou repetir isso até o fim dos meus dias. Mas amor não é garantia de felicidade, nunca foi. Morro de saudade daquelas seis meses de namoro escondido com Rafael. Nossas escapadas no fim de tarde, nossas longas conversas tentando desvendar nossos mundos, o primeiro amor... Eu estava amando pela primeira vez na vida. E amor é uma coisa muito intensa, pelo menos da forma como aconteceu comigo e Rafael. E eu estava amando a ideia de estar amando. Como uma garotinha boba. Mas isso é amor, não felicidade. A felicidade tem muito mais a ver com a paz e tranquilidade do que com o turbilhão de emoções que é seu primeiro amor. Por isso, por melhor e por mais maravilhoso que tenham sido aqueles meses com Rafael, não era felicidade.
Eu pensava nisso sentado na sombra de uma frondosa árvore no colo de Ricardo, aproveitando fim de tarde depois das aulas. Eu não pensava em nada. Eu não pensava no que eu faria da vida, em como enfrentar minha mãe, no que seria da minha relação com Rafael. Aliás, ok, eu pensava, mas era um pensamento distante. Meus problemas estavam no Brasil, eu não. Eu estava de férias deles. E sem meus problemas, só me restava a paz e tranquilidade da felicidade. Eu estava feliz. Ali, calado, ouvindo a respiração de Ricardo e o movimento do seu peito, eu estava feliz. Eu queria ter uma foto daquele momento para poder revistá-lo sempre que eu quisesse.
_Obrigado._ eu falei.
_Pelo que exatamente?
_Por me fazer feliz.
Ricardo riu e beijou o topo da minha cabeça. Eu me virei para ele, ainda sentado na grama.
_Eu falo sério._ falei o encarando _É a primeira vez que eu me sinto assim tão bem, tão em paz. Eu estou feliz. E você é o responsável por isso.
Era um ponto complicado de se tocar com Ricardo, pois poderia gerar questionamentos do tipo:
“Então, por que você escolheu Rafael?”
Eu lhe daria de novo a resposta clássica (“porque eu o amo mais”) e estragaria aquele lindo momento. Mas eu precisava falar. Ele precisava saber.
Ricardo riu e acariciou de leve o meu rosto.
_Eu tenho minha parcela de culpa, mas você é o grande responsável._ ele me puxou de volta pro seu colo _Você aprendeu a gostar de si mesmo. Por isso você está em paz. Eu sou só a cereja do bolo.
Ele estava certo. Mas eu tenho dúvidas se eu teria alcançado aquela paz comigo mesmo sem sua ajuda. Ele veio no momento certo.
Ricardo começou a cantarolar baixinho no meu ouvido:
¬_Laaa Laralaraaa laralara...
Eu ri reconhecendo a música. Ele começou a cantar de um jeito que só eu ouvisse:
Era assim que eu me sentia, vendo a vida em cor de rosa. E comigo, como nada vem de graça, a felicidade veio acompanhada de uma aflição: Rafael poderia me amar, mas ele poderia me fazer tão feliz como Ricardo fez? 1º de julho de 2008 Faltava menos de três dias para eu pegar um avião de volta ao Brasil. Além de um milhão de coisas para acertar, eu tinha que lidar ainda com o turbilhão de emoções pelo qual eu estava passando. Eu estava me despedindo de Paris, mas eu não estava pronto para isso. Em Paris, eu me descobri outra pessoa. Eu me vi livre dos meus medos e dos meus próprios preconceitos. Eu me vi livre de tudo. Ali, eu senti que eu poderia ser tudo e enfrentar todos. Eu agora era um gigante que não poderia ser derrubado pelas rasteiras da vida. Em Paris, eu aprendi a gostar de mim mesmo. Mas e agora? Como seria de volta ao Brasil? E se eu não conseguisse manter esses meus avanços? E se assim que eu pisasse em casa novamente, eu voltasse a ser o mesmo fraco Bernardo de antes? E se tudo tiver sido em vão? Eu estava pronto pra voltar? _Vai ficar tudo bem._ falou Ricardo. Eu estava deitado sobre seu peito na sua cama. Era noite e o quarto só não estava no breu por causa da luz da rua que entrava. Aquele era um dos nossos únicos momentos de paz na correria que estavam sendo aqueles últimos dias na França. _Mas e se... _Vai ficar tudo bem._ ele repetiu me interrompendo _Você está mais forte. Você não vai sucumbir a nada mais. O que você conquistou aqui, ninguém pode te tirar. Ainda estávamos vivendo em clima de lua de mel. Saber que o fim estava tão próximo nos aproximou ainda mais. A saudade antecipada nos jogou um no braço no outro com a força de um furacão. E a cada vez que eu fazia isso, me jogar nos braços de Ricardo, o mais torturante dos pensamentos me vinha à cabeça. Eu amava Rafael e ele me amava, mas ele era capaz de me fazer feliz? Ou melhor, eu era capaz de ser feliz com ele? Ou ainda, tão ou mais feliz do estava sendo com Ricardo ali em Paris? Pela primeira vez, eu seriamente me questionei sobre a minha escolha. Eu estava certo em escolher Rafael? Só o amor era suficiente? Não foi suficiente na primeira vez... Claro que agora eu tinha melhorado e superado muitas das barreiras que eu mesmo criava no meu relacionamento com Rafael. Mas havia outras, como as nossas diferenças. E se essas diferenças eram romanticamente magnéticas, elas não eram um empecilho a longo prazo? E se eu realmente não conseguisse manter meus avanços, cairíamos no mesmo problema, não? E o pior de todas as possibilidades: e se Rafael não me quisesse? Se ele tivesse se cansado de esperar por mim? Se ele também tivesse visto como o amor não foi suficiente? E tinha Carol. Rafael ainda namorava. Hoje, eu entendo Rafael. Para ele, Carol foi o que Ricardo foi pra mim: uma nova possibilidade, um novo tipo de amor, a paz. Ele podia me amar, mas ele também amava ela. Ele já tinha feito sua escolha, e agora eu tinha que fazer a minha esperançoso que ele reconsiderasse. Pode parecer que eu estava fazendo muito drama, e talvez estivesse mesmo, não sendo nada mais que um disfarce do meu medo de reencontrar “minha vida” em Belo Horizonte. Pra mim, pelo menos naquela época, parecia um confronto: amor ou felicidade? E a mais assombrosa das dúvidas: Ricardo ou Rafael? Eu e Ricardo iríamos embora no mesmo voo para o aeroporto de Guarulhos no sábado à noite, mas ele ficaria por lá e eu pegaria outro avião com destino a Belo Horizonte. Assim, decidimos nos despedir de Paris em grande estilo na sexta-feira. Tínhamos outros convites, mas queríamos um programa só nosso. Todos os outros poderiam estar se despedindo da França e dos colegas de intercâmbio, mas eu e Ricardo estávamos nos despedimos um do outro. Vestimos as nossas melhores roupas e pegamos o metrô rumo a um restaurante chique que ouvimos falar no centro da cidade. Conversamos abastecidos por boa comida e bons vinhos por quase três horas. Era incrível como sempre tínhamos assunto. Mas havia algo de estranho. Nós não estávamos nos despedindo. Talvez estivéssemos nos despedindo de Paris, mas não estávamos nos despedindo um do outro. A gente não queria fazer aquilo. Era muito doloroso. Durante um ano, Ricardo ocupou um lugar muito importante na minha vida. Se formos fazer uma comparação, ele foi pra mim o que era Rafael, Alice e Pedro em uma só pessoa. Ele foi meu amigo e meu namorado. O meu melhor namorado. E eu fui isso para ele também. Não queríamos dizer adeus. Não queríamos nos acostumar a não ser mais o primeiro rosto que o outro encontraria ao acordar todos os dias. Não queríamos ser obrigados a tomar pudores em nossos gestos com as pessoas que amamos, não queríamos voltar pro “gueto”. Mas era preciso dizer adeus. E foi por isso que eu comecei a chorar enquanto caminhávamos de volta pra casa de mãos dadas, como fizemos tantas vezes e não faríamos mais. Ao notar minhas lágrimas, ele parou e suas lágrimas vieram também. Nos abraçamos sem que nada fosse preciso ser dito. _Nós somos dois bobos._ ele falou rindo depois de algum tempo. _Não somos bobos, só estamos apaixonados. _Toda pessoa apaixonada é boba. Eu me separei dele e o beijei muito carinhosamente. Eu fiquei admirando seu rosto, como se quisesse guardá-lo na minha memória mais profunda e assim resgatá-lo sempre. Mas não havia necessidade, eu não poderia esquecer Ricardo nem mesmo se quisesse. Ele era uma parte de mim agora. _Eu te amo._ falei. _Eu te amo. Ele se afastou e mexeu no bolso da calça. _Eu tinha planos de te entregar isso só quando chegássemos ao Brasil, mas acho que esse momento é parece o mais adequado. Ele tirou um pequeno saquinho de veludo preto. _Não precisava ter comprado nada pra mim, Ricardo. _Eu comprei pra nós dois. De dentro ele tirou duas pequenas alianças douradas que me fizeram prender o ar de susto. _Não precisa se assustar, não é um pedido de namoro. Até porque, nós já somos namorados._ ele falou. _Ricardo, eu... Ele pegou a minha mão e colocou a aliança no meu dedo. Depois me ofereceu a mão e a outra aliança pra fazer o mesmo. _Eu não sei o que nos espera na próxima esquina._ ele começou _Eu não posso prever o que vai acontecer com a gente daqui em diante. Eu não posso prometer que não vou me apaixonar por outra pessoa. E você não pode me prometer que não vai reatar com Rafael. Por isso, essa aliança não simboliza fidelidade. Ela simboliza o nosso sentimento. Você não precisa usá-la, pode guardá-la numa caixinha qualquer por aí. O que eu quero é que você se lembre de mim toda vez que olha-la. E lá estava eu novamente me desmanchando em lágrimas. _Eu nunca vou te esquecer. Eu te amo, seu idiota! Não preciso de nada para me lembrar disso. E pulei em seus braços. E o beijei como talvez nunca tenha beijado ninguém. Seria o beijo que eu daria em Eric se eu soubesse que em breve ele morreria, ou o que eu daria em Rafael se soubesse que ele terminaria comigo na festa dos meus pais. É o beijo da saudade. É o beijo com o qual você quer mostrar para aquela pessoa o quanto você a amou e o quanto ela foi importante para você. Eu separei dos lábios de Ricardo e comecei a bater em seus braços. Ele ficou surpreso e segurou um meio sorriso. _O que foi? Ficou louco? _Você! _O que foi que eu fiz?_ ele perguntou. _Você apareceu! Não era pra você ter aparecido. Não era pra você ter me beijado. Não era pra você ter me tirado pra dançar aquele dia na rua. Não era pra ter acontecido. Eu tinha tudo planejado. Era pra eu voltar pra Rafael e ser feliz com ele._ eu falava com raiva, mas era uma raiva engraçada, como se brigasse mais comigo mesmo em voz alta _Você bagunçou tudo, seu idiota. E agora eu não sei mais o que fazer! Ao se dar conta do que eu estava falando, ele sorriu. _Isso significa que você está em dúvida, Bernardo? _Estou! Merda! Ele me pegou e me levantou do chão. Ele começou a me rodar no ar e me apertar. _Me solta, Ricardo!_ falei rindo. _Não! Eu não vou te soltar. Você é meu pra sempre! Ele me colocou no chão e olhando no fundo dos meus olhos enquanto sustentava aquele sorriso arrebatador. _Me escolha. Eu não podia escolhê-lo. Eu não tinha uma decisão ainda. _Eu não posso te dar essa resposta ainda. Ele sorriu sem jeito. Não era a resposta que ele queria, mas também não foi a que ele temia. [...] Acordamos tarde no sábado, nosso último dia em Paris. Eu acordei antes que Ricardo com uma surpresa. Meu celular tremeu em algum lugar do quarto, indicando que uma mensagem tinha sido recebida. Levantei com cuidado pra não acordar meu namorado e peguei o celular. Meu coração parou por um segundo quando eu identifiquei o número como sendo o de Rafael. Eu respirei fundo antes de abrir e ler: “Posso te esperar no aeroporto amanhã?” Uma pergunta simples, tantas interpretações. Foi só ler aquelas poucas palavras na tela do celular que senti todo o meu peito se revirar. O meu coração pareceu pegar fogo, como se de repente uma parte dele acordasse. E sem pensar muito nas consequências ou nos significados, respondi: “Sim.” Olhei para Ricardo dormindo tão sereno com um sorriso nos lábios e me senti o último dos homens, como se o estivesse traindo da forma mais sórdida. E, mais uma vez, lágrimas me vieram aos olhos. Afinal, Rafael ou Ricardo? Me perguntei se foi assim que Eric se sentiu um dia em relação a mim e a Rafael... Me lembrei da minha última conversa com a mãe de Ricardo: “_Vocês não têm nem vinte anos ainda, o amor é lindo! Mas no mundo dos adultos, o amor é um sentimento complicado. Eu não me casei com Inácio amando ele. Eu amava outro. Mas esse outro só sabia me magoar e eu o magoava também quando ele notava o que tinha feito, o que foi se transformando numa relação doentia. Então, casei com Inácio. Ele me amava e eu estava apaixonado por ele. Eu aprendi a amá-lo com os anos. O que eu quero dizer, o meu conselho pra você é: na dúvida, fique com aquele que te ama. São suas maiores chances de felicidade. Eu nunca me arrependi da minha escolha. Tchau, Bernardo. Eu espero lhe rever um dia no Brasil.” O conselho dela era “escolha Ricardo”. Mas eu nunca fui bom em ouvir conselhos, Alice que o diga. Se Rafael não tivesse mandado aquela mensagem, talvez minha decisão tivesse sido outra, talvez não. O fato é que aquela mensagem, mais do que uma ponta de esperança, acendeu em mim todo o amor que eu guardei por Rafael. Sim, eu nunca o deixei de amar. Mas depois de tudo o que passamos, esse amor estava escondido em algum lugar no fundo do meu peito, muito bem guardado. E agora esse amor aflorava novamente. Eu amei Ricardo, ainda amo. Mas acontecia alguma coisa a mais no que eu sentia por Rafael. Não era simplesmente afinidade, era uma corrente tão poderosa que nos prendia ao outro mesmo estando namorando outras pessoas. Talvez fosse o que eles chamavam de alma gêmea, não sei. O que eu sei é que não havia outro caminho pra mim, sempre foi Rafael, sempre será. Ricardo podia ser meu melhor namorado, mas Rafael era a luz da minha vida, o motivo pelo qual eu quis melhorar e superar meus medos. Ele é meu fim. Então, eu comecei a chorar com mais força. Desta vez doía. Só que dor dessa vez não era pela dúvida, mas pela resposta. Dei mais uma olhada em Ricardo dormindo. Eu partiria de uma vez por todas o seu coração quando ele acordasse.