Bernardo [66-69] ~ Reunião familiar

Eu vinha planejando aquela conversa há meses na minha cabeça, mas no final nada saiu como o esperado. Deveria ser só eu e minha mãe, talvez o meu pai também se ele quisesse me apoiar. Deveria estar só a gente em casa, sem meus irmãos por perto. Eu deveria prepará-la antes. Eu deveria escolher um momento que ela estivesse calma e de bem com a vida. Eu deveria ensaiar o fatídico discurso um milhão de vezes na minha cabeça, tendo uma saída para cada possível reação que ela viesse a ter. Mas eu não fiz nada disso, não deu tempo. No momento mais inesperado e inadequado possível, eu disse. Eu soltei meu grande segredo. A pessoa que de quem eu mais temia a reação agora sabia que eu era gay. E o seu olhar me amedrontava.

Ninguém ousou dizer nada nos segundos seguintes à revelação. Mesmo sem olhá-los, eu sentia Caio e Tiago prendendo a respiração. Laura parou de chorar no mesmo instante. Meu pai mudava os olhos de mim para a minha mãe e vice-versa. E resistindo a todos as minhas reações possíveis, eu não abaixei a cabeça ou desviei os olhos. Eu sentia medo, angústia, ansiedade, um milhão de coisas, mas eu permaneci a encarando. Eu não a olhava como se a enfrentasse, não havia confronto no meu olhar. O que meu olhar dizia era “estou lúcido e muito ciente do que acabei de dizer aqui”. Em contrapartida, o que eu via no olhar da minha mãe era raiva represada. Presa e pronta para explodir. Ali, eu tive certeza que todos os meus temores não foram em vão: aquela não seria uma conversa fácil.

Eu não posso negar que eu esperava exatamente a reação que ela teve: ignorar. Minha mãe desviou o olhar, pegou o prato dela e de Laura, de quem ela estava perto, e levou para a cozinha, nos dando as costas. Eu fechei os olhos e suspirei fundo me preparando mentalmente para a batalha que viria a seguir.

_Bernardo..._ sussurrou Tiago ao meu lado e colocou a mão sobre o meu braço, como se me pedisse para parar.

Mas eu não podia parar. Era um caminho sem volta. Se ela ia aceitar ou não, ainda era um mistério para mim. Só havia uma certeza: naquela noite ela saberia de toda a verdade. Minha mãe voltou à sala e, sem olhar ninguém nos olhos, pegou mais dois pratos e levou para cozinha. Ela ia mesmo fingir que eu não disse nada de mais? Era fácil assim para ela ignorar o assunto? Eu não ia deixar! Eu não era mais aquele garoto assustado que deixa as coisas mal resolvidas. Ela logo voltou da cozinha para pegar os dois últimos pratos.

_Eu sou gay._ falei novamente.

Eu vi seu lábio tremer quando ouviu, mas não me olhou ou respondeu. Deu as costas e voltou pra cozinha com os pratos. E aquilo me deu uma repentina raiva. Tanto trabalho pra chegar ali e agora ela ia me ignorar? Ele ia fingir que eu nunca disse nada? Tanto tempo criando coragem para aquele momento e o que eu recebo é aquilo, indiferença?

_Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! EU SOU GAY!_ falei subindo tom de voz até se transformar num grito.

Era o meu grito da liberdade! A última barreira estava no chão, mas eu não me sentia tão livre quanto achei que deveria sentir. Eu continuaria gritando se não fosse o som de um prato quebrando. Mas o som não era de um prato que caiu da mão de alguém. O som era de um prato que foi arremessado com força contra o chão.

_Bernardo!_ ralhou meu pai, mas não me importei.

Da cozinha veio a minha mãe. Me deu medo, eu nunca a tinha visto daquele jeito. Ela estava muito vermelha, seus olhos cheios de lágrimas e ela tremia. Ela olhava fixamente para mim do outro lado da sala.

_Vocês três,_ falou meu pai para meus irmãos _para o quarto.

_Não, pai. Eu vou ficar com o Bernardo._ falou Tiago.

_Não foi um pedido. Vão!

Tiago me olhou penalizado, mas não se atreveu a contrariar nosso pai. Nem eu queria que ele o fizesse. Assim que ele se levantou, Caio e Laura o seguiram e cada um deles foi pro seu quarto.

_Teresa, sente-se, por favor._ pediu meu pai.

Mas ela não sentou. Permaneceu na mesma posição me encarando. Eu novamente não abaixei a cabeça e a encarei de volta. E então, eu voltei a repetir:

_Eu sou gay, mãe.

_Para com isso!_ ela gritou em resposta.

Sua voz era a mistura de um grito muito fino e estridente, mas baixo, como se ela temesse que as pessoas nos ouvisse.

_Eu não quero ouvir esse tipo de coisa dentro da minha casa mais! Você não foi criado assim.

Eu me segurava para não chorar, mas estava difícil.

_Pelo amor de Deus, mãe. Você é médica, você sabe que não uma coisa não tem nada a ver com a outra.

_Eu não quero saber! Vá para o seu quarto agora e eu vou esquecer que isso aconteceu.

_Não!_ respondi.

Ela me olhou com estranheza. Eu nunca a tinha respondido. Aliás, eu era o filho que menos entrava em conflito com ela.

_Como assim “não”?_ sibilou com raiva como se eu fosse uma criança pirracenta.

_Eu não vou para o meu quarto. Você vai me ouvir até o fim. Você pode até não aceitar, mas hoje você vai saber de tudo.

Ela deu uma risada sem graça. Então, ficou bem claro para mim aquela noite: ela sempre soube.

_Você sempre soube, não é?_ perguntei com os olhos cheios de lágrimas.

Ela não respondeu, ficou apenas me encarando da mesma posição que estava. Mas era uma admissão, afinal, quem cala consente. E, com mais força do que nunca, me veio a revolta. Ela sempre soube? Quanto mal ela poderia ter evitado se tivesse me colocado para ter uma conversa franca? Eu poderia ter evitado passar por toda uma trajetória de erros e quedas.

_Se você sempre soube, por que nunca me disse?_ perguntei já chorando.

Ela não me respondeu. Ela fechou os olhos e abaixou a cabeça. Mas ela não parecia estar arrependida ou triste com aquela conversa. Ela parecia apenas reunir forças para ter aquela conversa.

_Você tem noção de quanta coisa poderia ter evitado?_ perguntei e me virei pro meu pai _E você também? Você também sabia ou pelo menos desconfiava. Por que nunca me disseram nada?

Meu pai coçou a cabeça.

_Porque é complicado, Bernardo. Eu já te falei que estou bem com essa questão, mas eu estou bem com essa questão hoje. Não é fácil ver que seu filho de oito, nove anos é diferente dos outros.

_Você já sabia?_ perguntou minha mãe para o meu pai em tom de acusação.

_Do mesmo jeito que você também sabia, eu suponho._ ele respondeu.

_Não foi isso que eu perguntei._ ela disse se aproximando dele _Vocês já tiveram essa conversa antes?

Meu pai suspirou fundo. Suspirei aliviado de ao menos por alguns segundos o foco da raiva dela não ser eu, ainda que a briga que estava prestes a acontecer me tivesse como motivo principal.

_Sim, Teresa._ ele respondeu.

_Desde quando você sabia?

_Desde antes da viagem dele.

Ela levou as mãos da cabeça e olhou para o teto, como se custasse a acreditar no que acabara de ouvir.

_Você não pode omitir uma coisa dessas de mim!_ ela falou exasperada _Eu sou sua esposa! Eu sou a mãe dele!

_Eu não contei justamente por causa desse tipo de reação.

_A culpa é minha então?

_Sim._ respondi antes do meu pai.

Ela voltou sua atenção a mim novamente.

_Justamente por ser assim, você foi escolhida para ser a última a saber.

Eu não estava no meu melhor momento e pensando com clareza. Caso contrário, eu escolheria palavras melhores. Eu só jogava lenha na fogueira.

_Última a saber? Quem mais sabia disso?

_Laura, Caio, Tiago, Alice, Pedro, Rafael... Paris inteira...

_Você não tem vergonha?!_ ela gritou comigo.

_Nem um pouco.

Eu não pretendia irritá-la ainda mais. O que aconteceu foi que juntamente a um novo modo de pensar sobre mim mesmo e a vida, houve uma troca do meu mecanismo de autodefesa. Se antes a minha tática favorita era me esconder ou passar despercebido, agora era contra-atacar. Ferir meu opositor na mesma medida que eu era ferido.

Como ousa me desrespeitar?

_Você está me desrespeitando._ respondi firme _Você me olha como se eu tivesse acabado de revelar que matei alguém, que estuprei alguém, sei lá. Como se eu fosse uma escória.

_Eu não te criei para ter um desvio de caráter!

_Então criou bem, porque eu não tenho um!_ respondi no mesmo tom.

_Abaixe a voz. Ela é sua mãe._ advertiu meu pai com uma voz severa.

Não estava satisfeito com aquela situação, afinal, ela deveria me respeitar também. Mas obedeci e abaixei o tom de voz.

_Eu não tenho um desvio de caráter._ continuei _Eu sou gay, só isso. E demorou vinte anos para eu ficar em paz com isso, então não venha com esse tipo de argumento. Eu me fechei para esse tipo de pensamento.

_Você está sujando o nome dessa família!_ ela gritou.

_Não, não estou._ falei tentando manter a calma _Essa família não tem do que se envergonhar de mim. Eu não tenho do que me envergonhar. Se você se envergonha, talvez o problema seja você e não eu.

E antes que eu pudesse reagir de alguma forma, eu a vi vindo em minha direção muito rápido. Só ao sentir minha cabeça se virando bruscamente e o ardor na minha bochecha, me dei conta do tapa na cara que levei. Assustado, olhei para ela. Eu esperava encontrar alguma chama de arrependimento no seu olhar, mas tudo o que vi foi raiva. Ela estava pronta para continuar a me bater. Mas eu não era mais aquele garoto. Ninguém mais ia me bater, nem mesmo a minha mãe.

_Teresa! Você enlouqueceu?_ falou meu pai exasperado correndo para perto de nós dois.

Com o barulho do tapa, meus irmãos saíram dos seus quartos e nos olhavam atentos. Qual seria o próximo movimento?

_Não encosta mais em mim._ falei me afastando ao máximo dela.

Eu comecei a chorar, mas foram lágrimas silenciosas. Lágrimas do mais profundo ressentimento. Ressentimento de ser alvo da incompreensão daquela criatura que deveria ser a que mais me amava no mundo. Somente ao sentir o tom das minhas palavras, vi alguma espécie de dor nos olhos da minha mãe, mas não me comovi.

_Eu cansei disso._ falei limpando minhas próprias lágrimas.

Naquele momento, eu tinha tanta dor e ressentimento preso dentro de mim, que foi impossível segurar ou medir minhas palavras. Eu precisava falar, ou se não iria morrer.

_Eu cansei de ser bonzinho._ continuei _Cansei de ser aquele que nunca diz “não”. Cansei de ser aquele que está sempre apto para ajudar a todos, mas a quem sempre é negada ajuda. Cansei de ser um fantasma, pelo qual todos passam sem notar a existência. Cansei de me esconder, de me frear, de me anular. Cansei de poupar os outros.

Toda a minha família me olhava assustada e atenta. Eles nunca tinha me visto falando daquele jeito.

_E eu fazia isso porque eu achava que o problema é comigo. Eu achava que todos iam me odiar e me renegar, então eu me esforçava ao máximo para ser bonzinho, porque quem sabe isso viria a aplacar um pouquinho do ódio. Eu vivia a minha vida em função de agradar os outros, de fazê-los gostarem de mim. Isso não é vida.

Olhei triste pro céu lá fora, refletindo brevemente sobre tudo que passei até ali.

E se eu morresse amanhã?_ falei me lembrando do dia que quase me matei _O que diriam de mim? “Filho perfeito. Irmão amoroso. Grande companheiro. Ótimo estudante”. Isso é tão triste, tão frio e impessoal. Que marca que deixaria no mundo se morresse hoje? Que falta eu faria? Nenhuma, porque sempre teria alguém para ocupar o meu lugar, sempre teria alguém disposto a viver em função de agradar os outros. Somos muitos...

_Para de falar bobagens, Bernardo._ pediu Tiago, mas não lhe dei atenção.

_Então, eu fui a Paris e me apaixonei. Pela cidade e por um cara. E foi tudo tão surreal!_ ri visitando as lembranças que Ricardo deixara em mim _Eu voltei há poucos dias, mas ainda parece que foi tudo um sonho muito louco. Nós correndo apaixonados por Paris. Trocando beijos, de mãos dadas, dançando na rua...

Só então eu voltei a encarar a minha mãe, que me olhava atordoada.

_E sabe do melhor? Ninguém se importava! Vocês têm ideia do quanto isso é libertador? Perceber que o problema não é você, mas o mundinho que te cerca? E voltei para o meu mundinho aqui, contra todas as recomendações do que seria o mais saudável a se fazer. E eu voltei com uma missão: eu vou construir o meu mundo de novo. E desta vez, eu vou construí-lo do modo certo, doa a quem doer.

Todos eles me olhavam atentos, mas assustados. Eu nunca tinha dito aquelas coisa para nenhum deles. Eu nunca tinha lhes fornecido o meu lado da história. Eu nunca lhes mostrei a minha dor.

_Isso é um pouco egoísta? Talvez, mas eu já cumpri minha cota de altruísmo para uma vida inteira. É hora de pensar em mim. Eu quero deixar uma marca na vida, uma marca nas pessoas que me cercam. Eu voltei da França decidido a viver sem medo da morte, a me arriscar sem medo da dor, e a amar sem medo da represália._ olhei no fundo dos olhos da minha mãe quando disse isso _E não vai ser você que vai tirar isso de mim. Você não tem esse direito

Eu mesmo fiquei atordoado com minhas palavras. Eu não esperava por aquela avalanche emocional. Era pra tudo ser diferente. Eu precisava de ar. Abri a porta do apartamento e corri. Corri sem rumo pela noite. Nenhum deles me seguiu. Talvez por entender que eu precisava de um tempo sozinho, talvez por estarem atordoados demais para agir.

Aquela noite sem estrelas e sem vento, estranha, terminou comigo na cama de Pedro. Ele me olhava atento e caridoso enquanto Alice acariciava meus cabelos. Dormi vencido pelo cansaço sob os cuidados dos meus amigos.

Eu sabia desde o início que o momento que eu contasse para minha mãe que sou gay seria difícil. Eu nunca esperei lágrimas e abraços compreensíveis dela. Mas eu esperava uma conversa séria e franca, onde nós dois exporíamos nossos pontos de vistas e nossas opiniões, para assim chegar a um acordo. Tudo o que eu consegui naquela noite foi soltar a dor que eu guardava dentro de mim, embora eu ainda não saiba se foi uma coisa boa ou não. Não se enganem, a derradeira conversa com a minha mãe aconteceria um dia, só não seria naquela noite. Era apenas o início da mais longa e dura batalha que enfrentei na vida.


Quando abri os olhos naquela manhã de segunda-feira, ao mesmo tempo estranhei e reconheci vagamente onde estava. Demorei alguns segundos para colocar a cabeça no lugar e relembrar tudo o que tinha acontecido no dia anterior. Eu estava no quarto de Pedro. Eu tinha dormido ali, na sua cama, e ele estava dormindo num colchão no chão do quarto.

“Eu tenho que voltar para casa” era tudo no que eu conseguia pensar, mas como? Eu tinha dito coisas demais na noite passada, tinha me mostrado demais. Eu teria que abaixar a cabeça pra entrar em casa agora? Seria melhor se eu tivesse medido melhor minhas palavras no dia anterior, mas era tarde. Eu cheguei à conclusão que não tinha como bolar um plano para aquela situação. Não havia muito o que fazer. Uma hora eu teria que entrar em casa, afinal eu estava apenas com a roupa do corpo, e nessa hora só Deus sabe o que aconteceria. Minha reação dependia da reação da minha família, e eu não sabia como isso seria. Fechei os olhos e tentei dormir mais um pouco.

_Bernardo._ falou a voz de Pedro em algum lugar da minha cabeça enquanto eu era sacudido.

Abri os olhos e vi meu amigo já todo vestido.

_Bom dia._ grunhi me sentando na cama.

_Boa tarde, né? Quase uma da tarde já.

_Nossa...

_Dormiu bem, hein?

_Eu até acordei cedo, mas voltei a dormir.

_Ah... Então, a empregada está de férias e minha mãe trabalhando. Acho que você não vai querer se arriscar comigo cozinhando, então vamos almoçar no shopping?

_É... Pode ser.

_Quer uma roupa emprestada?

_Eu agradeceria.

_Pode pegar uma lá no armário.

_Valeu.

Pedro esperou eu me arrumar e aproveitou pra me contar que tinha ligado na minha casa e falado com Tiago onde eu estava. Eu confesso que nem me lembrei de avisar, mas fiquei aliviado dele ter feito. Com certeza evitou uma grande bronca. Passamos na casa de Alice e fomos nós três almoçar. Só quando nos sentamos, contei tudo o que tinha acontecido a eles. Na noite passada tinha falado apenas por alto.

_E qual é o próximo passo agora?_ perguntou Alice.

_Não sei._ respondi _Voltar pra casa. Não posso morar na casa do Pedro.

_Se quiser..._ falou Pedro meio brincando, meio sério.

_Não, essa nunca foi uma opção válida. Apesar de tudo, acredito que minha mãe nunca seria capaz de me expulsar de casa ou algo do tipo. E eu não vou sair até ter condição de me manter e tal.

_Mas você vai voltar como se nada tivesse acontecido?_ perguntou Alice.

_Não sei como vai ser. Depende muito da reação deles.

_Como você acha que eles vão reagir?

_Não tenho ideia.

Estava tudo muito nebuloso ainda. Eu não conseguia prever como as coisas se seguiriam dali pra frente.

_Quer dormir lá em casa de novo?_ perguntou Pedro _Eu posso passar na sua casa e pegar uma muda de roupas.

_Não, valeu. Não vou ficar fugindo deles, uma hora teremos que conversar e é melhor que seja rápido.

_Tem certeza?

_Não tenho certeza de nada neste momento. Mas eu não vou fugir._ falei.

Alice e Pedro me olharam sem jeito. Para eles, se assumir era uma coisa muito abstrata. Eles nunca precisaram ir pra frente da sua família e falar que eram heterossexuais, então era difícil para eles se colocarem no meu lugar e darem bons conselhos. O que eles faziam é dar conselhos dispersos e vazios. Como a intenção era boa, os ouvi com paciência.

Você está pra contar isso pra sua mãe há um ano, não esperava uma reação assim dela?_ perguntou Alice.

_Pior que esperava. Mas não foi planejado. O assunto surgiu e eu contei. Eu tinha planejado que tudo aconteceria mais calmamente, com apenas nós dois na conversa.

Eu não contei a eles sobre a gravidez de Laura, era um segredo só entre meus irmãos e eu, mais ninguém. Abaixei a cabeça sobre a mesa por um instante, só para refletir um pouco sobre tudo o que estava acontecendo. Por mais que eu amasse Pedro e Alice e prezasse pelos seus conselhos, eu precisava de um pouco de silêncio para colocar a cabeça no lugar. Eles entenderam e respeitaram.

_Oi, tudo bem com vocês?_ falou Pedro.

Levantei a cabeça para ver com quem ele estava falando, mas antes que pudesse me virar para descobrir em quem estava atrás de mim, Rafael respondeu:

_Vamos levando. E com vocês?

Lá estavam Rafael e Carolina parados atrás de mim de mãos dadas. Ainda era uma visão que incomodava, mas tentei não deixar isso transparecer. Carol estava visivelmente abatida, com profundas olheiras e expressão de cansaço.

_Oi..._ falei tentando não soar tão constrangido.

Evitei ao máximo em cruzar olhares com Rafael. Eu tinha dois medos: que nos entregássemos no olhar e que ele soubesse que tinha alguma coisa de errado só pelos meus olhos. Eu não estava certo se queria ele sabendo e se intrometendo no assunto. As coisas ainda estavam estranhas entre nós.

Bernardo! Você voltou!_ falou Carolina numa tentativa de parecer entusiasmada e me deu um beijo na bochecha.

Não interpretei aquilo como falsidade dela. A mãe dela estava morrendo, ela não tinha condições de ficar realmente feliz pela volta de um colega, mesmo se esse colega não fosse ex do seu namorado. E além do mais, ela não tinha motivos para não gostar de mim. Ela sabia que nunca mais tive nada com Rafael desde que eles começaram a namorar. Sim, com certeza havia ciúme, ainda mais por saber que ainda havia sentimento entre nós, ainda que ela não soubesse da magnitude desse sentimento. Mas ela sempre pareceu uma pessoa muito superior a isso tudo, não iria me tratar mal só por causa de ciúmes. Assim, fui cordial com ela também.

_Sim, faz uma semana. Como vai a sua mãe? Alice me contou...

_Ah..._ a expressão dela se entristeceu _É difícil. Mas estamos fortes e unidos nesse momento, e isso é o que importa.

Me soou como uma indireta, como se ela estivesse me falando sobre ela e Rafael, e não sobre sua família. Me perguntei se não era apenas paranoia minha e apenas balancei a cabeça em concordância. Ela me olhou de uma maneira estranha.

_Essa camisa... Não é uma que Pedro sempre usa?

Nessa hora entendi que a Carolina que eu via ali não era a mesma que eu conheci. Eu podia muito bem ter uma camisa igual a de Pedro, não? O que ela quis foi fazer inferno ali, o que foi patético dado todos os envolvidos. A insinuação soava cômica de tão inverossímil. Como ela disse uma vez, eu nunca representei perigo para o namoro dela por não estar empenhado em lutar por Rafael. Mas agora é diferente. E como ela teria descoberto? Rafael. Ele é muito transparente, com certeza havia mudado com ela e a associação com minha volta ao Brasil ficou clara.

Com minha visão periférica, vi os músculos de Alice se contraindo e Pedro colocar a sua mão sobre a dela, como se pedisse calma. Rafael levantou a sobrancelha desconfiado. Não era possível que ele estivesse levando a insinuação a sério, só devia estar surpreso com a própria namorada.

_A camisa é dele._ respondi sorrindo descaradamente.

Não sei se alguém esperava uma resposta elaborada, mas eu não estava disposto a dar. O clima pesou e Rafael interviu.

_Então, a gente se vê por aí. Só viemos almoçar, estamos voltando para o hospital. Até mais.

_Até._ eu respondi em uníssono com Pedro.

E me virei para não ver os dois indo embora de mãos dadas. Alice estava claramente puta da vida.

_Quem essa piranha pensa que é? Na minha frente?_ ela falou indignada.

_Calma, amor, ela está passando por um momento difícil._ falou Pedro.

_E? Eu já passei por muitos momentos difíceis e nunca cheguei perto de agredir uma pessoa gratuitamente assim.

Me preocupei em acabar de beber meu refrigerante sem me importar em dar uma opinião.

_Mas isso não vai ficar assim._ ela falou pegando o celular.

Ela começou a digitar rápido no celular. Pedro tentou ver o que estava acontecendo, mas ela não deixou.

_O que você vai fazer?_ perguntei preocupado.

_Você vai ver.

Rapidamente ela terminou, bloqueou o celular e o jogou sobre a mesa rindo triunfante.

_O que você fez, Alice?_ perguntei.

_Nada de mais. Só contei pro Rafael que você se assumiu para a sua família, foi expulso de casa e está morando na casa do Pedro temporariamente.

_O que?!_ perguntei tentando entender o que ela fez.

_Não dou dez minutos pro Rafael despachar ela e aparecer aqui.

_Mas isso é mentira!

_Detalhes.

_Você é do caralho!_ falou Pedro rindo.

_Eu não queria contar pra Rafael, Alice!_ falei exasperado.

_Por que não?

_Porque não!

Ela ia continuar, mas se conteve ao ver alguma coisa atrás de mim. Olhei para trás e vi Rafael vir apressado em nossa direção. Sem Carolina.

_O que aconteceu, Bernardo?_ ele falou se sentando à mesa e pegando na minha mão.

Foi impossível não sentir meu coração aquecido com ele me tocando e me olhando daquele jeito tão intimo, tão protetor e carinhoso. Mas eu não podia confundir as coisas. Não era a nossa hora ainda. Retirei minha mão cuidadosamente para não parecer muito grosso.

_É mentira da Alice, Rafa. Ela só queria fazer você correr pra cá e deixar Carolina sozinha.

Rafael olhou muito bravo para Alice, que nem ligou, continuou a sorrir triunfante. Ele se preparou para xingá-la, mas Pedro interviu:

_Em defesa dela, só metade era mentira.

Rafael me olhou confuso. Eu dei um longo suspiro e comecei.

_Eu contei para minha mãe. Meus irmãos descobriram ao longo da semana. Não houve uma grande briga, mas eu desabafei de um forma pouco aconselhável. Saí correndo de casa e fui pedir abrigo a Pedro. Não fui expulso. Não estou morando com Pedro. Apenas precisava de uma noite longe de casa.

_Por que você não me chamou?_ ele perguntou aflito.

_Porque você namora._ tentei responder de um jeito menos agressivo, mas ele se mostrou ofendido da mesma forma.

_Porra! Se eu não mais seu namorado, então eu não sou mais ninguém pra você?!_ falou ferido.

Eu cocei a cabeça. Encarei Pedro e Alice que escutavam atentamente. Eu fiquei constrangido de ter que discutir nosso relacionamento na frente deles, mas não teve jeito.

_Eu não pensei, Rafa. Não foi planejado. Eu não liguei para Pedro atrás de colo, eu liguei para ele atrás de um lugar para dormir e só. Você queria eu fosse dormir na sua casa? Acha mesmo que isso ia prestar?

A expressão dele relaxou com a resposta, mas ele ainda se mostrava aflito.

_Mas eu queria estar lá com você quando contasse. Eu queria segurar a sua mão..._ a voz dele foi se perdendo na última parte.

Ele desviou os olhos constrangido. Ele não podia mais segurar a minha mão. Ele não era mais meu namorado. Ele estava preso num namoro, e era um cara bacana demais para jogar tudo pro alto assim, por mais impulsivo que ele fosse. Me penalizei por ele. Não devia estar fácil para ele aqueles dias.

Eu não queria você lá nem se você ainda fosse meu namorado._ falei tentando soar o mais controlado possível _Eu não queria ninguém lá. Eu não queria nem meus irmãos, simplesmente aconteceu deles estarem lá no momento.

Ele voltou a se mostrar ofendido, ainda que menos do que antes. Olhei para Alice e Pedro que nos assistiam.

_Eu agradeço pelo apoio de vocês. Não tenho palavras pra dizer o quanto vocês são importantes para mim. Você em especial, Rafa. Mas essa é a minha batalha e ninguém pode lutá-la por mim. Minha mãe não vai ficar mais ou menos nervosa por ter alguém ao meu lado, ou eu não estarei mais ou menos forte. Somos só eu e ela. Você não entendem, nunca passaram por um momento como esse, nem mesmo você Rafa.

Me levantei da mesa enquanto os três me olhavam calados.

_Mais uma vez, agradeço imensamente por estarem ao meu lado. Mas a batalha é minha. Eu tenho que lutar sozinho. Tchau, depois a gente se fala.

E fui embora sem esperar uma resposta de nenhum deles. Era aquilo. Eu tinha uma sorte imensa de ter os três mais os meus irmãos ao meu lado, mas aquela era uma guerra solitária. Mais do que nunca, era necessário que eu lutasse sozinho, pois seria meu derradeiro teste. Eu tinha que provar para mim mesmo que deixei a fraqueza para trás quando embarquei rumo a Paris.


Voltar para casa era estranho. Ok, ainda era meu lar, mas alguma coisa tinha quebrado. Se antes eu saberia dizer onde cada um dos membros daquela casa estariam quando eu abrisse a porta ou mesmo que assuntos eles estariam discutindo uns com os outros, naquele momento era tudo um mistério. Tudo era um mistério.

Respirei fundo e abri a porta da minha casa no início da tarde daquela segunda-feira. Tudo parecia tão normal, apesar de eu sentir um clima estranho. Talvez fosse só impressão minha. A empregada me cumprimentou normalmente, não devia saber de nada do que tinha acontecido. O resto da casa estava em silêncio. Fui para o meu quarto sem escalas. Àquela hora da tarde, apenas Caio e Laura deveriam estar em casa. Se me ouviram chegar, nenhum deles veio até mim. Não, não acho que estivessem magoados de alguma forma comigo, apenas sem jeito depois do meu desabafo na noite anterior.

Com o dia chegando em fim, os membros da família que trabalhavam e passavam o dia fora foram chegando. O primeiro foi Tiago. Esse não titubeou: assim que percebeu que eu estava em casa, veio falar comigo.

_Tudo bem com você?_ perguntou com um certo cuidado na voz.

_Sim, tranquilo.

Eu tentava passar a impressão de tranquilidade, mas eu não estava tranquilo. Ok, de todos, Tiago era o último de quem eu esperava algum tipo de reação mais explosiva. Mas enfim, tinha muita tensão acumulada sobre as minhas costas.

_Você tem alguma coisa com o Pedro...?_ ele perguntou claramente sem jeito.

Eu ri e ele riu envergonhado. Ele fez a associação por saber que eu tinha dormido na casa do Pedro na noite anterior.

_Não, ele é hétero. E namora a Alice.

_Ah, porque você foi dormir lá e tal...

_Bom, os pais da Alice achariam bem estranho um cara passando a noite com ela na casa dela, sendo que ela namora outro. E eu não tenho muita intimidade com mais ninguém pra pedir pra passar a noite. Tem o Rafael, mas ela namora.

_Mas o Pedro também namora, uai.

_Mas o Rafael é meu ex-namorado, então...

Tiago voltou a ficar sem jeito. Ele me aceitava bem, mas ele não tinha se acostumado a me imaginar na cama ou num relacionamento com outro cara. Esse tipo de pré-conceito não cai de um dia para o outro.

_Vocês namoraram mesmo? Pra valer?

Eu não sei se ele estava mesmo interessado em saber ou apenas tentando participar mais da minha vida, mas resolvi lhe dar um voto de confiança e responder.

_É complicado falar de “namorar pra valer”. Tinha amor, fidelidade, compromisso, sexo, etc. Mas nunca teve aliança, ou idas ao cinema, ou apresentar aos pais. Eu nunca deixei ele fazer essas coisas.

_E como funcionava, então?

_Bem, não funcionou..._ completei triste.

Tiago coçou a cabeça confuso.

_Ele terminou com você por você não querer andar de mãos dadas com ele?

_Mais ou menos. É mais complicado que isso.

Era o máximo de resposta que eu pretendia dar, mas Tiago continuou me olhando esperando por mais. Dei um longo suspiro e completei:

_Rafael não quer simplesmente um namorado, ele quer um grande amor. Ele quer aquela coisa de sofrer, de morrer de amor, de viver de amor, de pegar na sua mão e dizer que juntos vamos enfrentar o mundo, etc. Eu não pude dar isso a ele, por isso ele terminou comigo. Para falar a verdade, eu não sei se posso dar isso a ele hoje ainda.

_Você fala como se vocês fossem voltar a ficar juntos.

_Pode ser. Torço para que sim.

_Você ainda gosta dele?

_Eu amo ele.

Tiago voltou a coçar a cabeça. Ele ficava claramente incomodado quando eu falava de amor com outro cara. Mas ele não me pediu para parar, ele queria realmente me ouvir e se acostumar com aquilo. A sua reação, se incomodar em saber que eu tenho uma vida sexual/amorosa com outro cara, seria uma constante para toda a minha família.

_Amor amor?

_Amor amor.

_Como nas novelas?_ perguntou zombeteiro tentando descontrair o clima.

_Não, um tipo real de amor. Aquele que tortura, que dói, que arde, que te tira do chão, que te faz fazer coisas que você jurava que nunca faria. O tipo de amor que te tira todas as certezas. Daquele tipo que quando acontece, você entende que nasceu para aquilo, que sua missão nesse mundo é amar aquele cara e só. O tipo de amor que faz você ter certeza que o outro é seu fim, não importa o caminho.

_Nossa..._ respondeu envergonhado.

É daquela maneira que eu me sentia com Rafael. Era difícil traduzir meu amor por ele em palavras, mas o que eu sentia era mais ou menos aquilo.

_Eu espero encontrar esse tipo de amor um dia..._ ele falou novamente em tom de brincadeira.

_Sinceramente, evite._ respondi.

_Por que?

_Amor não é fácil. Às vezes nem é bom. É um prazer quase sádico._ falei enquanto ele me encarava confuso _Amo Rafael, mas amo porque não tive escolhas. Se tivesse tido, não escolheria ele. Seria Ricardo, o cara que eu namorei em Paris. Com ele era tão mais fácil, tão mais prazeroso. Ou melhor ainda, seria uma menina. Isso evitaria tanta coisa...

Ele me olhou atento e abriu um sorriso discreto.

_Nem parece que você é o mais novo aqui. Você diz coisas tão complexas, como se já tivesse vivido muito mais do que eu.

_Talvez eu tenha. Uma vida não se mede em anos, mas em intensidade._ falei filosofando fazendo nós dois rirmos _Mas eu trocaria toda essa complexidade pela simplicidade. Creio que a felicidade esteja na simplicidade.

_Você não se considera feliz?

_Eu não sou feliz. Isso é uma coisa muito concreta pra mim, eu aceitei isso. Embora eu não aceite que esse seja meu estado natural. Eu já fui feliz e sei que é possível ser de novo. Eu tô tentando ser feliz, é por isso que eu preciso explodir, amar, falar das coisas que eu tenho guardado aqui dentro de mim.

Tiago voltou a sorrir e desviar o olhar. São coisas que eu penso constantemente, que vão e vêm na minha cabeça.

_Desculpe, eu tive que vir perguntar essas coisas._ falou meu irmão _Quando você falou aquelas coisas ontem à noite, de repente era como se não te conhecesse. Não como se você tivesse se transformado em outra pessoa de uma hora para outra, mas como se não soubesse das coisas que acontece com você, das coisas que você pensa, das coisas pelas quais você passa. E eu fico pensando se nós tivéssemos tido essa conversa antes, de algum jeito eu poderia ter evitado que você... Que você... Sei lá, você sabe...

Ele falava da minha tentativa de suicídio. Tal como aconteceu com Alice, Pedro e Rafael, aquela era uma marca que meu irmão carregaria para sempre: o arrependimento de não ter feito nada. Naquela época, minha cabeça estava tão bagunçada que eu duvido muito que algum deles pudesse realmente ajudar e fazer diferença. Sem contar que, por pior que tenha sido, talvez fosse preciso que eu chegasse àquele ponto para “acordar”. Talvez, talvez...

_Bom, eu me chamo Bernardo, tenho vinte anos de idade e sou gay. Sou tímido e quieto, mas explosivo se me levam ao limite. Amo um cara chamado Rafael, mas também amo um que se chama Ricardo. Perdi a virgindade aos dezoito anos com um cara chamado Eric, que eu não cheguei a namorar, mas que foi muito importante na minha vida e me ensinou lições cruciais ao morrer no final do ano retrasado. Sou o melhor amigo da Alice e do Pedro, duas das pessoas que conhecem meu pior lado. Eu tenho um objetivo na vida: ser feliz. E estou na luta por chegar lá. Prazer._ completei lhe estendo a mão.

Meu irmão riu e apertou minha mão.

_Me chamo Tiago, tenho vinte e seis anos, e sou advogado. Sou bastante comunicativo e pareço ter um milhão de amigos, mas a verdade é que talvez não tenha nenhum. Perdi a virgindade com minha primeira namorada aos quinze anos. Já tive muitas paixões e nenhum grande amor. Às vezes me sinto perdido, me perguntando o que estou fazendo da vida, mas passa. Sigo vivendo e procurando por algo a mais. Se esse algo a mais for amor, que venha com todos os efeitos colaterais, eu não ligo. Prazer.

Eu ri da sua descrição. Do aperto de mão ele me puxou para um abraço. Aquele abraço significou muito para mim, sem dúvidas, mas significou mais para ele. Meu irmão vivia num desespero silencioso, um desespero de não saber para onde está indo, se está fazendo as coisas certas. Eu não podia mostrar a ele nenhum caminho, mas eu podia estar lá para servir de porto seguro. Não se enganem, dali em diante, Tiago nunca mais foi o irmão mais velho. Essa função era minha agora.

_Posso conversar com seu irmão?_ falou meu pai à porta.

Ele não estava pedindo, ele estava mandando Tiago sair do quarto. Nós dois nos soltamos sem jeito por sermos pegos daquele jeito. Meu irmão saiu do quarto e fechou a porta atrás dele. Meu pai coçou a cabeça e se sentou na minha cama. Meu corpo tremia, embora eu tentasse disfarçar.

_Nós temos que conversar._ ele falou.

_Eu sei...

Me sentei na cadeira do computador e fiquei esperando pela sua conversa.

_Viver não é fácil, Bernardo, não é simples. Todos nós temos nossa parcela de medo, de defeitos, de mágoas. Todos nós temos demônios só nossos. E você tem os seus, eu entendo e respeito. Mas isso não lhe dá o direito de se revoltar contra essa família.

_Eu sei, eu só...

_Eu não terminei._ ele falou e eu me calei _Sua personalidade é uma combinação de fatores genéticos e de elementos da criação que te demos, sem dúvida. Lógico que temos participação na criação da pessoa que você é hoje, independente da sua sexualidade. Mas é a sua personalidade, só sua. É ela que faz de você uma pessoa tão diferente dos outros. Então, pare de jogar todos os seus problemas na sua personalidade. É quem você é e pronto. Aprenda a conviver com seus defeitos.

O tom que ele falava, como uma bronca, mexia muito comigo. Eu comecei a chorar silenciosamente.

_E daí que você é prestativo, que está sempre disposto a ajudar alguém? Isso não é defeito. Isso nunca te prejudicou. Você arranjou um jeito de correlacionar isso com sua sexualidade, e talvez sejam mesmo coisas correlacionadas. Mas não é por assumir sua sexualidade que você deva abrir mão de suas características. Não faça a idiotice de negar a sua própria personalidade, porque isso só te trará sofrimento no futuro.

Ele fez uma longa pausa antes de continuAr.

Você falou bobagens como “não deixar marcas”, o que não poderia ser mais errado. Você deixa marcas. Marcas não são grandes gestos, são justamente os pequenos. Você deixou uma marca profunda em mim, na sua mãe, nos seus irmãos e em cada um que te conhece. Você é uma pessoa extraordinária! Você acha que nunca percebi o estranho brilho que você tem nos olhos, o brilho de uma mente extremamente inquieta? Você acha que nunca percebi o jeito como você sorri, como se soubesse muito mais do que está falando? Você acha que nunca vi grandeza em você?

Nessa hora eu chorava ao ponto de quase soluçar, absorvendo cada palavra do que ele dizia.

_Você está destinado a ser grande. Não sei se um grande engenheiro, um grande pensador, um grande artista... Talvez nada disso. Sua grandeza está na diferença que você faz na vida das pessoas que te cercam. Eu vejo sua grandeza no abraço que você acaba de dar no seu irmão._ ele fez um gesto com as mãos me obrigando a olhar nos seus olhos _E você está tentando abrir mão dessa sua grandeza. Não faça isso. Sua sexualidade pode ter algum papel na formação da sua personalidade, mas esqueça essa ideia errada de abrir mão de todos os seus defeitos, pois são exatamente eles que fazem de você a pessoa que você é. Estar sempre disposto a ajudar os outros, mesmo que isso signifique deixar seus próprios problemas de lado por um instante, é a chave da sua grandeza.

Ele fez mais uma pausa antes de finalizar.

_Um dia eu não vou estar mais aqui. Mesmo que eu ainda esteja vivo, num futuro não tão distante eu posso estar despido de toda essa força que vocês veem em mim. Nesse momento, Bernardo, você vai assumir meu lugar. Você vai ser o pilar dessa família._ ele se levantou _Isso é tudo o que eu espero de você. Eu nunca esperei perfeição de você, nenhum pai espera.

Ele deu costas para sair, mas antes eu falei.

_A mamãe espera._ eu falei lutando para manter a voz firme.

Ele deu um suspiro cansado e voltou a se virar, ainda de pé.

Não, ela não espera perfeição de você, ela espera “normalidade”._ falou fazendo o sinal de aspas com os dedos _Eu sei que é uma coisa que não se deve esperar de ninguém, mas ela espera de você. Possivelmente, ela sempre viu em você o que ela viu no irmão dela. E não há nada que lhe tire mais o sono do que pensar que o mundo vá fazer com você o mesmo que fizeram com ele.

Ele deu mais um suspiro e já na porta completou:

_Tenha paciência com sua mãe. Ela não virá de dar um abraço hoje, ou amanhã, ou mesmo semana que vem. Eu sinto muito por isso, mas você ainda vai ter que engolir muito coisa dela. Tenha paciência. Ela ainda é sua mãe e ela ainda te ama. Mas ela precisa de tempo para perceber que você já é forte o suficiente para enfrentar o mundo e sair vitorioso.

Foram palavras que me marcaram fundo, todas elas. O jeito como ele contra-atacou a minha explosão no dia anterior me desarmou. Clarice Lispector escreveu uma vez:

“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”

Não há frase que me descrevesse mais precisamente naquele momento. Eu tinha defeitos? Claro, muitos. Mas eu não precisava eliminá-los um a um. O que eu precisava era contorná-los, dobrá-los a meu favor. Fazer deles a minha força. As palavras do meu pai ficariam para sempre na minha memória, sempre me servindo de força nas horas mais sombrias.

Quanto à minha mãe, a profecia dele se concretizaria: ela ainda demoraria muito tempo para me entender e me aceitar. Por mais que ela sempre soubesse, ela sempre viveu em negação quanto à minha sexualidade. Era preciso lhe dar tempo para que ela assimilasse tudo. Era preciso lhe dar espaço para sonhar novos sonhos e novos futuros para mim.

Mas esse dia ainda demoraria a chegar. Naquela noite, como ela sempre fazia, ela bateu no quarto de cada um dos filhos quando chegou do trabalho para ao menos lhes perguntar como passaram o dia. Pela primeira vez na vida, ela não bateu no meu quarto.


O clima em casa não estava bom. Certo, não houve briga, mas também não houve um entendimento. Ficou tudo muito estranho.

Minha mãe estava me evitando e não estava disfarçando isso. Ela dirigia a mim apenas frases automáticas e rotineiras, como “bom dia” ou “a janta tá pronta”, e quase sempre sem me olhar. Era uma coisa que me doía e me constrangia, pois todos em casa percebiam o quão ruim estava a situação. Eu queria falar alguma coisa, sacudir ela e mandar ela reagir, mas meu pai me pedia paciência, dizia que eu deveria dar tempo a ela. Mas quanto tempo seria preciso? A vida toda?

Contribuía para o clima ruim o fato de Laura andar muito quieta em virtude da interrupção da sua gravidez e de Caio ainda não ter voltado a falar comigo. Meus pais acharam que o que acontecia com Laura era devido à minha revelação e à reação da minha mãe, eles nunca descobriram a verdade. Quanto a Caio, eu não estava com cabeça para lidar com ele. Talvez ele até já estivesse aceitando a ideia toda, só não queria dar o braço a torcer e bater no meu quarto pedindo desculpas. Eu não estava no clima para abaixar a cabeça para ele como se eu fosse o errado da história. Já tinha passado da hora dele perder esse orgulho todo que tinha.

Com meu pai sempre trabalhando e tentando colocar panos quentes em casa quando estava entre nós, só me sobrou Tiago de companhia dentro de casa. Não era necessariamente uma coisa ruim. Ficamos muito próximos naqueles dias. Numa cena que tinha se tornado comum, Tiago revisava alguma coisa de trabalho sobre a escrivaninha enquanto eu jantava sentado no chão do seu quarto. Às vezes conversávamos, às vezes ficávamos em silêncio.

Você vai pra Porto Alegre este ano?_ ele perguntou.

_Sim, faltei ano passado. Tô em falta com a vovó. Sem falar que não preciso recusar e criar mais uma situação com a mamãe.

_É, pensando por esse lado...

_E você, vai?

_Sim, mas só vou passar o fim de semana. Eu e o papai voltamos antes, estamos trabalhando num processo grande.

_Você devia ficar mais, vai ser divertido._ falei rindo.

_Por que?_ perguntou sem me dar muita atenção.

_Porque vamos ter companhia lá este ano.

_É? Quem?

_Tio Aurélio e família.

Tiago me olhou com os olhos assustados. Eu me comunicava pela internet sempre que possível com meus primos alemães, e eles me disseram que tinham chegado a Porto Alegre no início daquela semana e estavam hospedados na casa da nossa avó, junto com Tio Aurélio e o marido. Não sei como estava a situação por lá, mas não devia ser nada muito preocupante, pois os gêmeos estavam adorando o Brasil e nossa avó. Engraçado porque ela nunca se comportou como avó comigo e com meus irmãos, mas enfim...

_Como?!

_O que você ouviu. Aliás, eles já estão lá.

_Como você sabe?

_Mantenho contato com nossos primos.

_Mamãe sabe?

_Duvido muito. Se soubesse já teria desistido de ir, ainda mais depois de tudo o que aconteceu aqui em casa.

_Você não deveria contar pra ela então? Evitar problemas?

_Eu? Mas ela não está nem falando comigo!_ falei em tom de brincadeira, apesar da mágoa ser verdadeira _Aliás, tio Aurélio e vovó são os principais interessados, e se eles não contaram, não sou que vou.

Partimos num sábado cedo rumo a Porto Alegre. Vovó já estaria nos esperando para almoçar. Só que não seríamos só nós desta vez. Eu estava inseguro de passar uma semana inteira com minha mãe me tratando daquele jeito e Laura e Caio muito pouco dispostos a conversar, uma vez que Tiago e meu pai iriam voltar pra casa no dia seguinte. O que me manteria lá era a companhia de tio Aurélio e família.

A manhã já ia terminando quando os dois táxis (pois é, família grande tinha desse problema) pararam na porta da casa da minha avó. Não sei se fui só eu que notei um clima diferente na casa, mesmo por fora. Estava mais iluminada, as janelas estavam todas abertas, o vento circulando forte dava um aspecto de frescor. Será que todo aquele tempo o grande fantasma daquela casa era meu avô?

Mamãe bateu campainha, vovó atendeu e ouvimos seus passos do lado dentro vindo nos receber. Tiago me olhou nervoso e eu sorri. Que começassem os jogos!

_Teresa! Que bom te ver minha filha!_ disse minha avó dando um abraço apertado na minha mãe, que se espantou com a reação.

Como eu já disse aqui, vovó sempre foi uma mulher de aparência triste e resignada, sempre tratando a todos com uma certa frieza. O que nós víamos ali era uma mulher solta, sorridente e calorosa. Seus cabelos, antes sempre presos, agora ela exibia soltos e grisalhos, sem vergonha alguma deles.

Ela se apressou a abraçar eu, meus irmãos e até meu pai, perguntando se tínhamos feito boa viagem. Todos nós nos olhamos confusos, mas ela não reparou ou não quis ver, e foi nos empurrando portão adentro. Eu gostaria de ter coragem de perguntar se aquilo era efeito da volta de tio Aurélio ou da morte do meu avô...

_Berrrnardo!_ gritou Lea na porta da casa ao me ver.

Ela veio correndo e me deu um abraço apertado. Não tinha mudado nada desde a última vez que nos vimos a poucos meses atrás, mas agora tínhamos mais intimidade um com o outro devido a muitas horas de conversa no MSN. Lukas chegou perto e me cumprimentou menos calorosamente, mas também tinha me aproximado dele naqueles meses. Quando olhei para minha família, estavam todos confusos se perguntando quem eram aqueles estranhos na casa da nossa avó. Como eles me conheciam? Como eu conhecia eles? Tiago, o único tão bem informado quanto eu, riu discretamente e nervoso, prevendo a tempestade.

_Venham cá, meninos._ chamou minha avó e os gêmeos a abraçaram um de cada lado _Esses são seus tios Teresa e Olavo, os pais do Bernardo. E esses são seus primos: Laura, Caio e Tiago.

Lea e Lukas os cumprimentaram muito cordialmente como bons alemães que eram. Até porque, a cara de surpresa da minha família não lhes permitia nada mais caloroso que isso.

_Tios? Como assim, mãe?_ perguntou minha mãe confusa.

Antes que minha avó pudesse responder, nossos olhares se voltaram para a figura que apareceu na porta: tio Aurélio. Estava tão bem quanto a última vez que o vira, mas agora ele trazia um sorriso aberto em vez da habitual expressão calma. Eu não sei se era felicidade de voltar para casa ou se era apenas para enfrentar a minha mãe. Caso fosse a segunda opção, tinha dado certo: minha mãe parecei ter perdido toda a cor do rosto. Pela expressão do meu pai, vi que ele desconfiou de quem se tratava. Caio e Laura continuam tão perdidos quanto antes.

_Olá!_ tio Aurélio falou descendo os degraus da varanda vindo em nossa direção.

Ele parou quase em frente à minha mãe, a encarando, mas se virou para mim:

_Guten Tag, Bernardo. Wie geht es dir?

_Sehr gut, danke.

_Estamos esperando uma nova visita em Berlim.

_Vontade não me falta!_ respondi rindo.

Pela primeira vez em dias, minha mãe me olhou nos olhos. Não sei o que ela estava sentindo, se era raiva, indignação, confusão... Acho até que ela estava muito atordoada para conseguir sentir qualquer coisa. Meu pai me recriminou com o olhar, como se eu tivesse armado tudo aquilo para atingir minha mãe. Desviei o olhar envergonhado. Eu não tinha armado nada, mas poderia ter deixado eles de sobreaviso...

_Crianças, esse é seu tio Aurélio. Veio passar o mês comigo no Brasil._ falou minha avó apresentando ele aos meus irmãos.

Eu já tinha contado a história dele para meus irmãos, então eles logo reconheceram o nome. Ainda estavam todos meio atordoados quando ele pegou na mão de cada um. Meu pai foi mais diplomático que meus irmãos, soltando um “muito prazer”.

Venha, vamos entrar, gente!_ falou minha avó _Depois arrumamos as malas. Se preparem para almoçar. O meu pernil eu garanto, mas só Deus sabe o que aquele alemão doido está preparando de acompanhamento.

Eu ri ao perceber que ela falava de Klaus, o marido do meu tio. Aparentemente, estava tudo bem, apesar dela estar bem séria quando se referiu a ele como “alemão doido”. Sem mais demoras, pegamos nossas malas e entramos na casa. Mamãe ficou para trás com tio Aurélio ainda atordoada. Ninguém ousou apressá-la, nem mesmo meu pai. Eu gostaria de saber como aquela conversa correu, mas eu teria que conviver com minha curiosidade.

_Você sabia disso?_ perguntou meu pai sério para mim, me fazendo tremer.

_Eu sabia que ele estava aqui... Conheci ele quando estava em Paris e mantive contato com meus primos.

Meu pai me olhou como se eu tivesse feito alguma grande travessura.

_Você deveria ter avisado.

_Vovó devia ter avisado. Se ela não fez, é por medo da mamãe não vir. Eu é que não ia me meter.

Ele me olhou como se não tivesse resposta, apenas fez sinal para que saísse de perto dele. Ele ficou vigiando minha mãe e tio Aurélio de longe na porta, com medo daquilo acabar mal. Minha vó nos levou para a sala de jantar, onde a mesa estava posta a nossa espera. Cumprimentei Klaus que continuava a simpatia em pessoa. Meus irmãos ficarem claramente sem graça com o jeito afeminado dele, e eu me envergonhei por eles, mas eu menti para mim mesmo que era só a surpresa do encontro. Todos nos sentamos e ficamos conversando sobre amenidades enquanto meus pais e tio Aurélio não apareciam.

Foram alguns minutos até os três apareceram na sala de jantar. Todos estavam muito sérios, tio Aurélio é o que tinha a expressão mais calma, ainda que tivesse perdido o sorriso de instantes atrás. Meus pais também estranharam Klaus, mas tentei ignorar o incômodo deles. Durante o almoço, os mais falantes eram eu, Klaus, minha avó, Lea e Lukas. Tiago foi entrando no papo aos poucos. Caio e Laura ainda estavam desconcertados com a surpresa, mas tentavam ser cordiais. Meu pai e tio Aurélio faziam alguns comentários pontuais. Minha mãe ficou calada durante todo o tempo, o que eu sabia que não era um bom sinal.

Ao fim do almoço, era hora de irmos para os quartos, e ali se deu o primeiro conflito daquele fim de semana.

_A gente vai para um hotel, mãe._ falou minha mãe _A casa está cheia, vai ficar todo mundo muito apertado.

_Mas a ideia é ter a casa cheia!_ ela respondeu.

_Vai ser melhor assim.

_Não precisa._ falou tio Aurélio interferindo _Eu e Klaus estamos hospedados numa pensão aqui perto, só os meninos estão dormindo aqui com a mamãe. Tem quarto de sobra para todos vocês.

Minha mãe evitou olhá-lo, e continuou encarando minha vó como se não tivesse sido interrompida.

_Viu?_ falou minha avó _Sem aperto. Laura pode dividir o quarto com Lea e Tiago pode dividir com Lukas. Caio e Bernardo dormem no outro quarto, e você e Olavo podem ficar no seu, como sempre. Alguém tem algum problema com isso?

Todos nós respondemos que não, e minha mãe não teve argumento contra, sendo forçada a ficar. Depois de instalados, nós descemos e ficamos conversando na sala. Menos a minha mãe. Ela não desceu do quarto por toda a tarde. Meu pai ficava indo e voltando, provavelmente em missão diplomática. Todos percebíamos o clima estranho, mas ninguém falava nada. Eu queria conversar a sós com tio Aurélio, mas eu entendia que não era hora ainda. Ele queria conviver um pouco mais com meus irmãos, saber sobre eles. Deixei que ele aproveitasse. Todos nós, até mesmo Laura e Caio (dentro dos limites da sua personalidade) nos divertimos jogando jogos de tabuleiros com os gêmeos.

À noite, minha mãe desceu arrumada e avisou que sairia com meu pai para jantar fora. Minha avó, não gostou, insistiu para que ela ficasse, mas eles saíram mesmo assim. Novamente, tentamos ignorar o clima ruim e continuamos nos divertindo. Já estavam todos até bem entrosados. Klaus, Lea e Lukas tinham personalidades muito cativantes.

No café da manhã no domingo, a bomba:

_Mãe,_ falou a minha mãe _Olavo está com muito trabalho em Belo Horizonte. Nós conversamos e achamos melhor irmos embora hoje à noite.

Era para ficarmos até quinta-feira. Lógico que não era problema com o trabalho do meu pai. Ele realmente voltaria no domingo com Tiago, mas eu ficaria com minha mãe, Laura e Caio. Ela não queria ficar lá com tio Aurélio. A presença dele incomodava ela. Mais: a presença da família feliz dele incomodava ela. Penso que se não fosse por mim, ela talvez ficaria para manter as aparências com a minha avó. Mas os acontecimentos dos últimos dias tornava a permanência dela naquela casa uma coisa impraticável.

_O que é isso, minha filha?_ falou minha avó séria _Vocês vão passar a semana.

_Realmente não podemos, mãe. Foi só uma visita rápida. Prometo compensar vindo em setembro ou outubro.

_Isso é por minha causa?_ perguntou tio Aurélio enquanto encarava com firmeza minha mãe.

Ela desviou o olhar do dele, mas antes eu vi mais do que incômodo neles. Eu vi raiva.

_Não, não é você. Nós realmente temos que ir.

O clima estava tenso. Ninguém ousava falar nada. Mas eu não era ninguém:

_Posso ficar até quinta-feira?

Meu pai me olhou severo. E pela segunda vez nos últimos dias, minha mãe me dirigiu um olhar. Desta vez estava muito claro que ela estava com raiva.

Não, não falei isso apenas para desafiá-la ou irritá-la. Eu realmente queria ficar. Não só pela presença dos meus primos, mas eu tinha muito o que conversar com tio Aurélio. Eu precisava me abrir com ele e pedir conselhos. Sem contar que seria muito bem vinda uma semana longe para refletir sobre a minha situação com Rafael.

_Temos que ir, Bernardo._ falou meu pai como se me desse um aviso.

_Mas eu quero ficar. Eu estou de férias e a minha passagem é pra quinta-feira mesmo, qual o problema?

_Nenhum, você é muito bem vindo aqui._ falou minha avó.

_Não me provoque!_ falou minha mãe entre os dentes me olhando com raiva.

Não me intimidei. Lógico que vê-la falando comigo daquele jeito me afetava, me feria profundamente. Mas eu estava cansado de abaixar a cabeça para a sua mente pequena. Eu não estava fazendo nada de errado, oras! Não era eu o errado da história, então por que deveria ser o que mais estava sendo penalizado?

_Não é provocação._ respondi devolvendo-lhe um olhar firme _É que aqui pelo menos eu vou ter alguém para conversar em casa.

Meus irmãos coçaram a cabeça, incomodados. Lea, Lukas e Klaus estavam envergonhados. Me senti mal por eles, mas eles teriam que se acostumar, afinal, era a família deles agora.

_Você que sabe. Fique._ respondeu minha mãe grosseiramente se levantando da mesa.

Mais uma vez, ela passou o dia no quarto, só descendo na hora de ir embora. Nós tentamos ignorar a sua cena mais cedo e nos divertir. Lógico que tive que ouvir broncas de Tiago e do meu pai, as quais ouvi calado, sem argumentar contra, mas não voltei atrás da minha decisão. Não era eu o errado da história!

À noite, eu ajudei a levar a mala dos meus irmãos para o táxi. Eles se acomodaram esperando meus pais, que foram se despedir da minha avó na cozinha, enquanto ela preparava o jantar. Lea e Lukas deviam estar tomando banho. Em frente à porta, observando a noite de inverno em Porto Alegre, senti uma mão sobre meu ombro. Era tio Aurélio.

Precisa conversar?

_Sim, mas não hoje._ falei cansado _Amanhã.

_Ok, vou estar aqui.

Nessa hora, meus pais e minha avó apareceram na sala onde estávamos. Minha mãe nem se preocupou em disfarçar seu desgosto em me ver conversando com tio Aurélio com sua mão em meu ombro.

_Pena que você não vai ficar mais, temos muito o que conversar._ falou tio Aurélio para minha mãe quando ela passou apressada por nós.

Ela se virou raivosa para ele. Estava bem claro para mim que ela segurava uma explosão na garganta.

_Eu estou indo embora porque não aguento ver isso mais._ ela falou apontando para ele e minha avó com o queixo _Vocês envergonhando a casa e a memória do meu pai.

_Teresa!_ falou meu pai brigando com ela _Tenha senso de ridículo!

Ela nem pareceu lhe dar ouvido, se virou e saiu. Minha avó e meu tio engoliram seco, mas deixaram passar. Eles já tinham passado por muita coisa na vida, ouvido muita coisa na vida, para deixar que a “memória” do meu avô os deixasse envergonhados por alguma coisa. Meu avô estava morto, e junto com ele os tempos mais sombrios daquela casa. Eu, no entanto, me envergonhei profundamente, mas pelo comportamento da minha mãe. Era estranhamente doloroso vê-la se prestado àquele papel tão bobo e pequeno. Era quase como seu eu nem a reconhecesse mais.

_Me desculpem, vocês conhecem..._ falou meu pai, que depois se virou para mim _Se cuide e não apronte, viu?

Balancei a cabeça afirmativamente. Não tinha intenção nenhuma de aprontar, muito pelo contrário. Finalmente, paz.


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Ficha do conto

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Nome do conto:
Bernardo [66-69] ~ Reunião familiar

Codigo do conto:
217952

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
13/08/2024

Quant.de Votos:
2

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